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GISÈLE PRASSINOS (1920-2015  FRANÇA)
TRADUÇÃO DE FLORIANO MARTINS


[PARA O DISCURSO DO INÍCIO DA MANHÃ]

para o discurso do início da manhã

e seu sabor muscular do renascimento,

mesmo que a luz do dia chegue deveria bloqueá-lo,

eu abriria as flores do veneno sem ajuda

e deixaria o último dia amanhecer

Eu funciono, fértil

inutilmente repetida

impossível oferecer o esquecimento,

ele foi muito além das lágrimas

onde estão as frases floridas do passado?

Gisèle Prassinos, Cache radio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Um senhor que entrou no metrô tinha sob o braço um grande pacote do qual saía um pedaço de tecido verde. Como todos olhavam para ele disse, enquanto afrouxava seu sapato: “Empregai a tinta Watterman”. Depois desceu coxeando os degraus da escada.

Nem bem chegou ali embaixo, sentou-se em um banco com os pés sob as nádegas. E ali começou a abrir seu pacote. Porém não tirou nada dele, sequer um pedaço de tecido verde.

Quando o trem entrou na estação, tratou de correr com seu pacote debaixo do braço. Porém já não havia tecido verde. Dali pendia apenas uma crista de galinha. O trem apitou.

De longe se escutou uma voz untuosa: “É uma marca muito boa”.

Ao meu lado um senhor se tornou verde.

Gisèle Prassinos

 

 

 

 

 

 

 

 

O HOMEM DA TRISTEZA

Qualquer um diria que Pedro come a si mesmo pouco a pouco.

Qualquer um diria que ele se gasta por dentro e que logo se dissolverá bruscamente, em uma última convulsão.

Sua pele parece muito frágil, como se fosse o último acento de sua vida.

Porque em seu interior há apenas noite e aridez.

Seu sangue, seu coração, sua dignidade, estão nessa pele que se esforça por conservar intactos os traços de Pedro.

Pedro existe unicamente em seus traços mais sombrios e esvaziados, com uma nuca saliente que o trai.

Toda a tristeza de Pedro está inscrita em sua nuca. Uma nuca nascida para a tristeza.

Antes, Pedro tinha pescoço, porém não tinha nuca.

Misturado à multidão, não o vemos; porém ao virar-se sua presença estala. O homem da tristeza chegou. Humilde e cansada, a nuca passeia. Ela, a indecente, revela, explica tudo o que o rosto conseguiu ocultar.

Este é o pobre Pedro.


revista triplov . série gótica . outono 2019

parceria tripLOVAGUlha

21 MULHERES SURREALISTAS

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

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