CLAUDIO WILLER
Tributo
ALGUMA PROSA
De Dias ácidos, noites lisérgicas (2019)
Tenho fotos inexplicáveis. De 1960. Não me lembrava delas, achei durante arrumação. Estranho terem resistido por tantas décadas. Nem tinha máquina fotográfica, a Pentax só comprei em 1963. Levei a Leica do meu pai? Chegava-se de trem a Peruíbe, seguíamos a pé até o Guaraú pela estradinha – atravessávamos de canoa, bonito mesmo foi a vez em que pegamos carona em barco de pesca e cruzamos com o enorme cardume de tainhas subindo pela foz do rio – em seguida mais três praias e três subidas bem íngremes de morro até um lugar paradisíaco, península abrindo-se em três praias diferentes uma da outra e a portentosa Serra dos Itatins ao fundo. Acampei várias vezes. Ia com colegas – Rodolfo Geiser, o paisagista, era um deles. Em 1960, quando conheci Piva, convidei-o. Demétrio Ribeiro nos acompanhou. Uma das fotos é de Piva lendo Novalis em francês na edição da Séghers, coleção Poètes d’aujourd’hui, em um costão da Praia Brava. Sempre se fazia acompanhar por leituras.
Uma ocasião anterior, em mais um dia ensolarado, estava com outro colega de escola, Marcelo, também estive com ele e Demétrio no Parque da Serra dos Órgãos, dormimos nos alojamentos do parque e subimos até o topo da Pedra do Sino, a vegetação afinando e se tornando mais japonesa à medida que se escala. Foi quando peguei emprestado de uns caiçaras que moravam lá a peneira de palha trançada e a vara de pesca de bambu. Em uma das três praias, do Juqueí, um riacho saia de uma lagoa de água salobra, era entrar, água até os joelhos, pegar os camarões com a peneira, enfiar no anzol e ir pescando robalinhos, um atrás do outro, bastava lançar e puxar. Almoço foi preparar arroz, limpar os peixes e fritar junto com o que sobrara dos camarões. Água da bica a 100 metros. Foi quando tive uma percepção de como seria o Paraíso: um lugar em que não seria preciso mais nada para estar bem, em que o básico para sobreviver estava á mão e era possível ficar lá sentindo-se rodeado de beleza, de uma claridade sem limites ou à noite pela escuridão total. Hoje a região é tombada, felizmente – o Parque Estadual da Juréia, escapou do destino das praias ao longo da Rio-Santos, onde também acampei antes de abrirem a estrada, de se tornarem lugares tão frequentados e agitados.
Mas viveria sempre assim? Esses recantos são ótimos por contraste; mas acaba batendo o tédio, estar sempre no mesmo cenário torna-se monótono. Baudelaire tinha razão ao escrever sobre a diversidade das metrópoles, infernais e celestiais ao mesmo tempo, oferecendo o inesperado. O ex-publicitário com quem conversei, em 1978, levava uma vida simples em sua cabana à beira da estradinha na Serra da Mantiqueira, em Mauá, dizia-se feliz e o quanto mudar de vida lhe havia feito bem. Eu não – viver para sempre do mesmo jeito, não aguentaria.
Uma namorada tinha onde ficar em Cananéia em 1964. As cores do fim da tarde na travessia de balsa, serão ainda as mesmas? Ela conhecia o prefeito, também dono de um pioneiro criadouro de ostras. Mandava buscar ostras e palmitos naqueles recortes litorâneos. Quis ir, conhecer. Foi um fim de semana inteiro naquele barquinho? Alimentação, ostras que fritavam na chapa quente do motor. Dormia no convés. Costeamos a Ilha do Cardoso, seguimos pelos canais até a entrada da baía de Paranaguá, repentino mar aberto, vista de tirar o fôlego.
Houve mais. Muito mais. Para onde desse, iria. Um acampamento psicodélico, com Décio e Roberto em 1963 na Ilha Comprida, então deserta. Teve até fantasma à noite. Essa foi uma viagem beat. Acordar com vontade de subir montanhas, telefonar para um amigo, pegar a estrada em pleno meio da semana, isso já relatei em outra ocasião.
A diversidade de lugares por onde passei, onde já estive, transparece em minha poesia. Tenho séries de poemas intitulados “Viagens” e “Impressões de viagem”. Viagens físicas e também interiores. Cenários, desde uma praia em Florianópolis até as ruínas de Roma.
As viagens européias na década de 1990 e latino-americanas na década de 2000, extensões de convites que recebi como escritor. Proporcionaram contrastes e afinidades. Os países estranhamente pequenos para quem mora em um continente: Bélgica no trajeto Londres-Frankfurt, você pega o trem em Ostende, extasia-se com a passagem por Bruges, almoça no trem e quando se dá conta já está em Liège, saindo do país. Choques de inesperada beleza, uma chegada de trem a Zürich, muita claridade, patinhos pretos nadando no rio e as bandeirolas suíças tremulando na margem. Já vi enquetes sobre “o lugar mais bonito que você já viu”. Para mim, não são os lugares. São os momentos. A mesma paisagem pode ser um encantamento ou não apresentar nada de mais.
Conexões. Ir a La Paz e ao Lago Titicaca, topo do mundo e da beleza, a navegação no barquinho a motor com o escritor mexicano que falava sem parar até as Isla del Sol e Isla de la Luna – índios criadores de vicunhas, uma menina falando espanhol com sotaque e comunicando-se na língua Aimara com os seus, uma sonoridade gutural que me comoveu, estava diante de outro tempo, e não só de outro povo – e pouco depois ir a Belém do Pará, e perceber o que há em comum, a despeito dos zero graus da madrugada andina e dos quarenta graus amazônicos, das altitudes antagônicas, os 3.500 metros ou mais e o nível do mar: a presença humana, o povo. Do “cholo” andino de chapéu coco e manta com suas barraquinhas em um lugar, e do caboclo ribeirinho oferecendo seus produtos em outro.
Certa vez, passei um final de dezembro em Londres, neblina, neve, luz do dia das 10 da manhã até as 4 da tarde. Alta temporada e quase me instalei no Royal Festival Hall. O trajeto de volta a Frankfurt, não entendo como o taxista que me pegou onde estava hospedado, na casa de Fernando Naporano em East Finchley, meio na periferia, fez para circular naquela escuridão de neblina cerrada de manhã bem cedo até a Victoria Station. A cena de tirar o fôlego na balsa para Ostende, todas aquelas ondas tão simétricas, redondas e uma luminosidade que jamais esquecerei.
Na semana seguinte, no interior de São Paulo, depois de rodar pela região serrana achei uma cachoeira boa para tomar banho, com água ainda limpa, nas imediações de Monte Alegre do Sul. Foi quando tive um insight. Senti o prazer simultâneo de estar lá, sob a torrente, e ter estado em uma Londres fria, escura e acolhedoramente musical na semana precedente. Sombra de inverno europeu e luz da Serra da Mantiqueira encontrando-se, somadas em minha sensibilidade.
Há um poema da série “Impressões de viagem” em que falo disso:
EM TRÂNSITO
quando se está possuído pela tensão romântica
toda viagem é para o Oriente:
o trem de Zurich a Viena, ao entrar no túnel alpino
a chegada entre altas ondas ao porto belga, Ostende pela primeira vez
parecendo familiar por ser o mesmo o vento, a mesma a tonalidade marítima
de que não me lembrava mais
ou a descida da Serra Gaúcha
até a ponte no fundo do verde
– vertigens reconhecidas
quando todas as palavras servem
para dizer o indizível
quebrar a pedra
permitir que jorre a fonte
(quando se está possuído pela tensão romântica)
* * *
2 de agosto de 2017.
No automóvel, do Rio de Janeiro para Teresópolis, onde darei palestra. O simpático motorista que me conta ser um fumante não dependente. À frente, o imponente perfil da Serra dos Órgãos. Satisfeito por poder fumar em seu automóvel e porque o panorama ainda é o mesmo, desde a vez em que fiquei no Parque e subi a Pedra do Sino em 1959. Esta é a satisfação que nos resta, em viagens pelo Brasil: verificar que algum lugar ainda está lá, que ainda não foi estragado, devastado. Ou então, achar um lugar novo – sei que há desses lugares, quero ir lá – que ainda não degradaram. Ainda não.
revista triplov
SÉRIE VIRIDAE . NÚMERO 04: CLAUDIO WILLER
portugal . fevereiro . 2022