ANTÍMIO DAMIÃO
Antímio Damião (Portugal). Autor / Desenhador Gráfico / Estudante de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa.
DOIS iNTRUSOS
Ao regressar a casa após o trabalho, encontrei, no vestíbulo, dois rufias escanzelados de uniforme colegial e cabelo crespo. Ainda que os convidasse a sair e empurrasse uma e outra vez para fora de casa, eles recusaram-se a obedecer. Como a fadiga permeava todo o meu corpo, deixei-os em paz e fui-me deitar. A páginas tantas, acordei a meio da noite. Um dos rapazes estava deitado na cama do lado, de cotovelo apoiado na almofada e a fitar-me ostensivamente. De repente, começou a rir-se, sendo eu o motivo da troça. Tentei enxotá-lo, mas ele nem pestanejou. Corri a abrir a porta do quarto e deparei-me com a outra metade da dupla. Desci à sala e sentei-me no sofá. Pouco depois, apareceram ambos à porta do corredor, lado a lado, a sorrir. Tive a sensação de que não sairiam tão cedo de minha casa. Na sua idade, então, não tardariam a pedir-me comida. A sua presença incomodava-me, ainda que a solidão de antes já não me fosse fardo após o divórcio. Além disso, tinha de me levantar cedo para ir trabalhar, o que, de certo modo, os deixaria à vontade para fazer o que bem entendessem. Em verdade, já mal suportava os dias no escritório e a repetição enfadonha da minha vida. De qualquer das formas, os rapazes ali estavam como cães famintos e ansiosos.
Pouco a pouco, fui cedendo aos avanços letárgicos da madrugada. Quando dei por mim, tinha adormecido no sofá. Ao acordar, apurei com desgosto que o par se encontrava ainda à ombreira da porta, a olhar-me. Fiquei com sede e fui beber água à cozinha. Acendi a luz e descobri as cabecinhas dos dois rapazes do outro lado da mesa. Para além de se recusarem a sair, pareciam troçar da minha cara e, pior ainda, da minha sanidade. Enchi um copo com água e atirei-a para cima deles. Nada; nem sequer se mexeram. Arrependi-me e peguei num pano para os limpar. Ao virar-me, tinham desaparecido. Aquele jogo das escondidas, para além de enfadonho, tornava-se previsível. Procurei-os por toda a parte, acabando por encontrá-los no quintal das traseiras. Senti um alívio indescritível, já que, assim, poderia trancá-los lá fora sem ter de os expulsar. Meu dito, meu feito. Fechei a porta, desci as gelosias das janelas e voltei para a cama. Volta e meia, perdi o sono, muito por culpa do pesar que senti ao recordá-los lá fora, ao relento. Saltei da cama, vesti o roupão e desci à cozinha. No quintal não havia ninguém. Aonde estariam? Encontrei-os lá em cima, sentados muito quietos no baú de mogno do sótão. Obriguei-os a descer, mas, uma vez mais, recusaram-se a fazê-lo. Voltei à cozinha; fiz café. Da janela contemplei a luminosidade baça da aurora que despontava no horizonte urbano. Depois, achei-os na banheira da casa de banho, na qual haviam espalhado uma grande quantidade de areia do quintal. Tomei o pequeno-almoço, arranjei-me à pressa e saí. Uma vez na rua, corri a apanhar o autocarro, que perdi. Esperei, pois, pelo autocarro seguinte, que, por azar, se atrasou ainda mais. Quando cheguei ao trabalho, o director estava à minha espera, pronto a atazanar-me o juízo. Mais um deslize e lá se ia o emprego. Passei o dia numa pilha de nervos, incapaz de corresponder aos pedidos de colegas e superiores – e tudo por culpa daqueles dois fedelhos que eu desejava matar e enterrar no quintal. Regressei a casa de olhos cansados, membros doridos, a mente vazia e a carecer de sono. Felizmente, ao chegar, tudo parecia estar em ordem. Mais tarde, ao início da noite, o meu ex-marido telefonou a dizer que passaria por ali a buscá-los. Menos mal, pensei eu, acometida de uma culpa imprevista.
A PARTIDA DOS CRIADOS
A casa senhorial à saída do povoado tem os estores das janelas corridos. Os cães de guarda, de tão velhos, não conseguem ladrar para pedir comida. No quarto maior do segundo piso, o general está deitado numa cama de dossel, de mãos magras e venosas, semblante seco, faces escavadas, lábios trémulos, o olhar fito nas coisas imóveis e absurdamente vãs do quarto, rendido ao triunfo inevitável do fim. Os criados, de malas aviadas nas mãos, abandonaram a casa e cruzam já o portão de ferro da herdade. Entretanto, o general, agora só, olha para o retrato da esposa na parede e imagina-se junto a ela. Embora tudo tenha feito para mantê-la viva, de nada valeram as consultas médicas, os tratamentos, os esforços sem fim. Em contrapartida, ali está ele, ansiando estertor que lhe dite a sorte. No entanto, a morte tarda. Para quando?, pergunta ele, delirante, arranhando o lençol suado da cama. Ao mesmo tempo, percorre o rol último de lembranças – memórias de uma vida que teima em não terminar. Às tantas, o vento, indómito e repentino, força a porta do quarto e varre as cortinas das janelas. Ei-lo, o último alento do general: a mulher, no entender dele, veio buscá-lo. Ele chama-a; o vazio responde. Cá fora, o mordomo pousa a mala no chão e tira um molho de chaves do bolso. A seu lado, o mais jovem dos criados pergunta:
“E agora?”
“Agora vamo-nos embora”, responde o mordomo. “Ele tem o que merece e nós o que merecemos.”
“Parece-me injusto”, diz aquele.
“De facto, parece, meu rapaz; de facto, parece…”, responde o mordomo, trancando para sempre o portão da herdade.
EM SI, OUTRO
Apagou a luz do candeeiro e, virando-se e revirando-se vezes sem conta na cama, não conseguiu adormecer. Calçou os chinelos e pôs-se a andar de um lado ao outro do quarto. Eram duas horas da manhã. Vestiu-se, abotoou o casaco e saiu para a noite fria. Saía pela primeira vez sozinho após anos de casado. Levou a mão ao bolso e percebeu que se tinha esquecido do tabaco. Por sorte, havia uma loja de conveniência perto dali. Ao entrar, perguntou pelo tabaco que habitualmente fumava. Para sua frustração, o vendedor respondeu que não tinha. Resignado, comprou tabaco doutra marca e, já na rua, à primeira baforada, sentiu um ligeiro mal-estar. Não estava habituado à secura daqueles cigarros. Aborrecido, foi até ao jardim. Um rapaz calvo, de barbas longas, passou por ali com um cão pela trela – um rafeiro magro, bem tratado, de pêlo lustroso e olhar meigo. À sua passagem, o celibatário saudou-o e esperou que o rapaz olhasse para trás, o que não aconteceu. Em vez disso, foi o cão a fazê-lo. Do outro lado da rua, o asfalto cintilava, húmido, à luz dos lampiões. Uma janela alumiou-se para logo se apagar. O celibatário atirou o cigarro para o chão e aproximou-se de uma árvore, que abraçou. O rapaz do cão reapareceu e estacou a olhar para ele. O embaraço do celibatário depressa se desfez com o acender de outro cigarro. O rapaz, sentindo-se a mais ali, deu meia volta e foi-se embora. A vida do celibatário assemelhava-se à da árvore. Sentou-se na metade limpa de um banco pontuado por dejectos de pombo, cruzou a perna sobre a outra, e, declinando-se atrás, olhou as copas das árvores por de cima dele. Vida absurda, a sua. Ainda assim, fazia o que bem entendia. Imaginou a pirisca do cigarro aceso a entrar-lhe pela garganta. De súbito, um estampido eclodiu na distância por entre o rumor da cidade. Um acidente, pensou. Nisso, um homem saiu aos tropeços de um bar próximo. Dirigindo-se ao carro estacionado, apontou-lhe as chaves para destrancá-lo. O celibatário, sem pedir licença, entrou no carro do outro. Este, furioso, berrou ao celibatário para sair da viatura. O celibatário, confortavelmente instalado no lugar do condutor, trancou o fecho central de portas e limitou-se a sorrir. O outro aprestava-se a ligar à polícia quando o celibatário baixou ligeiramente o vidro e aconselhou-o a passar-lhe as chaves pela nesga da janela. Se o outro permitisse, pediu o celibatário, daria uma volta ao jardim e trar-lhe-ia o carro tal como estava. Que razões tinha ele para confiar num estranho?, perguntou o outro. Para saber isso, tinha de lhe emprestar o carro, respondeu o celibatário. Entretanto, os moradores assomaram à janela a fim de perceberem qual o motivo de tão grande alarido. O celibatário, receoso de vir a ser reconhecido e criticado pela vizinhança, saiu do veículo e, contra vontade, foi agarrado no cachaço pelo outro. Por sua vez, o celibatário aplicou igual golpe ao adversário e assim ficaram durante largos segundos, medindo forças. Em seguida recuaram, e o outro, com a língua entre dentes, lançou os braços ao rival. O celibatário, num acto reflexo, desviou-se lestamente e voltou a atacar com determinação, desta feita de joelho em riste, atingindo a barriga do outro e derrubando-o sem dó nem piedade. Este, prostrado por terra, não permitiu que o celibatário cantasse vitória antes de tempo. Assim sendo, fingiu-se magoado e, à aproximação daquele, atacou-o de punho cerrado. O soco foi disferido com uma tal violência, que o celibatário quase voou. A mandíbula tremia-lhe, acometida de um intenso formigueiro. Em contrapartida, o outro pôs-se de pé. Entreolharam-se. O outro atacou novamente o pescoço do celibatário, mas este, mau grado o esforço do outro, rodou sobre si mesmo e, de costas, aplicou valente cotovelada na têmpora do opositor, inabilitando-o por instantes. A imobilidade deste pouco durou, pois, soerguendo-se, agarrou-se à cintura do celibatário e ambos caíram e rebolaram na erva do jardim até embaterem no lambril do passeio. O outro tentou encher de terra a boca do celibatário, mas este mordeu-lhe as mãos. O combate endurecia e conspurcava-se. O celibatário soltou um urro e, com o joelho, atingiu as partes sensíveis do adversário, neutralizando-o de imediato. Qualquer retaliação por parte do outro era agora impossível. Não obstante, a altercação não tinha terminado, pois faltava aplicar ainda o golpe final. Todavia, despachar um incapacitado não justificava o ultimar da disputa, visto ser preferível vencê-la de forma limpa que desonesta. O outro, agarrado aos genitais, restabeleceu-se e acabou enfim por levantar-se. Rodou o pescoço e fez estalar as vértebras do mesmo. Olhou para o celibatário e cuspiu para o chão. Segundo assalto, disse o outro, e fez um gesto com as mãos em guisa de repto. O celibatário, de rosto arranhado e cabelo revolto, retesou as costas.
“O ódio cega-nos”, declarou.
“Engana-se”, contestou o outro.
“Se assim é, como explica esta trapalhada?”, perguntou o celibatário.
“Nada se explica”, respondeu o outro.
“Bom, sendo assim, nada explica esta luta, então”, afirmou o celibatário.
“Tudo começou com o seu abuso”, explicou o outro.
“Tem razão”, voltou o celibatário. “Todavia, isso não justifica tanta brutalidade.”
Fez-se silêncio.
“E então?”, perguntou o outro. “Continuamos?”
“Sim”, respondeu o celibatário, após ponderar.
“Incomoda-o?”, perguntou o outro.
“O quê?”
“O facto de eu poder vir a magoá-lo seriamente.”
“Se eu fosse a si não tinha tanta certeza disso”, retorquiu o celibatário.
“Você é muito estranho”, disse o outro.
“Acha?”, volveu o celibatário.
“De qualquer das formas, o corpo é que paga”, declarou o outro.
“O corpo serve para se gastar”, resmoneou o celibatário.
“Sabe que mais?”, disse o outro. “A luta acaba aqui e agora”,
“Desculpe?”, perguntou o celibatário, surpreso.
“O senhor ouviu bem”, afirmou o outro. “Tenha uma boa noite.” E dirigiu-se para o veículo estacionado.
O celibatário, indignado com a súbita decisão do rival, correu para ele e, com uma força desmedida, agarrou-se-lhe à cara e puxou-a a si com toda a força ao ponto de a premir contra a sua própria face. Já o outro, por mais que tentasse, não conseguia despegar-lha. E tanto as bochechas se premiram que as faces de ambos se misturaram como se de barro fossem. A esta mescla seguiu-se a dos corpos, que, uma vez ligados, se converteram num organismo único e informe. O híbrido, silente, indagou em redor, com espanto.
“Curioso…”, disse. “O mundo surge agora na sua absoluta e infinita clareza.”
O INEVITÁVEL
Certa noite, numa avenida atestada de plátanos, vivendas com mansardas amplas e grandiosos quintais, encontrei uma estranha figura de negro que apareceu do vácuo como se expelida ao acaso para esta realidade. Mexia-se de modo sinistramente ágil, de braços pênsis, ombros largos e passada viva, qual saltarelo em ballet clássico. Deteve-se na esquina com a avenida principal, à luz de um poste de iluminação. Do bolso do casaco tirou um agrafador e um panfleto que tratou de agrafar no poste. De repente, o panfleto sumiu-se em pleno ar. Escusado será dizer que tudo aquilo me estarreceu por completo. Perguntei a mim mesmo qual a natureza daquele ser que, em vez de fugir, me olhou com delonga, de olhar franzido e cenho pesado, tremendo como se temesse a minha presença, quando, no fundo, era eu que o temia. De braços e pernas cruzados, esperou que eu me aproximasse.
“Ora viva!”, clamei.
Um silêncio ambivalente preencheu o ar.
“Boa noite”, persisti.
Ele empertigou o peito, suspirou e pousou o seu dedo indicador nos meus lábios.
“Xiu” ciciou.
Pude ver-lhe duas lentes escuras e sacholadas na palidez da pele e nos globos oculares.
“Quem é você?”, voltei a perguntar.
Ele continuou calado.
“Está a ouvir-me?”, insisti.
“Vá-se embora, por favor. Não me incomode”, pediu ele com uma voz sumida e grave.
“Que bicho lhe mordeu?”, perguntei.
Ele agitou os braços, encolheu os dedos trémulos e, no rosto, exibiu uma máscara de dor e desagrado.
“Pois bem”, disse ele calma e pausadamente, “como não me obedeceu, resta-me apenas matá-lo.”
E assim foi.
♣revista triplov . série gótica . inverno 2018