TRIBUTO A ANA HADDAD
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência (Instituição-sede da última proposta de pesquisa) . Brasil
Paulo Freire, como sabemos, é um dos únicos brasileiros que pode e deve, de fato, ser denominado filósofo. Além de incomparável professor e, sobretudo, admirável ensaísta. Um verdadeiro filósofo, visto que seu conjunto de obras faz propostas inovadoras e mudaram, de uma forma geral, o pensamento educacional não somente brasileiro. Mas de inúmeros países. Paulo Freire nunca fez, como denuncia Deleuze, meras histórias da Filosofia. Realizadas, infelizmente, aos quilos, por aqueles que se auto intitulam filósofos. Eis uma grande verdade. Consideremos de uma vez por todas: uma coisa é ser formado em Filosofia. Outra coisa bem diferente é, de fato, construir um pensamento filosófico e praticá-lo!
O nosso incomparável filósofo possui um conjunto de obras que dialoga com pluralidades temáticas de extrema importância e vão muito além da esfera educacional que, na maioria das vezes, se encontra atolada em métodos e metodologias asfixiadas pela mesmice. Na repetição, inútil, exaustiva de meras fórmulas que se desdobram. Indefinidamente. Eis um dos motivos pelos quais – (não somente no Brasil) – a Educação ecoa na “irrealidade do cotidiano” como diria Umberto Eco. Em outras palavras: os projetos educacionais fogem (intencionalmente?) de caminhos luminosos que dariam mais sentido e resultados mais promissores em relação aos estabelecidos. Porque Educação significa risco. Ousadia. Abismo. Coragem. Liberdade. Todos os componentes que Paulo Freire carrega e desenvolve em suas obras.
Um dos pontos essenciais do escritural de Paulo Freire, pouco analisado, é a sua forma de escrever. O nosso patrono da Educação não escreve livros estritamente acadêmicos. Afogados em citações e notas de rodapé. Não. Literalmente admite que escreve ensaios. Ou seja: uma tipologia textual que admite determinadas liberdades e espaços somente permitidos aos verdadeiros pensadores. Ouçamos Paulo Freire quando está expondo alguns dos objetivos de sua obra Pedagogia do Oprimido : “As afirmações que fazemos neste ensaio não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais nem, tampouco, de outro, resultam apenas de leituras, por mais importantes que elas nos tenham sido” [1]. Em parte, o pensador afirma que cultiva um pensar próprio tendo como base a teoria e a prática. Um repertório, que na verdade, se completa. O que seria da teoria sem a prática? E esta sem a teoria?
Mas a obra Pedagogia do Oprimido deve ser destacada por outros elementos, dentre tantos outros. Contém, objetivamente, fragmentos em prosa comparáveis a verdadeiros poemas, como o seguinte [2]:
Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que os oprimem como outro.
Inauguram o desamor, não os desamados. mas os que não amam, porque apenas se amam.
Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo.
Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos.
Quem inaugura o ódio não são os odiados, mas os que primeiro odiaram.
Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade negada, mas os que negaram também a sua.
Quem inaugura a força não são os que se tornaram fracos sob a robustez dos fortes, mas os fortes que os debilitaram.
Observe-se, além do conteúdo, o ritmo da voz com grande grau de reflexão aliada a uma fúria que desconcerta e balança as camadas do sensível. Uma lição de estética no que ela possui de mais intrínseco.
Contudo, existem outros elementos que caracterizam o livro em questão cuja convergência vai ao encontro da literatura. A obra freiriana se utiliza, predominantemente, de períodos, frases e orações justapostas. As orações coordenadas assindéticas são constantes em detrimento da lógica dos períodos compostos por subordinação. Nessa medida, acentuam e reforçam a beleza da profundidade poética contida no livro e necessária para a exatidão dos conceitos expostos.
Na obra Educação como prática da liberdade o estilo escritural de Paulo Freire continua e encontramos imagens conceituais sem precedentes. Digna dos signos, imateriais, artísticos. Isto é, ao mesmo tempo que Paulo Freire questiona a importância da liberdade, sutilmente, pode-se dizer, enuncia o conceito de “duração”. Conceito que é caríssimo às ciências, literatura e filosofia. Ora! O que é duração? Duração sob a ótica de Bergson, (mencionado explicitamente por Paulo Freire), é liberdade. E não somente, como muitos entendem, um tempo interior incomensurável que tem por base a experiência interior individual. Não. Duração é um conceito que sustenta a cosmologia extraordinária do filósofo francês ao compreender, de forma fundamentada, que o universo, apesar dos determinismos e processos que independem de nossa vontade, elege espaços de indeterminação em que o homem é mais dono de si mesmo e pode, de fato, se transformar.
Paulo Freire nos deixa um legado literário, consequentemente poético, em que as vozes do oprimido e da liberdade afetam de maneira profunda nossa percepção e no convida para a sonhada autonomia intelectual tão abafada por aqueles cuja posse da liberdade incomoda, visto que sua construção (dada, tão bem explicada por Sartre, mas que deve ser construída continuamente) impõe e exige coragem, ousadia, audácia e sobretudo, um salto sem garantias porque, obrigatoriamente, supõe a transgressão. Supõe um labirinto de abismos que se conjugam sem que possamos, efetivamente, delineá-lo com a exatidão ansiada por aqueles que adoram correntes, algemas, fórmulas, receitas. E, sobretudo, a subordinação que aspira e respira, gramaticalmente, o avesso do poético!
[1] Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2011. p.55.
[2] Idem, p. 81.