AMADEU BAPTISTA
Por Teresa Carvalho
«A nuvem tem relâmpago, tem trovão, e tem raio: relâmpago
para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração: com
o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata.
Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão todos».
Padre António Vieira, Sermão da Sexagésima
«Tudo o que é humano me atinge,
porque tudo o que é humano é divino»
Amadeu Baptista, Paixão (2003)
«Sou um homem do norte e um homem do norte / continuarei a ser até que a morte me separe.»
Incluídos num dos poemas de Açougue (2012), um livro abertamente autobiográfico em que a carne, exposta a golpes vários e exibindo o carimbo da origem, está sentenciada ao consumo do tempo, estes versos expõem uma identidade ciosa, feita de privações, da experiência da «inexprimível solidão», de cortes e separações aos quais a evocação de Bernardim Ribeiro, a dado passo do mesmo livro, empresta um especial phatos («menino e moço / levado de casa de meus pais para uma outra enxertia no meu tronco»), de embates iniciados numa infância cuja aura protectora cedo se dissipou com as primeiras insinuações de um lado mais escuro da humanidade. Mas feita também, essa identidade, de entrega pela via da palavra, de resiliência, de luta, enfim, contra as formas do apagamento e da morte. Como se à invicta condição da cidade do Porto, onde em 1953 nasceu Amadeu Baptista, correspondesse uma natureza, uma têmpera própria ou, talvez melhor, um temperamento poético que dificilmente consente a neutralidade do leitor, e em cuja constituição entram, como tónicas, uma tristeza de reminiscência estóica com a sua nostalgia viril, uma atenção acesa que transcende a mera sensibilidade contemplativa, o espírito de insubmissão, o gosto do desafio e do risco, a fazer do poema «razão de vida», de acordo com a formulação de Ruy Belo[1].
Um bom exemplo deste ethos literário, retirado do fortíssimo Açougue, um livro que, oferecendo-nos uma súmula da poética do autor, obedece a um programa de ordenada concepção: cada ano de vida do poeta, seu poema. «Dois Mil e Doze»:
………………………. a vida é coisa errante e nunca seremos um erro,
a vida é o que se contrapõe à omissão, o esquecimento, esse cimento
infecto há-de
vencer-se pelo que for irrestrito em nós, um livro que há-de abrir-se à
força
de faca, ou escrever-se à míngua de desalento, ou construir-se por um
tenaz vaticínio,
ou amar-se como se amou uma mulher, ou um filho, ou uma praia que
se perdeu.
O “eu” que fala naqueles versos que comecei por citar, assumindo uma pose a que apetece chamar granítica, faz emergir uma figura que, pelas suas circunstâncias («exactamente / as mesmas circunstâncias daqueles de que sou / vizinho, a gente das vielas e das ruas empedradas / a granito»), pela sua inteireza, pelo fervor de sangue, pela coincidência de posturas, pela forte rejeição da miséria de um mundo pronto a abdicar do que entende ser a vida autêntica, pelo inconformismo em face do acontecer contemporâneo, com aquele «teor / democratizante [que] nivela as coisas por baixo», e até pelo uso de uma linguagem sem concessões ao eufemismo e avessa a reverências, muito embora não possa decalcar-se sobre a do poeta Amadeu Baptista, não pode reduzir-se a uma figura de enunciação de âmbito estritamente textual.
Depois, é inegável que há na sua escrita uma permanente dimensão autobiográfica, quer autêntica, quer simulada numa escala relativa. Amadeu Baptista escreve a partir das circunstâncias da sua vida, das referências a um nó familiar de matriz instável, das perdas pessoais, por vezes num implícito registo in memoriam, da experiência que recolheu do mundo, dos seus gostos e desgostos, dos males do nosso tempo, das suas angústias, das pulsões quotidianas de um real reelaborado num registo por vezes compactamente metafórico, enfim, de tudo o que lhe surge como ensejo de meditação intensa, incluindo a sua aproximação das incandescências do transcendente, inseparável do exercício da palavra.
Quem percorra a poesia do autor, designadamente aquela que tem desenvolvido nos últimos dez anos, a partir de livros como Negrume (2006), O Ano da Morte de José Saramago (2010), seguramente um dos momentos mais altos do seu itinerário poético, ou Atlas das Circunstâncias (2012), facilmente se apercebe de uma forma pessoalíssima de ser poeta e de estar na literatura: «para se ser poeta é sempre necessário estar no fio da navalha», lê-se no sanguíneo Açougue, publicado, curiosamente, com a chancela da & etc., uma editora cujo modo de ser – apaixonado, radicalmente livre, numa total recusa de subserviência aos poderes culturais – sintoniza com o ethos de Amadeu Baptista.
É neste quadro que deve ser entendida a identificação admirativa, insinuada em dedicatórias (Ruy Belo, Vítor Silva Tavares, o editor da resistente &etc, José Emílio-Nelson, entre outros), fixada em títulos de compromisso onomástico («Praça da Galiza – painel para Rosalia de Castro», «Apontamento, entre as páginas de um livro de Jorge de Sena»), apontada ora em explícitas ora em oblíquas evocações intertextuais (Camões, Jorge de Sena, sempre, Ruy Belo, Manuel António Pina, para citar apenas alguns nomes). Também essa identificação dá a ler uma partilha de concepções do mundo, com as quais o autor textualmente se solidariza, expressando, em última análise, uma recusa de tudo quanto possa ser redutor da dignidade humana.
O leitor mais atento dar-se-á igualmente conta de que as zonas de resistência, mais ou menos ferina, dominam, no seu espaço poético, sobre as zonas de desconsolo e desolação, já pelas convulsões de um mundo que aprofunda aquela céptica melancolia que encontramos, por exemplo, num livro como Os Selos da Lituânia (2008), já pelo cansaço de um «rosário de ampolas e drageias», já pela suspeita de que «não há-de existir em cada coisa / senão a sugestão da felicidade, / manipulável por quem tem mais poder». E haveria ainda que acrescentar ao catálogo do «cruel desconsolo» a percepção aguda do desamparo da condição humana, também pelo silêncio de Deus ou a sua ausência. Amadeu Baptista propõe-nos da vida uma visão desapiedada, de um devastador cepticismo quanto a qualquer possível significado positivo que ela possa ter.
A verdade é que a desolação, tantas vezes amarga, nunca se traduz em vontade esvaziada de sentido ou desistência. Do próprio confronto com a morte, a sombra tutelar da sua poesia, a pairar como ameaça ou presença efectiva e apenas ocasionalmente entrecortada pela recordação de fugazes momentos felizes, o que mais visivelmente emerge é, para além da dicção enérgica e do amplo fôlego, a invencibilidade do poeta, como resulta claro do poema final de Açougue, «Dois Mil e Doze»:
Quer a morte que eu deixe de escrever, que o latido do poema
se não ouça, que eu rebente as têmporas por não o encontrar,
consumido
pelo esquecimento a que me vejo destinado, neste silêncio iníquo
que a idiotia vigente força, este ultraje que o crapuloso impõe, sanciona,
justifica.
Nenhuma morte é legítima, penso há décadas que nascer para morrer
é um descalabro divino, mas não me larga o pescoço a morte […]
[…]
….…………………….. há tempo suficiente para que eu possa presumir
que a salvação existe, que pode morrer a morte mas eu nunca morrerei,
pese embora
o débil batimento cardíaco, esses cumes, esses abismos, essas
derrogações.
Não seria preciso esperar por este poema ou pelos Poemas de Caravaggio (2008), onde o poeta se retrata como Golias degolado («Esta cabeça, que David, com um olhar / piedoso, segura pelos cabelos, / é a minha»), para perceber que a morte tem um importante papel a jogar na poesia de Amadeu Baptista – a morte e os mortos.
Quando, em 2007, ano em que perfez 25 anos de actividade poética, o autor decide reunir em volume boa parte dos poemas que escrevera desde 1982, escolheu o título Antecedentes Criminais, colocando assim a sua escrita sob o signo do crime. Um tal gesto serviria não apenas para reivindicar uma ontologia do enigma – uma palavra que, juntamente com ‘mistério’, pontua com impressionante regularidade toda a obra poética –, mas também para estabelecer uma rede de imbricações com as figuras da ausência e com a morte, inclusive a sua própria morte – quotidianamente pressentida, temida, desafiada, anunciada, encenada, numa nunca abrandada pulsão dramatúrgica a que António Cabrita fez já referência[2].
A começar pelo resoluto verso de abertura de Negrume («Sim, vou matar-me. vou cometer esse adultério.»), os exemplos do gesto suicida poderiam multiplicar-se. Deixo apenas um exemplo da complexa relação do “eu” com o seu transitar da vida para uma morte que determina, paradoxalmente, o surgimento do próprio sujeito. É retirado do mesmo Negrume, todo ele percorrido por uma espécie de energia letal:
por isso, disparei. recrudescia
a angústia pelas horas felizes, desbaratadas.
certos momentos suaves, a amenidade
de uma praia, um beijo, uma palavra.
ao atingir a sombra – a sombra, apenas – , fico indiciado
de uma culpa sem culpa, num crime malogrado.
só presto declarações na presença do meu advogado.
assassinar uma sombra é um delito, grave.
À luz desta pulsão dramatúrgica, a ditar o salto do “eu” para a cena do poema, pode ser lido o diálogo que o autor estabelece com algumas figuras relevantes do mundo da literatura, das artes e da cultura em geral, aí recorrendo com frequência ao monólogo dramático, que oferece a possibilidade de um desdobramento no interior de uma mesma personalidade poética. É o caso, entre outros, de «A Noite de Pavese» (Desenho de Luzes, 1997) ou, mais recentemente, «Murmuração de León Trotsky no seu leito de Morte», «Reflexão de Paul Celan em Paris, algumas horas do seu suicídio por afogamento no Sena», ambos incluídos em Um pouco Acima da Miséria (2014). As personagens, às quais o poeta cede a fala, são surpreendidas num momento capital ou de crise da sua existência, aludindo a episódios ou circunstâncias do seu percurso biográfico que requerem, para a consecução do processo comunicativo, a cooperação de um leitor capaz de aceder à enciclopédia envolvida.
O facto de um poema, um livro ou uma antologia vir ao nosso encontro com um título nunca é despiciendo; mas no caso de Amadeu Baptista, onde isso raramente acontece – e bastará lembrar títulos como As Passagens Secretas (1982), o seu livro de estreia, o referido Açougue, a fazer-nos pensar na pintura de Francis Bacon, ou mesmo Poemas de Caravaggio, em que a proposição nos sujeita à indecibilidade – este elemento merece acrescida atenção do leitor que, logo estimulado a estabelecer conexões entre o título e o corpo textual, não poucas vezes experimenta a sensação do estranhamento.
É justamente o que sucede com o já referido Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007). Este título, pouco plausível para um livro de poemas e diante do qual o leitor dificilmente não experimentará alguma perplexidade, trazia consigo aquela aura enigmática que convém a todo o crime que se oferece ao conhecimento e à decifração. Ora o enigma, que na escrita do autor privilegia a metáfora (a um tempo o enigma e a chave para a sua decifração) não pressupõe, como se sabe, uma impossibilidade de acesso; sentido oculto, ele é antes o que aguça a possibilidade dos sentidos por abrir.
Dando continuidade à metáfora criminal, o prefácio-poema que então acompanhava o volume, dedicado ao editor da & etc. e significativamente intitulado «Pena Agravada», logo dava sinais de estarmos na presença de uma poesia que não dispensa o confronto com os dados do real e de um poeta que parece querer manter com ele uma relação de perplexidade. Iniciava assim: «Estou a cumprir pena perpétua. // Na infância, uns filhos da puta rodearam-me / com triângulos escalenos e não pude / fazer mais que emocionar-me».
Espécie de puzzle onde há peças que faltam e outras que se multiplicam, este texto parecia demarcar-se, aliás, do crime perfeito, ao deixar, ele próprio, pistas que levam a um conhecido poema de Rafael Alberti, «Telegrama», e a Nick Carter, o rocambolesco detective criado por John Coryell, a relembrar eventualmente ao leitor o seu papel de decifrador. Nele se reproduz, reduzido ao absurdo, o esquema de um estranho crime: o assassinato imputado a um triângulo escaleno. Perante um tal quadro de decifração frustrada e aumentada perplexidade, pela suspeição de que cada nova pista desaguará em novo enigma, mais não pode o leitor, posto assim diante de um enigma que é vão pretender decifrar, que «invectivar o mistério / e ampliar o enigma que há entre os enigmas».
Perplexidade não é certamente o que experimenta um leitor já familiarizado com a poesia de Amadeu Baptista diante de um título como Caudal de Relâmpagos, que desde logo nos orienta para um rimbaudiano território de fulgurações, associável a uma certa concepção de poesia: iluminação, revelação, epifania ou irrupção de um mistério. Importa esclarecer desde já que a inspiração, um conceito de raiz platónica que entende a poesia como visitação e furor poeticus, ou como resultado de um estado emotivo, e o trabalho de composição ou o saber técnico, de raiz horaciana, não surgem em Amadeu Baptista como princípios inconciliáveis. A sua poesia joga-se entre uma emocionalização da razão e um controle raciocinado das emoções, em que pensar e sentir são, a exemplo de Pessoa, mas com consequências diversas, indissociáveis. Desta complementaridade nos falaria suficientemente um poema como «Notações para um calendário perpétuo», expressão de uma articulação reveladora de uma forte consciência dos mecanismos implicados nos processos de significação em poesia, com os seus materiais, as suas práticas verbais, processos e recursos:
dois triângulos escalenos desenhados a giz por um dos heterónimos
de pessoa
(ricardo reis, no ano da morte?) no cais das colunas
e que alguma chuva e muito anonimato deixou esquecidos sob a luz das
gaivotas?
o oráculo de delfos, que estabeleceu o choro de uma mulher muçulmana
em alcácer do sal,
em dois mil e doze da nossa era (ano da minha morte?)?
esta segunda dupla interrogação supracitada?
o pingo de cera que derreteu no braço beneficiando a imagem impressa
sob a pele?
o volkswagen branco matrícula hg-63-24 que estacionou numa página
de pedro tamen
e a intertextualidade mandou parar aqui?
Mais do que um título capaz de evocar um modo particularmente intenso de relação com o mundo, Caudal de Relâmpagos é um lugar de forças, tensões e poderosos efeitos ópticos, espécie de cenografia da natureza em fúria. Seria difícil, de resto, encontrar um título que tão perfeitamente se ajustasse ao universo poético de Amadeu Baptista, lugar de um fluir abundante que é expressão, tantas vezes tumultuosa, de um sentir raciocinado onde pólos vários se entrechocam através da experiência fulgurante da palavra, o equivalente positivo do relâmpago que atroa os ares em noite de tempestade, sempre procurado pelo poeta: «procuro […] / a palavra que cresce da terra / e atinge a noite com pancadas de luminosa alegria» – lê-se num dos poemas de Arte do Regresso (1997).
Não surpreende pois que no jogo de forças tensas que atravessa esta poesia (luz/sombra, presença/ausência, excesso/vazio, plenitude/carência, condenação/redenção …), cada poema se apresente como um lugar concentrado de energia, ou um espaço onde uma ordem obscuramente luminosa vence o poder fracturante do caos.
Estamos na presença de um universo extenso, tenso e intenso, a que nem falta aquela «voz tonitruante», índice de um ‘eu’ que, escrevendo com ímpeto, por vezes num furor exasperado, doloroso ou mesmo aflito, faz pensar naqueles que são por ventura os mais conhecidos versos de Rimbaud, de quem o poeta terá recolhido a lição: «Por delicadeza / Perdi minha Vida».
Em boa verdade, Amadeu Baptista sempre oscilou pendularmente entre dois pólos, explicitados, em regime de narratividade, nos seguintes termos: «E assim cresci, e vi que a enxertia resultava / em algo mais sensível do que alguma vez supus, / sem que soubesse por que herói optar, Aquiles ou Heitor, / se pela força indómita e bravia, /se pela razão que toca o coração para que seja cada morte uma vitória» (Açougue). O duplo rosto de Amadeu Baptista também se nos revela na linguagem, ora impulsiva, tentada por aquele desregramento das emoções proposto por Rimbaud, ora pendendo para a racionalidade, pontuada pela contenção, a lucidez, o rigor formal mas também por uma humanidade que em si mesmo habita ou que vai trazendo para a linguagem do poema.
Os versos que a seguir se transcrevem, do poema inicial da sequência «Arte do Regresso», do livro homónimo, põem em contacto ou em choque elementos tão heterogéneos como o estampido do trovão e a delicadeza. O que neles mais impressiona não é tanto a violência, na qual coopera também a materialidade sonora, como o facto de essa violência, de uma estrofe para outra, ser subitamente interrompida e ficar marcada, pela irrupção nela, ou contra ela, de uma vulnerabilidade, longe, então, daquela robustez que ao autor começámos por reconhecer, sinal de que essa robustez é apenas um dos pólos da sua poesia:
As palavras fluíam da minha boca com o estampido do trovão,
eu praguejava contra tudo e todos,
e as minhas mãos brandiam sobre o ar
uma resoluta fortaleza que não me pertencia.
Eu era um ser delicado, a minha voz tonitruante
dava de mim apenas uma imagem enganadora,
as sílabas com que fulminava quem me ouvia
não eram mais que um último reduto de defesa,
um último pedido de socorro. Porque eu era
um ser delicado
É em todo o caso através daquela «voz tonitruante» que na poesia do autor se expressa uma indignação (em que a ética e a estética se confundem), numa gama extensa e versátil de tons de ferocidade que vão do político, no sentido amplo da manifestação de uma preocupação com a res publica, à própria esfera íntima, e que poderíamos inscrever na tradição biliosa de alguma poesia portuguesa contemporânea, a qual encontra em Jorge de Sena, um autor com o qual Amadeu Baptista mantém curiosos pontos de contacto, um digno representante.
É, aliás, «a fiel dedicação à honra de estar vivo», para lembrar o autor de Fidelidade, que leva o poeta a insurgir-se, pela voz de Caravaggio, contra o insanável estado da nação e do mundo: «o mundo, agora, é só hipocrisia. / E, por isso mesmo, a minha regra / é não ter regra nenhuma / em busca da brandura / vou de sítio em sítio, / a procurar um sentido nos sentidos, / ou alguém que não difame, / ou que não roube». É em fidelidade à sua própria poética que, a dado passo de O Ano da Morte de José Saramago, formula um desejo que vem carregado de ira e de ruído controlado:
Melhor seria que não houvesse cinzas,
que dos livros só restasse o volume das páginas,
mas todas em branco,
todas imaculadamente brancas,
sob a acção magnânima de um vento poderoso,
um vento que tudo varresse na pátria pesarosa,
amarga,
padecente,
hipócrita,
desolada
Ora correndo o risco da discursividade, ora aceitando as fulgurações do relâmpago, Amadeu Baptista surge-nos como uma espécie de Júpiter a quem tivessem sido retirados trono e ceptro. Não o sentido de justiça. Não uma íntima exigência de absoluto na esfera humana – nem uma certa majestade orgulhosa. Vai assim o poeta vibrando um raio que pode bem não atingir os seus alvos críticos preferenciais, pouco sensíveis à poesia e aos valores que a envolvem, como fica claro no poema «Trasladação dos ossos de Jorge de Sena», um texto que se move justamente no terreno da agressividade e do azedume (e da lucidez agreste), apontados a um alvo desmultiplicado em epítetos: «uns pulhas de um assim chamado Ministério / da Cultura, que não dão à poesia a mínima importância», «a canalha», «a pandilha execrável».
Para além deste potencial explosivo, capaz de abrir no poema fracturas sem reparação possível, no título desta antologia pessoal – toda a antologia é invariavelmente pessoal (Jorge Luís Borges) – facilmente se reconhecem outros traços igualmente salientes da poesia de Amadeu Baptista: a densidade metafórica, atingindo significativos níveis de reconversão semântica; a urgência e a autenticidade expressivas; a torrencialidade, imposta por uma força expansiva que bem pode ser a da vitalidade do poeta ou a da vida agindo sobre ele, força tanto mais extrema quanto sabemos que ela transcende a sua capacidade de a conter. E haveria ainda de referir uma intensidade lírica que se declina como excesso, entre outros traços evocáveis, porventura menos referidos pelas vozes críticas que sobre ela se têm pronunciado.
Penso, por exemplo, num funcionamento tensivo, nem sempre paradigmaticamente harmonizável com uma perspectiva dualista de pólos opostos, preferindo antes o poeta glutina-los, intensificando-os de reflexos recíprocos. Títulos como A Sombra Iluminada (2000) ou O Claro Interior (2004) são disto um óbvio sinal. Mas penso igualmente num forte poder aglutinador que, naturalmente, se manifesta com especial visibilidade no poema longo, um género com raros cultores entre nós.
Tome-se como exemplo O Ano da Morte de José Saramago, volume em que encontramos as marcas mais reconhecíveis do universo estilístico do autor mas também as suas dominantes temáticas: a infância, «esse comboio de janelas largas onde tudo se vê», e seus territórios, o amor, a vida, a morte. Trata-se de um livro-poema de povoada solidão, que se estende por 65 estrofes de tamanho variável e várias páginas. Traz no título a um tempo a sua força propulsora e a marca de uma orfandade a que então aludiram Henrique Manuel Bento Fialho[3] e o poeta Nuno Dempster[4], designado no poema como «Dempster das Irlandas que não há».
Na deriva controlada de uma escrita que aglutina passado, presente e aquele futuro que não se vislumbra, «pombos, poetas, columbófilos, versos – os homicidas», filósofos gregos que, por acidente cronológico, se tivessem deslocado do passado para o presente da escrita, mas igualmente boa parte dos títulos de que se compõe o legado de Saramago, é o leitor convidado a reconhecer a deriva da própria vida. «A vida é coisa errante», admite o poeta. À vista das diversidades, homogeneamente niveladas, com que o poema se constrói, a poesia surge como o que permite ligar materiais, memórias e experiências aparentemente desligados. Mais precisamente, ela é o próprio acto de os ligar, como se o acto de comparar / aproximar coincidisse com um princípio criador.
Mas Caudal de Relâmpagos evoca também quer um fluxo criativo que, sob o impulso de uma poderosa imaginação verbal, praticamente não conhece pausas, quer a cadência editorial de uma obra que sempre se recusou a progredir passo a passo. Entre o primeiro livro de Amadeu Baptista, As Passagens Secretas, e o mais recente, Fragmentos de Veneza, medeiam os 34 anos que separam as suas edições, 1982 e 2016, respectivamente. São mais de três décadas timbradas por uma força criadora que não descrê do poder redentor da poesia. Ao considerarmos o elenco completo dos seus livros, imediatamente se torna claro que o seu percurso, talvez por isso mesmo, configura um ininterrupto caudal de poesia que hoje se espraia por mais de três dezenas de títulos publicados.
Não obstante uma muito evidenciada consistência poética e uma constância qualitativa, repetidamente assinaladas pelos que dela se aproximam em jeito crítico, não obstante boa parte desses títulos não terem passado despercebidos, a julgar pelo facto de terem sido distinguidos com prémios literários vindos dos mais diversos quadrantes, não obstante, ainda, a justeza dos elogios dos seus leitores mais constantes, a verdade é que a sua poesia – que corre, de um modo geral límpida e torrencial, fora dos trilhos da obediência e longe do espectáculo consumível da economia globalizadora – não atingiu ainda um plano de recepção alargado capaz de fazer justiça à totalidade admirável que é já hoje a sua obra.
E porquê? Uma primeira razão poderá ser procurada no plano da recepção. Sejamos paradoxais: não é fácil ler Amadeu Baptista. Estamos perante um poeta que, por confessada compulsão que só a escrita pode de algum modo aquietar, mas também por solícita colaboração em múltiplos projectos editoriais (revistas, antologias, livros colectivos), se encontra em permanente expansão textual, como se a sua obra fosse (e não será?) um projecto em construção em que o processo expansivo da escrita não encontraria outro limite que não o do próprio espaço poético. Assim se entende que o autor, numa entrevista concedida ao “Bibliotecário de Babel” (19 de Janeiro de 2008), o blogue de José Mário Silva, tenha considerado os livros por vir uma parte do seu «sistema poético», que apenas a morte poderá completar.
Entre os equívocos persistentes que têm impedido uma leitura sensata da poesia de Amadeu Baptista, o mais nefasto parecer resultar de uma recepção desinteressada face a uma extensa lista de bibliografia. Existe, sabemo-lo bem, uma normal resistência perante um autor abundante: é difícil acompanhar a obra completa, ainda mais se tivermos em conta a dispersão por uma multiplicidade de editoras, algumas pequenas e de escasso impacto mediático, e a curta vida dos pequenos volumes nas escassas livrarias que os disponibilizam, isto para já não referir os circuitos de uma distribuição que mais esconde que revela a poesia. A verdade é que uma obra não se faz de forma contida, controlada, imediata e universalmente acessível. Por outro lado, é sabido que é da natureza da poesia permanecer em obras completas, em antologias ou recolhas de tipo antológico e não, necessariamente, em volumes individuais que muitas vezes nunca chegam a conhecer reedição.
Mas este não é o único equívoco que tem pesado sobre o autor de Poemas de Caravaggio, não raras vezes sujeito às injustiças dos juízos sumários. Não poucas vezes se terá referido a propensão do poeta para o discursivismo torrencial, nele associado ao verso extenso e ao poema longo. E de tanto o vermos repetido, isso ganhou a força de uma evidência unívoca. Ainda que a imagem do rio caudaloso se possa adequar ao registo próprio de Amadeu Baptista, ela não anula outras faces de uma obra que, pela versatilidade de processos que envolve, pela diversidade de formas que apresenta é bem representativa da imagem polimórfica (ou metamórfica) da natureza humana. A sua torrencialidade, materializada na horizontalidade vigorosa de muitos poemas, e que de modo nenhum se confunde com jactância ou se identifica com lirismo espontaneísta, dispõe-se a conviver com o fio de água que corre discreto, quase subterrâneo, e vai irrigando os versos num interrogar das coisas, do Ser, do destino, da vida – sem alarde nem habilidades técnicas como mágica solução para o mistério que é o Existir, mesmo porque Amadeu Baptista não é propriamente um poeta de oficina montada nas imediações da história da literatura. Assim como um rio recebe os mananciais de ambas as margens, também a sua poesia se alimenta de vertentes várias, algumas opostas e contraditórias, de tradições de vária ordem, seja a do texto bíblico, seja a tradição islâmica. Da captação de fontes tão diversas não poderia resultar uma «poesia de sabor único» (Pessoa), como há muito fez notar António Cabrita, o mais arguto crítico da poesia de Amadeu Baptista.
Mas este título de lucidez desarmante aponta também, senão para uma «liberdade livre», para uma ampla liberdade que, se considerada sob o ponto de vista formal, vai do poema brevíssimo ao soneto, do poema de fôlego amplo, de mancha mais ou menos densa, ao poema longo, tal como ele é praticado em alguns poemas-sequência de Açougue, ou levado à extrema lonjura em O ano da Morte de José Saramago; ou do verso, por vezes coincidindo com a frase alongada aos extremos de uma sintaxe para tal muito ginasticada, ao poema em prosa, de que é exemplo Maçã.
Uma liberdade onde a nitidez e o hermetismo habitam paredes meias. Onde cabem tanto a robustez e a ferocidade incondicional como a vulnerabilidade profunda; a ironia mordaz ou o registo satírico fulminante como a mais delicada sensibilidade lírica; a fúria desejante, sôfrega mesmo, e que encontramos em livros como A Construção de Nínive (2001) e Escalpe (2009) como o erotismo, não necessariamente centrado na descrição e na contemplação do corpo feminino, ou uma ternura habitando por vezes em lugares intersticiais; ou ainda a gravidade da tradição bíblica sapiencial como o ludismo tocado pelo humor e pela auto-ironia («do templo não ficará pedra sobre pedra/ e eu, do Baptista, só a cabeça tenho»); a dicção solene como o «verso conversado»; a frase feita (não raro reescrita: «Aqui tudo se perde e nada se transforma» ou «aqui,/ onde todos ralham e todos têm razão») como a referência erudita cultural das mais diversas latitudes, típica, aliás, dos poetas revelados nos anos ’80. É desconcertante acompanhar todas as variações de que é capaz Amadeu Baptista, um dos poetas mais plurais da nossa cena poética actual.
Nesse irrestrito exercício de liberdade, a lírica vigiada coexiste com a vontade narrativa, nítida e ordenada, e esta com um aparente caos de memórias atravessadas por uma capacidade reflexiva que, dando espessura ao poema, tanto é capaz de descer à crónica do quotidiano (individual ou colectivo, presente ou pretérito, profano ou sagrado) como se dispõe a interpelar enigmas, sejam «as coisas de Deus», esse enigma que, sempre à distância do intocável, «refulge nas alturas»; seja «esse outro enigma que em inúmeros litígios, motivos e ciência / para sempre amplia a nossa sombra» – o enigma do Humano, seja o enigma do Pai («O enigma do pai é um quebra-cabeças»), uma figura que, podendo sujeitar o leitor à indecibilidade, adquire nesta poesia um especial relevo como privilegiadamente testemunha o belíssimo poema Balada da Neve, saído originalmente na revista Hífen (Maio de 1988).
Pode dizer-se, por tudo o que fica dito e pelo mais que lhe pode ser acrescentado, que para Amadeu Baptista nenhum outro valor, entre os que o seu trabalho poético afirma, se sobrepõe ao da liberdade da criação, sem paragem nem repouso, na busca de uma verdade que, como escreveu Jorge de Sena, «a poesia não tem por fim achar, mas testemunhar que insatisfeitamente ela é buscada»[5].
Quando, um dia, a morte vier interromper esta busca, «Ah, que quem venha/ a seguir se não esqueça o que é o norte / e onde fica.»
[1] Obra Poética de Ruy Belo, vol. 1, Lisboa, Editorial Presença, 1981. A expressão lê-se na “Explicação que o autor houve por indispensável antepor a esta segunda edição”, também aqui reproduzida (p. 13).
[2] António Cabrita, «Sombras da meridiana clareza»: Expresso, 30 de Junho de 2007.
[3] Blogue “Antologia do Esquecimento”, 9 de Novembro de 2010.
[4] Blogue “À Esquerda da Vírgula”, 23 de Setembro de 2010. Nuno Dempster revelava aqui a história de O Ano da Morte de José Saramago, história que faz sobressair aquele gosto pronunciado do desafio e do risco que apontei a Amadeu Baptista: «revelar a história deste livro não é descrever senão os motivos que levaram Amadeu baptista a escrevê-lo, dos quais eu sou um dele pelo poema que lhe dediquei e pus aqui na altura. Surgiu então uma espécie de desiquilibradíssima desgarrada em que faço uma quadra, digamos assim, e Amadeu baptista responde com um poema de quarenta páginas, arrumando-me de vez a veleidade de pensar sequer numa resposta.»
[5] Jorge de Sena, Poesia I, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 27.
Teresa Carvalho
Revista Triplov . Dezembro de 2024