Tributo a ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO
ISABEL DE ARAGÃO
[hagiomaquia de uma anta]
A neta de Manfredo
a filha de Constança
que trouxe da Sicília ao Mondego
o vermelho do império
e o branco da heresia
A pedra pura de Aragão
a neve fria dos altos picos
a dama Cortesia
que Donis cantou
em versos doídos e abrasados
Ardeu mais fundo a neve
desfaleceu a rainha das rosas
e pingou em chão cortês
ó Santa Clara
a primeira gota do sangue de Inês
O dragão gibelino
a sobrinha da serpente alada
a loba da sombra
a Ísis que peregrinou ao fim da Terra
para sacrificar o ter
no sal do Tejo
Nas fragas de Alenquer
no desterro do nada
ardeu mais fundo a neve sem derreter
LEONOR TELES
[inscrição da morte que dança]
A rola real
a rosa encarnada
na graça e no esplendor da beleza
A nora de Constança
a herdeira de Inês
a espiral do fogo
a roseira
o fulgor da luz
o dedal de prata
a romã de oiro
cujo rugido de Amor é tão canoro e altivo
que inda agora no cimo do Sol se vê
a peregrina
a haste selvagem
a mulher anónima
a rainha maldita
a dama que não se some
o anel da vida
o pé ilógico
que preferiu o pó e a fome
à gaiola do reino
e do jardim zoológico
foi esta leoa
de cabelos em lume
e olhos em taça
que preferiu dar sete voltas ao mundo
e morrer de fome
e de dores
num fojo de espinhos
numa ilha deserta
os ossos dando às pedras
e ao caminho
do que dar a juba
à tesoura e ao chicote dos domadores
GOMES LEAL
[1848-1923]
Tinha uma cartola de cartão na cabeça
e lá dentro batiam asas aves
por cima estavam as árvores
numa mata cerrada e miúda
Só se via ao longe
uma virgem descalça e nua
que poisava ao luar da noite
No peito dele havia uma praça
com ondas muito altas e azuis
que se desfaziam em branca espuma
nas conchas e na areia brilhante
de uma praia sem tapume
Nos pés tinha garras de metal rugido
e à proa do cabelo barro seco
com excrementos de palavras
e entes hiantes de bolsas escancaradas
e dentes à mostra
que depois soltava na brisa quente
Nos joelhos trazia raízes de mandrágora
e insectos metálicos
que cuspiam hélices de fogo
e silvavam como salamandras de papel
Às vezes era um elefante
outras vezes uma girafa
e outras um dicionário a galope
e outras ainda uma serpentina verde gigante
Os seus braços eram asas
e a sua boca tinha a forma dum bico de águia
Os seus ombros eram feitos de água
e sabia voar por cima dos cemitérios
Fundia com o olhar o metal
e destruía com o sopro torres e prédios
Tinha um lenço mouro à volta do osso
e usava dois carimbos ao entardecer
Havia um rio a sair do seu peito
e um caminho azul desenhado no seu pescoço
No seu mento erguia-se um menir
e no seu nariz nasciam rosas
Deixou há muito o seu túmulo
e vagueia nos ventos
e nas vielas desertas e nocturnas
a soletrar fórmulas dosagens encantamentos
As crianças falam com ele
e à sua passagem mulheres de trinta anos
estendem os cabelos
e tocam nele com dedos de marfim
Continua a usar cartola de cartão
e a trazer nos bolsos duas orcas de papel
e duas bolas de sabão
Para ele não há princípio nem fim
Não morreu Não passou
Tem nas mãos de mármore
um livro desconhecido
e nos lábios finos e cerzidos
uma mensagem salteada
É hoje o último ferreiro vivo
o lacre da lama do ferro
a anta terna do Anticristo
o derradeiro fantasma do Tejo
a esvoaçar a cidade branca
e a tirar cinza e oiro da anca de uma cama
ALEXANDRA DAVID-NEEL
[1868-1969]
Teve durante anos no ouvido direito
um ninho de andorinhas
no esquerdo estava um tubo de zinco
uma pedra preta e um chicote mouro
Quando abria a mão direita
saía a correr um tigre de olhar em fogo
e quando abria a esquerda
via-se uma cortina de água limpa e serena
Cuspia quando queria labaredas
outras vezes deitava pela boca
berlindes de vidro e moedas de ouro
Tinha barba nas unhas
e bigode nas falanges
À luz da lua
parecia um esqueleto de um mamute
À luz do sol
transformava-se em dinamite
Tinha na narina direita uma árvore
e na esquerda um jumento em diamante
Era a reencarnação de um punhal
com duas lâminas
uma de pedra e outra de marfim
Tinha duas asas
a primeira era vermelha
e bordada a ouro
a segunda era preta
e cozida a fio de couro
Todos os dias fazia amor com um leão
e com um touro
À noite dormia sempre numa tenda
com duas cobras enroladas ao pescoço
Bebeu muito veneno
andou por muita senda
chupou muito osso
curou muita asma
lambeu muita lama
brincou com muito morto
falou com muito fantasma
amansou muito tigre
mexeu em muito dente torto
Hoje no Inverno é uma serpente de água
e no Verão um boné amarelo
na Primavera é uma pele de cabra
que joga às cartas com um sabre
No Outono tem as costas ocas
e cava um buraco nas rendas rotas
levando na rotação dos rins
um tinteiro do tempo dos Vândalos
com tinta preta de choco
e nos braços
um andaime em madeira de sândalo
TEIXEIRA DE PASCOAES
[1877-1952]
Passei a vida a falar de ti
e nada sei da tua pessoa
nunca te vi
Passei a vida a falar dos teus livros
e nada sei deles
nunca te li
Passei a vida a falar do teu verbo
e nada posso dizer
nunca te ouvi
Passei a vida a falar da tua casa e da tua serra
e não sei onde ficam
nunca lá fui
Olho os teus olhos numa fotografia
a asa negra do cabelo
a testa fria
a finura dos lábios de papel
a brancura lívida do rosto
e fico abismado
és para mim o absoluto desconhecido
Quem és tu afinal?
Que livros são os teus?
Em que lugar moraste?
Que fundo poço há em ti?
Que escuridão é a tua?
Que corpo foi o teu?
Qual a terra que pisaste?
Que sentido tem o que escreveste?
Em que serra tu andaste?
E que vida tu viveste?
Que Lua contemplaste?
Que mistério tão escuro e tão grande foi o teu?
Outros e outros até ao fim
virão depois de mim
e sem melhor sorte
passarão os sóis a falar de ti
da tua casa e dos teus versos
a procurar a origem do teu rosto
e o pico da tua serra
no fim quando a noite chegar
e o osso da lua
os acompanhar no mar da morte
dirão assombrados como eu
que nada sabem de ti
Tudo passa
e tudo esquece
a carne e o sangue
desaparecem na voragem das eras
as pedras e as cidades
desfazem-se em pó
tudo se perde
e tudo se vai
mas tu vences o tempo
atravessas as camadas do esquecimento
sobrevives às idades
levantas a mão
acenas um sinal e permaneces
vives para sempre
ignoto oculto imortal
LUIZ PACHECO
[1925-2008]
foi outro Fernando Pessoa
com mais miopia e mais filhos
teve também ele um dedo que voa
e um astro adverso e chato
mas não lhe bastou pôr mais dioptrias
ou escrever um verso
nem mesmo gritar MERDA
ou chamar um rato
já que aos Coelhos
os mandou para a cona-da-mãe street
e às Pedrosas lhes chamou filhas-da-puta
teve o talento e a lucidez do outro
mas também mais tasca e mais verdade
foi mais barato e mais raro
porque brincou e fingiu
mas não fugiu
frequentou as aulas da Faculdade de Letras
em pijama de popelina às riscas
andou descalço
a mostrar os pés de rinoceronte
no bolso tinha um telescópio
que lhe servia para comer de manhã
inventou um país na Oceânia
usou um barrete de lã vermelha
falsificou selos e dinheiro
rapou as sobrancelhas
pôs um campo de tiro no peito
e no sexo um teodolito
não reconheceu qualquer sinal
tirou lenços e cascavéis dos ouvidos
deu muito couce de touro
e um rugido de leão
pagou as contas com búzios
sentou-se à mesa dos grandes
e mostrou a rir os dentes de jacaré
no Rossio no meio do lixo
voltou costas ao SNI
e aos prémios da caca
no Chiado aviou o litro
pintou o sete
e cagou nas estátuas
e nos doutores da alpista e da alpaca
deu gravata casa garfos e sapatos
e descalço e nú
sempre cheio de sede
entre Tejo e Sado
vadio e genial
pintado de barro seco
recém-nascido e cego
mas nunca mudo
ficou a sorrir e a falar
entre tolos bêbedos e gafos
PEDRO OOM
[1926-1974]
Quando abria a boca
tinha dentro uma inquietante essa
e um baralho de cartas
Trinta lâminas coloridas
com quatro pintas
e ilustradas no verso
com trinta posições sexuais
Havia ainda as lâminas finas
dos arcanos maiores
com desenhos vivos
e ilustradas no verso
com mais uma quina
de Afrodites anais
e outros tantos Ganimedes
Sabia fazer da língua
uma mesa de jogo
e uma cama de entrudo
que em vez de pano de feltro
e manta de veludo
tinha anémonas e veltro
Punha-se a quatro patas
e o seu dorso era um planalto
tão vasto e tão vário
que se viam índios a montar tendas
em florestas húmidas
e árabes a andar na areia seca
em caravanas de dromedários
Os seus olhos eram grandes janelas
e quando os abria
viam-se dois salões de pedra
iluminados pela labareda do lume
com cavalos mansos a pastar
e com mulheres nuas
recostadas em almofadas de seda
Outras vezes
ouvia-se ao alto o silvo assustador
dum dragão de ferro a passar
Às vezes a paisagem mudava
e via-se então um pátio
com crianças nuas e aos saltos
Mas era no peito que estava
o centro do perigo
O seu coração
era de metal preto polido
Tinha o formato de uma âncora pesada
um rastilho tão grande
um olho tão aberto de sonda
que podia descer e observar
o fundo de todos os mares
Outras vezes parecia uma bomba
pulsava aos gritos
batia com estrondo
crescia e inchava tanto
e sabia tão bem rir
que a qualquer momento podia explodir
VIRGÍLIO MARTINHO
[1928-1994]
tinha dentro dele um carnaval
e uma taberna
num recanto do seu peito havia sal
e samba
noutro brilhava um alfange de aço fino
tinha nos ombros colchas vermelhas
e à cintura um punhal e um bailarino
passava pela multidão a rir
e atravessava os casinos
em cima de andas
rodeado por panos e cortinas
levava na mão sinistra
um cálice de veneno
e na outra um citrino branco
tinha na cabeça um teatro
e um fantasma de serpente
punha no palco uma lua cheia
vestia-a de renda
e punha-lhe no cabelo um pente
repetia tudo com muitas colcheias
chegava em cima dum barco
dando voltas à plateia
e enrolando uma cobra ao pescoço
era uma elipse das areias
um arlequim de púrpura salgada
um bárbaro sem calças
uma criança louca
um bailarino e um cornetim
usava calça de cartão e fecho de fraque
desfez orquestras e desportos
bebeu marfim
comeu chumbo a ferver
anunciou espectáculos
regeu esqueletos e revoluções
converteu esferas
rolou cadáveres
e mastigou canhões e alfinetes
andou na cúpula do trapézio
e enfrentou o perigo em queda livre
sem rede nem almofada
foi um folião de saia a correr na pista
deu tudo o que tinha
capa chicote bombarda e relógio
deixou apenas em herança uma festa
um gnomo uma barbatana
e uma palavra vindicativa e reverberante
GONÇALO DUARTE
[1936-1986]
era um peixe voador cinzento
com cauda viva e bem encarnada
tinha calção branco de criança
suspensórios elásticos de anão
o pescoço sujo e acetinado
o peito aveludado de seda
e lá no meio bordada em oiro
bem na dobra do papo
tinha uma moeda e um grão de prata
que imitava o silvo de uma cobra
gostava de fugir sempre ao sábado
e no dia treze de maio abria as asas
e mostrava a penugem do sovaco
no resto da semana era sociável
apertava os botões
palrava sorria murmurava
tinha um olhar descansado
de quem corria todos os cordões
mas havia um toque retorcido no bico
uma tremura de choupo
e um tique de poupa alucinado
gostava de ler Os Lusíadas
de sair com anões
de beber café e recortar imagens
mas não dava a mão a ninguém
guardava a destra só para pintar
losangos esgares e personagens
e a esquerda apenas para agarrar
paleta tintas carvão e cal
quando fugia era para a Mouraria
ou para o alto da igreja de São Mamede
ou ainda para a frontaria da ESBAL
punha-se a falar com as água do rio
e depois vinha ter ao Beira Gare
na esquina da estação do Rossio
mais tarde bateu asa e voou para Paris
pôs-se então a grasnar de madrugada
e a cantar numa capa de oleado preto
com olhos cegos de prego
diziam que era um corvo de catedral
assombrado profético infernal
ou então um cuco de prata do Sena
que andava descalço e com ranho
e que tinha uma cabra magra a pastar
passava as noites no mesmo sítio
sem sair e sem tomar banho
com o pezinho de pássaro levantado
a barbatana de peixe a dar a dar
pincel firme olho de águia e sem cair
ficava a pintar o trambolhãozinho
de Arzila Larache e Alcácer Quibir
nos dias de luz e de pó de sol e de sal
gostava de se alcandorar nas partes altas
das ruas e das praças de Montmartre
e de ficar a ver livros com estampas
de mulheres a esvaírem-se em sangue
não tinha motor
e por isso corria a barbatana
nas noites sem paradeiro de névoa e cinza
punha-se a flutuar de costas à flor do rio
até que se transformou de peixe em espinha
hoje nas tardes tardas do degelo às postas
é um andor de mármore
embrulhado em folha púrpura de vinha
MANUEL DE CASTRO
[1934-1971]
as cartas e os arcanos
o budismo e a metempsicose
os Gregos sem a osteoporose
o facto indo-iraniano
Varuna é um deus de giz
a palavra é sibilina
cala sugere sinaliza e não diz
é preciso ir à poesia
oráculo e mântica
nada de mecânica
demência dos piões
e do coágulo da ânsia
diálogo com as religiões
mas a sacudir a bater
todos os saimentos
e todas as coadas repressões
nem o satânico nome de Deus
nem o demiúrgico Satã bíblico
o demónio sim
o luciferismo num jardim
o daimon arcaico
o demonismo
o génio voltaico
que inspira dor e urge
a poesia cita o criador do acto
o demiurgo
o diabo que divide é o que cria
os pontos do contacto
abomina a matéria e escreve
a Espinha do Peixe é gozo e tragédia
doença dor e dúvida
a expressão não chega
a acção também não
é necessária o génio inspirador
a transformação
o rito do daimon
o ser transfigurado
a metamorfose a mata-borrão
na transfiguração pode haver transporte
viagem e sublimação
Ísis o mago a cultura hindu
ritual magia de papel
demónio e serpe
o caminho de Hermes e de Set
(mas não o de Caim menos ainda o de Abel)
em lugar de Jerusalém e de Meca
a Torre e o terno de Saint Jacques
e a Boca do Inferno
em lugar das cidades e das forjas
o mar e a luz
em lugar do clone a espuma do cone
o segredo da pedra e o gótico da renda
a via da mão esquerda
a senda
o lugar impossível
o poema do osso óptico e o sal do fim
eis o plano orgânico
da poesia de Manuel de Castro
a sua casa trinca o Trickster
não é estética nem actual
dá de barato o Manuel hino
vai do castro ao canto
vai do antro ao astro
nem grande nem pequenino
é riso e iniciação
paraíso sideral
onde a Serpente abre as asas
e deixa o seu exílio hibernal
ALEXANDRE VARGAS
[1952-2018]
foi gerado nos confins do mundo
na solidão rarefeita da estratosfera
no silêncio absoluto dos tectos
e tinha dentro de si as neves eternas da Sibéria
o pai era uma peça corpulenta
com a cabeça a arder em fogo branco
um urso nadador dos mares gelados da Noruega
e a mãe era uma gazela que comia peixe
e chupava trevo canela e neve
no seu corpo havia florestas frias
com renas e abetos
tudo estava limpo de sinais
nenhum sopro nenhuma hiena
rios intactos e mares congelados
onde não avançava um remo
ventos estáticos e boreais
tudo nele era interminável branco gelado
estepes e mais estepes
onde não se via ninguém e não se ouvia um eco
a sua pele era uma casa vazia
uma película de gelo tão fria que escaldava
o seu sangue era diamante virgem
os seus olhos dois fundos poços
no centro do seu peito havia um alvo pajem
e era lá que brilhava o Sol dos pólos
um dos seus pés era em zinco
e o outro em oiro
o seu cabelo era de algodão azul
a sua mão esquerda estava na Antártida
a outra era benemérita e apátrida
punha um olho místico na Arrábida
enquanto o outro ficava vazio
com um átrio clássico e sem mobília
às vezes cantava ópera no São Carlos
e quando não tinha medo e dava um beijo
era um feto ou uma criança
que mostrava o eixo da língua
e dava a ver uma infinita pauta de solfejo
a sua vida era o forro material de um telhado
o seu corpo era um sótão alto e escondido
atravessado por um corredor de gesso
as paredes estavam cheias de gelo espesso
no ar explodiam bolas de cristal
dos beirais pingava um sincelo de vidro
no tecto brilhavam sinos e diamantes
nas arcas rebentava uma descarga musical
e nos recantos acumulava-se uma neve branca
que esplendecia numa irisada aurora boreal
NANDA LOPES
[1963-2012]
No seu corpo tudo era floresta
nenhuma árvore estava cortada
nenhuma pedra fora removida
os tigres andavam à solta
e os leões reinavam ao alto
todos os mares bramiam em ondas
todos os rios corriam aos saltos
nada estava domesticado
e tudo era bárbaro e selvagem
A sua alma era uma aia verde
que corria ao entardecer
e silenciosa com os olhos em brasa
espiava a noite dos cavalos baios
A sua alma tinha grandes livros
era um tau de madeira polida
um pássaro de antenas lilases
que todas as madrugadas pares
vinha tocar flauta e violino
A sua mente Ó a sua mente
era uma flor perfeita de cristal
com pétalas de lume
estames de oiro e diamante
e o pólen peripatético de sal
nenhuma tempestade a perturbava
nenhum dedo lhe tocava
nenhum medo a agitava
nenhuma magia a abanava
Era uma anã branca
que explodia no seu campo magnético
Intacta Livre Impoluta
cresceu no estrume e na lama
e viveu em cima de uma nuvem
com uma bracelete de búzios no punho
e uma romã na palma da mão
Andou sempre descalça
com uma galáxia a crescer-lhe no coração
não precisou de comer nem de beber
não necessitou sequer de se vestir
chegou-lhe um saco e cheirar o chão
bastou-lhe o ar sem fim e o céu azul
e a montanha do Japão
onde viveu a sonhar com a cor do carmim
Era um pedaço de sabão e uma anã de bigode
um peixe dourado e um tambor sem pele
uma redonda dança
que pertencia ao tecto das éguas
ou às águas mais profundas
como o nenúfar pertence à mãe das pérolas
ISABEL MEIRELLES
[retrato]
para facilitar falava em francês
e apontava la preface
escutava falava e voltava ao português
era um bicho de areia
feito de metal duro e cotim cerzido
tinha dentro dela uma duna macia
e no pulmão havia um muro com ameia
vivera de espumas e de esferas
chupara o galão salgado das ondas
metera a mão na linha redonda
andara na espera dos limões
e dera traves às falhas das orquestras
muita escultura na palha das fenestras
agora dava passeios pelo Pigalle
arrebatava bilhetes de lotaria
escutava a canção das toalhas
lambia os beiços do rio
punha nos olhos dentífrico
parava sempre a meio e repetia um traço
suspirava com ânsia um ah
e do que ela gostava era mesmo do braço
e da ficção científica
queixou-se do França mas não da França
tinha-lhe vetado uma antologia
sempre por perto sempre o mesmo
sempre esperto
tanto veto e tanto dia
do Gelo só cinco poetas – dizia à cautela
O Pressler com azar – mais que certo
a minha Isabel era a mulher da lambreta
dum sonho do Mário
a dobrar a esquina de Paris de calça preta
óculos escuros gancho de ferro no cabelo
de aço e ensebado blusão de cabedal
ou a Isabelinha do Artur
a cantar uma modinha existencial
oiço a voz dela no fundo dum armário
é lá ao longe na cozinha do índico
há azul no som e na rua o fogo
ar de barro e serpentinas de carnaval
nada de prego a fundo
a Lua nova a brilhar no prato
e basta a estrela de cartão no céu ao alto
uma antologia da poesia surrealista – diz ela
e vai no escuro o poema do mundo
e na mão a sombra de ferrar os astros
FRANCISCO PALMA DIAS
[retrato]
era um elfo pintado a branco e tinto
esfolado vinte vezes a vime
com um paivante e a sina duma taça
havia nele um cigano de cinta e cotim
com uma camisa preta
que tinha um buraco na testa em brasa
e uma serpente tatuada no braço
no seu coração havia um sapato de volteio
para esticar o quinto e bater a asa
numa mão tinha uma porta que se atravessa
e nunca se deixa a meio
na outra tinha um ciclone
uma vara uma ponta de leme e de estrume
um chicote de luz e de estalos
e o seu pensamento era um pirata de vidro
com muito lume a arder em álcool
tinha olhar de aço
e duas sardas de prata no cabelo
trazia com ele um grito ao espelho
os olhos de ferro
os dedos em grade
uma cobra do deserto para cantar o Fado
baixava então os dedos
colava um selo debaixo da Lua
punha um trunfo de oiro na palha
desenhava um toiro na areia
passava com uma rosa nos lábios
deitava fora o dinheiro
era uma águia doida e sereníssima
uma água ardente em convulsão
que trazia na boca sons sibilinos
tinha dentro dele um porta-bandeira
um alferes do nada e do não
era o mitógrafo da mão esquerda
a sua alma era uma sala de castelo
onde vivia um Camões castanho
que enrolava tabaco e bebia um vulcão
havia no seu ser um dorso
que levantava o Mar
gritava as oitavas da tempestade
olhava de frente o Adamastor
e fugia no Lusitânia-Express
hoje sem barco à vela e sem monstro
sem madre Tethys e sem Ilha do Amor
é um duplo às sentado à mesa do deserto
a falar da cobra una dos Himalaias
e do degolado de Suassuna
JÚLIO HENRIQUES
[retrato]
o último salteador das relvas
o último pirata da récita
o último abegão de cinta preta
o último pregoeiro com chapéu de papel
o último menino da corneta de latão
o último mensageiro dos sonhos da Terra
o que sonhou que pode fritar a Torre de Babel
o que sonhou que pode comer automóveis
o que sonhou que pode engolir dinheiro
o que sonhou com cavalos verdes e prados de mel
o que sonhou que pode mastigar autómatos
e em seu lugar pôr um intervalo branco
o que sonhou tudo isto por fora
numa fenda do deserto e todo nu
com os olhos bem abertos
o que tem mãos de maestro
o que tem uma flauta de luz
o que desce à Terra sob forma de música
o que voa sobre as altas falésias
o que diz a verdade a rir
o que tem pés de lobo e crina de cavalo
o que tem no seio um búzio de vidro
o que no olho esquerdo tem uma sala preta
o que sabe fazer bruxedos nas bibliotecas
o que escreveu um manual para parar buldózeres
o que não hesita em correr nas florestas
o que vai atrás de um anjo
o que se transforma em lobo manso
o que sabe tirar um pássaro do chapéu
o que faz com as mãos um brinquedo
o que tem borboletas poisadas nas pestanas
e no ombro esquerdo um ninho de rolas
e nas costas uma barbatana
que lhe permite viajar no fundo do mar
o que tem um recife de corais nos cabelos
e é capaz de transformar uma luva em ostra
e uma argola em loba
o que faz a magia da água e do fogo
o que ficou fiel à bruxa Medeia
o que usa uma máscara de índio
o que anda à chuva e passeia um saco
o que come uma chave
o que mastiga uma trave de prata
o que tem um osso de fora e um sapato de pau
o que anda em cima das águas de um lago
o que sabe saltar à corda de lado
o que toma chá com a dama loucura
o que vive com um esquilo no flanco esquerdo
o que traçou o itinerário do segredo
o que se tornou o gémeo da nova aventura
o que traz com ele uma osga ateia
o que surge em todos os lugares
em que se faz com o dinheiro uma fogueira
o que não quis o Velo de Oiro
o músico verde
o cosmógrafo bárbaro
o malabarista precursor
o argonauta da lã da ceia
o Grande Patafísico
que sabe em sonhos a rota da Ilha do Tesouro
EUGENIO CASTRO
[retrato]
um lobo com os olhos pintados de azul
e uma estrela doirada na testa
um urso polar com as unhas polidas
e um vestido de princesa
um cavalo com o pescoço lilás
um elefante com asas de seda
e sabrinas de bailarina
um gavião com dentes de marfim
uma onça voadora de Atacama
um coiote que come alfaces
uma toupeira que tira cordéis do Sol
uma salamandra que faz sinos de prata
um morcego com um chapéu de três pontas
uma raposa que se transforma ao meio-dia
numa hélice de papel
um ser híbrido entre a noite e o dia
q ue aparece ao anoitecer nas praias
e nos recitais de poesia
um bicho dos bosques
um mascarado do pátio das comédias
um feiticeiro que inventa alfinetes
e atravessa os bordéis num fio de luz
um cigano que corre nas linhas da mão
e fala só por sinais
um ás de espadas que dá hidromel
um triângulo visigótico
que aparece no vento e no céu
uma pedra um relógio um bigode
EL GRAN BOSCOSO
MARA ROSA
[retrato]
tem na linha suave do dorso e da pele
a altura e a leveza de um choupo
a agilidade de uma pantera
o êxtase do silêncio
a delicadeza polida do marfim
a humildade de uma flor
a soberania de uma dança
a plenitude de um caminho sem fim
no peito tem infinitas praias
conchas ostras areias e pérolas
muitas pedras altas e silenciosas
menires pré-históricos
restos de cerâmica
vestígios do calcolítico
corredores de antas
e de cemitérios paleolíticos
nada-lhe um peixe na boca
e no traço liso do rosto
tem uma amendoeira em flor
e a espessura da noite
os seus olhos são duas estrelas
a ferver em lume
ou dois vitrais pintados com luz
e os seus ouvidos dois búzios
onde se ouve o eco das tempestades
os seus lábios são frutos e flores
há água a escorrer nas suas pálpebras
limos tranças lianas algas e sinos
oscilações espasmos e sonhos
os seus cabelos são uma floresta virgem
uma catarata negra na vertigem do dia
um refúgio de salvação
com pássaros a cantar nas clareiras do sol
na sua cabeça há duas antenas verdes
e na sua mão direita uma flor de seda
os seus dedos apontam à terra
e são talheres polidos de marfim
nas suas ancas há uma gazela
que corre selvagem nas últimas savanas
na sua cintura há fios de prata
diamantes cristais bosques montanhas
e uma mina tão funda que não tem fim
os seus pés são dois juncos
e o seu peito um véu de névoa
o seu perigo está no triângulo das pernas
e nas asas tão finas e transparentes
que uma só palavra dita de manhã
as pode ferir
na sua alma há um rugido de leão
uma fera selvagem que corre
um encantamento de ervas e de venenos
um feitiço de feira azul
e muitos fogos a dançar em êxtase
na sua alma há uma freira nua
a paixão ardente do vinho
um casco de cabra e de saibro
na sua vida há uma trama de desejo
noites nupciais de convulsões
a inocência última e doce
a euforia do sol e do riso
o seu coração é feito de lume
o seu corpo está talhado no vime
e o seu rosto deitado no feno
eu estou sentado aos seus pés
em cinco caixas de cartão
e tenho nas mãos um número de feltro
e nos olhos duas ânforas de barro
eu estou sentado ao pé do seu sono
e recolho num jarro cego o medronho
que escorre das vísceras
e dos corredores aéreos dos seus sonhos
ANTÓNIO TELMO
[na sua morte]
À esquina o nome do lugar
Na porta a declaração de óbito
e uma fotografia a preto e branco
Um homem de óculos
de ar impenetrável e amplo
Na capela uma caixa de pinho
embrulhada em veludo preto e
coberta com um pano cor de vinho
Por cima pétalas e rosas
Aos pés duas batas de flores
Diante o altar com crucifixo em lata
No nicho em pau as santas do lugar
Ao cimo um Cristo triste no Calvário
com cruz e espinhos
Nos bancos corridos
sombras negras que compõem o cenário
Um grupo de amigos caminha e avança
No centro a caixa preta de pinho
O Filósofo é agora o tapete
à volta do qual se vive o transe
No silêncio hierático e puro
da sua boca selada pelo não ser
brilha o azul incriado do verbo escuro
Morte mistério da iniciação
E numa rosa quente a arder
que alguém lhe pôs à altura d’ coração
explode a luz em fogo do Oriente
Revista Triplov
Tributo a António Cândido Franco – Índice
Portugal – Maio de 2023