Poesia e Sociedade – dois aspectos complementares

 

NICOLAU SAIÃO
TRIBUTO


 O homem é perecível; pode ser. Mas pereçamos resistindo e se, ao fim,
o que
 nos está reservado é o vazio e o nada,
façamos com que isso seja uma injustiça. .
Étienne de Senancour

 

Introdução

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Formal ou informalmente – que nisto de vida social a gente nunca sabe em definitivo como é que as coisas se apresentam – agradeço-vos o gesto de me terem convidado a estar aqui durante um par de horas a falar da poesia em geral, particularmente de alguma que se faz em Portugal e, por vossa desvanecedora vontade, da minha própria poesia

Sucede então que por suscitação de uma digna Associação espanhola me vejo na circunstância de ser hoje ante vós, de algum modo, o rosto do meu país; o qual, apesar das marginalizações pontuais a que submete os autores que não fazem a vénia a Zeus e a Mamon e de ser frequentemente uma pátria madrasta plena de contradições, me merece o crédito de através de algumas entidades continuar a respeitar a dignidade humana.

Quero agradecer ainda aos convivas que vejo a esta mesa luso-espanhola o acto de se terem deslocado a este local para me ouvirem. E isto porquê? Porque ao escritor, ao artista, é-lhe grato verificar a recta intenção de se ter pela cultura dos dois povos vizinhos um interesse que permite que esta sala se tenha composto apesar de à mesma hora decorrer um palpitante derby entre duas importantes equipas de futebol. Concluo que tal atitude parte dum real interesse pelos mistérios da existência, nomeadamente aqueles que residem na Literatura encarada como algo de luminoso. Por tudo isto proponho-vos que após a intervenção inicial, a leitura dos poemas e o mais que for vindo a condimentá-la – já sem papel – me questionem, mesmo vivamente se assim o entenderem, no sentido de me suscitarem respostas que sejam potencialmente conclusivas de qualquer coisa e reflictam um pouco, como num espelho mágico, este universo simultaneamente belo e inquietante que é o da escrita e o da criação por extenso. Além do mais, sendo a minha poesia, segundo penso, uma tentativa (que também é uma busca) de desconstrução/reconstrução da linguagem e, nessa medida, refractária da facilidade do ponto de vista duma literatura amena e afirmativa, talvez faça sentido ponderar de que maneira ela se apresenta aos olhos de quem lê e, o que simultaneamente me encanta e me espanta um bocado, a procura conhecer e mesmo interpretar. Falo assim porque alguns poetas – parece que não é só comigo – no meu país são tomados e olhados pelo que fazem mas também (ou principalmente) pelo que são civilmente: ajuda um pouco ao “bom nome” ter uma situação, isto junto de gente de letras com pouco chá mas muita sabedoria de manobra e algum desembaraço.

No meu caso isso é, tem sido, razoavelmente marcado e contra mim falo: não sei elogiar os medíocres, institucionais ou particulares, que em Portalegre tentam fazer-se passar por talentarrões ou dirigentes iluminados. Nem pertenço a quaisquer grupos regionalistas vizinhos do Poder (políticos, académicos, futebolísticos, excursionistas, etc.) mas apenas a confrarias do espírito (gastronómico, numismático, xadrezístico…) onde as coisas funcionam por indominável simples cooptação, o que me deixa um pouco inerme e permite todas as atitudes, geralmente desfavoráveis. Ainda por cima, o suplemento (Fanal) de que fui co-coordenador e onde granjeei algum destaque, apesar de ser de boas-contas (ou seja, não se recebia um tostão…) e de não fazer fretes, era uma coisa modesta apesar de séria, como as tradicionais jovens pobres das vilas… Mas adiante!

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Gostaria de tornar claro, desde já, que não concebo a poesia como instrumento mais ou menos adequado para a instauração de “beleza formal” ou de “bondade socializada”. Na verdade, entendo que a poesia, pelo menos a que faço, é uma aventura no mal, ou seja: uma incursão num mundo fragmentário e desconexo que o poeta busca reformular para que ganhe significado e sentido mediante a realização dos poemas, que a meu ver são entidades que por fim ganharam um padrão coerente. É, digamos, um jogo arriscado nos domínios da realidade, que depende de nós como nós dependemos dela. Se faço poemas é porque não posso deixar de os fazer. Ser poeta não é propriamente uma maldição, mas é sem dúvida uma inevitabilidade que às vezes se agradece ao destino e outras nos causa sofrimento. Se publico é porque, afinal, publicar o que vamos descobrindo constitui de alguma maneira um direito democrático e uma luta contra o aniquilamento, os diversos aniquilamentos que a protérvia societária frequentemente guarda para nós. Mesmo o mais simples, que é dificultar-nos essa publicação. Ultimamente, as “forças vivas” caciquistas utilizam uma nova forma de discriminação regional – que é entregar a editoras da corda a decisão de quem deve ou não deve ser apoiado. É uma forma inegavelmente inteligente e razoavelmente discreta de transformar como por artes mágicas, da noite para o dia, talentos de segunda escolha em autores de qualidade. Na minha cidade essa atitude tem-se aproximado perigosamente do tristemente célebre “tráfico de influências”.

A despeito de alguma razoável amargura que destas palavras ressalte (como é lamentável, a 30 e tal anos de distancia do 25 de Abril, termos de ocupar-nos destas coisas sórdidas!) faço questão de salientar que as dificuldades a que os autores e homens livres estão por vezes ali sujeitos nunca conseguiram gelar-me por dentro, significativamente, a alegria. Fui sempre uma pessoa de amores, pessoais ou sociais, tanto em relação ao tempo como aos tempos que se evolam inapelavelmente. Nesta conformidade, concluo que provavelmente sou um ingénuo. Se o não fosse talvez não vos falasse assim, simularia conceitos fortes como fazem muitos que conhecemos.(Que conhecemos de vista e de trajectória). Mas às vezes sabe bem dizer-se o que realmente se pensa – que corresponde ao que realmente se passa – como num grande cansaço. Tenham em conta que o poeta, afinal, não é de facto um cavalheiro amável (para citar K.R.Browne) mas alguém que de tanto conviver com certas feras – as da criação, da busca do absoluto, da nódoa sombria do pecado original – se torna também um pouco fera. E além disso é função dos poetas, se alguma têm, lançarem um olhar atento e interventivo sobre os disparates do mundo, como dizia Chesterton, para melhor situarem as forças contrárias ao Homem, aquelas forças que só visam aniquilar a dignidade de existir só ou em conjunto.

Uma prevenção: se acharem, a dada altura, que estou a prolongar em demasia a sessão não hesitem em fazer-mo saber com energia porque eu, a exemplo do que o mesmo Chesterton disse um dia ao seu cordial inimigo George Bernard Shaw, tenho também o defeito de, à mínima provocação para falar em qualquer parte, arranjar palheta suficiente para, pelo menos, três cartapácios…ou duas horas de conversa.

 

O artista e a fascinação do mundo

É por dentro do artista que tudo existe com mais intensidade: lugares e gentes, os grandes impulsos que fazem aparecer e desaparecer os astros e as coisas. Por isso, a mão do poeta, essa mão insólita que escreve, é uma sombra que entre as árvores e as casas, entre os sentimentos efémeros e os desertos do quotidiano, tenta seguir a trajectória do que somos, uma vez que a realidade existe em vários planos seccionados, como se fosse uma sequência de fotografias deslocadas ao longo do horizonte mas contempladas de diversas perspectivas.

Hoje, como em todos os tempos, não acalentamos ilusões: o Sistema (e reparem que não me refiro ao poder, pois há diversos poderes e muitos deles legítimos) no mínimo encara os poetas de lado. O que é natural, uma vez que estes usam pagar-lhe na mesma moeda.

Refiro-me, naturalmente, a poetas mesmo e não a membros da coorte de lambedores de botas ou de apepinadores que por vezes têm o descaramento de se ornamentar com essa designação e que a dita entidade usa apoiar, acarinhar e privilegiar sem rebuço de uns e de outros, com mútuos e doces proveitos.

Lembremo-nos que esse tal Sistema é o resultado de uma conflitualidade frequentemente espúria, que parte sempre não das legítimas necessidades do Homem mas da sua indiferenciação. O que os seus próceres visam – não tenhamos medo das palavras – é se possível extinguir nas pessoas o sopro de autonomia que em todos, ainda que sufocado ou submerso, existe. Era por isso que a antiguidade e a medievalidade tentavam reservar ao poeta os papéis de empecilho ou de bobo, buscando expulsá-lo da Cidade e, mais tarde, do espaço de religação. E é por isso que tempos atrás, no Irão fundamentalista, foram de uma só vez encarcerados vinte e tal poetas, muitos deles conhecedores e receptáculos da sabedoria sufi, com o pretexto de que não estavam de acordo com os preceitos do Islão. E era por isso também que no Leste os verdadeiros poetas (ou seja, os que procuravam as secretas virtualidades da escrita – que correspondem às virtualidades da vida – ao desconstruirem a linguagem em busca de novos mundos ou de continentes perdidos) eram substituídos por praticantes de uma presumível poesia popular que nada mais era que impostura de baixa qualidade (artesanato, que os autoritários espertalhões e as elites tanto “amam” porque é lindo e inócuo). Não devemos esquecer, a este propósito, que como dizia Gonzague de Reynold “A inteligência, para os hipócritas, é sempre algo que vem do demónio, sobretudo para os hipócritas pouco inteligentes”. Felizmente que as forças espirituais mais intensas da humanidade, plasmadas nas palavras dos poetas, resistem e multiplicam-se. É a viagem de nós a mundo, como referi algures num poema – e que por mais que tentem não pode ser destroçada. Desiludam-se os ulemas de todos os quadrantes: haverá sempre palavras que sairão de nós, entrarão em nós, calmas e ardentes de sugestão e procura. Como, na verdade, se tudo fosse um jardim dos tempos da nossa infância – porque as palavras com que nos erguemos e definimos são verdadeiramente o mapa da nossa navegação entre os diferentes sinais da vida iluminada e para sempre no coração das pessoas. Nós, que sofremos como qualquer cidadão os embates de um quotidiano frequentemente lamentável, nunca perderemos contudo a nossa alegria, que depende directamente da nossa faculdade de jogarmos com a linguagem o “grande jogo”, que é o da criação e o da busca de novas relações entre ela e os ritmos do mundo.

 

A recriação da natureza

Se há fronteiras entre o sonho e a vigília, parece que compete ao poeta desfazê-las. Diz-se que no princípio do mundo foi o ruído e a tempestade e grandes sombras pairavam sobre as águas. Contudo, a função do poeta exerce-se em silêncio, um silêncio algo equívoco porque totalmente interior e multiplicado nos seus dias, nas noites em que observa a existência triangular: a palavra, o seu corpo e os seus humores e os diversos países mentais em que é lícito perder-se ou achar-se. Não há que buscar estrelas vespertinas ou matutinas, essas tem-nas o poeta nas suas paisagens de dentro e de fora, tal como nos seus desesperados momentos de amargura ou nos instantes de encantamento: trata-se, isso sim, de transfigurar e não de inventar. A invenção do poeta sucede aqui e acolá, serve dizer: existe nas suas mãos como que permanentemente, mas as suas mãos, tal como as de toda a gente, estão e estarão sempre manchadas por estranhas substâncias que partem do quotidiano como se este fosse – para empregar uma imagem alquímica – a matéria afastada da Obra. E então o poeta caminha pelos campos, jornadeia perto do mar, lá onde os destroços se acantonam como inquietantes rochedos. A pouco e pouco vai entendendo a melhor maneira de jazer sob os astros que o tempo lhe consentiu ver. Então, entram pé ante pé a nostalgia, a esperança e o remorso – difusos, esquisitamente silenciosos. Daqui extrai o poeta um verbo, dali recolhe um adjectivo, um encadeamento além das promessas vagas que as mutações do quotidiano se encarregam depois de tornar em acontecimentos que por vezes ferem, por vezes punem. É um percurso todo feito de humildes olhares que, trespassando o vazio e o incorpóreo, criam rios e montanhas, caminhos vicinais e bosques onde as plantas e as pedras têm significado. O poeta é agora uma entidade viva e em chamas, incendeia o futuro e o passado: é o presente que se transmutou, a espiral deslocando-se infinitamente. Todas as eras idas lhe vão criando sombras no rosto, nos dedos, nos ombros se mal se precata. Mas são sombras como que purificadas e amigas onde se distinguem contornos de animais, de gentes que amou ou o amaram, a natureza vegetal e mineral e as suas variadas formas nas suas cores distintas. O poeta ascendeu ao poema, exerce-se em todas as direcções. E o poema vive e a sua presença é íntima e solene. Entra no mundo, desdobra-se como se o mundo o pudesse conter inteiramente. É um feto, uma flor, um planeta. Roda no espaço e repousa sobre a terra. Princípio e fim do Verbo, conquistou os sete reinos da memória. Perplexo ante a ventania, o poeta toca o seu rosto convulso: pode enfim tocar também a sua silhueta, que é a silhueta que o mistério buscava esconder. A pura felicidade de afeiçoar é pois matéria vivificadora, que ele contempla como se contempla uma fotografia muito antiga. Há luzes e há escuridão palpitando em torno de si: amigos que se vão ou pacientemente chegam com um passo pausado e como que temeroso, mulheres que se adivinham mais do que se olham e que já nada têm para lhe dizer, espantos, contentamentos, muita gente em torno da mesa, a solidão de um quarto em pleno Verão. É a ternura enfim presente que a sabedoria criou para nos inquietar com ironia, mas o poeta já compreendeu que urge resistir às aparências que se desenham sem que ele possa exercer a sua vontade.

Andando pelo seu pé, o poeta – devagar e com o coração opresso – vai sentar-se numa pedra qualquer à beira da estrada e olha lá ao longe a iluminada cidade dos homens. É o fim da tardinha, o sol evolou-se mansamente. Uma penumbra familiar vai dando na copa das árvores, nas colinas em volta.

O poeta, imóvel, contempla o minúsculo relevo das casas ao pé da grande linha do horizonte. Imóvel, espera e olha. Como um animal arcaico, apenas silhueta, apenas um retrato enquanto as palavras aguardam a noite que chega para que o mundo continue.


Lido na sessão levada a efeito no “Ateneo Cultural” de Badajoz


Nicolau Saião \ Biobibliografia sucinta


revista triplov

série viridae nr 02

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