ANTONIO JOSÉ SOARES BRANDÃO
Vejo o Petrúcio a subir pela rua Professor Costa Mendes, já quase a alcançar a lateral da Maternidade Assis Chateaubriand. Daí ele atravessará a Avenida José Bastos, tomará a João Pessoa e descerá em direção ao Benfica. Talvez vá ao Instituto de Física, ou à Faculdade de Arquitetura, ou talvez mais longe ainda, ao Conservatório Alberto Nepomuceno, um de seus sítios básicos de permanência. Poderá depois se estender até à Faculdade de Direito, lugar de muitos amigos, de onde poderá ir para casa ou para a boemia da Beira-Mar. De onde viria o Petrúcio? Da casa de alguém determinado? Ou simplesmente estaria cumprindo um itinerário que passava por diversas casas de gente conhecida, que por aquela região morava? Quem sabe ele vinha de minha casa, quando eu morava naquele mesmo bairro na Rua Professor Lino Encarnação, ou talvez viesse da casa da mãe do Belchior, que morava na mesma rua, dois quarteirões acima.
O Petrúcio conhecia toda e qualquer pessoa da cidade que tivesse algum interesse cultural, não apenas musical. Se fosse noite, Petrúcio poderia vir de algum bar onde se reuniam os “culturais”, e alguns deles se situavam na periferia mais inusitada. Petrúcio Maia andava a pé pela cidade inteira, centro, litoral e periferias, e nada era demasiado longe para ele. Com suas camisas de manga compridas, geralmente de uma cor neutra ou de um xadrez não-matuto e não-escocês, sua pasta apertada sob o braço, seu olhar perdido no chão, ele parecia estar permanentemente desligado do mundo ao redor, a elaborar alguma canção. Ou a remoer algum pensamento muito entranhado, para usar o radical de adjetivação do amigo Floriano Martins.
Nunca vi o Petrúcio zangado. Zangado mesmo, nunca. Quando ficava amuado, deixava a conversa coletiva, ficava de costas para ela e remoia sozinho a situação. Rápido voltava com uma conclusão bem pertinente, que ou se dobrava aos argumentos colocados ou surpreendia e repunha a discussão coletiva novamente na paz e nos eixos. Era um pacificador por necessidade própria de sorver a paz para se sentir seguro, porém de idéias firmes, embora perfeitamente aberto a qualquer argumentação. Toda argumentação, de qualquer natureza, era levada a sério pelo Petrúcio, e ele estava disposto a discutir ferrenhamente com qualquer pessoa que se pronunciasse, por mais infantil que ela fosse. Isso, para quem não o conhecia, cobrava-lhe censura por levar a sério qualquer idiotice. Mas não era assim. Ele, com seu modo de ser, é que estava com a razão, enquanto os apressados supostamente sábios é que eram selecionadores irresponsáveis ou castradores. Era comum ver o Petrúcio, um intelectual muito bem formado e bem informado, a discutir de igual para igual com pessoas de parca erudição e, surpreendentemente, sem qualquer afetação didática. A máxima alteração de ânimo já verificada no Petrúcio foi a preocupação. Quando estava preocupado, deixava transparecer pela face que estava sofrendo, e a pedir por qualquer espécie de socorro e pela recuperação da esperança mínima de que as soluções chegassem. Mas todos sabiam, inclusive ele, que as soluções não viriam. O país estava imerso na espessa bruma de uma ditadura militar que parecia eterna, e que não deixava passar uma única réstia de luz libertadora.
A origem alagoana de seus pais revela que ele tinha sangue holandês, de soldados, funcionários ou colonos deixados pelos batavos que fugiram quando perderam a guerra em Pernambuco, do qual fazia parte o atual estado de Alagoas. Era louro, meio ruivo. Magrão, estatura média, meio encurvado pelo hábito do piano. Acompanhava a boemia por toda parte em que ela se manifestasse, mas bebia muito pouco. Jamais foi visto de porre. Certa vez, depois de mais uma noite boêmia, conseguimos carona da Beira-Mar até sua casa, que ficava próxima da praia do Meireles, e esta foi a única vez em que lá dormi. Seu quarto ficava sobre a garagem, que era uma construção separada da casa propriamente dita. Quando subi, pude ver de relance algumas pilhas de livros de física de cores diferentes, cada uma designando a respectiva matéria: Mecânica, eletricidade e ótica, etc.. Eram livros da autoria de seu irmão L. P. M. Maia, professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, os mais usados em todo o Brasil no ensino médio, que àquele tempo se chamava de “curso científico”.
No amplo quarto havia duas camas de solteiro. Exausto, joguei-me numa delas, depois de tirar os sapatos. Petrúcio demorou-se no ritual da escovação dos dentes, no banheiro, embaixo. De repente, ele apontou na escada em chinelas, vestido com um pijama bem passado, trazendo para mim outro pijama limpo e dobrado, que polidamente recusei. “Petrúcio, me perdoe, mas daqui só conseguirei me levantar amanhã pela manhã”. Entregou-me então um lençol, apagou a luz e foi dormir. Na manhã seguinte, enquanto aguardávamos o café, fomos visitar o quintal, onde havia um pé de limão galego de mais ou menos dois metros e meio de altura, carregadinho de limões e de folhas tão verdes que gritavam na brisa suave da manhã. Tentamos fazer, dias depois, uma canção sobre aquele limoeiro, mas não a terminamos. O café da manhã foi tomado na companhia de suas duas adoráveis irmãs, que guardavam aquela típica e hoje rara gentileza fortalezense extremamente atenciosa.
Ingenuamente eu pensava que o Petrúcio, artisticamente falando, bastava-se em ser compositor. Um ótimo compositor. Mas estava enganado. O Petrúcio queria também ser cantor, e desejava ardentemente ser aplaudido como protagonista de grandes shows. Sofria com a falta de um reconhecimento mais amplo e direto. Não sei bem em qual momento lhe falei, sem suspeitar de tais pretensões pelo menos para mim até então ocultas, que ele tinha “voz de registro”. Queria com isso dizer que sua voz dava apenas para registrar as canções, mas não para interpretá-las no palco. Achava que sua voz era muito limitada, e que mal bastava para passar aos amigos as canções que fazia. Isso que lhe disse na certeza de que receberia com naturalidade, causou-lhe na verdade um profundo efeito, uma real inquietação. Abordou-me diversas vezes sobre o assunto e, procurando tranquilizá-lo, concordei com que chegássemos a considerar que alguns artistas tinham tal relevância que cantavam no palco sem que suas vozes fossem boas, como era o caso do Tom Jobim, outra notória voz de registro.
Quando o Petrúcio me falou que estava disposto a se mudar para o Rio, para tentar dar maior projeção à sua carreira artística, minha reação foi instantânea no sentido de demovê-lo dessa idéia. Fiquei radicalmente contra essa sua intenção. Já havia passado a grande onda inicial de sucesso do Pessoal do Ceará, e já tinha havido investidas esporádicas ao Sul de outros músicos cearenses mais jovens, sem grandes resultados. O próprio Petrúcio já havia gravado em São Paulo, pela CBS, seu belo LP “Melhor que mato verde”, com o suporte de outros artistas cearenses bem estabelecidos. Petrúcio queria mais, e resolveu fazer uma investida solitária em busca de seus sonhos. Sinceramente, eu achava que ele estava cometendo uma loucura. Petrúcio acreditava na natural bondade humana. Poderia ser presa fácil de alguma das mil armadilhas o astucioso Rio costumava armar havia séculos contra pessoas descuidadas, ou desligadas, como ele. Sobretudo no campo da música e do espetáculo, as relações poderiam derivar com facilidade para extremos destrutivos e impiedosos, conforme eu mesmo havia verificado em minhas diversas viagens ao Sul, viagens de rápida duração e sempre ancoradas em amigos bem situados e centrados. Mas o Petrúcio ia então em ocasião muito mais aventureira e sem muito amparo. É verdade que o Petrúcio já havia morado no Rio, em Laranjeiras, onde conheceu o músico e compositor Rui Mauriti, cuja amizade frequentemente se referia. Mas ele era então adolescente, e os tempos eram completamente diferentes, seguros e familiares.
A última coisa que pude fazer pelo Petrúcio foi passar-lhe uma procuração dando-lhe plenos poderes para receber minha parte nos direitos autorais de nossas músicas. Era pouco, não tínhamos grandes sucessos, mas serviria para ajudá-lo. Poucas noticiais dele tive a partir daí. Soube que havia casado, o que julguei ser um ato inesperado e sem profundidade suficiente para que fosse considerado como algo sensato. Fiquei então muito preocupado. Soube que sua consorte era uma cantora, e que ele tinha um projeto musical a seu lado. Fiquei então ainda mais preocupado. Depois recebi a notícia de que ele estava enfermo de AIDS, e em seguida veio a notícia de que ele havia morrido. Fiquei tão chocado que resolvi não comparecer a nenhuma cerimônia fúnebre, nem velório nem enterro. Não queria saber de nada do Petrúcio, de nada mesmo, nem suportava ouvir seu nome. Sentia-me extremamente indignado com o que lhe aconteceu, e no fundo o culpava por não ter me ouvido.
Depois, veio à cidade sua viúva, que visivelmente não tinha noção de valores econômicos dentro do mundo musical. O Petrúcio era grande compositor, sim, mas o ganho autoral por suas músicas era ínfimo. E ela ficou revoltada com isso. Simplesmente resolveu não acreditar nisso, e começou a pensar que alguém ou alguma coisa estava roubando o que seria dela por direito. Resolveu bloquear toda e qualquer nova gravação de músicas do Petrúcio, que, segundo alguns, dali por diante só poderiam ser gravadas se ela recebesse uma quantia absolutamente irreal. Alguns chegaram a falar que ela pedia 200 mil reais por cada gravação. Tal quantia seria um absurdo mesmo hoje, quando um razoável sucesso nacional rende cerca de 20 mil reais a cada um dos compositores, e era uma estupidez inominável naquela época. Tentei entrar em contato com os editores de nossas músicas, mas eles não queriam nenhum tipo de confusão que não os beneficiasse. Telefonei várias vezes para ela, a viúva, que havia voltado a Minas, mas ela dizia “Um momento, Brandão, falo já com você”. E não voltava mais a falar. Tentei recorrer a um escritório de advocacia em Belo Horizonte para acioná-la, e depois voltei atrás por sentir que teria grande prejuízo.
E com isso, a viúva de Petrúcio Maia conseguiu matá-lo uma segunda vez, ao impedir que suas músicas fossem regravadas. Um crime que fugiu da esfera familiar e entrou na esfera de lesa humanidade. Entretanto, se alguém acessar o verbete Petrúcio Maia na Wikipédia, só lerá coisas boas sobre sua viúva. Pela Wikipédia, parece que o Petrúcio não era nada, não tinha um grande passado, até conhecer sua desventurada esposa. O verbete é praticamente todo dela, e não dele.
Por último, uma tarde dessas, quando olhava pela janela de meu apartamento, vi uma figura encurvada andando pela calçada com os olhos fixos no chão, camisa de manga comprida e xadrez não-matuto e não escocês, apertando uma pequena pasta sob a axila. Até telefonei para meu amigo Ednardo para comunicar-lhe minha visão. Fiquei feliz. O Petrúcio não morreu, ele anda por aí.
♣revista triplov. série gótica . inverno 2018