Por uma Estética da Espiritualidade

 

TRIBUTO A ANA HADDAD


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência  (Instituição-sede da última proposta de pesquisa) . Brasil


 Indagações primeiras           

Existem expressões e possíveis conceitos que carregam um alto teor de significações que vão desde uma exatidão desejável, assim  como a diferentes conotações. E nada mais exemplar do que o conceito de  espiritualidade.

Quando se pensa em espiritualidade, na maioria das vezes,  logo vem à memória uma abertura para diversas significações. Vagas. Flutuantes. Como algum processo nada palpável. Espiritualidade ou espiritual remete, em especial na memória coletiva, a um certo espaço que estaria fora do corpo.  Com isso diversas deturpações do que realmente poderia estar melhor recortado e  mais claramente delimitado.

 

O que significa espiritualidade?           

Ana Haddad. Foto de Ninil Gonçalves

Nas palavras de Michel Foucault: “Quando falo de espiritualidade, não falo de religião, ou seja, é necessário distinguir muito bem espiritualidade e religião. É surpreendente constatar que a espiritualidade, o espiritualismo e a religião se misturam no espírito das pessoas em uma salada notável, uma ‘marmelada’, uma confusão impossível!”[1]. Prossegue Foucault: “A espiritualidade é algo que você pode procurar na religião, mas também fora dela; você a encontra no budismo, religião sem teologia, nos monoteísmos, mas também na civilização grega. Portanto, a espiritualidade não está necessariamente relacionada à religião, embora a maioria das religiões tenha uma dimensão de espiritualidade”[2].

As palavras do grande pensador francês fazem parte de uma belíssima entrevista que  deu, a contragosto, como uma verdadeira resposta, em alto e  bom som (em sua tonalidade aguda como lhe era peculiar quando “furioso”), ao Le Nouvel Observateur. Foucault havia colocado, publicamente,  algumas posições diretamente mais políticas, em relação ao Irã, no contexto do fim da década de 1970.  Nas discussões daquele período de tanta efervescência, entre outros acontecimentos da época, usou a expressão “espiritualidade política”. Tal uso causou uma espécie de mal estar na sociedade francesa e foi um prato cheio para os  ‘habituais desafetos’ do filósofo francês.

De acordo com Foucault: “O que é a espiritualidade? Acredito que seja essa prática pela qual o homem é deslocado, transformado, transtornado, até a renúncia da sua própria individualidade, da sua própria renúncia de sujeito. Não mais ser sujeito como se foi até agora, sujeito em relação a um poder político, mas sujeito de um saber, sujeito de uma experiência, sujeito também de uma crença.

Para mim, essa possibilidade de se insurgir si mesmo a partir de uma posição do sujeito que lhe foi fixado por um poder político, um poder religioso, um dogma, uma crença, um hábito, uma estrutura social, é a espiritualidade, isto é, tornar-se outro do que se é, outro do que si mesmo.

É certo que as religiões são ao mesmo tempo uma espécie de estrutura de acolhimento para essas formas de espiritualidade, para essas práticas de espiritualidade e limitações. Elas nos prescrevem em que devemos nos tornar outro que si mesmo, em qual direção devemos ir, qual novo estatuto teremos, etc. De fato, as religiões constituem uma codificação da espiritualidade” [3].

A posição do filósofo francês abre travessias imensas para que se possa pensar, com mais abrangência, conceitos sempre necessários e bem vindos em relação à espiritualidade. Cremos que suas  colocações são muito favoráveis para que possamos, sem grandes equívocos,  refletir outras dimensões do termo. Se pensarmos, de certa forma, de acordo com Foucault,  de imediato podemos inferir que um escritor ou um artista quando está elaborando sua obra, verdadeiramente artística, não poderia estar desprovido de uma grande grau de espiritualidade. Por quê? Uma resposta possível é dada por Deleuze. Em suas palavras: “Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento, como Gombrowicz disse e fez. Escrever é um ato de devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devir-impercetível ” [4].

O que Deleuze diz, enfaticamente, com suas palavras? Que um escritor, e o mesmo se aplica a um artista de outras linguagens, no processo de criação, no entrecruzamento do material com o imaterial, despersonaliza-se! Transforma-se. Deixa de ser ele mesmo. O que vai plenamente ao encontro do conceito de espiritualidade de Foucault quando nos diz que a espiritualidade é o deslocar-se de si mesmo. Deixar de ser o mesmo! Transformar-se! Transtornar-se! Exatamente o mesmo processo pelo qual os grandes artistas e escritores atravessam com profundidade. Lembremos que para Deleuze a mera identificação não significa nada em termos de literatura. Quem faz literatura busca esferas daquilo que não se pode discernir! E, sobretudo, o inacabamento. O famoso inacabamento, por exemplo, proposto pela leitura de Sartre em relação a Alberto Giacometti: “Como fazer um homem com pedra sem petrificá-lo?” [5]  Giamometti, narra Sartre,  todos os dias faz a estátua de um homem. Mas no outro dia despedaça a mesma. Quer arrancá-lo da pedra. Até chegar ao que deseja. Em outras palavras: quer lhe dar humanidade, espiritualidade. Eis o grande desafio do artista! Como fazer da linguagem-pensamento um devir? Como entrar na pele de uma mulher? Ou nas entranhas da solidão? Como mergulhar em águas oceânicas e falar por elas? Não para elas. Por elas! Eis um ato altamente espiritual. Como falar por um deserto… como  faz Marco Lucchesi? “Foi numa terra estranha, ao cabo da noite, que o pranto do desterro sofreu o impacto do vento, e o esplendor oculto dos primeiros raios tardou o espasmo da espera. Tua gravidade permanecia, imutável, no silêncio. E teus lábios mal suportavam o dorso das palavras, no abismo do pranto. Minhas fibras gelavam…Permaneceste calada, pois o silêncio esmagava teu orgulho, página atônita do tempo, e recobria a mútua presença de um olhar, como se fora o dilúvio das palavras, que implorava, amorosamente, as pálpebras da noite” [6].

Do ponto de vista de quem cria é um sair de si! Mas o que ocorre após ter lido um devir-deserto de Marco Lucchesi? Somos, nós, leitores quem saímos de nós mesmos. Somos nós que, de alguma maneira, nos sentimos transformados e transtornados. Deixamos de ser nós mesmos para nos tornarmos um outro. Ter a verdadeira posse de uma individualidade que, talvez, jamais a tivéssemos sonhado. O sair de si, conforme nos descreve Foucault, em uma das dimensões possíveis do espiritual.

Deleuze vai até as últimas consequências numa belíssima leitura de Proust! Segundo ele, de acordo com Proust, os signos materiais, porque inteligíveis, com certo grau de objetividade, se mostram  opacos. “Enquanto descobrimos o sentido de um signo em outra coisa, ainda subsistirá um pouco da matéria rebelde ao espírito” [7].  Não traduzem a imaterialidade dos signos sensíveis. A superioridade da arte, em relação à vida, prossegue Deleuze [8], é que na vida somos cercados de signos materiais e seu verdadeiro sentido está sempre em outra coisa. Portanto, foge ao inteiramente espiritual. Mas na obra de arte, sem esquecer de incluir a verdadeira literatura, o processo de signos se comporta de forma diferente! Prossegue Deleuze: “Nossas únicas janelas, nossas únicas portas são as espirituais, só há intersubjetividade artística. Somente a arte nos dá o que esperaríamos em vão de um amigo, o que teríamos esperado em vão de um ser amado” [9]. Como por exemplo no seguinte poema de Marco Lucchesi [10]:

Um acorde ao piano

   e a leveza de tuas mãos

   aveludadas

Irredutível

           o modo de pousá-las

           como pássaros migrantes

no horizonte

claro-escuro

              do teclado

 

Melodias

   que me visitavam

               na infância

e que seguiram

       pelas noites

                  tantas em que

   voltei ao piano

sob o clarão

          da Lua que sonhavas

 

E a partitura

          tenho-a frente

   aos olhos

mas

    nesse mesmo piano

             falta-me

a chave

          de silêncios e trinados     

 

Não os da música

    que estão

    onde devem estar

mas o modo

 de chegares a Debussy

a tua digital

   no plano

           das secretas

harmonias:

as águas claras

da Toscana

os bosques

da Versília

e tua difusa feliz

melancolia

quando te davas

a contemplar a noite

na longa profusão

de teu olhar

 

Ao vivo

sobressalto

a que me entrego

não vejo

o  piano    a lua

e nem tampouco o céu

tão tímido de estrelas

mas o modo pelo qual

tento

o segredo de uma forma

que me sustenta e rapta

 

E se deitava

como poente

nos longes de mim

Em que medida poderemos sair inalterados após a leitura do poema em questão? Quase impossível. O poeta se transporta para o seu núcleo infantil nas reminiscências profundas que compõem sua existência. E com isso somos transportados para a nossa. Observe-se que o poeta, ao aludir à sua infância, volta-se, inclusive, para a infância de sua mãe. Uma atmosfera pura de signos imateriais. Espiritualizados. Aqueles que coincidem com o sentido e com a simultaneidade dos tempos, ou seja, o tempo da narração do poeta, sua infância e a de sua mãe. Nessa medida, há uma suspensão de nosso tempo. Ao sairmos de tal suspensão…jamais seremos os mesmos.

 

E afinal: O que é espiritualidade?

Especialmente quando no indagar dos grandes mistérios da vida…podemos pensar, mergulhar,  de fato, nas belas palavras de Paul Valéry: “Qual ideia mais digna do homem do que a de ter denominado aquilo que não conhece? Posso envolver o que ignoro nas construções de meu espírito, e fazer de uma coisa desconhecida uma peça da máquina de meu pensamento. Apoio minha fronte na vidraça gelada; a questão do saber e do não saber me parece eternamente em suspensão diante do meu silêncio, e uma espécie de equilíbrio estacionário parece estabelecer-se entre o homem e o espírito do homem [11] . E ao sairmos de um mergulho tão perturbador…impossível não nos sentirmos transformados e transtornados (sabedores de que o resto é silêncio) em  brumas emblemáticas  regidas pelo ‘espírito do  meio-dia’. 


Bibliografia

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.

_______________. Proust e os signos. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

FOUCAULT, Michel. O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. Tradução, organização e apresentação de Lorena Balbino. São Paulo: n-1 edições, 2018.

LUCCHESI, Marco. Os olhos do deserto. Rio de Janeiro: Record, 2000.

_________________. Domínios da Insônia: novos poemas reunidos. São Paulo: Patuá, 2018.

PAUL, Valéry. Alfabeto. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

SARTRE, Paul. Alberto Giacometti. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.


[1] O enigma da revolta, p.20.

[2] Idem.

[3] Idem, p. 21.

[4] Crítica e Clínica, p. 11.

[5] Alberto Giacometti, p. 18.

[6] Os olhos do deserto, p. 29.

[7] Proust e os signos, p.41.

[8] Idem.

[9] Idem, p. 42.

[10] Domínios da Insônia, p. 56.

[11] Alfabeto, p. 81.


Série Viridae . Ana Maria Haddad Baptista.

Maio 2022 . 

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