IEDA ESTERGILDA DE ABREU
Quando conheci Petrúcio era assim: ele gostava de cantarolar baixinho trechos de melodias recentes, se alguém flagrava, reagia envergonhado, meio em concha. Dava uns giros rápidos, passos curtos, mãos nervosas próprias de pianista, e voltava ao grupo. Contemplativo e discreto. A palavra ou sensação que mais me remete a ele no rastro das lembranças é leveza, junto a certa tristeza no olhar, uma inquietação que às vezes resultava em riso, dele e dos que estivessem próximos.
Podíamos estar em uns ou em outros lugares, sempre nos encontrando. Petrúcio era um dos nossos naqueles tempos duros de berros, gritos, medos e porradas nos porões escuros do país. Sabíamos das notícias e das últimas músicas de Caetano, Chico, Gilberto Gil, Gismonti, João Gilberto, Edu Lobo ou Beatles e Rolling Stones, no diretório da faculdade de arquitetura da universidade federal, onde ficava a maior discoteca do momento e se arquitetava o mais sutil. Era quase que sagrado ir lá ouvir os caras e fazer conexões com a situação do país, como se eles o traduzissem para nós. Nas manhãs de sábado víamos Buñuel ou Pasolini no cine Diogo, que anos depois o fogo consumiu. No teatro universitário tinha as Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, no teatro José de Alencar gritávamos Liberdade, Liberdade (com Millor Fernandes e Flávio Rangel), ”essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, nos versos de Cecília Meireles. Gostávamos de música, poesia, cinema, teatro, de estar juntos de um lado pro outro e vivíamos os anos 60, início dos anos 70 em Fortaleza. Tudo isso repercutiu em Petrúcio que descobriu-se compositor em meio a esse contexto de efervescência cultural e inquietude criativa, tecendo canções com diversos colegas de geração.
Quem conviveu com ele bem antes foi a musicista e compositora Mércia Pinto, sua professora de teoria musical. “Conheci Petrúcio quando éramos adolescentes”, conta. “Eu estudava no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno que ficava no bairro de Jacarecanga. Grupos de estudantes dos colégios da redondeza entravam e saiam livremente do casarão. Foi nessa atmosfera aberta que eu e Petrúcio fizemos os primeiros contatos. Um dia, enquanto eu estudava, fui surpreendida por alguém que da janela me enviava um sorriso leve que se esvaía rapidamente. Quando eu menos esperava, algo me desviava dos meus intermináveis treinos e meus ouvidos se encaminhavam para sons diferentes daqueles do cotidiano da casa. Era ele improvisando alguma melodia. Do sorriso breve à presença soante foi um passo para ele entrar na sala e iniciarmos uma conversa sobre música. Parecia fascinado, olhos fixos, quando eu explicava como funcionava a construção musical, os acordes, o ritmo ou quando falava sobre algum compositor. Quando o fazia ouvir um trecho e mostrava na partitura como o compositor impressionista (Debussy) alterava as tríades dos acordes, fugindo assim da tonalidade, criando novas sonoridades, ele saía sem dizer uma palavra. Voltava depois de alguns dias e continuávamos nossa conversa. Sentava ao piano e improvisava alguns acordes parecidos com os que caracterizavam a música impressionista. Perguntava o que eu achava. O que posso dizer é que ele estava muito mais impregnado de uma etiqueta e de matrizes performáticas da maneira de compor e improvisar dos pianistas e compositores de música popular da época; o twist, o rock and roll e a bossa nova que despertava mais suas atenções naquele momento. Sobre esta última, mantínhamos uma conversa interessante, relacionando a poesia e a música impressionista com o gênero de João Gilberto”.
Anos mais tarde, em alguma sala do mesmo Conservatório, já em novo endereço, fizemos uma ou outra parceria. Uma frase, um verso, ele dedilhava ao piano, vinham acordes, a melodia surgindo em meio a risos, expressões de surpresa, silêncios, improvisos. Dias depois nos encontrávamos, ele mostrava ou cantarolava o resultado. E seguíamos.
Ao considerar Petrúcio talvez o melhor de sua geração, o jornalista, escritor e pesquisador Gilmar de Carvalho pergunta se “não teria sido ele o nosso Tom Jobim, tecendo harmonias, tocando, insone ao piano seu/nosso ‘Pé de Sonhos?’” Cantávamos essa e “Beco dos Baleiros”, ambas parcerias dele com o poeta Antonio José Soares Brandão, nas claras noites de Fortaleza, avenida Beira-Mar, bar do Anísio, o nosso preferido. De onde víamos os navios varados de luzes no porto do Mucuripe e um cavalo branco que costumava passear na praia vez ou outra. Assim como chegava, sem alarde, Petrúcio se ia, até qualquer dia, até.
Único cearense e último dos oito filhos do casal de alagoanos Salvino da Costa Maia e Maria da Conceição Mesquita Maia, Petrúcio foi o xodó da família numerosa. Sua mãe tinha 44 anos quando ele nasceu, em 21 de agosto de 1947. Adorava dizer que era da Praia de Iracema, da boemia. A cantora Amelinha também guarda lembranças semelhantes dessa sua fase. “Ele dizia que era garoto de praia, apesar de ser branco que só. E tímido. Eu gostava muito de conversar com ele, um garoto que tinha aquele temperamento de um poeta, aquela coisa tímida. E ao mesmo tempo era zombador, brincalhão, mexia com todo mundo”.
A irmã e protetora Vanda foi a responsável pelos seus primeiros acordes de piano. “Naquele tempo, as mulheres tocavam piano, eu, minha mãe… e ele ficava sempre junto. Perguntava: ´Onde é o dó?´ Eu ia ensinando. Mas teve a cítara primeiro, depois uma sanfoninha. Ele tinha ouvido, o danado! Depois estudou teoria, fez aula. Era louco por música”.
Mais adiante, Vanda diria que ele era um idealista, por ter resolvido estudar sociologia em plena efervescência cultural e política no ambiente universitário. “Ele chegou a ser preso. A polícia chegou aqui seis horas da manhã, veio buscar ele em casa”. Era 1972 no planeta e foi uma prisão arbitrária, na opinião do compositor, em entrevista ao jornal O Povo. “Levaram livros meus de Marcuse (considerado perigosíssimo pelos meus interrogadores, e perguntaram porque eu não tinha um livro que não o de Marx para falar sobre a Revolução Espanhola dos anos 30 (que resultou na ascensão do fascista Franco). Eles pensavam que o livro de Marx se referia a essa revolução. Entretanto, logo ficou claro para alguns que Marx havia morrido em fins do século XIX”.
Ao piano, se destacava pela harmonia que norteou sua música, transformando notas isoladas em acordes pungentes. Nele descobriu a maneira pela qual queria exprimir-se. No violão, encontrou seu lado mais intimista. Na fase mais recente, não hesitou em trocar o piano pelo teclado eletrônico, lhe agradava pode utilizar timbres variados de instrumentos acústicos ou novos sons.
Considerando o ritmo de nossas vidas em grupo, fosse em locais emblemáticos ou na casa de amigos, parentes, onde muitas parcerias aconteceram, Petrúcio não criava loucamente ou de estalo, preferia estar em paz “para qualquer coisa”, mas os conflitos não eram empecilho. “Ao contrário”, dizia, “podem ser grandes motivadores. Às vezes produzo uma série, uma safra, outras vezes, uma canção isolada. Às vezes ocorre a inspiração espontânea, outras vezes eu ‘provoco’ a inspiração”. A irmã Vanda disse conhecer umas 50 composições, e quando perguntou quantas ele tinha feito, ele falou em 300. Mas onde estão todas essas peças, ela nunca soube.
Com brilho próprio, cultura musical, Petrúcio em tempo algum se sentiu sombra ou sobra de quem quer que fosse. Desde menino ouvia o que se tocava em Fortaleza, depois veio a música pop nordestina – amava os sons medievais dos instrumentos da nossa cultura – , a bossa nova, blues, jazz, música do Caribe e música erudita. Essa fusão sempre esteve presente em suas composições e claramente no disco Melhor que Mato Verde, onde canta todas as faixas.
Ao procurar introduzir novos elementos, traços orientais e de outras regiões, dizia caminhar para um amadurecimento. “Ando em busca de uma canção planetária”. O encontro veio com o segundo e último CD, Canções do Planeta, concebido por ele no Rio de Janeiro, onde morou entre 1979 e 1990, e lançado em Fortaleza em1996 como homenagem póstuma. Petrúcio não chegou a ver seu trabalho pronto, faleceu dois anos antes na cidade onde nasceu, vítima do vírus da aids, para tristeza e desolação de toda a nação musical cearense. Feito em dupla com a cantora mineira Bigha Maia, com quem foi casado 11 anos, o CD reúne parcerias do casal e outros nomes que com ele fizeram história. Ele dizia acreditar na fusão natural das culturas, em todos os planos, inclusive na música. “As canções que escrevo utilizam ritmos e estruturas melódicas que viajam por lugares e etnias”. Destacou ainda os temas ecológicos, sem necessariamente partir para o protesto explícito, simplesmente cantando a natureza. “É uma geo-poética política. Como um atlas musical.”
Tinha planos de continuar compondo, se apresentando quando fosse necessário, queria lançar o primeiro livro de poesias, lecionar música e escrever ensaios ou crônicas envolvendo sociologia, etnologia, filosofia. Dizia ser “um pensador artista”.
As últimas vezes em que vi Petrúcio, o nosso Pete Maia, foi no Rio de Janeiro, onde morava com Bigha Maia, no bairro de Botafogo. Liguei de São Paulo, dizendo que queria visitá-lo. Com voz não muito convincente, respondeu que fosse e eu fui. Achei-o mais inquieto que o de costume, além de magro e triste. Embora feliz por revê-lo, sua tristeza me perturbou, mas fiquei sem jeito de perguntar a razão. Imaginei que fossem as dificuldades de estar enfrentando a vida nada fácil de viver de música. Era isso e muito mais. No dia seguinte, fomos à praia. Sentamos na areia, mas ele logo levantou-se e ficou dando voltas, entregue a si mesmo. Molhava os pés e voltava. Sentado, pernas dobradas, o olhar perdido no mar do Rio, disse: “Estou muito doente, amiga”.
♣revista triplov. série gótica . inverno 2018