AMADEU BAPTISTA
PONTO[S] CULMINANTE[S]
Uma reflexão sobre a poesia de Amadeu Baptista
Por Henrique Manuel Bento Fialho
Colho a expressão em versos incluídos no livro Poemas de Leonardo (2018), Prémio de Poesia Joaquim Pessoa. Aí, o ponto culminante e criativo é Deus, mas também a música «que há no mundo, / o ponto culminante que há no homem.» Talvez devêssemos falar em pontos culminantes, no plural, desrespeitando propositadamente a lógica que isola o zénite sob pena de termos uma intolerável profusão de auges. Não enjeitaremos a hipótese de pontos culminantes paralelos. Podemos inclusive admitir que em cada coisa, segundo a sua natureza peculiar, haverá um ponto culminante intrínseco. No São Jerónimo inacabado de Da Vinci é o rugido inaudível, mas perceptível, do leão reclinado aos pés do corpo pétreo e seminu do santo. Porquê? Porque tal como Deus, que não se mostra, também aquele rugido não se escuta, mas vê-se. Há existências pressentidas, anteriores aos dados recebidos pelos sentidos, que não estamos em condições de refutar, são os absolutos do pensamento num corpo desde a nascença fragilizado pela finitude.
Consideremos como credível a história do Senhor que confundiu as línguas da humanidade, dispersando-nos e impedindo-nos de chegar até Si quando Babel ia altíssima. Deus não queria ser visto nem tocado, era preciso separar as águas. Imagine-se o que seria da História com homem e Deus lado a lado, ambos no ponto culminante. Gera-se aqui, porém, a possibilidade de Deus e música se equivalerem, como, de resto, se aventa a hipótese de uma equivalência entre o poeta, nesse sentido lato e polémico de criador, e o tal intangível cujas propriedades são, se não estamos em erro, fecundar e destruir. Precisamente por nos elevar a uma ideia de sagrado, a música, língua universal que nos resta, é o ponto mais elevado da criação humana. A música é o degrau invisível na torre de Babel, aquele através do qual logramos tocar a ideia de «Deus: um ponto culminante e criativo.» E que outra coisa é a poesia senão música, ritmo, respiração? E que outra coisa é a música senão o homem? E que outra coisa é o homem senão Deus, todos os rostos de Deus?
Biografia e sabotagem
A poesia de Amadeu Baptista (Porto, 6 de Maio de 1953) desconcertar-nos e desarruma-nos. Se começo por aqui é para acentuar, desde logo, a relação problemática com o sagrado operada nestes versos, acerca da qual apetece dizer o mesmo que afirmou Manuel Frias Martins referindo-se a José Saramago: «é irrelevante discutir a existência ou inexistência de Deus. Em termos gerais, o que lhe importa sobremaneira é a ética em que nos colocamos face ao homem como realidade e a Deus como possibilidade» (In A Espiritualidade Clandestina de José Saramago). Este mesmo problema ergue-se nos sonetos inaugurais do supracitado Poemas de Leonardo, retomando um tópico central nesta poesia desde o primitivo As Passagens Secretas (1982), recorrente, sob múltiplas formas, como desconfio não haver outro num trajecto que a espaços se confunde com o de uma cruz carregada do Pretório até ao Calvário. Lembre-se Paixão (2003), Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes. É só um exemplo entre muitos que podíamos elencar para justificar a nossa ideia desta poesia como interpelação constante do sagrado num corpo imerso na profanidade secular.
Após a edição de Caudal de Relâmpagos (Antologia Pessoal 1982-2017) em Março de 2017, o poeta publicou duas mãos cheias de livros. Em 6 anos. Desta produção torrencial nada pode ser inferido que não vá embater no conceito aristotélico de necessitas, ou seja, o que não pode ser de outra maneira. Dizia o estagirita na sua Metafísica: «Se llama necesario aquello sin lo cual, como concausa, no es posible vivir (…) También aquello sin lo cual no es posible que exista o se genere el bien, ni desechar el mal o librarse de él.» Em suma, esta poética tem o estatuto de algo imprescindível à vida como condição de alcançar o bem e de evitar o mal. O mal que nela penetra, o da turba atingindo o corpo com suas flechas de Negrume (2006), surge à maneira de caracterização do tempo histórico vivido, por vezes recorrendo a interposta personalidade, mas jamais dissociado da experiência pessoal e subjectiva. No centro de tudo está a experiência vivida, mesmo quando, mesclando-se com biografias alheias, a vida se reinventa. «Tenho de inventar a minha vida verdadeira», escrevia Herberto Helder (1930-2015) em Photomaton & Vox (1970), assim relevando a ideia da escrita enquanto simulacro.
A este propósito, atenho-me ainda aos Poemas de Leonardo, à construção dramática que os funda num colóquio com a biografia e a obra do florentino renascentista. Se a poesia de Amadeu Baptista é amiudadamente autobiográfica, como sublinhou Teresa Carvalho no posfácio de Caudal de Relâmpagos, ela não deixa também de resultar de uma sabotagem da biografia em jogo de espelhos que extravasa a identidade daquele que fala. Não sabemos quem é o músico retratado por Da Vinci, quem serviu de modelo à chamada Dama das Peles, quem se esconde por detrás do enigmático sorriso de Mona Lisa, do mesmo modo que nos é difícil determinar quanto de Baptista há nos Poemas de Leonardo, livro que, refira-se, resgata o tipo de artifício já anteriormente praticado em Poemas de Caravaggio (2008).
«Eu sou Tu», afirma Novalis (1772-1801) num dos seus fragmentos. «Je est un autre», dirá mais tarde Rimbaud (1854-1891). E depois virá Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) com «Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio», na companhia de Fernando Pessoa (1888-1935) e da sua catrefa de heterónimos. Kierkegaard (1813-1855) também os tinha, uns 20, ou talvez fossem pseudónimos. Para sermos honestos, tal recreação começou muito antes. No politeísmo Deus desdobra-se em muitos e até no monoteísmo temos o problema da trindade. Deus é pai, filho, espírito santo. Deus são três. Esta polissemia da pessoa é estimulante e tem as suas raízes, mas seria mais desafiante que o Uno, em vez de se multiplicar em muitos unos à imagem e semelhança do original, se desdobrasse no diverso. Uma desdobrada de personalidades e de identidades, portanto, à moda do Criador. Isto é literatura, este encontro com o diverso. E Deus escreve certo por linhas tortas.
Recupero o que escrevi sobre três livros onde os mecanismos de sabotagem da biografia atingiram um ponto culminante no autor de Antecedentes Criminais (2007):
Não é vulgar um poeta publicar quatro livros de poesia num só ano, menos ainda tratando-se de quatro livros premiados. Aconteceu com Amadeu Baptista, que após Outros Domínios (Clamor por Florbela Espanca) – Prémio Literário Florbela Espanca, 2007 —, publicou na editora Cosmorama os títulos O Bosque Cintilante — Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 2007 —, Sobre as Imagens — Prémio Nacional de Poesia Palavra Ibérica, 2008 — e Poemas de Caravaggio — Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007.
O Bosque Cintilante colige mais de oitenta pequenos poemas com envios para composições de Mozart, Strauss, Chopin, Vivaldi… Seria fastidioso enumerar todas as referências melómanas contidas nestes poemas. Vem-me à memória a Arte de Música (1968), de Jorge de Sena (1919-1978), livro memorável em que a poesia se desata enquanto modo de falar na arte da harmonia e os poemas impõe-se como «transfiguração poética da música». Em O Bosque Cintilante enxergamos, contudo, uma experimentação algo díspar, pois os poemas podem expressar uma mera impressão causada pela audição da obra, mas também recriam aspectos biográficos dos compositores em correlação com a disposição afectiva do poeta.
Observamos três mecanismos de produção neste conjunto: 1. a mera fruição das peças origina os versos; 2. o conhecimento histórico dos autores motiva reflexões de vária ordem — por vezes em toada aforística; 3. a experiência pessoal é disfarçada, ao mesmo tempo que legitimada, por vivências alheias. Este elo de ligação ao mundo, através de um processo criativo decorrente do encadeamento com outras criações, tenta edificar uma espécie de lugar salvífico, lugar de comunhão, lugar de encontro e de interlocução alternativo à paisagem humana da actualidade (solitária e cruel, par excellence). Daí que sejamos confrontados com jogos de tonalidades onde a recorrência da «luz mais verdadeira», da brancura, da «subtil transparência do olhar», do esplendor, da clareza, do brilho, da clareira, contrastem com uma «sombra que baila», com a treva, com o «sol nocturno que nos vigia», numa aproximação que não enjeita altercações.
Já no volume intitulado Sobre as Imagens, as referências são catorze painéis expostos no Museu de Grão Vasco. Em nota prévia, o autor esclarece não se tratar este ciclo de «uma recriação ecfrástica da iconologia desses painéis.» Não estamos diante de práticas descritivas, o leitor é antes encaminhado para as imagens, para os contrastes entre a luz e a escuridão, num método exaustivamente referencial. O território é o da poesia sacra, com ligações directas a lugares bíblicos, ainda que não apareçam estes à laia de meras revisitações da geografia onde Deus se fez homem para pelos homens acabar crucificado. São também uma reconstrução da história, evangelho pessoal inspirado (faz aqui todo o sentido este termo) num testemunho pictórico.
Em Poemas de Caravaggio, certamente dos melhores livros deste autor, Joana Ruas chama a atenção, no prefácio, para «a íntima relação entre poesia e pintura existente no período barroco e que se pode resumir no pensamento: a pintura é poesia muda e a poesia é imagem que fala.» Este livro começa com um conjunto de oito sonetos assinalados por interrogações teológicas. Seguem-se seis explicações, pela simulada voz de Caravaggio, para outras tantas das suas obras mais conhecidas. Não passa despercebida a intenção de reconstruir uma inquieta visão do mundo, o de outrora, o de agora, porventura o de sempre: «O mundo, agora, é só hipocrisia. / E, por isso mesmo, a minha regra / é não ter regra nenhuma / — em busca da brandura / vou de sítio em sítio, / a procurar um sentido nos sentidos, / ou alguém que não difame, / ou que não roube.» São textos extraordinários, pelo modo como contrapõem a fustigação da carne à matéria espiritual e a representação física do humano à ideia metafísica de Deus.
Roteiro matricial
Julgo ter ficado claro que tanto os efeitos intertextuais como os diálogos interartes desdobrados nesta obra assentam não apenas num princípio de fruição, nem tão-pouco num estribo citacional, mas antes na instituição de uma posição que permita ao sujeito poético, sabotando a autobiografia, desenvolver uma crítica do presente associando-o ao passado e problematizando a noção intemporal de Deus, entendido como ponto culminante de beleza, perfeição, conhecimento, criação, utopia à qual o poeta se dirige sabendo-a tão inalcançável como o horizonte que sempre se adianta a cada passo na sua direcção. A evidente dimensão autobiográfica, até memorialista, de livros como Açougue (2012) ou o mais recente Um Dia na Eternidade (2021) não deve iludir-nos quanto a uma das características oficinais mais provocatórias nesta obra, o modo como o eu se faz representar numa sugestiva combinação de ocultações e desvelamentos, oferecendo-nos mais uma construção de si do que um reportório confessional.
Seria interessante, a título de exemplo, desenhar o roteiro desta poesia, relacionando-o com os carimbos no passaporte do seu autor. Poderá o poeta escrever a partir de um não-lugar? Estará ele a delimitar o palco das suas palavras situando-as quanto à sua origem? Que género de conexões pode o leitor vislumbrar entre as palavras de um poeta e os lugares por ele evocados? Há muito que na poesia de Amadeu Baptista estas questões se acomodam para nos incomodarem. Percebemo-lo facilmente nos títulos A Construção de Nínive (2001), Os Selos da Lituânia (2008), Fragmentos Tunisinos (2014), Fragmentos de Veneza (2016), O Arco Sírio (2016), Escrito na Grécia (2022). Desde sempre fascinado pelas coordenadas da nossa matriz civilizacional, Amadeu Baptista cunha nestes volumes uma revisitação dos lugares primevos das nossas raízes e dos choques culturais a eles associados. Eles, os lugares, não são somente palco de circunstâncias íntimas, pessoais, biográficas, são cenário de uma reflexão profundamente crítica e desencantada acerca do desígnio da humanidade.
A Veneza desta poesia é a de um turista em estado de graça, lembrando os pares que sobre ela escreveram ou nela actuaram, mas invectivando a «praga de turistas japoneses», a Europa que não sabe o que fazer a tanta população desempregada, a «água podre do canal», «o coração gasto por escolásticas e afins.» Os poemas têm um destinatário amoroso, são fragmentários como epigramas, cedendo tanto ao legado romântico da paisagem, como fintando o romantismo previamente idealizado com o lirismo cativo de um olhar inevitavelmente melancólico. Vem-nos à memória a Veneza de Goethe (1749-1832), as suas deambulações incógnitas em busca de bebedeiras que varressem da memória a perdição do amor. O que não lograram varrer foi o desapontamento então sentido com os progressos da Revolução Francesa
Por outro lado, O Arco Sírio encena a desastrosa realidade de um êxodo contemporâneo. O imaginário bíblico impõe-se em termos comparativos, reduzindo a épica dos heróis a uma elegia dos exilados. O tom elegíaco, já agora, percorre toda a obra deste autor. A voz do poeta intromete-se como se fosse um desterrado entre refugiados, expatriado no seu próprio país, procurando escapar à miséria pondo-se a caminho da incerteza. O realismo das imagens por demais conhecidas, fotojornalísticas, o realismo bárbaro, deveras actual, das gentes em fuga, acossadas pela guerra, pela morte, pela fome, pela penúria, pelo desamparo — outra palavra cara ao nosso poeta — é contornado com a ficção de uma primeira pessoa, o eu poético, que deixa para trás casas devastadas, cadáveres amontoados, assassinos sem rosto.
Palmira é agora sinónimo de devastação. Deslocados da conservação das ruínas para encanto turístico até aos destroços consumados sem reparação, são os leitores colocados num ponto da História sem horizonte à vista. Mais um ponto culminante, neste caso ponto culminante da barbárie. Esta é a posição dúbia em que o tempo toma conta do espaço, lançando sobre tudo uma nuvem de poeira que atordoa pensamento e emoções. Região de naufrágios e deriva, mapa sem coordenadas, dedáleo Atlas das Circunstâncias (2012).
Transformado em pó, o passado deixa de ter futuro. Tem apenas angústia, «abrigo incerto, luto inevitável.» Admitir a eternidade possibilita, portanto, uma consciência aguda da efemeridade, o infinito exacerba a finitude, a idealização de um bem absoluto não serve senão para tornar clarividentes as privações do humano, os vícios da civilização, a incúria de uns, a insídia de outros, aquele desconcerto do mundo que está na matriz da literatura portuguesa, quer em Gil Vicente (1465-1536), Sá de Miranda (1481-1558) ou Camões (1524?-1580?), e de que Amadeu Baptista é lúcido herdeiro. O título Danos Patrimoniais é provavelmente a síntese perfeita do que acabamos de consignar.
A escrita enquanto vingança
Há nesta forma de estar na poesia uma vingança latente que um poema longo como Vendeta (2019) enfatiza, recuperando no formato o que havia sido perscrutado em poemas anteriores tais como Escalpe (2009) ou O Ano da Morte de José Saramago (2010). No poema de 2019 o ódio intromete-se na lírica amorosa para a desfazer em cacos, surpreendendo-se o leitor com o páthos hostil armado entre o eu que fala e o tu evocado, partes de um vínculo afectivo traído pela separação. A tónica é colocada no abandono, no desamparo, na solidão, no medo, na tristeza, e a poesia apresenta-se como «bálsamo derradeiro dos que sofrem», ou seja, último reduto de uma alma e de um coração crivados de traições, conflitos, pobreza, obstáculos. São inúmeros os autores citados ao longo do poema, estabelecendo-se entre eles pontes de identificação ou apoiando-se neles o poeta para confessar o estado de espírito subjacente aos versos: «é que é assim que estou, // amargurado de riso até às entranhas.»
Sobressai nesta prática uma inversão do estatuto conferido ao objecto cantável. Ao contrário de ideal de beleza, a mulher (outrora) amada transforma-se em exemplo de sordidez, rancor, repulsa, predação, perfídia, «víbora que cospe.» Reconhecendo que «nada purifica a raiva, / a derrisão, // nem a escrita / é fio-de-prumo, // martelo de percussão, alívio», o poeta não se imiscui de fazer do poema arma de arremesso. Não é gesto simpático nem sedutor, como discurso publicitário está condenado à partida. A retórica que hoje populariza tanto poeta sofrível é o avesso desta insolente insubordinação. Quem quer flores vai à florista.
O desregramento impulsivo que a espaços descortinamos nestes poemas leva-nos a considerar a condição do poeta num contexto social em que se espera dele o mesmo tipo de entretenimento gracioso que a sociedade do espectáculo promove junto das massas, cedência que o autor de Açougue (2012) não está disposto a fazer. Antes pelo contrário, a exigência do seu labor continuado, subvertendo fórmulas, sabotando lugares-comuns, violando a práxis consensual da sua época, situa esta poesia nos antípodas do lamechismo encantatório, da piada fácil, do verso bonitinho, tecnicamente apurado em curso de escrita criativa, para deleite da caterva de usurários que se entretêm nas redes sociais a partilhar tercetos. Não é fácil? Não. E quem disse que devia ser?
O que um poema como Vendeta exige ao leitor é aquela disponibilidade que, tornando possíveis os encontros entre o diverso, dá como garantido o facto de o mundo não ser apenas feito de luz ou de sombra. Os cambiantes são vários, as intercepções também, pelo que talvez sejam igualmente diversos os pontos culminantes. Note-se como é multiforme o volume que temos em mãos, privilegiando nos últimos tempos tanto o soneto como o poema longo, de verso largo, tendencialmente narrativo, à maneira de um poeta com o qual o autor de Kefiah (1988) mantém assumidas cumplicidades. Refiro-me a Ruy Belo (1973-1978), a quem Amadeu Baptista dedica Royal Label Black, um dos seus primeiros poemas, inserido em Green Man & French Horn (1985), e convoca no final de um dos seus últimos livros, o extenso poema Um Dia na Eternidade (2021).
Rosto multimodal
Sobre poema longo e prolixidade temos algo a dizer, tomando como exemplo tanto Um Dia na Eternidade (2021), título que parece parafrasear A Eternidade e Um Dia (1998), belíssimo filme de Theodoros Angelopoulos (1935-2012) com argumento de Tonino Guerra (1920-2012), como Último Outono (2022), ambos publicados pelas Edições Afrontamento em cuidadas edições originalmente acompanhadas de fotografias, respectivamente, de Jorge Velhote (1954) e Maria Manuela Mendes Ribeiro (1941). Não são poemas-sequência nem desses poemas longos que parecem surgir de um fôlego, respondendo a um impulso de escrita de tipo automático ou disso se aproximando. As datas no termo dos respectivos poemas levam a crer num labor demorado, num trabalho de montagem em que se percebe a tensão permanente entre os vectores da memória e do flâneur que caminha pela sua cidade observando e registando a realidade num diálogo espontâneo do presente com o passado, pautado por reflexões íntimas, confissões biográficas, noções de história, evocações afectivas, cultura local, refluxo de emoções e de sentimentos em que a poesia desponta inseparável da vida, mesmo quando a mina e armadilha sob o manto de um complexo sistema de referências.
Ao lermos estes versos sentimos estar perante uma espécie de testamento, são versos que justapõem tempos distintos como forma de reforçar uma sorte de exame a que se sujeita a existência no seu ponto de partida, ou seja, a cidade do Porto, de onde o poeta é natural. Daí as alusões à família, à mãe, ao pai, à tia louca, à avó Esmeralda, ao irmão, entes cujo desaparecimento no espaço público não correspondeu a uma dissipação no espaço privado do pensamento e da memória. A peregrinação pela cidade é também um modo de reencontrar o que desapareceu por ali e acolá se sentir a falta do que estava e já não está, foi substituído por outra coisa, realidade desesperante que é a consciência efectiva dos itinerários para a ausência.
A vocação para o poema longo resulta, deste modo, de uma obsessão quanto ao sentido da existência, procurado tanto na paisagem humana activa como na toponímia que reforça a consciência de perdição ou, se preferirem, de sentimento de precariedade num mundo indiferente à poesia, à cultura, às suas melhores cabeças. Em Um Dia na Eternidade (2021), salvo as devidas distâncias, o poeta coloca-se na situação de um Leopold Bloom errando durante um dia pelas ruas do Porto, inquieto com o presente, desassossegado quanto ao futuro, distanciando-se através da memória até aos tempos da infância. O quotidiano é tratado como vínculo traumático a uma cidade em transformação, tal como em transformação está o corpo que tende para a doença, para a velhice, para a morte. «em que poema volto ao que já fui sem que regrida?», questiona o poeta. A resposta é dada no próprio poema, alegoria de uma marcha que não é apenas a de quem caminha, mas a do tempo de um modo geral, trasladado no processo de reminiscências a que é sujeito. O mais terrível é a constatação de uma equivalência entre a eternidade e o esquecimento, condição contra a qual o poeta ergue o seu estro contrariando-o com as poucas armas que tem.
Igualmente marcado pela perda, Último Outono (2022) abre, no entanto, espaço para a beleza e para o amor, hipóteses de resposta à questão que julgo repousar no centro a partir do qual o poema se desenrola: «o que vale o tempo das nossas vidas?» À semelhança do que Ruy Belo fez no magnífico A Margem da Alegria (1974), Amadeu Baptista, com estes poemas, introduz o leitor num labirinto que é o do peregrino solitário confrontando-se com uma multiplicidade de situações e de materiais vindos a lume no decorrer da jornada. São versos melancólicos visitados por vultos e latidos fantasmagóricos, percorridos por meditações aparentemente aleatórias que sugerem deslocações e ligações inesperadas. O poeta é um geólogo que mede a passagem dos anos nas camadas de uma pedra, misturando tudo, ocultando e desocultando, servindo-se do poder de alusão da poesia para dar conta da catástrofe que pode ser a errância existencial no termo de uma vida: «por fim atravesso o areal, encho / uma mão de grãos de areia e ponho-me a contá-los, um a um.» Imagem poderosa.
Outra forma que encontramos amiúde nesta poesia é a do soneto. Entre as formas clássicas, continua a ser das mais revisitadas na actualidade. Afloram à memória belíssimos sonetos de João Paulo Esteves da Silva (1961), Daniel Jonas (1973), Margarida Vale de Gato (1973). António Cabrita (1959) é outro praticante, ainda que, por regra, sem a rigidez formal daqueles. O mesmo sucede com os Sonetos Glaucos de José Emílio-Nelson (1948), onde métrica e rima são desconstruídos através de processos dissemelhantes. João Luís Barreto Guimarães (1967) ofereceu ao soneto componentes lúdicas e experimentais. Exemplos não faltam. Amadeu Baptista (1953) aproximou-se informalmente do soneto no excelente Negrume (2006), obra que perdura entre as melhores deste autor, mas também na grinalda intitulada Signo de Vénus e incluída em A Construção de Nínive (2001), ou nos mais recentes poeira escura e Luz possível, ambos vindos a lume nos anos da peste de 2021.
poeira escura é, de facto, um livro de sonetos, mas mais importante do que debater o modo de abordar métrica e prosódia nestes poemas é descobrir-lhes a narrativa que propõem. Ao longo dos 50 poemas coligidos nesse volume, desenvolve-se um fio narrativo que compõe uma persona paradoxalmente mergulhada na torrente dos dias. Temos, destarte, um enquadramento clássico da modernidade que, em vez de submeter cada um dos poemas aos grandes temas universais, subordina-os à vulgaridade do momento, ao quotidiano, ao banal, ao instante. Vulgaridade é uma forma de dizer, para que se perceba a confrontação entre o que se diz eterno e o que se pressupõe datado, passageiro, efémero, pois o que em boa verdade se passa é que o trivial e o banal, o quotidiano, a vida vidinha, o videirar ou videirinha, o viveter francês, ou seja, ir vivendo, para citar O’Neill (1924-1986), são nucleares numa poesia que sente a necessidade e a obrigação de se redireccionar, impelida quer pela força das circunstâncias, quer pela urgência da denúncia.
O rigor formal é, deste modo, sacrificado pela austeridade de uma personagem obsidiada pela tristeza, pela solidão, pelo desamparo, pelo desconforto, pela privação. Não julgo sequer que seja por acaso a opção pela figura do lenhador como personagem central neste livro. Ela vem de Walt Whitman (1819–1892) e chega à poesia escandinava, que Amadeu Baptista conhece bem, num extraordinário poeta como Hans Børli (1918–1989), lenhador de profissão. O lenhador labora no centro de uma Natureza desprezada pela generalidade dos homens e sublimada pelos poetas. Tudo é, no entanto, mais duvidoso do que parece. Quando, logo no primeiro poema, o lenhador declara que «Uma vara de porcos avança lentamente // No ângulo de visão que daqui tenho», desconfiamos sobre a natureza destes porcos. Não querendo arriscar na percepção de homens onde, de facto, há apenas baratas, julgo legítima a suposição de que a crítica social, a espaços inclinada para a sátira, também se exerça aqui através de subterfúgios metonímicos como estes.
O humorismo (escasso, mas presente), a ironia (veja-se igualmente o poema Eterno Retorno, publicado como suplemento na revista A Ideia, 2022), e uma certa agressividade, levam-me a pensar na natureza contrastante desta poesia e a assumi-la como intencional. O cenário ao fundo do palco de poeira escura tem os tons da pandemia, a frieza do distanciamento social, os escuros da morte e do luto permanentes, o cinzentismo do confinamento, o azul asséptico das máscaras descartáveis, tudo envolto numa poalha de desesperação. É esse um livro sobre a pandemia? Sim e não, na medida em que os poemas repercutem situações que nos são familiares sem a elas se restringirem. A actualidade é antes pretexto para insistir em temáticas há muito denunciadas nos livros do autor. São elas a desumanização do mundo, a crueldade entre os homens, a falência do humanismo, a ausência e o «silêncio de Deus», a reprodução do mal e a excepcionalidade do bem, as desigualdades sociais, a sublimação da natureza, enfim, a «desafinação geral» de um cosmos visceralmente assimétrico.
Conclusão inconclusiva
Há uma tendência em quem escreve sobre poesia para compartimentar geracionalmente os poetas a que dedica atenção. Não é onda que me apeteça surfar. Amadeu Baptista começou a pulicar na década de 1980, mas a sua obra poética, creio, tem mais que ver com poetas que vêm de gerações anteriores do que com aqueles de quem é coetâneo. O que pretendo dizer com isto? Que, de um modo geral, a dicotomia que opôs mito a realidade na antiga Grécia foi perdurando ao longo dos séculos com ligeiros desvios e ténues declinações, gerando aqui e acolá obras de síntese em que sonho e realidade confluem para um mesmo propósito: o da denúncia do presente que Joaquim Manuel Magalhães reivindicava no texto Uma Geração Dessatisfeita, coligido em Os Dois Crepúsculos (1981).
Baptista, que se estreou no ano a seguir à publicação dessas crónicas sobre poesia portuguesa (então) actual, entronca nessa “intenção delatória” sem necessidade de reduzir o seu ofício a tratamentos unívocos da linguagem. Ele apercebeu-se cedo de que não há senão poesias, como defende Jean-Luc Nancy (1940n-2021) no seu Résistance de la Poésie (1997), e que, por isso mesmo, restringir a poesia a uma das suas múltiplas possibilidades é usurpar-lhe a sua riqueza. Na superfície, isto é, no aspecto formal, esta poesia é multímoda, ainda que explore e conserve desde o início os mesmos exercícios retóricos, sejam eles a intertextualidade, a écfrase, ou a citação e a alusão como estratégias de composição, mas há no seu fundo uma ética inviolável cujo maior motivo é, precisamente, o da denúncia do presente. E isso verifica-se inclusivamente quando os poemas remetem para um passado distante, questionam a eternidade confrontando-se com a finitude, interpelam o sagrado envolvendo-se na profanidade quotidiana, ou simplesmente nos apresentam a música, e não o verbo, como o ponto culminante da criação humana.
Sem delongas, repare-se no que acontece na colectânea intitulada Escrito na Grécia (2022), abecedário de cultura clássica alicerçado num terreno que deve tanto ao imaginário como à investigação. O arquipélago desenhado nesses pequenos poemas já não é o da sóbria beleza apolínea celebrada por Sophia (1919-2004) nem o do fascínio intraduzível que, muito antes dela, ocupou os românticos, é antes o da especulação própria dos Gregos que a modernidade traiu e a poesia, com o seu poder de síntese, é capaz de retomar num plano introspectivo. Dizia Philippe Lacoue-Labarthe (1940-2007) em Hölderlin e os gregos (1979): «A resolução especulativa é talvez um modo de catharsis. Isto é, um bom uso da mimesis.» Leio a poesia de Amadeu Baptista apoiando-me precisamente nestas coordenadas de uma catarse que é, no final de contas, o melhor uso que se pode dar à mimesis:
TILOS
Olhas a estibordo e vês a ilha.
Olhas a bombordo e vês a ilha.
Olhas da ré e vês a ilha.
Olhas da quilha e vês a ilha.
Para onde quer que olhes vês a ilha
dentro de ti.
Os deuses têm a sua agenda, de festim em festim bocejam de sono, intrigam, ludibriam, burlam, banqueteiam-se com sacrifícios que lhes são oferecidos pelos mortais. É preciso compreender os deuses, têm cara de homens, vivem acima dos mortais comportando-se como eles. O poder diferencia-os. Não são imortais por não perecerem, mas antes por se divertirem a observar pelejas entre os de vida breve, curta, efémera, passageira, finita. Nada aborrece mais os deuses do que a paz entre os homens. Os deuses são caprichosos, têm desejos e vontades que instigam a discórdia. Que nenhum homem se atreva a julgar-se maior do que é, os deuses nunca perdoaram aos homens o desejo e a ambição de chegarem a deuses. Por isso baralham línguas e castas e tribos e linhagens e geram caos e confusão sempre que entre os homens a concórdia e a paz se instaura. A paz é a maior inimiga dos deuses. Eles têm agenda própria, banqueteiam-se a ver-nos em contendas e lutas e pelejas.
Imagino os deuses sentados nas nuvens, a olharem para nós como quem come pipocas enquanto assiste a um filme de guerra. Se os homens são homens é porque ambicionam ser deuses, isso mesmo os traz atrelados à condição finita e efémera de serem homens. Grandes feitos em nome da glória, uma glória que consiste em ser lembrado na eternidade. Eis o mais nefasto dos erros de raciocínio que vêm acometendo os homens. A renúncia, a abnegação, é a melhor resposta a esse vício ocidental. Pela renúncia garantimos a humildade que nos torna humanistas. Parece paradoxal, isto de nos colocarmos no centro do mundo pela humildade. Mas não é. Não há vaidade em querer ser humano, há vaidade em pretender ser deus. Tem sido este o maior erro dos mortais, pretendem a divindade prescindindo da humanidade, pretendem a eternidade prescindindo da sua condição efémera. Que é tão boa, que é tão bela. Que é tão poética. A poesia é o ponto culminante dos deuses, os deuses são o ponto culminante dos poetas.
Henrique Manuel Bento Fialho
Caldas da Rainha, 30 de Maio de 2023
Revista Triplov . Dezembro de 2024