MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL
Tributo
Org.: Luís de Barreiros Tavares
I
Eis uma tarefa difícil senão impossível: a de perseguir o perfil de um pensamento ausente.
É que o pensamento serpenteia e atinge o centro inconsciente e recalcado da memória. Que se recorta e
é um jogo saturado de antiguidade e juventude.
O pensamento só tem passado.
Sou protagonista de um pensamento oblíquo: o eu dividido, dual. Divorciado do cerne do real.
E afinal sou precursor de um pensamento novíssimo em que o imaginário e o auge das sensações
substitua o quotidiano da nossa infinita nudez.
Inédito – Lx. 31-3-74 – de uma página solta
II
Outrora, o analista disse-me: “o cigarro representa um pénis aceso.” As suas palavras eram violentas e perversas. Provinham da sombria floresta do tempo.
A partir daí passei a pedir lume a todas as pessoas no quarto vazio e quente da noite. Fumava muito, de maneira que contraí a sífilis subtil da solidão ardente. Assistia, impassível, à metamorfose impossível do cigarro em pénis.
Recentemente o psiquiatra disse-me: o senhor especula sobre os seus problemas mórbidos. Pensei nisto, caminhando para a casa que não moro. Não consegui averiguar o significado mágico e sinistro, a aventura implícita na palavra especulação. Desisti depois.
Abeirando-me dos abismos da anulação e do ócio, descrevendo a adivinhação. Alcançada a ciência lúdica do caos, a inocência do cigarro aceso.
Inédito – Lx. 14-6-73 – de uma folha solta – com uma dedicatória tardia “Humilde homenagem ao Dr. Azevedo e Silva”
III
Assumo a gravidade evidente das palavras que em vão respiro
no desvão de uma escada filosófica. E é tudo tão recente e doméstico
tal qual a recentíssima onda que avulta na praia. Que a gente o ignora,
o sei: são ossos efémeros, em transe eterno. Perplexo, com vossos sexos. Agora
me pergunto o destino possível de um poeta, que na poesia morreu. Aquele que vivia, mas ainda aspirava
à cega madrugada de corpos contíguos, quentes, umbigo de habitação de quem sonha tudo o que é humano, mas não morre…
Inédito – Lx. 2-7-76 – caderno Livro do Amador Nómada
IV
Ars Poetica I
O poeta como uno e primordial unidade, define-se dúplice. Em sua obra, aberrante e estrangeira, de que jamais abdicará, porque a povoou dos seus mais íntimos fantasmas e desastres o poeta é meramente transeunte e eterno, no litoral da existência da sua escrita. Eis a sua metafísica mais profunda, o seu precoce desafio a Deus.
O conteúdo útil da sua obra, básica ou não, é-lhe indiferente, porque marginalizado da alma que a elaborou.
O absurdo que subjaz e absorve a sua obra é-lhe essencial, porque enlouquecido louvor a um espaço preenchido e, simultaneamente, vazio.
A obra boa não envelhece perante a passagem profana do tempo porque meramente omnipotente e pura: é, clandestinamente, amoral. Daí advém a sua visão de beleza bilingue e seus espelhos iniciais e cúmplices.
O poeta pergunta: o curso da sua escrita iluminada enferma de olvido, de absurdo e vazio. E a lembrança que o envolve, não é pura utopia mas a rara viagem iniciada pelo autor, através do espírito mais crepuscular.
É a primitiva unidade que progride no poeta em sua escrita, mas é da nostalgia que nasce o rosto da ambivalência mais cruel. O pranto do poeta é inteiramente inútil perante a nudez do Olimpo….
Inédito – Lx. 3-2-77 – caderno Do Ócio e Meditação em Cintra
MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL