Os pecados da Rainha Santa Isabel

 

Tributo a ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO


ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. OS PECADOS DA RAINHA SANTA ISABEL.
Romance histórico .
[retábulo em três gerações e um sínodo]

2010


 

Ao Cruzeiro Seixas, cidadão do orbe, sonhador de castelos, confrade do Livre Espírito, ofereço
esta imagem tosca – talhada a enxó, num puxão, sem a pausa do esmeril – de patrícia sua.

Para a memória de António Telmo (1927-2010), gibelino e morador do castelo de Estremoz.

 

TÁBUA

 

ABERTURA………………………………………………………..

  1. A CRUZADA DO OPRÓBRIO………………………………
  2. AS NOVAS MURALHAS………………………………………

III. OS CORREDORES DE LAMA…………………………

  1. O TERCEIRO VÉU……………………………………………..
  2. A PORTA DA GAFARIA …………………………………… …
  3. AS SERPENTES DE FOGO ……………………………………

VII. O OIRO E A AURÉOLA…………………………………

Nota Final…………………………………………………………….

 

ANEXOS

Cronologia……………………………………………………………Genealogias…………………………………………………………..
Fontes Bibliográficas……………………………………………
Documentos………………………………………………………….


Quando os últimos imperadores pagãos deram fim ao massacre dos cristãos,
os primeiros imperadores cristãos começaram a massacrar os pagãos. ANÓNIMO


ABERTURA


Regresso ao passado, ao passado da nossa origem. Regresso pois à baixa Idade Média, essa noite de dor e maravilha, onde as estrelas brilharam pela derradeira vez. Sei do que falo; já por lá andei tempo que baste a deitar raiz e borla, quanto mais a contemplar de raspão um céu de estrelas. De mãos livres e olhos atentos, sempre à pata, bati e rebati durante um carro de anos fragas e recessos, visitei Inês em Albuquerque, chorei com Pedro em Coimbra, acompanhei Leonor Teles em Barcelos e na corujeira de Pombeiro, segui Fernando em Valada do Ribatejo, vi Nuno Álvares açodado em Lisboa. Por lá me demorei tantos anos, por lá andei com tanto desejo e encanto, e tão de espaço, que fiquei a pertencer mais a esse tempo que ao meu. Para bem dizer, ninguém hoje dá por mim; sou um fantasma, uma sombra sem forma a pairar sobre as ruas. A minha voz não se ouve; a minha presença não se vê. Sou um espectro invisível. Vivo no passado, não no presente. Mas isso me chega para ter um rumo, que é afinal a forma menos traiçoeira de ser infeliz.

Agora, para gáudio meu, regresso à luz onde existo. Materializo o meu espectro e recupero a minha voz. Ganho sangue e corpo em contacto com o passado; vou de novo visitar a baixa Idade Média. Não posso deixar de andar à volta de Pedro de Portugal. Este rei é a minha ideia fixa. Cada vez me comovo mais com a sua figura; a sua vida magnetiza-me. É um íman poderoso, uma luz quente e cega, em torno da qual giro sem parar como os planetas giram em torno do Sol. Este Pedro de Portugal foi o inventor da Saudade e isso basta para fazer dele o meu credor eterno, cuja história comparo à mítica existência de Orfeu. Como não se a morte da linda Inês o deixou tão inconsolável como a de Eurídice deixou o filho de Eagro? Assim o lírico clássico da Trácia desceu aos Infernos para recuperar a esposa e o fantástico rei de Portugal exumou no agro de Santa Clara com as grossas garras de medievo os ossos esburgados da amante. Um amansava feras com a lira, o outro encantava ursos com o pandeiro. Orfeu acabou dilacerado pelas Bacantes nas bárbaras florestas do Norte e Pedro findou perseguido e esquartejado pelas Harpias do sono nos adustos areais do fim da Terra.

Eu testemunhei o amor de Constança e de Inês. Vi Pedro dividido entre duas mulheres que se extremavam e por isso entre si disputavam os beijos do príncipe. Constança, a mimada filha de João Manuel que veio de Castela casar com Pedro no ano da batalha do Salado, tinha mais anseios de Pedro que ciúmes de Inês. E esta, mais nova e inocente, menos lida em Catulo e Ovídio, só se entregou a Pedro porque Constança, sua ama, lho sussurrou. Na rude boca de Pedro pôde assim, sem escândalo nem remorso, saborear a jovem princesa o sangue virgem da sua serva, tão mimoso e fresco como vinho novo. O círculo cortês de Alenquer, vila da alçada da princesa, foi nesse período mais ardente e explosivo que o da ilha de Lesbos no emancipado tempo de Safo e de Alceu.

Teve Constança nas escarpas de Alenquer o seu rochedo de Lêucade. Não tardou a precipitar-se do cume com um grito de desespero, os cabelos soltos, a arder na tormenta da paixão, desaparecendo para sempre nas ondas revoltas da noite e do esquecimento. Ficaram Pedro e Inês, um diante do outro, sós, a tremerem de medo e erotismo. Na imaginação dos dois estava atravessado um cadáver de hetera, melhor, de hieródula. Estreitaram-se então num abraço cego, prometendo um ao outro protecção e amor eterno. No breve instante em que Pedro desamparou a rosa, ceifou-lha com um único e certeiro golpe de espada o fero pai, o temível, cobiçoso e sardónico Afonso IV. Manchou-se o chão para sempre com aquelas desfolhadas pétalas e ainda hoje nos arredores do Mondego as fontes choram aos solavancos, com borbotões escuros de sangue, por acto tão nefando.

Veio depois do homícidio de Inês a insuportável saudade de Pedro. Que solidão glacial! Que desolação negra! Nenhum outro, a não ser ele, que se tinha pelo pior dos três, sobrevivera ao mais gigantesco incêndio de amor que a faixa ocidental da Hespanha ainda vira. Ele era um espectro rodeado de mortos, mas a sua imaginação, atravessada por dois alvos cadáveres femininos em decomposição, era combustível bastante para pegar lume ao breu viscoso da noite. Ardia Pedro na sua solidão, qual estrela adamantina e solitária a consumir-se na escuridão da noite fria. Por isso, invicto e ébrio, exumou do esquecimento os restos descarnados de Inês e com o hálito crestado pelo fogo do Amor decidiu, num beijo escaldante, insuflar nas geladas pedras daqueles ossos um sopro eterno de vida.

– Portugal volta a ter rainha! Portugal volta a ter rainha! – gritavam com júbilo renovado e convicta esperança os pagens e os charameleiros do rei no caminho para Alcobaça.

E indicavam com as mãos, sorriso rasgado no carão terroso, a rainha morta, a balouçar desconjuntada, no estrado das andas, entre dois coxins de seda pálida.

Ó sublime loucura da Saudade! Ó tragédia transcendente! Foi com a força do teu desejo que os Deuses criaram o mundo. Cantei assim outrora, à força de apóstrofes, a doida solidão do rei Pedro como cantei depois, quando me apertava por revisitar estes lugares, os amores tórridos e proibidos de Fernando e de Leonor, que são ainda, vinte anos depois, o prolongamento do incêndio que alumiou a pedregosa terra portuguesa, pois Fernando foi o primeiro e mais formoso resultado da combustão do trio de Alenquer e Leonor a ígnea haste que lhe chegou lume. Vê-se tão bem na desordem amorosa de Fernando todo o mimo castigado de Constança. E quanto a Leonor, nunca o amor ardeu tão livre e soberano na seca terra do ocidente hispânico como nesta figura infeliz mas senhoril. Que louco e soberbo amor se fundiu no crisol do seu coração!

Anteponho sem acanhamento Leonor Teles a Inês de Castro. São ambas mártires do Amor, mas Inês é a rosa passiva que uma mão bruta desfolhou enquanto Leonor é a chama activa que só a perfídia apagou. É ela a verdadeira heroína feminina do amor em Portugal. Foi tão longe em ousadia, subiu tão alto em exigência de amar, alcançou tanto, que lhe tiraram a coroa e a isolaram num cárcere, cuspindo vitupérios no seu nome e contrafazendo os seus feitos. Nada no comércio familiar dos dias é tão fácil de adulterar como a urgência de amar. E quando esse aperto tem como ponto de partida uma mulher, qualquer seriedade fica para sempre comprometida. Adeus reputação. E eis uma mulher de excepção, como Leonor Teles, transformada em adúltera pérfida e criminosa sem perdão. Mas a História, velha patranheira, não me engana e por isso ainda hoje, à distância de seiscentos anos, ouço o rugido da louca paixão de Leonor. Que cabeça estupenda e altiva! Que bramido convulsivo de leoa!

Regresso pois a essa noite do tempo que é a Idade Média. Desta vez o que suscita a minha curiosidade são os antecedentes de Pedro. Convenço-me que o seu drama se encontra todo nos antepassados, ao modo do que acontece com a árvore que está dobrada na semente. Conheço bem o safardana do pai, a figura mais trágica da História de Portugal. Sopra nele uma furacão húmido e bolorento, o mesmo que instigou Macbeth a matar Duncan para lhe tomar o lugar. Foi um ambicioso sanguinário, que esteve para virar o pai e acabou a apunhalar o filho. O herói do Salado! Que capa grossa e que eufemismo para um assassino! Cai-lhe melhor o impropério descabelado que a medalha do prémio. A sua tragédia foi a da cobiça e a do remorso, ainda que o último lhe tenha chegado em hora tão tardia como aziaga, quando a filha, empestada e mofina, lhe veio de Castela morrer aos soluços nos braços lassos. Afonso IV cola-se de tal modo à história do filho que não se pode abordar um sem dar de caras com o outro. Conheço pois de ginjeira – oh se conheço – este monstro, cujas mãos estão para sempre manchadas de sangue cru.

Mas os avós de Pedro, os pais de Afonso IV, Dinis e Isabel, passaram-me até aqui despercebidos. São quase uma ausência nas minhas palavras. E no entanto que drama extraordinário se esconde na vida de ambos. Nele reside a explicação de significativa parcela do que depois aconteceu. A memória da História dura se tanto quatro gerações. Volvidas elas, tudo se renova em novo lance, como se nenhuma continuidade se sentisse entre o antes e o depois. Quem se reconhece no tetravô? Ninguém. Assim entre Dinis e Fernando, além do quadro mais criativo da nossa Idade Média, treme a mesma vibração. Quem não vê no alaúde de Dinis, o pandeiro de Pedro? E no coração instável, inflamado e cheio de Dinis quem não sente o órgão com que Pedro amou Constança e Inês? Até a perturbante saudade, que só alagou o imaginário português depois do mórbido desaparecimento de Inês, com a gelada solidão de Pedro, já se entrevê num grito de aflição duma canção de Dinis, que soidade hei de nha senhora. Quem não sente neste intenso e desmedido apetite do avô o desesperado e louco desejo do neto?

Resta Isabel, essa misteriosa rainha de Portugal que nos chegou doutro agro, menos travoso e melancólico. Faz assim neste novelo de histórias e acções a impressão duma estranha. É ela o motivo do meu regresso ao passado; é por ela que me desligo do presente e caminho entre ruínas e espectros, com eles me confundindo. O de Manfredo assusta-me, morto no campo de batalha, e surgido em espectro fantasmático no primeiro círculo do Purgatório de Dante; o de Frederico II enche-me de respeito; já o de Pedro II de Aragão me entristece de morte e o de Conradino me comove até às lágrimas. E que dizer do de Dinis, fustigado pelo chicote do filho até morrer de apoplexia. Salva-se Isabel, com uma vida de surpresas, de imprevistos, de contradições, uma existência copiosa, que é uma pena andar desperdiçada e tão mal aproveitada, de tão mal contada. Mas também ela, Isabel, é um espectro triste, vivendo o drama fundo da dor. Ainda assim chega uma vida como a dela para redimir os desterros dum pobre contador.

Isabel veio de Aragão, na outra ponta da Península, a centenas e centenas de quilómetros de demora. O nicho natal, no côncavo duma mão, com o Ebro e o Guadalaviar a sulcarem fundo a palma, vivia então a idade de todas as maravilhas; era porventura a primeira potência comercial da Europa, para em breve se tornar, com os irmãos de Isabel no trono, na única e indiscutível potência imperial do Mediterrâneo, das Baleares às ilhas do mar Egeu. Os catalães, industriosos por ofício, expansivos por situação, ocupavam as ilhas do mar Tirreno, reinavam em Nápoles e La Valeta, tinham vassalos na Grécia e na Anatólia. O imperador de Constantinopla, rendido ao fausto e temeroso da força, não se retraía em confiar o título de césar ao representante do rei de Aragão; o patoá catalão era o parolar franco daquelas paragens. Caíam as derradeiras fortalezas de francos e germanos na Palestina, pondo cobro às Cruzadas, e iniciavam os da Catalunha a gesta da sua expansão. Os almogáveres catalães, encabeçados por Rogério de Flor, valiam os  bucéfalos de Alexandre e os centos romanos, quanto mais uma cruzada. Por isso tiveram a crónica de Muntaner, que vale Tucídides e Tito Lívio. Uma tal prosa, esplêndida como flor de oiro, é em qualquer língua um penhor de longevidade tão comprida como a de Matusalém.

Isabel de Aragão é por isso uma excepção na cultura bisonha do primeiro Portugal durimínio. Ela traz nos dedos a luz doirada do Oriente, nos olhos as águas mansas e azuis do Mediterrâneo, na pele o almíscar dos magos bíblicos, nos lábios as palavras cultas da civilização. Também na fronte se estampavam as alturas nevadas e impassíveis dos Pirenéus. A sua personalidade constrói-se à parte de tudo aquilo que nos é familiar. Repele com horror a paixão da carne que encontramos em Dinis e em Pedro; abomina a violência sanguinária e a cobiça desmedida de mando e de riqueza que o quarto Afonso mostra. No cadinho do seu coração aragonês não se consome nem pitada daquele preparado de volúpia e concupiscência que fez a atracção fatal de Inês e a ardência tórrida da grande Leonor. O seu peito alvo de pomba não acrisolou qualquer apetite núbil. Enquanto menina, na idade em que se toma gosto ao dedo no botão, menos se estimou que se aborreceu, pondo em si, no corpo, um tipo de desgosto e de repugnância que para sempre vedam, nela ou noutra, qualquer luxúria.

É pois na aparência Isabel de Aragão de todo alheia ao grande e apaixonado drama de Amor que se representou no Portugal do século XIV. E no entanto Isabel faz parte deste tempo como a Lua nova, mesmo ausente, faz parte do céu dos astros. Está lá, mesmo que ninguém dê por ela. Assim Isabel é a esposa de Dinis, a mãe do quarto Afonso e a avó de Pedro. Foi ela a fundadora de Santa Clara, na margem esquerda do Mondego, onde a tragédia da Morte de Inês depois se desenrolou em acto único. Três ou quatro décadas, não mais, separam a instalação de Isabel de Aragão na nesga de areia do Mondego e a decapitação de Inês no mesmo lugar. Que peregrina relação pode ligar estes dois factos e estas duas mulheres, pergunto-me. Basta porém o liame para tornar Isabel de Aragão um elo intocável da história de Pedro.

Mas há mais. Foi Isabel de Aragão que habitou pela vez primeira a despretensiosa casinha de pedra calcária da Serra-del-Rei, a montante da Atouguia, onde depois do desaparecimento da vestal de Alenquer Pedro e Inês encontraram o Éden terreal numa finisterra só por eles povoada. Esse mesmo espaço será depois da tragédia de Santa Clara o refrigério desejado pela agónica solidão de Pedro. O único bem que ao infeliz restava depois do cataclismo inesperado de Coimbra, que bastou para lhe turvar a clareza e lhe roubar para sempre parte da mioleira, fazendo dele um contumaz da justiça, era a saudade. Compreende-se. Não é a recordação o único conforto real do homem esbulhado do Paraíso ou da Infância? Está visto que sim. Talvez por isso a história de amor entre Fernando e Leonor não se entenda sem esse mesmo espaço finistérrico.

Dinis e Isabel, Inês e Pedro, Fernando e Leonor, três gerações, três casais, de avós a neto, que se substituem na Atouguia, ao pé da ilha de Peniche, num espaço que parece estar à deriva no coração do mar. O caso de Inês é trágico, com as arcas de Alcobaça ali tão perto, mas o de Isabel, Primavera de tudo, é quase  alegre, como o de Leonor é triste e ardente, como o fim tem de ser. Um fio liga as três mulheres: o sacrifício em Isabel, a morte em Inês, a abdicação em Leonor.

Isabel de Aragão, além de sexta rainha de Portugal, foi canonizada pela Igreja no século XVII, muitos séculos depois de viver. É pois duma santa que falamos, uma santa do calendário romano. Mas as voltas que o mundo dá para fazer um santo ninguém as entende. Tais meandros são tão incognoscíveis como os mistérios dum céu estrelado. Tão contraditória é a santidade que procurá-la é o primeiro passo para a perder. Os santos não se reconhecem como santos. Que irrisão delambida e que grosseria um santo que ao mundo se apresentasse como santo. Têm assim razão aqueles que afirmam que o mais verdadeiro e o mais belo dum santo são os seus pecados. E como pecador irremissível se encara sempre um santo autêntico.

Por isso em última visão os santos não são da Igreja que os canonizou. Que fraude um santo de mãos postas, olhos seráficos, no recato dum altar! Que burla um santo de marfinite! Os santos são do mundo, e até do imundo, onde viveram, gritaram, erraram e arrastaram todas as infinitas sinuosidades, todas as dores naturais da sua contraditória santidade.

Por esse motivo a santidade de Isabel de Aragão interessa-me muito, ainda que à revelia da Igreja. Só conheço dois interesses num santo de calendário romano: ou para lhe tirar a máscara de marfinite ou para lhe conhecer os pecados. No caso da nossa rainha dou de barato a marfinite e quero os pecados. São verdadeiros! São belos! Chegam para emocionar! As voltas que o mundo dá para fazer um santo são infinitas. Não é tempo perdido descer ao fundo do poço, olhar a noite escura à procura dos pecados da rainha santa de Portugal, que o passeio é também para descobrir a alma humana.

Convido o leitor a visitar a vida Isabel de Aragão. Esta mulher, que viveu há mais de setecentos anos, não morreu e continua viva. Sei onde ela mora e tenho carta branca para lhe bater à porta; não se amua ela com a minha visita e nunca me deixou esquecido ao postigo. Tal como outrora testemunhei o amor de Inês e Pedro, ou mais tarde testei a paixão de Fernando e Leonor, assisto agora à ligação de Dinis e Isabel. Venha o leitor comigo. Não lhe prometo brevidade, que na casa onde a rainha nos recebe, roca à cinta, há muita volta para dar, mas obrigo-me a passada curta, a ar sempre fresco e a boa conversa. Não se queixe o leitor, que passeio assim  é vida de ripanço.


I. A CRUZADA DO OPRÓBRIO


Este livro é sobre Isabel de Aragão. É uma giganta, cujas raízes se estendem por muitas figuras e acontecimentos anteriores. Uma personagem como Isabel de Aragão, cuja complexidade leva ao drama poético, como aquele que António Patrício nos deu, é sempre ela e os ascendentes. Convenço-me que o falhanço dos trabalhos que se escrevem sobre Isabel de Aragão se deve a esse facto. Nenhum está disposto a assumir a genealogia da princesa aragonesa, dela tirando consequências de monta para a pintura da personagem. Apresentam-nos por isso uma Isabel solitária, produto de si mesma e de ditames estranhos ao meio e formação. O resultado é em geral uma Isabel inverosímil, insignificante, ridícula, postiça, tirada por uma cartilha de convenções tão artificiais como pósteras.

Uma coisa tenho pois por certa na abertura deste passeio: não basta o quadro particular; é preciso o políptico familiar. Em vez do retrato local e português, é indispensável o mural  ibérico, com extensões para a Sicília, onde a mãe de Isabel se formou, e alcançando a Hungria longínqua, donde veio a avó paterna. Não se assuste o leitor com tanta terra! Para modelar a vida duma santa não há com certeza Terra que chegue.

Isabel de Aragão, como personagem, é mais do que um fio solitário; é uma síntese, uma tessitura de muitas e variadas fibras. Sem antepassados, sem gerações anteriores, sem ribeiros desencontrados, convergindo de muitos lados, fica a faltar a raiz a uma personagem como Isabel; vive asfixiada, sem os braços subterrâneos que sugam no húmus o suco nutriente. Sem ascendentes ela está condenada a definhar e morrer. Por esse motivo não é possível um livro sobre Isabel de Aragão sem um vasto intróito, tocando os seus antepassados. Sem eles, nada podemos entender da figura que nos interessa. Não há volta a dar. Insuflar vida aceitável na sexta rainha de Portugal passa em primeiro lugar por entender as raízes que lhe deram vida. Até os pecados desta mulher, como santa da Igreja romana, mas só a partir do século XVII, começaram muito antes dela nascer. Caso deixássemos de lado a história dos antepassados, perdíamos alguns dos desvios de maior surpresa ou nunca teríamos deles larga compreensão. São uma herança que ela recebe e a seu modo actualiza, sobretudo na acção que teve como rainha portuguesa, já longe de Aragão. Daí os acontecimentos que se seguem e que dizem respeito aos avós dos avós de Isabel de Aragão. Não se aflija o leitor com o recuo que eu falei em vida de ripanço.

Quando Raimundo Berengário, conde da Catalunha, casou com Petronilha, herdeira de Aragão, o poder da confederação aragonesa-catalã reforçou-se muito. Os interesses da nova união corriam em finais do século XII por quase todos os condados de além-Pirenéus, cujos senhorios cabiam em parte ao rei de Aragão. Assim, quando os barões do rei de França, respaldados numa ordem de cruzada lançada pelo papa Inocêncio III contra os cátaros heréticos, se atiraram sem freio, à testa de quinhentos mil homens, à conquista das províncias do Sul, o rei de Aragão, Pedro II, o neto de Raimundo Berengário, desgostou-se com a estratégia papal e o amparo do rei de França.

– Que direito tem esse Lotário, senhor de Segni, de vir meter nos fojos da nossa terra os gardingos da Normandia – exclamou ele, mais enfadado que quezilento, quando tomou nota da chegada dos barões do rei francês, à linha de Poitiers.

O braço-de-ferro da Igreja com os heréticos não era novo, mas ficara-se tão-só pelas palavras. Domingos de Gusmão, um encarniçado pregador papal, trajando hábito branco de lã e capeirão negro, chegara uns anos antes à região e em nome da Igreja tentava conter a expansão da heresia, manejando uma palavra inflamada e uma dialéctica arguta e teimosa. O catarismo não mostrara porém abrandar e o papa, nutrido pelas vitórias obtidas em Jerusalém e em Constantinopla, sentira-se forte o bastante para lançar uma cruzada contra cristãos, tirando proveito e experiência das perseguições anteriores, na região de Lião, contra os valdenses, seguidores de Pierre Valdés, um homem que deixara tudo em nome do Evangelho e se dedicara a viver em rigorosa pobreza.

Não demoraram as notícias das barbaridades dos cruzados franceses a espalhar-se por todo o Pirenéu, chegando à Península. Saltavam os picos da cordilheira na crista fria da tramontana e introduziam-se destramente por qualquer fresta, penetrando nos recessos das mais recuadas e esquecidas províncias do reino de Aragão. Antes de mais, chegaram novas de Béziers, primeira grande operação militar da nova cruzada. Mal preparada para a guerra, pacífica e opulenta, habitada sobretudo por judeus e mercadores do Mediterrâneo, a cidade logo se rendeu à gigantesca onda dos Franceses.  A 22 de Julho de 1209, Arnaud Amary, abade de Cister e legado papal, deu ordem de morte a todos os moradores, refugiados na catedral e na igreja de Santa Madalena. Para o despachado abade afigurava-se tarefa desprezível separar na multidão os devotos conformes dos desviantes. Para encurtar razões, justificou a ordem com curta frase:

– Matai-os a todos! Deus reconhecerá os seus!

E assim foram todos passados à espada, enquanto a rica feitoria comercial era saqueada e incendiada pelos cavaleiros do rei e de Cister.

Depois da tomada de Béziers a cruzada avançou para a cidade do Aude, onde se acoutara o jovem visconde Raimundo Roger Trencavel, sobrinho do conde-rei de Toulouse. A cidade, longe do mar, num agro antigo e laborioso, defendia-se melhor que Béziers. Protegida numa cinta muralhada, que datava do tempo do baixo império romano, tinha o cispado e altivo porte dum castelo feudal. Alertada pelo escandaloso massacre do empório vizinho, Carcassona preparou-se com destemor para o assalto. Avançaram-se linhas de defesa, conduziu-se a população civil ao interior da fortificação, armazenaram-se projécteis para os engenhos; os homens de armas do visconde dispunham-se a jogar alto a vida e a fazer durar o assédio. Nos primeiros dias de Agosto, diante da investida de meio milhão de pessoas, a primeira linha ruiu, mas a alcáçova repeliu o ataque, abrindo brechas importantes nas hostes dos cruzados. Avançaram estes com proposta negocial: contra a rendição da cidade e a entrega dum único homem, Raimundo Roger de Trencavel, os Franceses poupavam a vida de todos.

Apuparam a proposta com duros doestos os homens de armas, mas aceitou-a o visconde.

– Se por um, os Franceses garantem a segurança de todos, senhores, danoso homem eu seria se não me entregasse.

Saiu dos muros desarmado e sozinho. Não ousara despir ainda assim a couraça, os braçais e os coxotes com que comandara a investida dos cavaleiros na primeira linha e depois a defensão dos muros. Na mão esquerda, desembaraçada da manopla,  levava o camal de ferro. Atravessou de braços caídos a leiva de terra que separava a barbacã da cidade do arraial invasor.

– Tomai-me como refém, mas poupai os bons vassalos que ali vedes – disse ele, quando viu diante de si os barões franceses.

E apontava com a mão direita as ameias da cidade, onde os magotes de gente se apertava.

Em vez de massacrados, os moradores de Carcassona foram desta vez expulsos de suas casas. Nada puderam levar consigo, a não ser as fazendas que vestiam. Era Verão e nessa época de ventos quentes do mar e Sol ardente os habitantes da região não vestiam mais que uma longa camisa de linho ou de algodão, derivação imediata, sem alterações dignas de assento no canhenho da evolução do traje, da túnica ou da tunicela dos romanos. Essa leve e suja envoltura foi tudo o que puderam salvar; até na capa de lã, de capuz bordado e botões de osso, que se lançava por cima da camisa mal as noites frias de Outubro tocavam o mundo, foi defeso aos retirantes tocar. Raimundo de Trencavel, entunicado ou não, foi assassinado aos vinte e quatro anos e o legado papal, Arnaud Amaury, deitou os olhos aos barões de França. Era uma fieira de trogloditas mais assustadores que ursos. Entre eles tirou o mais feroz, Simão de Monforte, e deu-lhe o viscondado vacante. Estava feito o novo visconde de Béziers, Carcassona e Albi.

Em Aragão, estes acontecimentos caíram mal. Na Aljaferia de Saragoça, Pedro II agitou-se. O massacre de Béziers pareceu-lhe bárbaro e inútil. Demais, era impensável que se pudesse criar, depois dum homicídio, um viscondado na vizinhança de Mompilher, senhorio de Barcelona, sem consentimento dele, rei da confederação aragonesa-catalã.

– Mal andam os aleivosos, quando assim esfolam a coroa de Aragão e matam os bons vassalos – repetia ele, com censura magoada, aos que lhe falavam do assunto.

Ainda assim, contra as opiniões que lhe indicavam o trilho da guerra, ele preferiu a diplomacia. Seguiram mensagens para o papa, requerendo a suspensão da cruzada em nome do bom entendimento entre cristãos e dos direitos da coroa de Aragão. Como o papa lhe negasse requerido tão cortês como discreto, voltou-se para o estado-maior da cruzada, pedindo explicações e exigindo satisfação rápida duma folha de encargos. Aguardou resposta, com ânimo favorável.

Em vez de palavras cordatas, chegaram porém notícias de novas atrocidades. Os cruzados, entretinham-se agora, nas invernias pirenaicas, a acender fogueiras para consumir heréticos. Tinham a benção fervorosa de Domingos de Gusmão, o encarniçado pregador, vestido de hábito branco de lã e capeirão negro, que fora o primeiro a chegar à região em nome do papa. Pensavam assim limpar no fogo a elite da organização cátara, ao mesmo tempo que aproveitavam para reduzir a cinzas a incómoda aristocracia local. Eis o parto petulante e interesseiro do auto-de-fé. Em Minerve foram consumidos no lume cerca de cento e quarenta relapsos. Em Carrés mais sessenta e por fim em Lavaur,  corria já a Primavera de 1211, acendeu-se a mais gigantesca labareda que ainda se vira no Sul da Gália. Seiscentas pessoas foram torradas nessa extraordinária queimada humana, que durou muitos e muitos dias e consumiu, diz-se, metade da floresta do Limousin.

Chegaram a Aragão os restos da combustão. Os frios ventos dos Pirenéus levavam na sua flor a enxudiosa exalação dos torresmos humanos. Um frémito de horror e de repulsa correu as alcáçovas dos senhores, bateu as ruas das vilas e chegou às pobres choupanas da gleba. Todos se perguntavam que vento de loucura tomara conta dos bárbaros barões do Norte e dos desapiedados homens da Igreja para assim tresvariarem. Por fim, quando os primeiros fugitivos confirmaram em estado de choque os mais alucinados relatos, o tumulto do povo e dos senhores levantou-se escandalizado e revel contra os cruéis padecimentos dos condados vizinhos.

– Nem nas correrias dos almogávares e dos mouros se viu maldade tamanha – diziam alguns.

E assim era. O rei de Aragão azedou de vez com tal desatino. O avô, Raimundo Berengário, tivera relações próximas com o imperador Frederico I, da família Hohenstaufen. Escorara a restauração do sacro império romano-germânico e lastimara a posterior vitória do papa Alexandre III sobre o monarca. De qualquer modo a luta entre gibelinos e guelfos, entre partidários do império e da teocracia papal, ficara em aberto, não tomando ponto com a derrota do Barba Ruiva. A casa Hohenstaufen não desistia de vituperar os costumes do papa, de invectivar a sua sede desmedida de poder temporal, de exprobrar as violências da Igreja, bastas vezes para bordar uma cortina que apagasse as suas. Defendiam que o clero romano devia estar sujeito à jurisdição leiga e ao pagamento de impostos à coroa. Eram então estes os pontos do desacordo entre império e papado. A feroz perseguição dos valdenses por Roma, no tempo de Lúcio III, articulando as primeiras disposições jurídicas para a instalação dum tribunal inquiridor da fé, emprestara nova força às propostas do império, mostrando como a sua causa, sufragada pelas correntes naturais, se adequava melhor ao movimento interno da Cristandade que o projecto teocrático do papa. Timidamente se desenhou então no horizonte um caminho laico de tolerância religiosa, capaz de trazer à comunhão dos fiéis todos aqueles que haviam sido arredados à força.

A casa de Aragão, pelos interesses que tinha no Mediterrâneo, pela experiência na administração plural de judeus e muçulmanos em território peninsular, pela proximidade das cidades do norte da Itália, fora desde início um dos principais esteios do projecto gibelino dos Hohenstaufen. Ainda há pouco, o herdeiro destes, o futuro Frederico II, escolhera para casar uma princesa aragonesa, Constança, que enviuvara de Emerico da Hungria.

Com tais passos, não admira que o rei de Aragão se enfurecesse com as barbaridades dos cruzados franceses. Logo que delas tomou certeza, enviou um emissário a Simão de Monforte dando-lhe ordem de retirada imediata. Uma grossa parcela dos condados da Gália meridional pertencia-lhe e uma tal desordem significava um atentado aos seus direitos de suserania. Caso o francês voltasse costas, era a guerra; Pedro de Aragão declarava juntar-se aos heréticos, para expulsar os peões do rei de França daquilo que tinha por seu.

Nessa altura as pequenas cidadelas na posse da pequena nobreza rural, a mais identificada com a pregação do clero cátaro, haviam sido quase todas pilhadas e ocupadas, depois de sofrerem o duro assédio dos cruzados. Parte da população estava em fuga e a resistência desorganizava-se, vítima daquela onda impetuosa e feroz que tudo estraçava no caminho. Uma nova milícia, baptizada de Confraria Branca, fora criada pelo terrível bispo cisterciense de Toulouse, Folquet de Marseille, para bater as matas e enforcar todo aquele que fosse apanhado em fuga.

O cabo de guerra francês, Simão de Monforte, robustecido pelos sucessos, preparava-se então para assaltar os muros de Toulouse, centro da heresia, rica cidade de trinta ou quarenta mil habitantes, onde residia Raimundo VI, conde de Toulouse e cunhado e vassalo do rei de Aragão. Quando o francês ouviu as palavras determinadas do mensageiro de Pedro II, riu com protérvia.

– Ele que venha bailar no que é seu e depois verá!

Ao saber da grosseria do cabeça da cruzada, o aragonês não titubeou. Mandou chamar os fronteiros e deu-lhes ordem de arregimentação. Correu por todo o reino o apelo dos fronteiros às tropas. Formaram na várzea de Saragoça os muitos corpos do exército de Aragão. Era a contra-cruzada em marcha. Na frente postaram-se os homens de armas da guarda real. Pagens, infanções e ricos-homens aí mostravam a vivacidade e o desembaraço da cavalaria, com reluzentes bacinetes emplumados e muitos pendões e flâmulas a tremularem na carreira do vento. Na linha da vanguarda alçavam-se sobre todos os outros os balsões reais com as armas riscadas de vermelho da confederação aragonesa-catalã. De seguida apresentava-se o segundo corpo, constituído pelas lanças das ordens militares. Depois, vinham os corpos dos cavaleiros e besteiros e por fim os peões de lança, os contingentes das vilas e das cidades, os coudéis mouros com as suas companhias de fundibulários destros e os auxiliares, onde tanto entravam os azeméis, os vivandeiros, os curadores, os serventes e mais gente necessária à manutenção do exército como os foragidos dos condados occitanos fustigados pela cruzada e dispostos a combater. Eram quarenta mil homens que tiravam o pé da paz.

Pôs-se em movimento o exército com o rei à testa e foi atravessar os Pirenéus depois da cidade fortificada de Jaca, na esperança de alcançar num curto salto o Garona, subindo por ele sem esforço até às muralhas sitiadas da Tolosa occitana. Corria o fim da Primavera e os trilhos dos cumes, batidos pelo alto Sol do solstício, desimpedidos de neves e gelos, eram mais fáceis de percorrer que galeria de mar costeiro em dia de bonança e céu azul. No curso do Garona, já nas proximidades do grande centro onde por então se concentrava o nó da resistência à cruzada dos Franceses, deparou Pedro de Aragão com as muralhas de Muret. O cabo de guerra francês tomara havia pouco a cidadela e depois de fazer pular os heréticos nas labaredas lá deixara como defensão uma grossa coluna de homens. Por aí, à ilharga do corpo central das operações, pensou o aragonês abrir a campanha de hostilidades contra os Franceses.

Brilhavam os doces e abundosos dias de Verão e a defesa de Muret não deu mostras de se intimidar com o assédio. Havia água e mantimentos com fartura. Viam-se nas seteiras os fortes bacinetes de ferro dos Franceses e nas ameias arrumavam-se as poderosas máquinas de arremesso de que dispunham.

Um único homem se atrevia a expor o corpo nas ameias, exprobrando com palavras duras o exército sitiante.

– Ide, senhores, ou um raio mais destrutivo do que aquele que destroçou os pagãos vos fuzilará para sempre – dizia ele, renitente e profético, afastando as abas negras do capeirão.

Era Domingos de Gusmão, o pregador que anos antes viera calcorrear os caminhos dos domínios do conde de Toulouse e do rei de Aragão, na esperança de debelar a heresia com a sua palavra destra e reconverter os cátaros aos dogmas romanos. Juntara-se depois ao legado papal e abade de Cister, quando este aparecera com os barões do rei de França munido duma ordem papal de limpeza. Aparecia agora com um feroz e obediente alão ao lado, a que afagava a caixa do crânio de quando em quando, apertando de seguida nas mãos miúdas e cuidadas de estudioso as orelhas atentas e espetadas.

Simão de Monforte, quando teve notícia dos sucessos de Muret, levantou o cerco a Toulouse e foi com a sua vistosa e comprida hoste dar batalha ao rei de Aragão. Enfrentaram-se os dois exércitos no dia 14 de Setembro e foi desbaratado o de Aragão. Pedro II caiu varado por uma lança e o seu herdeiro, Jaime I, aprisionado em Carcassona. As consequências da derrota de Muret foram enormes: Toulouse rendeu-se, o conde Raimundo VI perdeu a coroa e em seu lugar foi investido Simão de Monforte. O pobre conde, amante da boa vida e dos prazeres da existência, tudo fez para salvar a pele. Aceitou desnudar-se diante da aterrorizada população de Toulouse e do legado papal, para ser cruelmente açoitado por este nos degraus do altar da igreja dos Agostinhos. Ao mesmo tempo que o conde em pelote era assim humilhado, uivando de dor e de vergonha, Domingos de Gusmão, ladeado pelo seu nervoso podengo e apoiado pelos prosélitos da Confraria Branca, benzia com dedo seráfico uma fogueira no portal do templo, onde se consumiam os fólios e os pergaminhos dos hereges que os homens do bispo Folquet haviam reunido depois de peneirarem as casas dos ricos mercadores.

Mas as consequências do abalo não ficaram por aí. Também Aragão tremeu. As fundações da federação aragonesa-catalã eram rijas, mas o reino estava descabeçado e sem ordem. A batalha, goela aberta e funda, maré-cheia de inesperados destroços, levara o rei e engolira na onda gigante uma parcela de monta do escol militar. O herdeiro, uma criança com oito anos, fora aprisionado nos cárceres da alcácova de Carcassona e lá esperava o seu destino. Corria que Simão de Monforte o mandaria executar em breve pelo mesmo carrasco que degolara o jovem Raimundo de Trencavel. Fazia-se fé que depois do fim de Jaime I o exército dos cruzados, entusiasmado por tão decisiva campanha, passaria os Pirenéus, engolindo na passagem o reino de Aragão e o condado de Barcelona, cuja fama herética era tão sulfurosa como a do de Toulouse.

– O mesmo abade do Demo que o fez visconde nas masmorras de Carcassona e depois conde nas de Toulouse, o fará agora rei nas de Saragoça e de Barcelona – sussurravam, impotentes e ferozes, os ricos-homens de Aragão que haviam escapado vivos do desastre de Muret.

O papa não esteve porém pelos ajustes. Caso a desordem incendiasse as terras de Saragoça e de Barcelona, o rei da Sicília, o futuro Frederico II, levantar-se-ia em armas, mais tarde ou mais cedo, exigindo para a esposa o trono da confederação. Estava casado com uma irmã de Pedro II, Constança de Aragão, na qual, na ausência de Jaime I, recaía a coroa do reino. O levantamento teria o apoio dos ricos-homens e dos mesteirais e reporia por todo o lado, na ordem das questões a tratar, a luta do império e do papado. Frederico de Hohenstaufen era então um jovem de dezanove anos, que devia a sua ascensão à protecção interessada de Inocêncio III. Iniciara porém uma administração da Sicília em jeito de novidade, tomando a indulgência religiosa como alicerce. As chamadas heresias cristãs eram toleradas e viviam em meia paz, sem serem importunadas. Os judeus frequentavam as esnogas com a mesma segurança com que um cristão entrava no templo onde se guardava o santo cibo. E até os muçulmanos gozavam duma liberdade inusitada, mostrando o jovem soberano uma singular inclinação pelas formas revessas da mística islâmica. O caso fazia escândalo numa Igreja que tomava por grangena qualquer desvio. Mas pior que a indignação, era a inquietação, pois tudo corria na propinquidade dos Estados do papa. Naquele tempo o reino da Sicília não se ficava pelo triângulo do Etna mas entrava pelo continente, subindo no Adriático quase até Ancona e no mar Tirreno até às margens do Tibre.

– Melhor me vai o herdeiro de Aragão como refém que como cadáver – declarou o papa, tudo ponderando, quando lhe falaram nos propósitos desmedidos do novo conde de Toulouse.

Mandou  suspender a execução do filho de Pedro II e negociou com os templários de Narbona a hospedagem da criança. A coroa de Aragão salvava-se mas ficava refém do papa. O futuro do reino, depois daquela hecatombe, era incerto como o destino duma flor emurchecida pela geada tardia.

Inocêncio III, conde de Segni, via-se nessa época como um homem que acabava de ganhar o bastante para se retirar satisfeito, não para deitar tudo a perder num gesto perdulário. Tinha outros negócios onde aplicar o que de turbulência lhe restava; Aragão ficava-lhe bem assim de cerviz dobrada e língua decepada nos condados da Gália meridional. O que agora lhe ia era uma expedição de cruz e arrocho à Prússia pagã, na ponta da Europa, depois do Elba, nas praias frias e cinzentas do mar Báltico.

Permita-me o leitor uma palavra mais demorada sobre Inocêncio III, verdadeiro causídico da época. Forjara em jovem a sua ambição na luta da Igreja contra o primeiro Frederico. Batera-se depois pela cadeira do apóstolo Pedro, afirmando que a Igreja só veria o porvir se avançasse pelo princípio de Alexandre III, que reservara ao papa a autoridade soberana e deixara aos reis o mero poder de administração. Quando se sentara no sólio, prometera um pontificado decisivo na vassalagem da Cristandade à Santa Sé. Inspirara a quarta cruzada, que levara aos desacatos de Constantinopla e à criação do império latino do oriente. Era um deboche, uma fantochada de poltrões e de bêbedos, que duraria três dias e acabaria no esterco, mas mostrava o largo alcance da Igreja. Depois do segundo império do Ocidente, fundado por Carlos Magno, nada se fizera de tão retumbante. Lançara de seguida a cruzada contra os heréticos dos condados meridionais da Gália, cuja influência era cada vez mais larga, a ponto de substituir a organização paroquial de Roma. Entretanto, condenara a pregação do cisterciense Joaquim de Flora, um calabrês que acabara de morrer e que criara uma teologia paraclética onde o papa e a Igreja se diluíam numa ordem compósita que lembrava a revelação pentecostal dos apóstolos.

Por razões próximas se inclinara a condenar Francisco Bernardone, um tresloucado de Assis, às portas de Roma, que abandonara a casa dos pais para pregar a pobreza e a inocência. Lembrara-se o tolo um dia de lhe vir bater à porta, para lhe pedir a benção. Recebera-o com displicência e distância; a criatura, metida no burel roto e emporcalhado, empestado de bodum, orando com volúpia à irmã Pobreza, repugnava como um gafo. – Nada de hesitações – pensara, lembrando Pierre Valdés nos vinhedos do vale do Ródano a pregar aos paupere de Lião. Ele, o papa, o grande e único senhor do mundo, amante da boa mesa e do conforto clássico do seu palácio, detestava que lhe falassem na pobreza.

– Pobreza! Eis a primeira palavra da Heresia – costumava apostrofar aos cardeais.

Mas quando levantara a mão papuda, enluvada em seda branca e recamada de anéis de oiro e diamantes para condenar os passos do doido, alguém lhe murmurara ao ouvido palavras de exasperação.

– Senhor, se assim procedeis, em breve tereis de lançar uma cruzada nos vossos próprios Estados.

A Toscânia ficava no umbral de Roma e não era possível excomungar o mais simplório dos beguinos, senão com risco de cobrir a Itália de heresia. Bem bastava o bogomilismo lombardo que varria as opulentas cidades do norte, a coberto do rio Pó e do gibelinismo dominante; bem chegava o fiorismo desenfreado que estava a tomar conta do desvairado espírito de muito do baixo clero regular e que alastrava como o fogo em restolho seco por toda a Apúlia, Calábria e Campânia. Era pois necessário aceitar a contragosto como clérigo regular esse louco de Assis, cuja pregação na Itália central, no coração dos Estados do papa, tomava tais proporções que lembrava as florinhas azedas e selvagens que cobriam a perder de vista os outeiros dos Apeninos no mês de Abril. Roma salvava a vida do miserável e este, obscuro e ignorante como uma criança, salvava a grandeza de Roma de se meter num incêndio sem governo.

Agora, depois da tomada de Toulouse, o que importava era deitar mão ao que se ganhara e aferrolhar o senhor do reino da Sicília na exclusão da sua casa. Esta, mesmo excepção, nas meias-tintas dum entendimento tácito, era tão ameaçadora como rugido de leão ao ouvido. As originalidades administrativas do jovem Hohenstaufen eram uma maré-cheia, cuja borda de espuma chegava aos olivais do Lácio, mesmo na varanda dos Estados do papa. Nada de pior podia suceder a Inocêncio III do que ver o moço siciliano deixar o doirado recanto da sua casa para partir à conquista do continente.

– O conde de Toulouse que sustenha a montaria! É tempo de tocar a fim­ e tornar a casa ­– ordenou o papa.

Sabia que a luta entre o papado e a família do Barba Ruiva não havia tocado o termo. Enquanto os Hohenstaufen estivessem na Sicília, essa fusta de terra que dominava o mar, espraiando-se ainda pela Campânia e pela Apúlia, o papa estaria nos seus Estados como a República estivera em Roma no tempo dos cartagineses. As guerras entre o papado e o império, disputando a posse da Sicília, primeira alpondra para se pôr o pé enxuto em Jerusalém, ainda estavam para chegar, mas não seria ele, Inocêncio III, o novo Cipião e menos ainda o Catão do novo extermínio. Tudo o que lhe sobrava era por esse lado morrer com algum sossego e boa consciência. Prometera à assembleia de cardeais um pontificado na linha do desígnio teocrático de Alexandre III; convencia-se que plenamente o realizara. O papado era a força temporal da Cristandade; depunha condes e reis com a mesma facilidade com que a bordadeira passava a linha na sarja. Rejubilava, quando passava em revista a sua obra. Comovia-se quando contabilizava os sucessos. Constantinopla fazia a vez de novo sinete do anel episcopal de Roma, enquanto Béziers, Carcassona, Toulouse e Muret eram as novas e preciosas jóias dos andares da tiara papal. E havia ainda as florestas pagãs do norte da Germânia para pilhar e incendiar.

– Não há soberano mais poderoso e forte que o pontífice. Nenhum o embarga – exclamava, orgulhoso do serviço que fizera em década e meia de acção enérgica.

Quando alguma consciência mais melindrosa se atrevia a lembrar-lhe que os desaforos de Constantinopla haviam queimado para sempre a possibilidade de unidade das Igrejas latina e grega, acicatando um ódio visceral da parte do basileus contra o papa, ele encolhia os ombros de indiferença e aborrecimento.

– Um clérigo que não reconhece a cadeira fundada por São Pedro não passa dum ímpio – deixava cair.

Também quando as mesmas vozes lhe ousavam adiantar os milhares e milhares de cadáveres que fora preciso à Igreja acumular para tomar conta dos condados do Sul da Gália, ele ria com gosto e sem o menor sinal de arrependimento.

– Um herege contumaz vale menos, senhores, que uma cabra teimosa dos montes – rematava, lembrando as sangrentas e benévolas montarias tão ao apreço de todos.

Antes de partir deste mundo, o redondo senhor de Segni, Inocêncio III, chamou ao palácio de Latrão, faustosa residência do soberano de todos os soberanos da Terra, o pregador de palavra inflamada que andara pelas terras do conde de Toulouse e pelas do rei de Aragão a combater os albigenses. Apresentou-se Domingos de Gusmão diante do papa para lhe beijar de joelhos o sinete do mais grosso anel da enluvada mão, agradecendo assim tão alta distinção. Levava preso na mão o feroz mastim que o acompanhara nos dias da cruzada e mostrava o ar ingénuo que se lhe vira no auto-de-fé do portal tolosino. O papa engraçou com a energia explosiva e determinada que se via no pregador e depois do beija-mão tomou-o sob protecção. Com ele e com os pregadores que magnetizados pelo seu verbo o seguiam, criou uma nova Ordem de clérigos, destinada a combater heresias e a defender a Igreja. Era uma milícia de corvos negros, cuja função era poisar nas altas ameias dos castelos, vigiando a arruada dos vilões e o arruído dos senhores. De vez em vez, por precaução, devia o bando crocitar, amedrontando os desobedientes; assim se alargava aquela palavra com que Domingos sonhara endireitar o mundo.

– Ide pelo mundo – sugeriu o papa ao novo abade. – Sede obedientes à Igreja e ferozes com os ímpios. Tomai como modelo esse alão, que tão manso parece nas vossas mãos e tão fero é fora delas.

Não tardou o papa a render a alma. O desaparecimento do papa bateu os fojos onde se acoutavam os foragidos da cruzada como um favor. Reganharam ânimo os vassalos do antigo conde de Toulouse. O fim de Inocêncio III valia uma acção de graças, quanto mais um amuleto. Uma brisa cálida de esperança tocou o triste e devastado território da Occitânia. A apagada cinza daquela terra mal-amada pareceu animar-se de flores de lume.

– Para nosso alívio e cura, arde no Inferno a alma infame desse Lotário, que não bastou ser rico e roubador como ainda perro vil e carrasco de homens bons – dizia-se na região.

Por sua vez o azougado filho de Raimundo VI, desfeiteado pelos cruzados, foragido nas terras do nascente, com o ódio a ferver-lhe no coração, viu no lance a ocasião certa para uma revindicta. Reuniu à pressa alguns descontentes e com eles foi arrasar os muros das cidadelas mais desprevenidas. Em pouco tempo a notícia dos feitos do jovem herdeiro chegou à linha dos Pirenéus. Os ricos mercadores de Toulouse fomentaram então um levantamento contra Simão de Monforte. O oiro corria de mão em mão, ao mesmo tempo que as armas entravam em segredo pela poterna da fortaleza. Caíram na cidade, assassinados à traição, os primeiros cabecilhas de Simão de Monforte.

Quando o palácio de Latrão tomou nota da felonia, alguém murmurou com preocupação sobre o cabo de guerra francês.

– É mais temido e odiado entre os moradores da região que Belzebu entre as almas que sofrem as penas eternas.

Apertado entre a sublevação do interior e as razias demolidoras no exterior, Simão de Monforte foi obrigado a fugir de Toulouse, deixando a cidade nas mãos dos homens de Raimundo VI. Não demorou este a retomar o governo da cidade, enquanto a coluna do filho prosseguia com sucesso a reconquista das cidadelas da região. Simão de Monforte, com as hostes reforçadas por novos corpos, veio então postar-se diante dos muros de Toulouse disposto a retomar a cidade e a castigar os insurrectos. Desta vez despelava por suas mãos Raimundo VI e punha-lhe o coiro a curtir nas ameias da cidade.

– Nem Cristo desta vez te salva, cerdo aleivoso – dizia ele sardónico e histrião, ameaçando com os punhos cerrados a barbacã da alcáçova.

Dez meses de assédio e nada se adiantou. A cidade, robustecida com a chegada do filho do conde, preferia ser arrasada a render-se.

Um dia, no meio das habituais assuadas, quando Simão se engalispava numa torre de assalto aos muros da cidade, uma pedra derrubou-o com tal violência que logo lhe saltaram os miolos pelo rombo do elmo. Repicaram de alegria os carrilhões na cidade e acenderam-se círios em todas as igrejas e nichos. Um coro de graças se elevou ao céu, agradecendo a morte do homem cruel que havia cometido as mais sanguinárias barbaridades desde o tempo em que Átila assolara sem piedade as cidades da Gália.

Fortaleceu-se o poder de Raimundo VI, concluiu-se a reconquista dos territórios ainda ocupados pelos cruzados do rei de França, reorganizou-se a igreja cristã dos bogomilos do Ocidente, regozijou-se o povo com o favor das benesses. Por um curto momento, a rica civilização cortês dos castelos da Occitânia voltou a viver no desafogo e na alegria. Os judeus regressaram às cidades, os trovadores retiraram das arcas os alaúdes para cantarem a alma do Amor, as damas esqueceram as atrocidades da cruzada e voltaram a pegar nas pérolas e na linha para bordarem em sossego, ao quente Sol do Mediterrâneo, a seda e o linho que os mercadores lhes traziam de Chipre e de Gaza. O tempo corria de novo benévolo para os desprendidos e enamorados filhos do Meio-Dia.

Por seu lado o rei de França e o papa Honório III, enfurecidos com a morte de Simão de Monforte, apreensivos com a contra-ofensiva dos heréticos, reorganizaram a cruzada, dispostos a deitar mão ao que tão estolidamente haviam deixado fugir. Primeiro enviou o rei de França os seus bailios à conquista de Toulouse, mas a cidade, forte dos anteriores sucessos, repeliu num piparote a hoste dos cruzados. Depois, como o tempo passasse e nada avançasse, veio o próprio rei de França talar os campos de Toulouse, mas logo teve de recuar, amedrontado pela força do novo conde, Raimundo VII, que tomara o lugar do pai, entretanto falecido. Arrasado pelo insucesso da campanha, envergonhado por tão pálidas bravuras, incapaz de refazer o que Simão fizera e desfizera, rendeu o rei de França a alma no meio do maior desespero.

O filho, Luís IX, era por então uma criança púbere ao cuidado da mãe. Fizeram as guerras de Toulouse uma curta pausa, à espera de ocasião mais propícia.  Ao chegar à maioridade, o rei foi investido no governo do reino na catedral de Paris. Ajoelhou-se então na laje sacra, tomou da durindana nas mãos, fechou os olhos e soluçando de raiva jurou diante do tabernáculo sagrado, lavado em amargas lágrimas:

– Não volvo a pisar esta quadra, enquanto não dobrar a orgulhosa cerviz dos heréticos vis.

Depauperada por tanta campanha bélica, exaurida pelos desbaratos e pelas deserções, a coroa de Luís IX teve desta vez de esvaziar os cárceres de Paris, Chartres e Orleães para compor uma cruzada. Como a hoste lhe parecesse ainda assim exígua, aliciou o rei para a recruta qualquer desordeiro ou vagabundo capaz de manobrar a funda ou de arremessar a ascuma.

Por fim centenas de milhares de homens reuniram-se num arraial empevesado que ia do Sena ao Loire. Era um exército que tanto tinha de indisciplina como de ferocidade. Partiu o rei à testa dos seus brigões com destino ao Mediterrâneo. Vieram as escabrosas campanhas de Cabaret e do Limoux nos frios anos de 1227 e 1228. Esgotados os recursos de Raimundo VII, não houve outro remédio a não ser chegar-se ao tratado de Paris, pelo qual o conde tentou um compromisso honroso. Porém a letra das avenças mais parecia capitulação que concordata de duas partes igualmente soberanas. Perdia Raimundo VII vastos territórios, mas conservava em vida a capital do condado. À sua morte, Toulouse revertia à filha Joana, obrigada a casar pelo tratado com um irmão do rei de França.

Recolheu-se o conde ao abrigo que lhe deixaram e começou o rei de França a abocanhar o que lhe cabia. Béziers, Carcassone e toda a Provença estavam outra vez nas mãos dos Franceses. Disposto a erradicar de vez os gérmens da heresia, que culpava pelas humilhações do pai, chamou de imediato Luís IX à região os seguidores de Domingos de Gusmão, entretanto falecido. Veio o grosso bando, de cenho carregado e alma expectante, pousar nas ameadas fortalezas, seguindo assim a intimativa do papa. Não tardou o rei de França, a braços com uma população abertamente hostil à Igreja, a ver nas negras aves a solução do enredo. Crocitavam com sarcasmo e zanga, além de acaudatarem com obediência e humildade. Insistiu então o rei com o novo papa, Gregório IX, na urgência de instituir de vez um tribunal inquiridor da fé firmado na experiência dos frades pregadores que haviam assistido Domingos de Gusmão nos primitivos dias da cruzada.

– Assim se aperta em tempo de paz a vigilância aos heréticos, punindo os teimosos, abalando a vontade dos negligentes, trazendo ao redil os indiferentes – dizia ele, em defesa da ideia. – Se dessa guisa se fizer, as ervas peçonhentas que hoje inçam o terreno amanhã não mais estarão lá.

Resistiu o papa à sugestão do rei. Era impensável substituir a inquisição episcopal, que era a forma primitiva com que ela nascera e se desenvolvera, por uma inquisição privada, acoutada às mãos duma Ordem religiosa. Os bispos desautorizados iriam com certeza revoltar-se contra os frades de capeirão preto, fazendo chegar ao palácio de Latrão as mais severas críticas.

Optou pois o papa por nomear homens severos, que não claudicassem na repressão da heresia. Voltaram as fogueiras aos pedregosos outeiros da região martirizada. Arderam dezenas de heréticos pelo simples crime de julgarem Cristo uma natureza pura e angélica, sem mistura de terra e sofrimento. Encheram-se as enxovias de mercadores, notários, ovelheiros e mesteirais pelo mero facto de terem acotiado algum dia, às vezes sem consciência, um herético. O papa, quando soube da aspereza dos beleguins, teve um motivo de acréscimo para se sentir feliz com a vida.

– Dentro em beve, não mais haverá beiços de herege para ladrar as fementidas sandices dos docetistas.

Este Gregório IX, também conde de Segni, estimava a estratégia dos antecessores, em particular a de Inocêncio III, que tomava por modelo maior. Também ele subira ao sólio de Pedro com o mesmo talante de ter os reis como vassalos. O seu primeiro gesto foi excomungar Frederico II, o barbirruivo que Honório III coroara imperador da Alemanha, a troco da sua saída da Sicília, reino que se tornara, além de motivo de escândalo pela protecção dada aos muçulmanos, valhacouto seguro das heresias europeias. Mas não só o imperador se recusara a abandonar a ilha, como alargara os privilégios do Islão e a custódia dos heréticos. Demais, o clero romano foi sujeito nos seus territórios à jurisdição leiga e ao pagamento de impostos. Não satisfeito com tudo isto, fora logo depois fundar em Nápoles, às portas de Roma, uma Universidade, onde se ensinava a língua árabe, se comentavam e traduziam os grandes filósofos árabes do tempo e se discutiam de forma livre e aberta, sem medo de sanções, os princípios teológicos das duas religiões. O próprio imperador fazia questão de falar o árabe, de debater com doutores islâmicos as principais questões teológicas e de se interessar pela poesia e ciência árabes, em particular a álgebra, na qual via o sinal da enorme dianteira que o Islão levava sobre a Cristandade. A sua guarda pessoal, a mais próxima, era constituída por moslins e corriam muitos dichotes sobre as prosternações que faziam, virados para Meca, nas horas de oração.

Quando tomou nota da excomunhão, Frederico II não se amedrontou e recolheu-se à alcáçova de Palermo para cogitar na estranha situação em que se encontrava. Um papa o coroara e outro o punha na rua. Olhando para si e para a sua obra, viu-se um homem honesto, empenhado na construção da justiça e da virtude, ainda que céptico e angustiado com os males da Terra e do Céu. Assim como assim, estava longe de ser um facínora que merecesse a condenação humana ou a aniquilação divina.

Decidiu reagir, redigindo uma carta em sua defesa. A excomunhão acicatava-o a justificar-se, esclarecendo e desenvolvendo os bons propósitos que o moviam. Questionou a ferocidade com que o papado tratava os desvios religiosos, a cobiça com que enriquecia e a impunidade com que praticava todas as injustiças. Apresentou o seu modelo de administração como aquele que melhor respondia a estes três defeitos. Em vez da ferocidade na perseguição dos heréticos, o livre pensamento na indagação dos dogmas; em lugar da ganância sem limite, o tributo fiscal; em troca da impunidade, a responsabilidade diante dos tribunais civis. Não era apenas a missiva de quem se defendia a medo e com escândalo dum ataque iníquo e poderoso, mas a palavra veemente e certa de quem passava à ofensiva, assumindo-se como o construtor dum mundo novo.

Não se limitou a enviar a carta para o palácio de Latrão. O papa era o pretexto, não o destinatário. A menos que se visse isolado, não acreditava na contrição de quem tanto beneficiava com os erros do presente. Fez outrossim seguir cópias para todos os reis da Cristandade, incentivando-os a meditarem aquelas palavras e a ponderarem com imparcialidade a obra feita. O projecto gibelino dos Hohenstaufen, enterrado por Alexandre III, reaparecia agora à superfície, desta vez estribado em resultados e não apenas em promessas. Demais o desígnio do segundo Frederico não era já o composto de cólera imperiosa e soberba germânica que o gibelinismo em momentos passados figurara ser. Amadurecera à luz quente e sensual da Sicília, sazonara debaixo dum céu azul e limpo, polira a alma e o verbo no contacto com a filosofia e o livre-pensamento dos epicuristas, tornando-se a um tempo mais prático e mais sonhador, sem nada de egotista ou de jactante.

– Não me falece bater o pé ao papa. O que me vai é compor o mundo – dizia o imperador aos próximos, como que a esconjurar qualquer vontade ou desfavor.

Frederico II percebeu que depois daquele acto, que valia um desafio, o mundo se ia dividir entre ele e o papa. Quanto mais depressa avançasse, mais força teria para fazer vingar as ideias que o moviam. Estava com pouco mais de trinta anos e respirava vigor físico e agilidade mental. Não lhe faltavam forças nem homens para uma campanha militar, mas o que lhe interessava mostrar era um modo aceitável, regido pelo entendimento e ordenado pela benevolência, que pudesse servir de modelo, não um acto criminoso, orquestrado pela força das armas e pelo número de cadáveres obtido. Mais uma vez estava decidido a mostrar que as suas ideias valiam pelos resultados que produziam e não pelo aparato com que as defendiam.

Isolado na sua ilha, decidiu tirar partido da extraordinária posição estratégica em que vivia. Fechado na torre da alcáçova do palácio de Messina, passeando sozinho na ruela das ameias, contemplando as águas azuis do mar Jónio, onde Pitágoras naufragara e por isso se sonhava um poema, concebeu o mais estupendo projecto que um homem daquele tempo podia arquitectar. Partiria em cruzada ao Santo Sepulcro e retomaria para a Cristandade a cidade de Jerusalém, que havia sido reconquistada pelo lendário Saladino. Nenhum fora capaz desde aí de nela entrar. E muitos haviam intentado a empresa. Para lá fora Ricardo Coração de Leão, rei de Inglaterra, e de lá voltara aureolado apenas de romance e pitoresco. Lá estivera Filipe Augusto, rei de França, e não mais que perfume e seda lá arrecadara. O seu próprio avó, Frederico Barba-Ruiva por lá andara, passando ao largo, solerte e cauto, sem nada conseguir. Recentemente, já no tempo do gordo Inocêncio III, Balduíno da Flandres para lá se chegara, entregando-se aos desaforos bestiais de Constantinopla. Agora seria ele, o excomungado, o arredado, o gafo da alma, a forçar o desígnio.

Quando a notícia duma nova Cruzada ao Santo Sepulcro correu entre os privados do imperador, a estupefacção foi geral. Ninguém lhe dava foro de verdade.

– É atoarda de quem não lhe conhece a perna sestra, quanto mais o sentido sage de trovador – repetia-se, sempre que no ar vinha bailar o despropósito.

Mas depressa se desenganaram os incrédulos. Fretaram-se barcos para atravessar o mar, arregimentaram-se homens, armazenaram-se víveres e alfaias. Logo se percebeu porém que a ideia arquitectada pelo imperador ia contra tudo aquilo que o mundo vira até aí. Em vez duma máquina de guerra, duma fábrica de morte, o espantoso homem tinha concebido uma cruzada que fosse um abraço de paz. Pensava erguer a sua empresa, pondo pé em Jerusalém, sem virar um homem. Em vez dum exército, levava com ele uma ideia, que era também uma arte de combinar as peças e progredir em conjunto.

– Uma aliança consegue mais que uma guerra e um homem sozinho, armado com um livro, vale mais que um grande exército – adiantava com um sorriso aos que questionavam a sua estratégia.

Convencia-se que o mundo, naqueles primeiros anos do século XIII, não era mais o que fora. A barbaresca cruzada contra os cátaros era para ele o último episódio dum mundo que já durava para além do que devia. Começara há quase século e meio, no tempo de Urbano II, quando este, em cima dum cavalo baio, vestindo sobrepeliz de púrpura vermelha e tendo na cabeça o rico boné de seda papal, lançara o primeiro apelo à cruzada contra os infiéis. O grito febril desse papa derramara-se por toda a Europa como a revelação duma luz nova se espalha pela escuridão do céu; milhões de pessoas, encadeadas por essa novidade, esfomeadas pela miséria ancestral, enraivecidas pelas riquezas ao longe pressentidas, deixaram as húmidas e primitivas florestas em que viviam para se lançarem quase nuas à conquista das vastas regiões da Anatólia e do Médio Oriente. O grito que Urbano II lançou foi um relâmpago que fendeu a noite escura da alta  Idade Média, perturbando os espíritos, agitando as mentes, pondo em movimento a multidão, mas foi também uma descarga eléctrica que pôs nas mãos duma horda sanguinária o fogo destruidor.

Por isso, quando no cabo do mundo os primeiros cruzados assediaram Jerusalém, haviam deixado para trás excídio atrás de excídio, qual deles o mais monstruoso e repulsivo. A cidade desacostumada de guerras, depressa se rendera. E numa linda manhã de Verão, com o gorjeio melodioso das avezinhas a salpicar os ares, a multidão enfebrecida, tendo à frente Godofredo de Bulhão, entrara de rompante pelas portas do poente, entregando-se à pilhagem e ao massacre. Haviam jurado não deixar alma humana com vida. Quando os cavaleiros subiram no entardecer mavioso da estiagem ao Santo Sepulcro para fazerem a oração de graças, o sangue corria pelas ruas como se fosse um caudal de água em mês de chuvas. E foi com as mãos tingidas de sangue e os beiços quentes dos urros da carnificina que eles eleveram ao céu as palavras de agradecimento por se verem no mesmo lugar em que Jesus padecera o santo martírio.

Estava determinado Frederico II a pensar que lhe seria possível forçar o tempo e virar a página da História. Bastava um sopro para a idade de Urbano II se desmoronar; era um edifício frouxo, sem alicerces, que ruía com um empurrão. No terreno renovado pelo pousio, erguer-se-ia então uma nova catedral, uma nova arte, que fosse a expressão dum mundo menos rude e mais imaginativo, onde a luz entrasse a jorros pela pedra rendada e se refractasse em cor no cristal do vidro. Dava especial atenção à teologia de Joaquim de Flora que apontava para a dissolução do assento eclesiástico e para o advento do Paracleto. Os fioristas constituíam como que a guarda avançada das ideias de concórdia e tolerância que ele instituíra como princípio na administração. O império, tal como o concebia por essa época, nada mais era do que o lugar onde a epifania pentecostal podia suceder. Dispunha-se a fazer do gibelinismo um milenarismo, que restituísse aos homens a esperança no céu, sebento de tanta ignomínia, negro de tanta fuligem, e lhes fizesse ver o encanto da Terra, que permitira outrora aos apóstolos viver e falar com a maravilhada inocência das crianças. No fundo via-se a si mesmo como o novo Urbano II, capaz de rasgar os céus e pôr de novo a multidão em movimento.

Partiu a nova cruzada em direcção do Oriente. Aportaram as galés a Acre, na costa da Palestina, sede das operações contra a cidade do Santo Sepulcro e seu posto avançado. Levava consigo um punhado de cavaleiros sem significado, mais curto que para uma justa, e logo lhe disseram que o papa vedava qualquer apoio das ordens militares a um homem que estava excluído dos confortos da religião.

– Pensais com uma centena de cavaleiros retomar uma cidade que resistiu à vontade de três reis juntos? – perguntaram-lhe.

– Aguardai e vereis – respondeu ele.

Partiu dali para o Cairo para se avistar com o sobrinho de Saladino, Al-Kamil, sultão aiúbida do Egipto. Antes mesmo de lhe dizer ao que vinha, presenteou-o com um Corão copiado por si. Depois apresentou-se como um homem de boa vontade e num árabe clássico, cheio de floreados literários, trabalhado com os ulemas de Tunes e de Susa que regularmente o visitivam na Sicília, falou-lhe das afinidades  entre as duas religiões que ali se batiam até ao extermínio. Concordou o sultão que não via motivo para tal carnificina. Depois o imperador discorreu sobre as perversões do papado e as virtudes do império, onde as três religiões do Livro conviviam em pacífica intimidade. Por fim apontou para os interesses comuns de cristãos francos e muçulmanos aiúbidas. Assistia-se nessa altura a uma excepcional expansão dos Mongóis, uma tribo asiática que liderada por um homem industriado na guerra pelos chineses, Gengis Cão, acabara de chegar às portas de Constantinopla, no Mar Negro, e às de Bagdade, nas margens do Tigre. Dizia-se que o seu império ia de Pequim, nos ignotos confins do mundo, até ao Dniepre, na Rússia europeia, sendo tão vasto e tão rico quanto o de Alexandre.

Neste quadro não foi difícil aos dois sujeitos reunidos no Cairo chegarem a um acordo pacífico, no interesse de ambos. A guerra ficava suspensa, as relações comerciais eram estimuladas e incentivado o contacto amigável e regular das populações de ambos os lados. Por fim Jerusalém era entregue aos cristãos, com excepção da esplanada que suporta a mesquita Al-Aqsa e a Cúpula do Rochedo.

– As guerras são tão perniciosas como inúteis – sentenciou o segundo Frederico, depois de fechar o tratado com o sobrinho de Saladino.

E quando regressou a Acre, deu-se o impensável. O imperador e os seus privados, dirigiram-se desarmados e cerimoniosos pela estrada de Nablus para a cidade do Santo Sepulcro, onde foram amigavelmente recebidos pelo emir. Tomaram então posse da cidade e numa igreja vazia do centro reuniram-se para coroar Frederico rei de Jerusalém. Como não houvesse um único cónego que levantasse do altar a coroa, dada a excomunhão que pesava sobre o homem, tomou-a ele próprio nas mãos e ali a cingiu na cabeça, no meio dum coro de vivas e hurras. Depois, na companhia de judeus e de muçulmanos, reunião tão desencontrada naquele lugar que só o seu espírito a podia conceber, bateu pelas ruas altas da cidade velha à procura do Gólgota, onde Constantino mandara muitos séculos antes construir a igreja do Santo Sepulcro. Os mercadores vinham à porta dos bazares mirar aquele homem luzidio e inopinado, que logo se interessava por eles, falando o árabe ou o hebraico consoante o caso. Por fim chegou à muralha da igreja e contemplou o tapete verde dos pequenos pomares que formavam enxame nas traseiras dos muros brancos da cidade. Ajoelhou-se, tocou nas pedras amareladas, que lembravam na luz mole do entardecer a poalha do oiro que um dos reis levara a Belém, e deu graças ao Deus de todas as religiões por tão sublime ocasião.

– Hoje começa um mundo novo – disse, arregalando os olhos ao alto, onde brilhava a mesma luz, o mesmo livor sobrenatural que esplendera na tarde santa da Paixão.

Escurecia quando se levantou. Lembrava-se com comoção que antes dele, de todo o círculo da Cristandade, só Godofredo de Bulhão, duque da Lorena, ali vivera o que ele estava praticando. E que abismo intransitivo entre a bestialidade porca dessa cena do passado e a comodidade civilizada daquilo que agora acontecia. Ouviu então por entre as primeiras sombras do escurecer o lamento ansioso e melancólico dos muezins a chamar dos minaretes das mesquitas os fiéis à oração. Lembrou-se que seis séculos antes também um califa do Islão, Omar, o sucessor de Abu Becre, ali viera àquela mesma hora, depois de receber as chaves da cidade, cogitar sobre as voltas do mundo. O próprio patriarca bizantino lhe dera o governo de Jerusalém e o acompanhara de bom ânimo no emaranhado das ruas que levavam ao Gólgota. Sentiu-se mais próximo do califa magnânimo do Islão que do cru senhor da Cristandade. Este era seu antecedente directo, parente de sangue até, mas entre os dois havia uma lacuna que nenhuma ponte colmava; o outro, um velho solitário do deserto, que atravessara as areias com um camelo e um surrão, tinha entranhado na alma o mesmo fio com que alguém tecera parte da sua. Andara bem quando na amada terra de sua mãe ouvira os muftis perorar contra a natureza hipostática de Deus e lhes dera um lugar de eleição na administração da ilha.

Agora, depois daquelas avenças, nada podia voltar a ser o que fora. A idade de Urbano II acabara para sempre, pulverizada pelo magnetismo do que naquele recinto acontecia. Era o tempo novo que ali começava, esse que estava prometido desde o Evangelho. Só a estultícia dos homens o adiara. Era tão fácil o fiat lux da redenção. Ali estava ele, no Santo Sepulcro, à mão de todos.  Para o cantar as almas exultariam como nos momentos em que os apóstolos nada tinham de seu e nada lhes faltava. A vida dos homens seria a partir de agora tão verdadeira que com ela se poderia entrelaçar uma parábola mais luminosa e  simples que aquela que Jesus tecera quando contemplara a beleza anónima e desconhecida dos lírios do campo. Até os templos, as catedrais da nova idade, se encheriam de luz e de cor, perdendo a cispada escuridão em que se apagavam, como se as almas que os frequentavam estivessem para sempre condenadas à dor dum tempo frio e triste. A nova arquitectura iria libertar os homens desse cárcere de terra e podridão.

Mal regressou à Europa, o papa levantou-lhe a excomunhão; o conde de Segni não mais se atrevia a arredar da comunhão dos fiéis o homem que repetira o feito dos primeiros cruzados. A sua popularidade cresceu tanto em toda a Europa que se formaram por todo o lado as mais variadas lendas sobre a sua pessoa e origem. O povo ansiava por ele como por um salvador; os nobres reviam-se nele como num espelho; só o clero, conhecedor dos seus avanços sobre a tributação fiscal das ordens religiosas e o alcance ilimitado da jurisdição civil, o encarava com desconfiança e o mantinha à distância. Durante um momento o imperador creu que a epifania de esperança que vivera na pedra do Gólgota se iria concretizar. A redenção definitiva do mundo, o regresso de toda a Terra ao Paraíso, estava em andamento e nada a podia suster. Bastava um pouco de determinação e de arte para o céu conceder à Terra todos os prometidos benefícios. A copa com o vinho novo do Espírito Santo não tardaria a passar de mão em mão, incendiando de embriaguez eterna o mundo dos homens.

– Voltará a soprar, revoluteante e intenso, o vendaval das Línguas de Fogo – afirmava ele sem disfarce, de olhos postos no anil do além.

Aquilo que à morte de Jesus fora a fulminante experiência dum apertado círculo de homens, ia agora tornar-se a vivência comum de todos. Há mais de mil anos que o Mediterrâneo vivia suspenso duma promessa de resgate definitivo. Fora primeiro a pregação de Paulo aos gentios, na Lídia, na Tessália, na Macedónia e na Trácia; fora depois a visão joanina do Apocalipse e da luta decisiva da Besta e do Anjo. Era agora a certeza de que as três revelações do Livro eram na Terra o espelho das moradas várias que havia na casa do Pai.

– In domo Patris mei mansiones multae sunt – gostava ele de dizer a propósito.

Jerusalém, com as igrejas, as sinagogas e as mesquitas, era a sinédoque dessa nova imagem universal. Todo o Mediterrâneo se tornaria em breve uma imensa Jerusalém, pacífica e laboriosa, uma mesa sempre lauta onde todos confraternizariam em paz. Sinais dos novos tempos irradiavam de toda a parte, derramando luz e calor sobre a Terra. Por toda a Europa se estavam já levantando, pela mão de canteiros inspirados, as igrejas da nova idade, rendadas em pedra e cobertas de vitrais e luminosas. Entrar nelas era como ouvir um cântico das estrelas. Os picos com que cresciam para as alturas do céu faziam delas as novas moradas celestes na Terra. Eram a pátria de Deus em construção, a anti-Torre de Babel, a nova cidade onde todos os homens se acolheriam, vivendo e partilhando como irmãos.

Mas, ao invés de tão exaltantes expectativas, o tempo rodou sem nada trazer de novo. Os mesmos sóis que haviam consumido os dias no tempo de Paulo ou de João, voltaram a gastar a sua luz inútil e igual. Os sinais dos novos tempos desfaziam-se na água corrente ou apagavam-se na cinza geral. O papado, açulado pela extraordinária empresa do novo Barba Ruiva, punha-se em guarda, rosnando alto e feroz, pronto a passar ao ataque.

Aproveitou então o rei de França, Luís IX, outrossim amargurado com o ascendente do rival siciliano, para instar com Gregório IX. Fazia-se cada vez mais imperiosa a necessidade de instituir nos condados pirenaicos, onde a heresia não tinha modo de despegar, quanto mais de desaparecer, um tribunal inquiridor da fé firmado na determinação doutrinária dos frades de Domingos de Gusmão. Demais, tal instituição, seria nas mãos do papa o melhor instrumento para obstar aos avanços do laicismo do império.

– É resposta avonde às manobras de Frederico II – escrevia ele ao papa.

Aceitou desta vez Gregório IX a sugestão do rei, que deste modo adiantou caminho para se fazer santo. Luís IX ou São Luís de França, assim o baptizaram. Eis então as voltas inesperadas que o mundo dá para fazer um santo, neste caso de pechisbeque ou de material sintético. Um santo em marfinite oca, eis Luís IX! Mais brando do que isto não é possível dizer de quem levou para os condados meridionais da Gália a sanha sanguinária do tribunal eclesiástico.

Instalaram-se os frades de capeirão preto em residência fixa, no meio dos burgueses, montando uma apertada rede de delação entre os moradores das cidades e dos lugares. Tudo era vigiado e esquadrinhado por um rígido aparelho policial. Os beleguins tinham direito de perquisição. A qualquer hora do dia ou da noite podiam peneirar casas, granjas ou armazéns. Qualquer indício de heresia levava à prisão e a um apertado e demorado processo judicial. O pobre salvava a pele se contritamente confessasse; tudo perdia se à porfia negasse. No primeiro caso mandavam-lhe cumprir penitência no cárcere; no segundo conduziam-no à fogueira e despojavam-no de tudo o que era seu. Quer dizer, culpado ou não, o suspeito só via pela frente a condenação, quer nas enxovias, quer no lume, podendo o inocente perder a vida caso fizesse questão em se manter na verdade e o culpado salvar-se caso simulasse a contrição. Uma perversão sem número tomava conta da Igreja em nome do mando. A instituição não hesitava em se fazer torcionária, bárbara como nenhuma outra, por motivo apenas da supremacia sem restrição da sua doutrina. Ao proceder assim mostrava a Igreja nada dever à palavra amorosa do Evangelho, que era afinal o seu alicerce fundador e a razão única do seu existir.

Subiu de intensidade o lume no país martirizado. Mais heréticos arderam nas braseiras, tendo como crime o facto anódino de afirmarem Cristo uma natureza celeste, sem parcela de humano ou de terreno. Os dominicanos, ajudados pelos restos da Confraria Branca do bispo Folquet, mostravam um faro especial para detectar a heresia. Não havia herético que não fosse desalojado ao apurado olfacto dos fradinhos de Domingos de Gusmão; desentocavam a presa nos lugares mais recuados e inopinados. Alguns haviam assistido ao auto-de-fé executado pelo patrono no portal da catedral de Toulouse, aquando da primeira toma, e por isso insistiam em ter por companhia negros mastins, de espetadas e finas orelhas. Tudo punham para recordar o fiel alão que seguira os derradeiros passos do pregador. Deste modo, cães e homens, faziam a vez dum feroz e nervoso bando à procura do porco-montês ou da farandulagem herética.

O papa, quando soube da energia com que a máquina repressiva dos dominicanos trabalhava, rejubilou. Aquele punhado de frades valia um exército. Bom olho tivera Inocêncio III quando em Latrão lhes pedira obediência e fereza. E razão havia decerto o rei de França, quando lhe repetia que nenhum obstáculo seria tão efectivo à expansão de Frederico II como a nova Inquisição. Qualquer cristão desanimava diante de matilha tão intrépida. Mais valia o sossego na cerca do muro que um encarniçado ladrejar à porta de casa.

– O medo é o breviário da fé – sentenciava feliz.

Estalaram porém tentativas sérias de revolta contra a nova Inquisição. Nunca a ferocidade na região fora tão alta e sanguinária; nunca a vigilância tão rigorosa e apertada. A notícia dos sucessos de Frederico II no Oriente, o fim da excomunhão que sobre ele caíra, a onda de delírios que a sua chegada à Europa despertara estimularam a revolta dos cavaleiros locais e da Igreja cátara. Os procedimentos adoptados pela Igreja romana, apoiados na administração francesa de Luís IX, faziam escândalo. Muitos que não haviam aderido ao dualismo do cristianismo bogomilo punham agora em causa o comportamento da Igreja. O papa era comparado ao Anti-Cristo.

– Que se saiba Cristo não deu ordem aos apóstolos para perseguirem aqueles que dele discordavam. Antes incentivou os que o seguiam a serem mansos e pacíficos com os coléricos e os violentos – afirmava-se em abono da comparação.

Ainda assim os embates militares foram favoráveis à monarquia francesa. A nobreza local, enfraquecida por operações ininterruptas, desmoralizada pelos tratado anteriores, enervada pelas capciosas violências dos dominicanos, foi vencida e não lhe restou outra saída senão a submissão ou o exílio. A administração de Luís IX impôs com o apoio dos frades as mais severas penas para qualquer falta leve. A vigilância e a repressão cresceram; uma situação de excepção, dia e noite, foi instalada em todo o território. Além da fogueira para os heréticos e do processo para os suspeitos, a Igreja prescrevia agora a obrigação de queimar a casa do relapso, bem como qualquer objecto em que ele houvesse tocado. Até a casa dos vizinhos podia ser derrubada e o terreno salgado, caso se provasse que o herético a frequentava. Muitos delatores apareceram assim, na esperança de salvarem bens e vidas. Criara-se também a obrigação de exumar e queimar os ossos de qualquer herético que houvesse escapado à fogueira e ao processo. Centenas de exumações tiveram lugar e assistiu-se a um novo tipo de auto-de-fé. Um monte de ossos ou um cadáver putrefacto subia ao palanque para ser danado no meio do braseiro. O sistema inquisitorial da Igreja refinava a perversão a um tal ponto, que o cruel se fazia macabro. O figurino da Inquisição, tal como o iremos conhecer até ao século XVIII, acabara de nascer. Resultava da combinação da tradição teocrática da Igreja do século XII com o gosto argumentativo e jurídico de Domingos de Gusmão, que pouco depois daria a Suma de Tomás de Aquino, que é o indigesto código civil da Teologia.

Aos que escaparam das revoltas contra a monarquia francesa de Luís IX não restou senão a fuga. Também aos crentes bogomilos era impossível continuar nas populosas terras do Mediterrâneo a iludir a Inquisição, que de dia para dia aperfeiçoava o aparelho de vigilância e crescia em número de professos e casas. O poder da Ordem dominicana era agora imenso, pois crescera na proporção da eficácia do terror que fabricava. Quem se queria pôr ao abrigo de tão nefanda fábrica, entrava nela e arrumava o caso. Pequenas colunas de mulheres e homens, enquadradas pelos restos da nobreza rural, puseram-se em movimento e a coberto da noite e dos acidentes do terreno ganharam os contrafortes dos Pirenéus, internando-se depois pelos trilhos esconsos da montanha. Em pouco tempo, fortificou-se a multidão dos retirantes nos altos picos rochosos; uma linha de castelos de pedra, tão inacessíveis como ninhos de águia, ergeu-se aos céus, dando a cara às intempéries. No interior das levantadas cercas, estavam os sobreviventes de vinte ou trinta anos de feras guerras. Por um momento, no meio das asperezas daquela altitude, rodeados de neves e solidão, sem alma humana por perto, pensaram-se enfim ao abrigo de perseguições. Iam ter de novo a abertura que lhes era mister para viver a fé de Cristo.

Mas não tardaram os barões da cruzada francesa, ladeados por frades e podengos, a flanquearam os cursos de água que levavam aos picos montanhosos onde se acastelavam numa derradeira linha defensiva os restos da Igreja cátara. O faro dos dominicanos desalistava os heréticos, se preciso fosse, das divinais mansões do céu, quanto mais das humanais pedras do Pirenéu. Demais eram eles que instilavam o entusiasmo no sangue dos soldados e dos brigões da cruzada. Tinham a brutalidade e o cinismo do abade de Cister, Arnaud Amary, legado do papa na primeira etapa da cruzada contra os cátaros.

– Matai, que a Igreja vos abençoa! E se morrerdes, tereis o Anjo do Paraíso à vossa espera.

Os frades eram a alma da expedição nova. Perdoavam e transigiam. A propósito de nada, arengavam e davam missa. Os homens de armas assistiam, obedientes e sérios. Os oradores prometiam o céu a todos. Até o mais ladrão, o mais homicida dos facínoras que ali ia, recrutado à força pelo rei, receberia logo depois de render a alma um olhar de gratidão do porteiro do Paraíso celeste. A ouvir os frades, não havia pecado, por mais gravoso, que aquela santa marcha não limpasse. Ademais prometiam forrobódó para mais tarde.

– …Os heréticos levam com eles um tesouro mor… – espalhavam eles à sorrelfa, como quem não se interessava pelo caso.

A motivação dos soldados, muitos deles mercenários, cresceu com a atoarda. A perspectiva dum saque punha muito apetite naquelas goelas humildes. Muito se fantasiou sobre o tesoiro. Correram de imediato histórias fabulosas sobre o seu conteúdo. Uns diziam que viera do Oriente, quando Guilhem Raimundo, conde Toulouse, partira com os trinca-leões do território, na primeira cruzada de Urbano II. Outros contrariavam, pondo a origem na Bulgária ortodoxa, onde o cristianismo cátaro nascera. Ninguém sabia ao certo de que tesoiro se tratava. Tanto se falava do oiro tomado nas campanhas de Antioquia, Tripoli, Acre e Jerusalém, como das alfaias religiosas, chegadas do Danúbio oriental. O mistério e a cobiça que envolviam a riqueza desse erário era grande, tão grande que teve fôlego para chegar até nós, oitocentos anos depois. Ainda hoje caçadores de tesoiros passam à peneira picos e desfiladeiros, ruínas e campos, à procura do seu rasto. Lá andam decerto neste momento, aproveitando qualquer aberta do tempo, na esperança de porem mão no fabuloso tesoiro dos cátaros, nunca até hoje arrecadado.

Foram caindo um a um os altos castelos dos Pirenéus. As máquinas de guerra de Luís IX trabalhavam dia e noite para abrir brecha e fazer derrocar os muros a pique, obrigando à rendição. Cá fora esmeravam-se as fogueiras por danar os corpos daquelas almas réprobas. Não tinha descanso a fradulagem, a armar palanques, a rodar carroças, a lavrar processos. Mulheres lindas, de olhos extáticos, nascidas no conforto dos palácios de Narbona, de Béziers ou de Monpilher, cantadas outrora ao serão pelos menestréis da Provença, preferiam torrar nas labaredas a abjurar o credo do Cristo celestial. Quando os frades, espertos e mundanos, bons conhecedores dos recessos da alma humana, lhes mostravam os assadores onde iam torrar a delicada e perfumada carne, elas apontavam com os dedos pálidos o céu e com um sorriso místico, cheio de enlevo, diziam com surpresa e altivez:

– Não conheceis a história dos primeiros mártires?

Os frades desnorteavam por um momento, a coçar a cachimómia. Depois, rodando os dedos na lisura da tonsura, sem perceber o alcance da pergunta, ouviam a resposta:

– Nós somos os novos mártires e vós as feras do Nero novo. Ali, onde vedes a âmbula do céu, nos espera Jesus com a legião dos Anjos.

Outras bocas, mais espertas e mais secas, não estavam com mesuras e descarregavam palavras acusadoras, que caíam como faíscas:

– Não lembrais que quem com espada mata com espada morre? Pois, quem com fogo mata com fogo há-de morrer. Lástima a vossa, que ireis por toda a eternidade arder na companhia de Balzebu, príncipe dos demónios e comparsa do Anti-Cristo a que chamais papa.

Os frades, ratões que eram, e tudo o que pediam era a retractação em momento de fraqueza, ferviam então de raiva e aos encontrões furibundos entregavam as monjas cátaras aos seculares, que logo as sacudiam para o fundo do brasido. Algum desencontrado ovelheiro que por ali passava com os rebanhos benzia-se de horror e ajoelhava-se compadecido por ver damas assim formosas, de longos e sedosos cabelos, a arderem com um sorriso de serenidade nas labaredas maldosas do fogo. Eram mais finas e brancas que açucenas de Primavera. Os frades arteiros viravam-se então para eles e sacudiam a goela.

– Vede! Vede bem! Não perdei migalho. Aprendei o que sucede a quem vive na heresia.

Como os bisonhos ainda assim estranhassem que donas tão etéreas pudessem ser heréticas, que tinham por cabroilas cornudas e cascudas, com pêlo no queixo mais retorcido e duro que anzol, os frades acrescentavam rabulões:

– Estranhais? Se assim perseverassem no erro, nem que fossem dez mil meninos, quanto mais estas diaconisas do Demo rabudo.

Em pouco tempo, não sobraram mais do que dois pontos, Montségur e Queribus. Eram dois ninhos de pedra alcandorados nas altas fragas dos Pirenéus, o primeiro no condado de Foix e o segundo no viscondado de Narbona, mais chegado ao Mediterrâneo. O primeiro era a última cidade cátara, com cerca de meio milhar de crentes e uma guarnição determinada e fiel, caudilhada por um bravo senhor local, Peire Roger de Mirepoix, liado por parentesco directo ao clero cátaro e que fazia alarde de beber por uma cabacinha de osso que era, dizia ele, o crânio dum inquisidor que outrora lhe caíra nas mãos. A cidadela, a mil e duzentos metros de altitude, acoutava-se numa posição geográfica inacessível, que tirava partido dum conjunto vantajoso de defesas naturais. O segundo, Queribus, era uma ilhota no alto dum esporão de pedra, que recolhera uns tantos refugiados chegados do litoral e não tinha qualquer relevância militar.

Todos os esforços da nova cruzada francesa se concentraram em volta de Montségur, onde esplendiam os derradeiros livores da organização cátara. Estavam lá centenas de crentes, confortados por um escol religioso eloquente e garantidos por cavaleiros destemidos, gozando de boa estima na região. A comunidade de Montségur, que datava do momento em que os dominicanos receberam os poderes especiais do tribunal inquisitorial, tivera tempo de deitar raízes fundas no local. Rodara ao longo dos anos uma vida autónoma, de urbe medieva, ritmando tempo e actividades pelo calendário festivo do cristianismo cátaro. Com a queda dos castelos vizinhos, Montségur povoara-se de novos fiéis, ganhando fama de cidade sagrada. Era a Jerusalém do catarismo, além de ser o monte onde todos se achavam seguros como o nome sugeria. No momento do cerco parecia inexpugável, fechada nas defesas naturais do pico em que se alcandorava e na determinação porfiosa dos moradores.

E durante dez meses Montségur resistiu. A princípio a guerra não se fazia sentir no interior da cidadela. Tudo se passava nos vales envolventes, longe dos muros e das habitações. Cercados por uma hoste de dez mil homens, os quinhentos habitantes do castro viviam alheios à guerra. E enquanto os homens de armas tomavam a cargo a defesa do pico, os crentes oravam de olhos postos no céu. A proximidade do perigo, o isolamento do mundo, a vizinhança do ar rarefeito do céu, refinavam a espiritualidade cátara a um ponto inaudito. Nunca a comunidade dos crentes se mostrara tão devota, tão cumpridora e tão unida como naquele momento. Depois, à medida que o cerco foi apertando, os muros ficaram ao alcance dos engenhos militares. As catapultas arremassavam os virotões, que faziam tremer as estruturas da cidade. Ninguém mais se assomava à crista do pico para contemplar as solidões ao redor. O isolamento dentro da praça era de rigor. O ânimo porém permanecia elevado.

– Agora somos nós e Deus – afirmavam os predicadores com os olhos risonhos, cheios dum optimismo extemporâneo.

Do outro lado, no seio da cruzada, os barões do rei de França rejubilavam com o avanço.

– A Esnoguinha de Satã vai ao chão – urravam.

Breve chegaram os combates corpo a corpo nas primeiras barbacãs. Ainda assim a cidade resistia e parecia longe de ceder; não se via a hora do assalto final. Cada tentativa era repelida e tinha custos elevados. Por fim, os assaltantes, desesperados com um tão longo e demorado assédio, fizeram uma proposta de capitulação ao senhor da praça. Poupavam a vida dos homens de armas, que teriam apenas leves penas de penitência, podendo retirar-se em liberdade; salvavam-se ainda todos os crentes que renegassem a heresia. Demais por quinze dias a praça repousaria tranquila, sem qualquer incómodo, nas mãos dos actuais senhores. Findo o prazo seria entregue ao rei de França e à Igreja. Iniciar-se-iam então os processos aos moradores, para destrinçar arrependidos de contumazes, ao mesmo tempo que os homens de armas eram deixados em liberdade.

– Se pudessem massacravam-nos; por isso é mister que nos aliciem – avaliou Peire Mirepoix, quando tomou nota das condições que lhe eram oferecidas.

Mas a proposta de capitulação, depois de ponderada, acabou por ser adoptada pelos sitiados. A Igreja cátara decidira entregar-se em bloco ao martírio. Há anos que os moradores do pico se preparavam para morrer. O catarismo pugnava pela morte como por uma libertação e tanto lhe dava desaparecer nas labaredas da Inquisição como nas celas de pedra dos mosteiros onde fazia vida austera. Assim no momento em que chegaram as avenças da cruzada, cerca de duzentas ou trezentas pessoas estavam dispostas com um sorriso de felicidade celeste a render a alma no lume. Diante desta disposição, toda a resistência se fez inútil, além de penosa. Os feridos dentro da praça eram legião e não havia cela que não acomodasse dois ou três. A capitulação foi acordada entre as partes, tomando como eixo o acordo honroso oferecido pelos cruzados.

A 15 de Março de 1244, decorridos os quinzes dias estipulados, a praça foi entregue. Às primeiras inquirições logo se percebeu a contumácia dos crentes. Sem excepção, todos estavam desejosos de perecer no fogo. O auto-de-fé foi marcado  para o dia seguinte.

– Deus ajuda os seus, enviando um tempo frio e seco – comentou o superior da Ordem, com o rosto rasgado pela satisfação.

Em caso assim, nem sequer havia necessidade de proceder à destrinça de contritos e obstinados. O processo foi colectivo e apical. Procedeu-se por obrigação ao cerrado interrogatório do pequeno escol religioso que orientava dentro da praça os crentes e tentou-se por todos os meios, incluindo a tortura, a apreensão dos Evangelhos em língua vulgar que serviam de Escrituras à Igreja cátara. O tribunal, visando o assalto final dos últimos redutos da heresia, requerera ao novo papa, Inocêncio IV, a tortura dos processados e obtivera-a. Aquilo que até ali era apenas um excesso tolerado era agora um meio legal, em vias de se refinar e funcionalizar.

Nada de relevante porém se obteve ou encontrou, pois há muito que a praça preparara o fim. Mantendo quase até à capitulação corredores seguros de contacto com o exterior, alfaias, paramentos, baixelas, pergaminhos e livros haviam sido evacuados com tranquilidade. O pouco que sobrara, o próprio clero cátaro o havia destruído nos folgados dias que mediaram entre a capitulação e a entrega da praça. O resto partira há muito para a confederação aragonesa-catalã, onde se acoutavam crentes e refugiados, ou para a Lombardia, do lado de lá da Provença, onde a Igreja cátara continuava viva e organizada, ao abrigo da benevolência civil de Frederico II.

Voltaram a arder as florestas do Limousin e da Occitânia. Cerca de trezentas pessoas  foram obrigadas a despir as capas de lã merina, a tirar a tunicela de linho, a envolver o corpo num balandrau curto de estopa grosseira e a desfilar descalças, as mãos atadas atrás das costas, por entre as alas dos soldados e mercenários franceses. Era uma fria madrugada de Março, corria uma tramontana de gelar um urso, mas os penitenciados levavam os olhos no céu e um sorriso de bem-aventurança no rosto. Estavam proibidos de entoar cânticos ou de mover os lábios. Se algum, mais revel ou mais doido, se punha a orar em voz alta, invocando o Evangelho de João ou as cenas do Apocalipse, de que a Igreja bogomila e origenista se fizera muito devota, era logo arrancado à fila e tratado a vergalho. Quando regressava à coluna, levava a boca tão retraçada de golpes que nem sequer a podia mover. Se nada de anormal ocorria, os soldados da cruzada, de cota branca passada por cima do arnês de ferro, com cruz azul bordada ou pintada no peito, bacinete de borbote na cabeça e bulhão à cintura, limitavam-se a arreganhar o cenho encardido e a vomitar um impropério ou um dichote de sarcasmo.

– Javardos! Hereges! Ides danar o corpo nesse lumaréu para logo entrardes no Inferno onde já salta a vossa alma maldita.

Alguns porém, à passagem dos anciãos de brancas barbas fluviais, lembrando-se do tesoiro que os fradinhos intonsos de Domingos de Gusmão lhes haviam prometido, e que já lá ia, não tinham mão em si e escarravam-lhes na cara de fúria e frustração. Os relapsos, ao contacto viscoso da saliva que se punha a escorrer pela face ou pelo pescoço nu, arregalavam mais os olhos ao céu e sorriam de felicidade. Invocavam em silêncio Estêvão, lapidado em Jerusalém e apontado entre eles como padroeiro de mártires e exemplo de supliciados.

As vivandeiras que acompanhavam a rectaguarda do comboio, entretendo no arraial os ócios da soldadesca, quando isto viam, não se tinham e buscavam no chão pedras e paus para atirar com gritinhos de raiva aos heréticos. Visavam sobretudo as monjas, ascéticas e dignas, de olhos no além, costas direitas, cabelos bem tratados e pele perfumada e branca. Algumas, enervadas pela serenidade das condenadas, enciumadas por tanta finura e educação, aproximavam-se da fila e insultavam-nas na cara, olhos irados e fuzilantes.

– Serpes nojentas! Cadelas do Tinhoso!

Depois picavam-lhes os seios com paus finos mas densos, endurecidos ao fogo. As mais cruéis visavam a cara e chegavam a vazar com a ira os olhos das heréticas, que ficavam pendurados, a baloiçar nos malares, presos pelo nervo óptico. As mulheres que assim sofriam, titubeavam o seu tanto, de braços atados nas costas. Algumas, toldadas pela dor, entontecidas pelo desequilíbrio, não se tinham nas gâmbias e gemendo rolavam ao chão. A fila, à ordem dos sargentos, parava um momento; os soldados recuperavam a relapsa do chão, integrando-a na fila, que se punha então de novo em movimento, dirigindo-se para o estrado onde se amontovam as pernadas secas que iam consumir os heréticos.

Ligeiramente retirados, meditabundos e sérios, estavam os frades de Domingos de Gusmão, em pequenos grupos de três ou quatro pessoas. Fechavam-se no capeirão preto e com cara de caso pareciam comentar entre si transcendentes questões teológicas. Com o rosto preclaro, a tonsura acabada de limpar, o tecido do capeirão cuidado e as dobras do capuz bem vincadas, os fradinhos levantavam os dedos à altura do peito com jeito de argumentação superior e lançavam olhares distraídos à multidão do arraial que se acotovelava por deitar os olhos à fila dos relapsos. Pelos condenados não se interessavam; comportavam-se até como se deles nada ali houvesse. A partir do instante em que a contumácia erguia um muro de resistência, eles viravam costas e nada mais queriam com os danados. O auto-de-fé era da responsabilidade do braço secular; os homens do rei de França lidavam com as escórias intratáveis, enquanto eles, nas esquinas do préstito, se entretinham com frioleiras. Deixavam pois os frades correr o marfim, deitando, a espaços, pelo rabo do olho, espreitadela desinteressada ao que em redor ocorria. A pouca distância, os alões, companheiros de toda hora, firmes nas patas, cabeça avançada, orelhas espetadas, latiam, açulando a multidão com ladridos ferozes.

Ainda assim, num palanque ligeiramente elevado sobre o terreno, debaixo dum rico pálio com os emblemas da Igreja bordados a fio de oiro, levantava-se a estatuária oficial dum bispo católico, mitrado e de báculo, que predicava e abençoava os soldados do rei. A seu lado, orando em voz baixa, postavam-se os superiores da Ordem dominicana e logo abaixo, em contacto com a multidão, avançava o beleguim do rei, vestido de gibão de tela, cabeça descoberta, que nos intervalos lia os nomes dos relapsos, os crimes cometidos e as penas ordenadas. De vez em vez, um dos superiores da Ordem abeirava-se da boca do palanque, libertava o capeirão dos ombros, afastava o beleguim, erguia os braços ao céu e gesticulando tomava ele a palavra diante da multidão. Disparava então uma arenga fulminante, que feria de morte os heréticos e ressalvava os bons soldados que ali punham braço e vida ao serviço do Senhor. O préstito abrandava à ordem dos sargentos, os soldados comprometidos punham cara humilde, a multidão entreolhava-se receosa, os frades tomavam os cães pelas coleiras e impunham-lhes silêncio Os condenados por sua vez procuravam fazer de conta que nada daquilo havia de mexer com eles; olhavam como sempre o azul do além, com um sorriso beatífico de desdém colado ao rosto.

Ao início da tarde, os condenados estavam já presos aos postes, prontos para o grelhador. Só os mais novos, de rosto imberbe e olhos inocentes, crianças ainda, denunciavam alguma agitação. Respiravam a custo, gemiam baixo, soluçavam, abriam os olhos de medo, procurando seguir qualquer movimento dos soldados ou da multidão. Todos os outros estavam quietos e calados, olhos fechados, espinha direita, como se ali não estivessem. Haviam combinado que mal os soldados lhes passassem as cordas ao corpo, não mais descolariam as pálpebras. Corria entre os cátaros, vítimas experimentadas daquele teatro cruel, que o difícil não era arder como estopim inflamável no meio do assador; o que custava era o nervosismo, o pânico da alma, o desnorte do pensamento que antecedia o momento da cremação. A escuridão, a ignorância absoluta do que se passava cerca, a oração mental repetida momento a momento, eram poldras seguras que ajudavam a passar a seco, com sofrimento minorado, o transe que mediava entre a atadura e o fim.

Bons conhecedores da mecânica do auto-de-fé, melhores entendedores ainda da psicologia humana, os inquisidores gostavam de retardar um tanto o momento em que o sargento sénior trazia do arraial duas brasas num prato de estanho para puxar faísca à palha seca que servia de ponto de arranque às chamas. Quando os relapsos estavam prontos a consumir, agarrados aos postes, o bispo dava missa cantada. A multidão ajoelhava, salmodeava e chegava-se ao palanque pelo santo cibo. De seguida os frades distribuíam pão, carne e vinho e todos se sentavam no prado verde a comer numa animada parlapatice. Ai, a santa barriguinha, quantas vezes não é um entretém para fazer esquecer o que mais importa. Com papas e bolos, disse outrora o povo.

Enquanto isso um corpulento carrasco de capuz passava vistoria aos relapsos, reforçando a resistência das cordas. Aproveitava então para repetir as diabruras anteriores. Escorriam de novo as escarraduras pela face ou pelo pescoço nu dos desgraçados.

– Só vos resta rebentar como ratos – despedia-se por fim com uma gargalhada grotesca.

Um trem de anões, que laborava para os dominicanos, vinha depois com braçadas secas envolver os corpos dos condenados. Afogados em matéria combustível, só a cabeça se lhes via boiar à superfície, num mar de carqueja e carvalho. Por fim o chefe do bando, com um bacinete cheio de pez, pincelava aqui e ali a casca rija do carvalho cerqueiro. De quando em quando, não sei se para brincar ou se para ajudar ao sério da cerimónia, atirava um borrão de pez ao balandrau dalgum relapso que lhe estivesse por perto.

Em baixo a multidão ria e roía as últimas côdeas. Os ossos eram atirados com ruidosos apupos ao lenho seco que seria pasto das chamas. Visavam a cara dos condenados, de modo a romperem a compostura. O supremo sucesso era levá-los a abrir os olhos, encarando de frente com a triste realidade em que se viam atolados.

Entardecia quando o coudel dos sargentos deu ordem para que viesse do arraial o prato das brasas. Nenhum dos condenados entrara em colapso, clamando aos gritos pela misericórdia da Igreja, o que acontecia às vezes a algum mais pusilânime. Em Minerve, no primeiro auto-de-fé da História moderna, cinco imploraram dessa forma piedade e em Lavaur outros tantos se borraram. Nesses casos, dois frades deixavam a plateia, subiam ao estrado e abeiravam-se do infeliz. Falavam-lhe ao ouvido e ouviam-no depois. Caso desdissesse a heresia, a sua alma era encomendada ao porteiro do céu para ser recebida com indulgência; caso não, acabava confirmada à danação. Em ambos os casos assava na grelha, pois havia dúvida entre os argutos fradinhos sobre a sinceridade duma retractação em condições tão fatais. Desta vez a preparação técnica produzira efeito, e todos permaneciam, com mais ou menos agitação, na disposição de arderem sem quebra de ânimo.

Um anão foi aos quatro cantos da carqueja, chegando lume. Depressa as labaredas fizeram caminho, batidas pelo vento frio do Norte. Em pouco tempo uma nuvem de fumo envolveu o estrado, espalhando-se de seguida pelo prado. Ouviu-se o cafum-cafum do começo, seguido dos primeiros uivos de dor. Ficaram estes a pungir no ar como soluços do outro mundo. Logo os frades abriram a salmodear, no que foram seguidos pela multidão. Depressa os cânticos abafaram os gritos lancinantes dos supliciados. O fumo revoluteava nas espiras do vento e as labaredas subiam vivas, inconstantes, gulosas, devorando primeiro o palhiço da carqueja e agarrando-se depois em línguas ardentes à ossatura dos carvalhos. Em menos de nada o estrado transformou-se num mar alto de labaredas; de tempo a tempo, na agitação das ondas, avistava-se um rosto arrepelado pela dor, a suar sangue, manchado pela fuligem, olhos desorbitados, qual barco desconjuntado e aflito a naufragar na tormenta.

Era madrugada quando a multidão começou a retirar em direcção do arraial. A estrela Sírio, crepitante de lascas, apagara-se já no poente. O céu continuava limpo e as estrelas adamantinas desmaiavam no despercebido acordar da claridade. Uma brisa imperceptível apagava no céu o brilho dos astros. O estrado era agora um braseiro incandescente, palpitando luz e irradiando calor, com lume curto e intermitente. O fogo mastigara todo aquele pasto de madeira, pez e carne, indiferenciando corpos e matérias num gigantesco amontoado de brasas. Um cheiro nauseabundo e enxudioso libertava-se do brasido, numa coluna de fumo negro e pastoso, que se perdia na tristeza do céu.

– Fedem mais que Satanases – escoliavam entre si os soldados que montavam guarda ao fogareiro, olhos sonolentos e atenção presa aos restos da combustão sulfúrea.

Depois daquela noite a igreja cátara da Occitânia desapareceu, para bem dizer. Queribus, na rota de Narbona, era um ilhéu, sem lábaro nem organização, cujo destino era naufragar nas alevantadas ondas do oceano da cruzada. Não tardou a submergir na primeira preia-mar que lá chegou. Restavam os refugiados na confederação aragonesa-catalã. Mas esses, mesmo auferindo de benevolência geral, não passavam de franjas dispersas, sem coesão nem doutrina, sujeitos sempre a felonias e repatriamentos. O braço do tribunal era longo e dúctil, não hesitando em ilibar traidores para trazer a si os transviados. E a repressão continuou feroz, quase durante um século, até à erradicação total de qualquer vestígio da heresia.

A derrota da igreja cátara inculcou a Ordem dominicana como a guarda da Igreja. Salvante ela, a única novidade era o bracejar dos frades franciscanos. Haviam sido reconhecidos como Ordem mendicante e pregadora, ao modo do que acontecera com os seguidores de Domingos de Gusmão. Mas ao contrário do que sucedera a estes, que se acantonaram em residências fixas, depressa se rodando na rotina do trabalho de secretaria, os fradinhos menores de Francisco de Assis punham gosto em continuar ao deus-dará dos caminhos, voltando costas a qualquer vestíbulo. Vestiam de burel cinzento ou castanho, tão sebento e roto como o do mentor, atavam uma corda de três nós à cinta, em sinal dos votos, e assim se iam pelos trilhos a pregar a pobreza, a castidade e a inocência ao mundo. A mais das vezes confraternizavam com a farândula da bandidagem, quando não com o seu herético fiorista. Tinham pecha pelas ruínas, pedra destelhada ao vento, herança de resto do fundador, que começara a vida de revelação a sarar destroços, e davam a unha e até o mindinho do pé sestro, que nenhuma falta lhes fazia, pelo fermentado suminho da uva. Quem os dera em Caná, onde o Mestre, apiedado pelos noivos, transformara a água das talhas em vinho novo. E água, água límpida e risonha, a saltar nas frestas do granito ou na licença da verdura, água fresca e sonora, a cantar as bem-aventuranças, era o que eles mais haviam por esses doidos caminhos do mundo. Quem assim os inspirava não era santo de plástico, mas palavra ébria e solta. Valia mais que a Arca da Aliança, que dando três voltas a Jerusalém lhe destelhava a cerca. E a água, passando pelos despreocupados fradinhos, tanto cantava o sermão da montanha como o cântico do irmão Sol.

Inocêncio IV, o novo papa, viu-se vitorioso depois da queda dos dois últimos bastiões dos Pirenéus. Prezara muito no passado os fradinhos de Assis; assistira mesmo à canonização do patrono, o doido Francisco Bernardone, pelo seu antecessor. Mas tomava agora a Ordem como um alfobre de gente sem juízo, que merecia mais tolerância que admiração. As formigas da Igreja, a cavalaria industriosa do papado, eram os seguidores de Domingos, não essa fradulagem suja e embriagada que voava ao vento dos caminhos. A escora dominicana fortalecia Roma, satisfazia-lhe os anseios teocráticos e dava-lhe conforto no embate com Frederico II. Nunca a Igreja se havia assenhoreado das almas e dos corpos como de momento! Nunca a Igreja estivera a modos de vencer de vez o gibelinismo dos Hohenstaufen!

Frederico II, o estratego vitorioso de Jerusalém, o homem que tinha uma ideia nova para a Europa do tempo e para a Cristandade do porvir, assistiu de longe às revoltas locais da nobreza occitana contra o rei de França e ao contramando duma nova cruzada. Nesse interim se reforçou a Inquisição, com o fim da autonomia episcopal e a dependência do tribunal do clero regular, na ligação directa ao papa. O imperador por seu lado tinha o seu próprio périplo. Consolidava a organização da Sicília, alargava a tolerância nos estudos de Nápoles, com inquéritos aos estudantes do mundo muçulmano, estruturava o mando nas cidades lombardas, que lhe serviam de ponta afiada para conter Roma. Ao tempo que Luís IX armava a cruzada para se lançar ao assalto dos castelos pirenaicos, adjuvado já pelos frades de Domingos de Gusmão, esmagava Frederico II a facção do papa nas cidades do Norte. Já nessa altura se convencia que o seu destino era atropelar a paz, salvando o pêlo e os territórios. Se houve momento de descrença na vida deste homem foi este em que se obrigou a esmagar pela força os adversários. Ainda assim, viveu-o com o infortúnio na consciência e não com o fito posto no gâudio da vitória. As igrejas da nova idade perdiam a primeira seta de luz e iniciavam desgovernadas os baldões do naufrágio.

Atento ao que se passava na Provença, desgostoso com o destino dos castelos pirenaicos e da nobreza local, preocupado com o poder da casa real francesa, em avenças directas com os exilados cátaros na Lombardia, decidiu levar a contra-cruzada aos Estados do papa, avançando pela Itália dentro. No quadro das lutas que então afectavam a Europa, esse esticão era o único que lhe parecia susceptível de valer uma surpresa. E segundo ele apresentar uma novidade era naquele caso fazer adiantar um projecto ou pelo menos mantê-lo vivo. Nos fluxos desencontrados daquele momento, tão tensos como equilibrados, a desgraça era desaparecer.

– Enquanto os cruzados do rei de França não vêem empacho para talar o que não lhes pertence, é mister que alguém ponha mão no capitão de tantos logros.

E foi postar-se com as tropas na cercadura das terras de Roma, ameaçando deixar o papa incomunicável. Esperava desse modo abrandar a cruzada nos Pirenéus, aliviando a pressão de cima dos heréticos, e obrigar o papa a abandonar os métodos do tribunal da fé. Para a mentalidade do imperador, temperada no convívio letrado com judeus e muçulmanos, era impensável que a Igreja estivesse a entrar na abjecção de forçar a consciência humana através da inquirição repressiva.

– É a própria missão da Igreja que morre afogada no fogo e na tortura – dizia ele.

Por um instante o braço de ferro entre a Igreja e o Império equilibrou-se. Dum lado estavam as tropas do rei de França e da casa de Anju; juntavam-se-lhes os frades pregadores de Domingos de Gusmão, que eram os olhos e as mãos do papa. Do outro estavam os cavaleiros laicos do imperador e a fradulagem menor que via no papa o Anti-Cristo em pessoa. Cruzada e contra-cruzada, guelfos e gibelinos cruzavam a Europa à procura de agarrar o tempo e fixar a marca.

Conseguiu o papa furar o cerco, ao mesmo tempo que os cavaleiros da Occitânia iam somando derrotas, acabando acantonados no pico inacessível de Montségur. Não restou ao imperador senão retirar para as cidades do Norte e depois para a Sicília, onde podia retemperar forças e ter a ilusão da novidade que doutro modo lhe fugia.

Gregório IX sentiu-se com força para pensar em nova excomunhão de Frederico II. Às vitórias contra os heréticos nos Pirenéus e aos sucessos contra os avanços do imperador nos Estados do papa, somava-se ainda o triunfo do partido anti-imperial em Jerusalém, com a expulsão dos homens do novo Barba Ruiva e sua substituição por barões fiéis a Roma. A hostilidade entre Islão e Cristandade recomeçara e os Aiúbidas do Egipto, desejosos de recuperarem o que noutras condições haviam cedido, estavam a recrutar corpos de escravos turcos para lançarem o assalto final à cidade do Santo Sepulcro, depois de razias devastadoras no litoral.

Veio a nova excomunhão contra Frederico II. Recolheu-se este como outrora à torrinha duma das suas alcáçovas do Mediterrâneo. Deitou os olhos à agitação das águas e fez o balanço da situação. O caso diferia muito da onda de esperança que o tomara no regresso do Oriente. Jerusalém ia em vias de se perder; os bogomilos do Ocidente estavam reduzidos a um pico de refúgio; as tropas da Santa Sé faziam estragos em toda a Itália; o tribunal da Inquisição, de geolhos untados, marchava por muita Europa; o partido do papa pagava agitadores eficazes para fomentarem a revolta nas cidades da Lombardia e o mal-estar no Sul. Mil fogos ardiam no horizonte, qual deles mais sisudo e preocupante. As próprias igrejas novas, de pedra rendada, fechando na luz do céu as ogivas finas, lugares de harmonia e de paz, pareciam agora, à visão carregada daquela tormenta escura, mausoléus sinistros que um engenho diabólico, chegado das entranhas da Terra, não tardaria a abater.

Ainda assim, Frederico II não era têmpera que se deixasse anular. Mais longânime que pressuroso, deixou ferver em lume curto o desespero. Depois, activo e célere de espírito, não tardou a reagir. Pensou de novo redigir uma carta ao papa, desta vez ainda mais extrema. Usando palavras e cogitando ideias estava em terreno de eleição; visionou por isso uma contra-ofensiva fulgurante, capaz de dar ao império uma avançada feliz. Depois de apontar os erros do clero e do papa, apontaria como saída e termo do conflito o fim do papado – nada menos que isso – e a confiscação dos bens da Igreja pelos príncipes europeus. Os erros eram os do passado, acrescidos no presente pelo pânico em que a Igreja estava a mergulhar vastas regiões da Europa central. À riqueza e ao orgulho, juntava-se agora uma crueldade ímpia. A Igreja, que enriquecera com um título de excepção, recusando pagar tributo régio, aparecia agora munida duma autoridade que era o resultado dum regime de terror.

Frederico II estava convicto que a Igreja, tal como Inocêncio III a erguera e os seus sucessores a desenrolaram, não tinha fôlego para viver. Uma Igreja que ganhava ascendente através duma cerimónia em que gente honesta e pacífica, de espírito bem intencionado, era reduzida a cinza numa fogueira macabra pela simples razão de divergir no entendimento das Escrituras, era uma Igreja sem razão de existir. Bastava um piparote de dois dedos para a desmontar. Nada percebia do mundo real, esse que ia de Salamina a La Valeta, onde as religiões e as Igrejas desde sempre haviam convizinhado.

– Por força há-de ser este o modelo futuro duma Europa paciente, que só demora tempo de mais a brunir e civilizar – afirmava ele.

Acreditou por isso que as suas palavras iriam ser o sopro bastante ao derrube da frágil e perniciosa instituição que enriquecera à margem da lei e ganhava poder por meio do mais danado horror. Cogitava-as no coração do mundo antigo, essa Sicília que ele porfiava em ver como porta de entrada da novação e corredor de saída do antigo. Voltou-lhe a crença de que a nova Europa não eram apenas tâmaras, bananas e cana-de-açúcar; nem tão pouco seda, tafetá ou chamelote; era outrossim a ideia de que nada nos costumes da comunidade podia voltar a ser como no tempo de Alexandre III ou Inocêncio III. Gregório IX era pois para ele excrescência inútil e serôdia. Pobre dele, que não fazia ideia do que lá vinha com Martinho IV, Bonifácio VIII, Clemente V e João XXII.

Escreveu a carta e logo a enviou ao papa. Entretanto Gregório IX já não era deste mundo de ódios e no sólio papal pontificava Inocêncio IV, ainda mais resoluto no propósito de vencer o império e consolidar a nova autoridade de Roma. Frederico II por sua vez estava disposto a levar ao limite a luta contra o papa. Apresentava preto no branco a dissolução do papado e a confiscação dos bens da Igreja. O papa, ao instituir o auto-de-fé, era pouco mais do que cabeça de malfeitores; a riqueza da confraria, por sua vez, com o esbulho do fisco civil e a imposição obrigatória do dízimo, apresentava-se tão ilegítima e escandalosa como o roubo descarado duma casa. O imperador sabia que o papa era ali uma razão aparente e que os destinatários certos daquelas palavras eram tão-só os príncipes da Cristandade. Por isso propunha para breve uma assembleia de reis, para julgar e destituir o papa, decidindo ao mesmo tempo a sorte a dar aos bens do clero.

A luta entre gibelinos e guelfos voltava a tocar o ponto perigoso em que estivera no tempo do primeiro Barba Ruiva, quando Alexandre III tivera de fugir de Roma e refugiar-se em França. O próprio imperador teve consciência da identidade das situações. Só que desta vez as diferenças eram para ele superiores às semelhanças.

– Antes tratava-se de substituir o papa, agora de lhe acabar com o lugar.

A visão estratégica da família Hohenstaufen mudara muito em oitenta anos. Fora determinante a sicilianização do grupo e depois a nova experiência no Oriente. Do périplo ficara um plano geográfico mundial e a certeza de que o porvir não passava pela exclusão. O mundo mediterrânico era um embutido de religiões e de etnias em convívio permanente, num fio ininterrupto, e da diversidade e da constância da mistura é que tirava superioridade e grandeza. Era mister alargar o modelo à Europa, que estava ainda a acordar da idade bárbara, saltando das primeiras florestas do degelo para a idade luminosa do comércio e da vida do espírito.

Ora o papa de Roma, querendo fazer figura de primeiro e indiscutível magistrado da Cristandade, não temendo sequer impor-se pelo terror mais cruel e repulsivo, era o primeiro obstáculo a esse tropel civilizador que batia de manso à porta.

– Acabar com o papa não é um problema meu; é uma urgência do tempo – repetiu ele por essa altura aos que lhe pediam explicações para uma atitude assim recalcitrante.

Voltaram a acordar no espírito do imperador as esperanças que o bafejaram como tépida viração de Primavera na época da sua ida para o Oriente. Os príncipes da Europa, quando leram a carta do segundo Frederico tocaram de perplexidade os beiços. Alguns, longe dos fluxos civilizacionais que se jogavam no mar do meio, próximos dos antepassados trogloditas, vestindo pele de urso e comendo carne crua, vivendo em castelos de pedra que pareciam grutas do Dilúvio, entregando-se à carnificina da montaria, quando não da guerra dos feudos, não alcançavam as concepções civilizadoras do imperador; em todo o caso, na sua discrasia bronca, percebiam que a Igreja era uma instituição rica em demasia e que só beneficiavam com aquela doida ideia de deitar mão aos bens do clero. Enriqueciam à tripa-forra, ao mesmo tempo que limpavam da córnea do olho o pintelho incómodo, que lhes tolhia o movimento livre e os obrigava no confessionário, com palavras intoleráveis e humilhantes, a baixar a cerviz. Outros, mais próximos da experiência pessoal dos Hohenstaufen, mais instruídos e habituados às correntes da cultura, entendiam as razões fundas que por ali corriam.

Por um momento o papado tremeu, amedrontado pelo cerco civil em que o império o queria cingir. A insurreição dos príncipes contra a Igreja podia acontecer a todo o momento, sobretudo quando estava em jogo um tão largo e cobiçado tesoiro. Inocêncio IV devaneava sem freio, noite e dia; já se via atacado por uma larga coligação de senhores. Letrão era uma fusta rota, a meter água, pronta a ir ao fundo. – E logo comigo – queixava-se ele aos próximos, já se tomando como o derradeiro papa da História. Deu em desconfiar de tudo, prevenindo felonias e surpresas. Depressa percebeu que para abafar estragos não lhe bastava uma atitude de resolução; precisava com urgência, além de ocasião, duma armadilha fácil e fatal. A oportunidade depressa chegou com a capitulação de Montségur e a submissão definitiva de Raimundo VII ao rei de França, amparo seguro naquele transe. Luís IX, pelas tradicionais rivalidades na Lorena com a Germânia, era o único esteio certo naquele transe.

Ao invés, Frederico II recebeu a novidade da queda da cidadela com o choque equivalente ao embate violento dum maço de pedra. Era abalo esperado mas ainda assim rude e de muita mossa. Titubeou. A pira que na base do formigueiro cátaro se erguera, cremando uma fila interminável de inocentes, superara tudo o que se podia esperar.

– São os primeiros picos em flecha das novas catedrais que assim se partem – comentou depois com desânimo, quando conseguiu arrumar as palavras.

Assim como assim, a queda de Montségur teve a equilibrá-la no outro lado do mundo as investidas dos Aiúbidas contra Jerusalém. Fortalecidos por novas levas de mercenerários, desvinculados de quaisquer avenças com o poder franco na cidade do Santo Sepulcro, os descendentes de Saladino, senhores do Cairo, preparavam-se para reocupar a cidade e varrer o partido anti-imperial do reino de Jerusalém. Pairavam no ar os derradeiros fumos de agonia do auto-de-fé de Montségur, ouviam-se ainda entre Cila e Caríbdis os gemidos de aflição dos supliciados, quando a cidade da Palestina caiu nas mãos dos invasores, acabando saqueada num dia limpo e quente, que fazia tristemente recordar um outro do passado. Uma desfeita assim para o papa, no coração da Cristandade,  não servia porém de prémio ou de consolo para o imperador.

– Depois dos picos em flecha, são os vitrais que estalam – reflectiu merencório. – Escorre sangue no interior das novas igrejas, em lugar de luz colorida.

A concepção do mundo com que Frederico II sonhara perdia-se sem remédio. O tempo de Inocêncio III, que até aí parecera revoluto, regressava em força, ainda mais impositivo. Era adstringente, mesmo que anacrónico. A Europa vivia de novo na barbárie e na escuridão, senhoreada por um magarefe sanguinário. A Palestina por sua vez atravessava o desnorte duma reacção descomedida. Os Aiúbidas do Cairo e de Damasco, descendentes dum chefe lendário que fazia lembrar a lhaneza do Califa Omar, estavam a ser ultrapassados pelas ondas dos mercenários arregimentados para a luta contra os francos. Os novos corpos de guerra não tinham memória do cavalheirismo que cristãos e muçulmanos haviam procurado desde o tempo em que Ricardo Coração de Leão assinara tréguas com o sobrinho de Nuredine e que havia levado na geração seguinte à inovadora expedição de Frederico II. Tudo o que procuravam eram ser expeditos e eficazes; a jihad, palavra mobilizadora das primeiras gerações da resistência, que requeria oração e filosofia, era agora substituída por um critério material estrito. Os mercenários lutavam por dinheiro, não por uma ideia e menos ainda por uma espiritualidade. Para ajudar o dano, corria que Luís IX, resolvida a questão da heresia, só pensava  numa cruzada aos lugares santos que repetisse os feitos de Godofredo de Bulhão.

A nova cruzada de Luís IX era um desforço para o papa. Ainda assim o real problema de Inocêncio IV não estava em Jerusalém mas na Europa. Chamava-se Frederico II.  Para o estraçar necessitava dum ardil, além de muita resolução e alguma conjuntura. Ao tempo em que o rei de França acalentava no íntimo a partida para a Palestina, decidia ele tomar medidas. A primeira foi encenar um concílio para a cidade de Lião, dizendo Roma ameaçada pelos avanços do imperador. Conseguiu assim a sua deposição numa reunião em que o clero fazia a vez de juiz. O novo Barba Ruiva perdia o título de imperador, o que pouco lhe bulia com a índole folgazã e civilista. De resto, quando avançara com uma reunião magna de príncipes cristãos para acabar com o papa e expropriar os bens do clero não esperara nada senão a deposição.

Uma vitória assim formal não chegava; um homem como Inocêncio IV, que além da ganância e da retórica tinha a perfídia do castigo, precisava de mais, muito mais. Para bem dizer, os pesadelos que o visitavam só batiam a asa negra para longe do cabeçal quando soubesse Frederico para sempre arredado do mundo. Arrolou primeiro um par de birbantes para espetarem um bulhão no peito do imperador. Falharam. Vieram depois outros ensaios com o mesmo figurino, sempre inconsequentes. Por fim, até um médico da corte, subornado por uma bolsa de oiro, seduzido ainda por vagas promessas de glória, foi recrutado para envenenar o indesejado. A conjura foi desfeita por um triz, no derradeiro momento, quando tudo estava a postos para a última cena.

Ao mesmo tempo que isto assim acontecia, Frederico recolhia-se ao seu espaço inicial, entre Brindice e Palermo. A Apúlia, debruçada sobre o mar Jónio, na vizinhança próxima da Grécia, valia nele uma varanda pulverulenta onde podia desfraldar o gonfalão do sonho. De lá partira para a Palestina nos bons tempos em que pensara o passado devoluto e pronto a ser substituído por uma novidade. Por lá compassavam ainda os discípulos de Joaquim de Flora, arautos duma nova comunhão. A Sicília por sua vez era o tabuleiro de marfim, onde clamavam os ecos da poesia de Teócrito e dos mistérios de Pitágoras, além de ser a galé vigorosa, a vogar no seio do mar, a meio caminho da Europa e da África, tão muçulmana como cristã.

Incapaz de impor à Europa a nova idade em que tanto acreditara, Frederico aferrolhava-se em casa. Outrora, quando era o espanto ou a maravilha do mundo e os inimigos o temiam como um flagelo do céu ou do inferno, a sua agilidade fizera-se tão modelar que por todo o lado lhe davam o cognome de Leopardo. Era bicho tão elegante como sagaz e exótico; fitava com olhar magnético, mais intenso e penetrante que uma flecha de catedral. Agora, derrotado e escorraçado para a extremidade do continente, pouco visto e pouco falado nas cortes do Norte, parecia mais um galo depenado, de gelhas caídas, que um felino de porte nobre e selvagem. Perdera a elegância, se é que a tivera, e a estranheza; em seu lugar ganhara capoeira e desilusão, miopia e fleuma. Passara a fronteira dos cinquenta anos e estava mansarrão e feio.

Perseverava apenas na sagacidade. Aí era igual ao passado, ou mesmo superior. A curiosidade dos primeiros anos, quando aprendera num repente o árabe e logo depois o grego e o hebraico, não a perdera, antes a adiantara. Continuava a cultivar o gosto pelo estudo e pela leitura.

– Um homem sozinho, armado com um livro, vale mais que um grande exército – insistia.

Rodeava-se de homens cultos, que mandava vir de África e da Ásia. Averróis, o Cordovês, que morrera não há muito, e Maimónides, cujo tirocínio se fizera com o de Córdova, estavam a ser traduzidos em latim. A separação da fé e do saber, princípio muito estimado pelos dois filósofos, era para ele o axioma duma era de tolerância e conhecimento, não de incredulidade e fereza. O mesmo se passava com os poetas, a quem recebia como arautos do reino do amor, esse a que o Evangelho fizera a primeira reverência séria. O mundo sem a comoção dos poetas era estéril e frio; nunca sairia do isolamento primário e da incompreensão. Ele próprio escrevia canções, inspiradas nos poetas árabes e nos pares provençais. Sentia-se nesses instantes Salomão a cantar a graça e o amor na lira de fogo, ao lusco-fusco. E depois de Guilherme da Aquitânia e dos primeiros occitanos, o seu cancioneiro foi o primeiro na Europa que cantou em língua vulgar. E com a triste queda de Montségur, último bastião dos trovadores meridionais, a corte de Frederico passou a ser como disse Dante o centro da cultura poética na Europa.

A par disto, que era esplêndido, Frederico mostrava inquietantes sinais de decadência. A benevolência exemplar de que sempre dera provas, sobretudo nas coisas do espírito, começava a ter adicionais dignos de riso ou de desdém. Fazia-se por exemplo acompanhar dum serralho de mulheres jovens. Adoptara o costume no tempo em que convivera com os sultões muçulmanos do Cairo e de Damasco, mas só agora o alardeava com afectação. Por todo o lado, fazia questão de ostentar o harém, espalhando aos pés as dezenas de mulheres que tinha a cargo. Às vezes parava numa localidade só para gozar da ocasião de dar espectáculo. As mulheres deitavam-se em coxins de seda ou sentavam-se em tamboretes de pele, tocando tiorba ou alaúde. Quando assim as via acolhidas e erradias, melancolizava. Mandava entrar então, pela mão dum alto e azulado núbio, meia dúzia de adestrados leopardos que se vinham postar, lânguidos e domésticos, lado a lado com as mulheres. Enquanto estas lhes acaraciavam as manchas do lombo, ele deixava correr os olhos calmos pela cena. A doçura dando a mão à ferocidade sossegava-o.

– É melhor que contemplar as ondas do mar – sumariava ele.

De resto todo o exotismo o tocara desde sempre. Já nos tempos da mãe, Constança de Sicília, de quem herdara a têmpera de meridional ruivo, era conhecido pelo gosto invulgar do imaginoso. O exotismo era para ele o avesso do mundo a que só o talento podia aceder. Desvelar o reverso das coisas era como inventar o mistério da noite estrelada depois de haver apenas a banalidade da luz do dia. Em tempos quisera fazer do novo século o avesso do passado recente. Falhara mas não perdia o apetite pela reviravolta do espírito que era a ilustração do presente e a invenção do futuro.

Por isso, além do harém, trazia sempre consigo um circo de animais extravagantes. Punha um especial cuidado na promoção e no entretém desse jardim. Mandara vir camelos e jacarés do Nilo, depois de se ter aprovisionado nas areias de Tunes e no sertão de Ceuta de macacos, víboras, leões, gazelas e girafas. Quando se fartava do serralho, entregava-se ao espectáculo pitoresco dos monstros. Adorava ver a surpresa dos contemporâneos diante dos bichos estranhos, mas aquilo que de sobremodo lhe agradava era passear sozinho por entre as gaiolas de ferro; entregava-se à contemplação dos trejeitos naturais da vida que ali se sucediam na máxima espontaneidade, ao mesmo tempo que meditava sobre os meandros da criação. Vinha-lhe então ao espírito a ideia de criar uma ciência teratológica, que fosse uma cachinada à inconveniência de Deus e um elogio da anormalidade. Estava ali um Darwin em botão, com menos convencimento e mais sainete.

Mas bestiário à parte, melancolia esquecida, Frederico estava ainda capaz de pensar o mundo. Protegia-se das investidas sorrateiras do papa, que não desistia de o mandar de presente ao Demo, e usava a inteligência estratégica que lhe restava para salvar das marradas frias do Setentrião o mar do meio, que era a sua morada natural, além de ser o seu mimo cerúleo. Assim, quando Luís IX, mancomunado com o irmão Carlos de Anju, um facínora que se tornara no novo Simão de Monforte da Provença e da Occitânia, tornou público o propósito de passar à Palestina para repetir os feitos do tempo de Urbano II, Frederico escreveu-lhe a dissuadi-lo da empresa. Como o rei de França não lhe deferisse o requerimento, escrito com toda a civilidade em papel azul, não se importou de mandar as galés ao Cairo para dar a nova ao sultão.

– Já basta a vileza de Montségur! – exclamou, quando lhe pediram os motivos duma tal atitude.

Tinha por anacrónico qualquer tentame na Palestina que não tomasse por ponto de arranque as avenças de que outrora dera exemplo. Demais, qualquer agitação no frágil equilíbrio dos Estados da região podia levar a perturbações de monta, com consequências incalculáveis. O desembarque nas plagas do Oriente dum exército franco com cerca de cinquenta mil homens, mostrando intenções evidentes de hostilidade, ia trazer reacções adversas entre os moslins, rasgando qualquer trégua. Estava visto que o declínio e o isolamento irremediável das praças europeias não tardaria a chegar. A idade de Urbano II estava saturada e prestes a tomar fim. Não tardaria que o último Franco viesse a nado, de sacola vazia, da garrulice da Palestina. Lástima, e das piores, era que o tempo de Inocêncio III não ruísse também ele na Europa, despachando para a falperra do Demo todos os lambões e facinorosos que conhecera.

O mundo não seguira o trilho que ele, Frederico, apontara, mas isso não significava que ele tivesse de seguir o mundo. Estava só mas claro. Guardava uma dose de lucidez que lhe permitia ler num lance rápido o estado do jogo, percebendo a peça que de seguida ia ao chão.

Não tardaram os acontecimentos a justificar o receio de Frederico. Luís IX, retomando as perspectivas do passado, estava decidido a deitar as mãos à gorja do Islão; já dava a religião de Maomé por morta. Não tinha ambição nem dentes para menos. Aos que replicavam que isso era tarefa irrealizável, ele sorria e apontava o alto.

– É mister apenas ter predestinação do Céu e secar as fontes em que os nojosos bebem.

Desembarcou por isso na foz do Nilo disposto a esquartejar o Islão. Tomar o Cairo era o objectivo imediato daquele aparato militar. Recusou qualquer diálogo com as forças do sultão, que agonizava sem poder respirar num palácio da capital e apoderou-se de Damieta, um porto de mar, quase sem combater. Já se via senhor do Egipto, iniciando a partir do Nilo a recristianização do norte de África e a conquista definitiva da Palestina. Era a embriaguez da cruzada na versão mais delirante e barbaresca. Desceu pressuroso os canais do Nilo e foi cercar Mansurá, no interior do país, a meio caminho do Cairo. Mas, atolado nas lamas do rio, sofreu a pressão dos mercenários turcos que lhe massacraram a elite do exército e lhe cortaram a retirada para norte.

Quando percebeu que já perdera naquela aventura mais de quarenta mil homens, não lhe restou senão a capitulação sem condições. Nas masmorras de Mansurá trocou a libertação contra a entrega de Damieta e o pagamento dum pesadíssimo resgate. Afinal a predestinação, pelo menos a dele, era léria grossa; e em vez de estancar, nutria com leite e mel as fontes do Islão.

Enquanto Luís de França vivia o seu martírio de santo de marfinite, Frederico da Sicília rendia a alma na Apúlia. Tinha cinquenta e cinco anos e fazia figura de velho. Já nos tempos da entrada em Jerusalém alguns observadores, levantando a mascarilha da jovialidade e da elegância, desconfiavam do aspecto do imperador. Um chegara a dizer que caso se tratasse dum escravo não daria por ele uma moeda de prata, quanto mais uma cidade. Perdera o cabelo cedo e engordara um tanto com a mania de repetir o pitéu de Platão, debatendo pela noite dentro Amor e inspiração. Ainda assim, era esquecer o fogo ruivo que lhe ardia nos olhos e no pêlo e que chegava para incendiar um palácio, quanto mais um mercador de escravos. No momento da morte, a braços com uma diarreia sanguinolenta que nenhuma cola drainava, lembrou-se do papa e suspeitou as entranhas envenenadas. O lastimável estado em que se finava não o revoltou porém, antes o reconciliou. Era a conclusão natural duma contenda que tivera dum lado a cobiça desmedida do mando e do outro o talento da cultura e a crença na justiça. Assim como assim, também ele andara metido em vilanias e guerras que chegavam para fazer um diabo, quanto mais para tirar toda a justeza a um homem. Quantas vezes cruzara os Apeninos de montante em punho, decepando muita mão pelo caminho. No fundo era igual aos outros, só que em vez da ufania impante tinha a consternação dos actos. Os outros eram mentalmente servis, apedeutas de polpa, enquanto ele se mostrava uma constituição robusta de pensamento, muito anos à frente do tempo em que calhara deitar fateixa.

Agonizante, quis que lhe vestissem uma pobre túnica de beguino conventual. Queria morrer como houvera de ter vivido. Ao contrário do papa que levava seda, oiro e jóias para o mausoléu, ele queria apena uma estopa sem valor, como a dos pobres heréticos que subiam quase nus ao palanque da fogueira. Depois pediu que o levassem às ameias da alcáçova. Voltava costas ao pequeno mundo de cristal que nas salas do castelo carpia a sua partida. De tudo se desinteressava; as camareiras do harém ou os monstros do circo, que ainda há pouco eram a sua porfia, não lhe mereciam agora um pensamento. A única coisa que queria era olhar mais uma vez o céu que o embalara no sonho de melhorar a Europa. Estava feliz e pronto para partir em paz. Vestia uma pobre túnica de recluso e com ela queria padecer e ser deitado no moimento. Era a sua resposta aos que o acusavam de impiedade mas era também a melhor confissão de que muito errara no fio dos anos.

Eis aqui um homem que morreu excomungado, privado de conforto e extrema-unção, em fama de ateísmo e incredulidade, e ainda assim merece a palma humana do heroísmo. Por isso, os serviçais do Reno e do Ródano, que esperaram por ele nos tempos da cruzada como por um sacerdote laico, um Percival que lhes trouxesse do castelo de Lohengrin o cálice do Graal e os pusesse a salvo das arremetidas danadas de Roma, não puderam acreditar na agonia e morte dum espírito assim sonhador e ideal. Quando a notícia lhes chegou, voltaram a cara à notícia e riram com gosto.

– Um anjo não morre de caganeira! – exclamaram.

E logo se criou a célebre legenda de que o imperador se refugiara na gruta do Tempo para aí descansar das penosas fadigas da vida em que se estafara. Estava deitado numa távola de pedra, de olhos cerrados, e enquanto respirava o seu pêlo de fogo não parava de crescer, enrolando-se no pé da mesa. Um dia, o imperador, restaurado dos cansaços, acordaria para se apresentar em toda a força aos homens, vencendo a desordem e a maldade. Chegaria então ao mundo a idade de paz e justiça com que o Hohenstaufen sempre sonhara.

Depois da morte de Frederico o papa respirou de alívio. O braseiro de Montségur, a crueza da Inquisição nas mãos dos pregadores de Domingos de Gusmão, as avançadas escandalosas contra a corte do imperador haviam sido os dragões castigadores do gibelinismo. Um decreto pontifício deu a conhecer ao mundo com ufania declarada a morte do excomungado. O papa, falando do triunfo de Roma, convencia-se que a facção gibelina estava reduzida a cinza com o desaparecimento do rei de Sicília. Consumida no hálito de fogo de três monstros, espargia apenas ao vento os resíduos mortificados.

Mas não era assim. Uma tendência tão necessária como atreita ao equilíbrio do mundo da época não podia ser apagada por um traço de pena do alvedrio dos homens. Conrado, filho da segunda mulher de Frederico II, Iolanda de Brienne, sucedeu ao pai como rei da Sicília e pegou no ceptro das ideias imperiais para atacar o papa. Era um jovem de vinte e dois anos, concebido nos almadraques de Jerusalém, que tinha no coração o ardor do projecto imperial em momento de apogeu. Mostrou de entrada duas urgências: fazer um herdeiro, assegurando a sucessão, e atacar Roma, para onde o papa regressara em confiança depois da morte do imperador. Esperava mostrar que o partido gibelino estava vivo e que a bula papal era uma fraude. Acabou vencido e excomungado, morrendo pouco depois de febre paludosa, contraída talvez nos pauis do Tibre ou da Toscânia por onde andara em campanha.

Ainda assim, no momento da sua partida o partido gibelino reconstituíra-se na maioria das cidades italianas e alastrara mesmo à Provença, onde os ressentimentos contra o papa e o rei de França eram combustível inflamável para qualquer revolta. Por lá andava Carlos de Anju, o cadete de Luís IX, a batalhar pelo irmão e pelo papa, que não tardou em fazer dele um promitente caudilho guelfo. A frente bélica contra o gibelinismo  tanto precisava de patíbulo fero como de esperteza vil, como ainda de briosa impaciência por comandos e riquezas.

Conrado deixou um recém-nascido, Conradino, que logo foi feito rei da Sicília. Por precaução e cuidado foi enviado para a Baviera, onde tinha parentes e apoiantes. Ficou como regente na menoridade e ausência, um meio-irmão do pai, Manfredo, o grande Manfredo, filho de Frederico II e de Bianca Lancia. Manfredo era um façanhoso rapaz de vinte anos, que se fizera émulo do meio-irmão nas operações de campo do imperador, no tempo em que este, ágil e felino, forçava os ricos e vastos Estados do papa na Itália central. Percebera então a urdidura das ideias do pai, bebendo-lhe a pureza do saber, mas aquilo que melhor herdara dele fora turgescência e compostura. Era afinal o homem indicado para aquecer a facção gibelina, levando-a a reagir aos rebates do infortúnio. E durante um lustro este animoso capitão bateu os Apeninos, entrou nas cidades da Toscânia, atravessou o rio Pó, retomou força na Lombardia, levantou homens na Provença, animou e ressuscitou o partido gibelino em muitos lugares, atrevendo-se a dar batalha aos exércitos do papa. Em menos de nada se  tornou para a Igreja no daninho demónio de fogo a escalrachar da seara dos homens.

Em 1258, correu a notícia de que Conradino morrera nas florestas da Baviera e que o trono da Sicília estava vacante. Logo Manfredo foi feito rei da Sicília e visto como o bravo capaz de vingar o pai e derrotar o papa. Contingentes de mercenários germânicos atravessaram os Alpes para se juntarem à cavalaria sarracena que servia de linha avançada às investidas de Manfredo. Este, além de intrépido, era generoso e culto. Aprendera com o pai a vernaculidade do saber clássico e herdara da mãe uma curiosidade sem fim.

O novo papa, Urbano IV, não hesitou em chamar Carlos de Anju, fazendo dele senador de Roma e chefe declarado dos guelfos. Veio o cadete do rei de França para Itália com a sua hoste e tomou no setentrião algumas localidades, exterminando a facção gibelina. Quando chegou a Roma o papa deu-lhe as insígnias de senador, prometendo-lhe uma surpresa para daí a dias. Não era a santidade de pau e caruncho, mas a coroa da Sicília, o que ia dar no mesmo. Há muito que Manfredo era para o papa um bandido condenado ao baraço. Tratava-o como gramínea peçonhenta, que só precisava de braço competente para dar cabo dela. Carlos de Anju não era santo mas para lá andava caso rachasse o Diacho da Sicília. Se os soldados de Montségur tinham a bem-aventurança eterna garantida por haverem conduzido ao fogo duzentos e cinquenta almas cujo único pecado era cogitarem em modo próprio a inocência de Jesus, bem podia Luís IX ganhar uma auréola de metal e o irmão de Anju uma coroa redonda de rei.

Iniciou de imediato Carlos a campanha da ocupação do reino da Sicília, que na época adregava a poucas léguas da cidade de Roma. Manfredo batia rotas por Cápua, cerca de Nápoles, que fizera, com as curvas voluptuosas do Vulturno azul, as delícias de Aníbal no tempo da segunda guerra cartaginesa. Encontraram-se as duas hostes em Benevente, na Campânia, a um passo da Apúlia. Com arneses retalhados e montantes lascados por tanta refrega, os homens de Manfredo foram ao chão. O encontro deu em massacre e o filho de Frederico deixou a pele no campo. Em pouco tempo toda a ponta da Itália estrangulava debaixo do arrocho dos Franceses. Carlos de Anju passava de seguida o estreito de Messina, avistava o Etna e iniciava o paulatino e sossegado passeio de conquista da ilha onde o grande imperador tivera os dias cumeeiros.

O papa dava o último alarme por bem vingado. A dinastia dos angevinos era o novo e imarcescível dragão que consumia em definitivo no leito das suas chamas os restos esbandalhados do gibelinismo. Os heréticos estavam nos fojos, mais medrosos que láparos em dia de caçaria; os moslins davam à sola, à espera de saltar na primeira galé que fosse para Tunes ou para Trípoli; os Percivais do Reno, os poucos que haviam escapado ao laço de ferro dos Franceses, andavam a monte, tresloucados e ardidos de fome e sono. Ao que corria, só tinham o loiro pêlo para se amortalharem nas pedras frias em que foragiam.

– Não tarda que por lá fiquem com a barba enrolada nas pedras – riam os cruzados franceses, lembrando com peçonha as profecias sobre o imperador.

Já os filhos de Domingos de Gusmão seguiam em devotas colunas na direcção da nova Occitânia, para levar aos infiéis o leito de Procustes e aos heréticos as fogueiras da danação eterna, quando se ouviu um novo rebate na Gália cisalpina. Andava por lá um imberbe de quinze anos, chegado a butes da Baviera, a instigar à revolta contra o papa. Era Conradino, o filho de Conrado e de Elisabete da Baviera, que apesar de criança se apresentava na Lombardia e no Piemonte para defender o projecto da família. O mirmilão alpestre, que trazia no cimo do elmo o peixe dos escravos em luta, ali estava, soltando das narinas em chamas uma nova energia libertadora. Apelava à rebelião, mostrando-se disposto a morrer como o pai e o tio à testa dum novo exército. A família fora dizimada pelo veneno, pelo bulhão, pelo laço do carrasco e pelo montante dos cruzados franceses, mas ainda restava ele, disposto a lutar e a fazer valer os direitos do império. Era duque da Baviera, rei de Jerusalém e agora da Sicília.

À voz vibrante da revolta, ressurgiram do chão novos sectários, que cobriram o norte da Itália e ao som de bombos e charamelas marcharam para sul ao encontro do usurpador. O rencontro deu-se nas faldas dos Apeninos, a nascente de Roma, perto de Áquila. A massa dos revoltosos, mais furiosa que depurada na forja onde se caldeiam os enganos das guerras, tendo à testa uma criança insofrida e inexperiente, foi punida com a derrota. Não restou ao neto de Frederico senão ser degolado em público. Tinha pouco mais de quinze anos e nenhuma filáucia. A vaidade é o vício dos vencedores como a doçura, mesmo temperada de revolta e insatisfação, é a virtude dos vencidos. Antes de morrer, deu consigo a pensar que as ideias e os títulos da família valiam muito mais do que a sua pobre e curta pessoa e passou-os por isso para o único parente livre, Constança da Sicília, filha de Manfredo e de Beatriz de Sabóia, sua prima-irmã.

Mais adiante verá o leitor o que esta Constança tem a ver com a história que aqui ando a contar. Bem se pode dizer que foi ela o primeiro pecado da nossa rainha santa, Isabel de Aragão. E por ser o primeiro não quer dizer que tenha sido o mais brando, porque nele afinal todos os outros acabaram por deitar raiz.


II. AS NOVAS MURALHAS


Entretanto, vítima da cruzada contra a Igreja cátara, o herdeiro de Aragão, Jaime I, ficou nas mãos do papa Inocêncio III. Era um menino imbele de oito anos, nascido em Mompilher, quando a confederação catalã-aragonesa se espraiava à vontade pelas areias do Mediterrâneo, até quase ao Piemonte. O pai, além de ter um dedo de simpatia pelo dualismo bogomilo, era muito dado à cortesia trovadoresca tomada de occitanos. Ao que se dizia, dormira uma única vez com a mãe e por engano. Pensava deitar-se com a amante de ocasião, castelã luxuosa e senhora de versos, e acabou no leito da mulher com quem nunca havia dormido. Desfeita a burla, nunca mais voltou aos mesmos lençóis. Ainda assim, foi o bastante para Maria de Mompilher encher e dar ao mundo o herdeiro da coroa, morrendo em Roma quando depois do descalabro de Muret andava a pedir por ela e pelo filho ao papa.

Sofreu o menino a desaparição do pai como um abalo de Terra e durante algumas semanas, preso nas masmorras húmidas de Carcassona, julgou-se destinado à morte e à ignomínia. Todas as noites era assaltado por sonhos glabros, que lhe arrepiavam o miolo da alma e lhe torturavam o pensamento. De dia, incapaz de comer, suava em febre as visões nocturnas. Demais quando se lembrava de que o pai morrera no campo de batalha e que nunca mais o veria diante de si, as lágrimas afloravam-lhe os olhos, correndo depois em fio pela penugem loira da sua cara de menino. Não percebia na inocência do pensar o porquê daquele acontecimento que o fustigava mais que escarmento do céu. Viveu essa época com um desespero que lhe vinha menos do medo interior ou da corrosiva previsão da morte, sempre à beira de lhe surdir da escuridão da enxovia, que da infâmia da prisão e da aburda sonegação do pai. Tinha idade curta mas mostrava ainda assim um destemor que se não era paixão era procura obstinada de sentido. Nenhuma jeremíada plangitiva, apesar do patíbulo da vida, apenas um asserto de certezas e uma crosta de medo no coração.

Veio por fim o acolhimento em Narbona, junto dos templários, que eram na disposição da época um meio termo entre o papa e o império. Ali esteve largo tempo, tomando ares e conversando com o bailio da Ordem sobre os aspectos pitorescos do Oriente. Desanuviava a película azeda do sangue e ginasticava a intrepidez. Tomava interesse pela geografia política do Mediterrâneo e punha gosto visível em ouvir as histórias que os velhos soldados lhe contavam. As preferidas rodavam em torno da figura de Saladino e da reconquista muçulmana de Jerusalém. Nesses momentos a sua atenção desprendia-se das palavras do interlocutor para pairar no exterior. Sonhava então com o mar que se ouvia por perto e com a possibilidade dum dia embarcar também ele para o levante à procura de reconquistar o que o grande Saladino arrebatara.

Outras vezes os professos falavam da fundação da Ordem por Hugo de Payans numa casa que ficava cerca do antigo Templo de Salomão. Outras ainda pretendiam deslumbrar, falando da sumptuosidade e da riqueza que por essas terras havia. – As valiosas jóias que por lá correm – diziam eles – são tantas como os calhaus que há em qualquer cômoro dos arredores de Narbona.

Nesses momentos o mais certo era algum dos soldados, ou porque fosse mais benévolo ou o agastasse tanta conversa, pegar na mão da criança e afastar-se com ela em silêncio até ao jardim da cerca, perguntando-lhe depois com mistério.

– Vedes esta rosa?

Contava então a história da rosa de Damasco cuja introdução na Gália se devia aos monges-soldados. Como por perto ficasse o laranjal não se quedava por aí e levava a criança a ver as singelas árvores sempre cobertas de rama verde e cuja flor branca libertava nos meses frios o aroma mais puro e inebriante que ainda se sentira no jardim da criação terrena. Era eflúvio que decerto descendia por varonia directa daquele outro que obrigara nossos primeiros pais à feia acção da desobediência. Gabava-lhe o monge assim a árvore e a fruta. Esta, mais viva que a luz dum brandão, tinha a cor dos primeiros raios da manhã e o sabor acre e doce da água do mar. Dizia-se que o sumo de tal pomo cerzia as feridas do corpo e sarava as gengivas. Trincar a casca assegurava ainda a longevidade e sartar num fio de linha os carroços secos era capaz de valer contra olhado mau. Também ela, a laranja, era quase desconhecida na Europa antes das viagens dos templários.

Mas estas conversas nem sempre lhe interessavam. Momentos havia em que um declive fundo tomava conta do espírito da criança, retraindo-lhe a atenção. Nesses instantes regressava em pensamento aos cárceres de Carcassona e às horas molestas que por lá colhera. Voltava-lhe um desconsolo que gelava a alma. Dormia agora sem carregos e comia com apetite no largo refeitório as pitanças condimentadas a pimenta e açafrão que os monges lhe serviam. Afeiçoara-se muito ao arroz com canela e açúcar que era uma das iguarias que sempre lhe serviam ao almoço da manhã. Começava a marinhar nos prazeres da vida, sem a protérvia dos príncipes, já que a sua vida continuava a baloiçar na linha fina dum bulhão. Assim bastava-lhe a recordação dos dias de Carcassona para destemperar a alma e mergulhar numa funda e inconsolável tristeza.

Às vezes não se continha e procurava explicações para as dúvidas que vinham do passado.

– Contai, senhores, a história de meu pai…

Julgava que homens tão atreitos a contar casos não se importariam de entreter com ele dois dedos de faladura sobre os estranhos eventos que haviam levado o pai a vasquejar na aflição da morte. Vendo silêncio e severidade, insistia.

– Por piedade, senhores, contai…

Os monges porém embuchavam e nada diziam. A cruzada de Simão de Monforte continuava ali ao lado a batalhar com os insubmissos. O barão de França estava feito conde de Toulouse mas a resistência da nobreza e dos burgueses – para nada avançar da força dos heréticos – estava para durar. Começavam a sentir-se as reviravoltas que haviam de dar de novo o ceptro a Raimundo VI, levando à fuga e morte de Simão. Neste quadro preferiam guardar silêncio, reservados e temorosos de tudo o que ali se adiantasse sobre assunto tão propínquo e escaldante.

Ainda assim o papa não esquecia a criança que guardava a cargo e de quando em quando lhe enviava um legado com palestra feita. A princípio veio de Toulouse um cisterciense de hábito branco, adjunto daquele Arnaud Amary que mandara de presente a Deus a população inteira de Béziers. De qualquer modo o homem de hábito branco e escapulário negro só falava o francês e por isso o jovem rei de Aragão pouco entendia das palavras que o homem lhe trazia.

Por fim o papa enviou-lhe aquele pregador inflamado, de estrela vermelha na testa, Domingos de Gusmão, que havia nascido cerca dos Pirenéus, na província de Logronho e que falava de criança um aragonês cruzado de navarrismos. Era o tempo em que o pregador batia as ruas de Toulouse, no quadrado do Garona, com o podengo açodado no flanco e o tropel das Companhias brancas no encalço. Muito tugúrio, muita loja, muito armazém do rio ficara por peneirar no momento em que se fizera a fogueira no portal da igreja dos Agostinhos e o conde de Toulouse, para não deixar coiro e nervos na masmorra, se viera humilhar em pelote diante da fúria castigadora do legado papal. Todos os dias se continuavam a desenterrar de arcas e lajes pergaminhos e alfaias que eram logo queimadas com rezas e benzeduras nas cercanias da catedral.

Com Domingos entendeu-se o rei de Aragão. Arengava ele em língua dedutível que os reis haviam de obedecer ao papa e que este era na Terra o semi-deus a quem qualquer senhor, fosse rei ou mesmo imperador, se via obrigado.

– Quando não… o castigo pertence ao Altíssimo e cai severo – ameaçava, aludindo veladamente ao caso do pai.

A figura do pregador pareceu a princípio, quando se lhe revelou, inofensiva e até cómica. Era fraco vulto, tronco magro e cara rapada, tonsura muito larga no círculo da cabeça, mãos finas, pele quase transparente, beiços carnudos e ondeados. Se lhe dissessem que aquele homem era um menino disfarçado de frade estaria na disposição de dar o benefício da dúvida, tanta era a incerteza que punha a mirar o sujeito. Mas depois, quando o ouviu e se habituou à arenga, percebeu que aquela figura tinha paixão, interesse e ameaça a mais para se poder lembrar duma máscara, quanto mais para saber brincar. Deixou-se pois ficar em silêncio, sem perceber bem a finalidade das alocuções. Ainda assim o cavalheiro incomodava-o e por isso nunca se atreveu a mostrar a boca da alma como fazia com os monges que lhe falavam dos limoeiros de Antioquia ou dos cedros de Beirute.

A situação no reino de Aragão complicava-se depois de tão inesperado sucesso nas várzeas de Muret. Com um rei de oito anos afastado da sede do reino, prisioneiro do papa e quase incomunicável numa alcáçova militar, com uma parte da nobreza dizimada e humilhada nos campos de Toulouse, não se esperavam no presente senão complicações. As facções da nobreza, acaudilhadas por nobres ligados por parentesco à casa real, começavam a disputar entre si poder e influência. A confederação ameaçava abrir rachas e naufragar. Um partido ferozmente anti-francês, muito crítico do papa, ganhava ascendente e continuava a advogar o auxílio aos revoltosos da Occitânia e da Provença. Capitaneado pelo conde de Rossilhão, Sancho Raimundo, tio-avô do rei, que tinha interesses directos na região da cruzada e todos os dias dava capa e escudela a heréticos foragidos, era um partido forte e pronto para um desforço. Do outro lado estava uma facção moderada, que defendia a neutralidade, tutelada por um outro parente do rei, Fernando, ligado ao clero e próximo do papa. Era clérigo de ordem monástica e governava abadia. Pouca monta tinha junto do ânimo revel de vassalos feridos no pundonor mais fundo por tão humilhante perda mas era o bastante para empurrar o reino para uma guerra interna, cujo desfecho seria decerto desfavorável a Roma dada a desproporção dos dois partidos.

O papa não viu outro remédio senão mandar regressar a Aragão o garoto que vivia na gaiola doirada de Narbona. O regresso do herdeiro de Pedro II apaziguou por instantes o dissídio que dividia o reino e levou a um acordo de princípio. Na menoridade do rei, Sancho ficava regente. Era assistido por um conselho de regência, onde Fernando se faria representar por embaixadores que advogassem a orientação que lhe era cara.

Começou então uma época nova para o jovem rei. Continuava ao cuidado dos templários, mas desta vez no castelo de Monzon, no reino de Aragão, província de Huesca, nos primeiros degraus dos Pirenéus. Antes, em Narbona, com o azul do mar por perto, os monges presenteavam-no com um exílio despreocupado, sem regras acerbas, porventura porque tinham consciência que a casa era um recurso de passagem. Agora, em Monzon, debaixo da tramontana fria, tudo estava regulado ao pormenor. Erguia-se à hora prima, assistia ao ofício religioso, almoçava e seguia com o coudel para a estrebaria a arrear montada. O resto do quarto de alva passava-o entre o trote e o galope dos exercícios em sela. No quarto seguinte vinham os trabalhos de armas, com o suporte do arnês e o incómodo do elmo. Ao meio-dia jantava e na hora terça folgava a sós um dedo, ou nem isso, deitando-se no almadraque se o corpo lhe pesava ou reptando com o menestrel que lhe ensinava alaúde e trovas. À hora noa conversava com os monges, que lhe contavam a sorrir casos do Oriente ou o punham ao corrente do passado de Aragão e Catalunha, dando-lhe a conhecer as comarcas e as povoações da vasta confederação. Depois, mal o ofício de vésperas cerrava portas, vinha o recolher e o silêncio cortado apenas, ao longe, pelas horas canónicas da noite.

Também desta vez, sucedia o rapaz melancolizar a ouvir os monges. As tristes recordações do passado tomavam conta da sua alma e ele vogava nas ondas angustiantes da escureza de alma. Muitas vezes sucedia as palestras prolongarem-se até ao lusco-fusco, o que acentuava a morbidez das recordações. A seu gosto, sem os apertos e as estranhezas que sentia ante Domingos de Gusmão, o rapaz voltava a soltar a língua e a perguntar pelo pai.

– Senhores, e meu pai, que lhe sucedeu?

Ao contrário do que lhe acontecera em Narbona, onde o silêncio era regra nunca infringida, os monges de Monzon não se furtavam por inteiro à resposta. Um dia falavam do grande exército que o pai reunira nos arrabaldes de Saragoça, mais de quarenta mil homens em armas; outro dia explanavam os direitos que a coroa de Aragão havia sobre os condados de além-Pirenéus; outro ainda, exaltavam a bravura do pai, que tombara em combate, glória suprema para um homem de armas.

Mas o rapaz insistia, nunca se satisfazendo com a prelecção. Crescera muito entretanto e os dedos das duas mãos não chegavam já para lhe contar os anos. Era monteiro e justador e sem deixar de ser taful e loquaz fazia-se assertivo e prestativo. Usava o saio de ferro sem a menor moléstia e galopava qualquer garrano, por mais bravio e disparatado, de gonfalão em punho, se necessário fosse. Mas à medida que medrava, subia também o interesse que punha em conhecer o infortúnio do pai. Faltava ainda apanhar muito caco para perceber o figurino completo daquilo que se passara às portas de Muret. As causas que estavam na origem da desgraça, por exemplo, ainda estavam cobertas por nevoeiro tão espesso que o entendimento por vezes se lhe anuviava de todo. E sobre isso os monges-soldados pouco ou nada adiantavam.

Uma manhã chegou à alcáçova um destacamento que se distinguia de todos os que por lá se viam. Em vez dos velhos sargentos de armas que em geral se apresentavam para render homens de partida para as fortalezas do Oriente, vinham na dianteira pagens e donzéis de armaduras reluzentes, com os balsões reais erguidos, onde se riscavam em fundo de oiro as riscas vermelhas da confederação catalã-aragonesa. Era o regente que se apresentava com a sua guarda real para falar ao rei.

Chegava para uma conversa particular, diferente das restantes que de quando em quando tinham lugar na sala de armas, junto do conselho de regência. Desta vez, o regente vinha só e pedia uma conversa privada com o rei. Conhecia a insistência com que o jovem abordava o caso de Muret e estava na disposição de lhe incutir na índole uma inclinação determinada. O regente era um tronco nodoso, de muita idade, com musgo branco a rebentar na cara e a correr para o peito; lembrava-se ainda o velho cortesão dos tempos em que os pais, Berengário e Petronilha, festejavam a união do condado da Catalunha e do reino de Aragão. Andara também metido na expansão da confederação no outro lado do Pirenéu e o irmão, Afonso II, pai do desgraçado que vivera a hora aziaga de Muret, fizera-o conde do Rossilhão, já na peugada de Narbona e Carcassona.

No momento em que o regente chegou a Monzon viviam-se as horas da revolta de Toulouse contra Simão de Monforte e do levantamento do jovem conde Raimundo VII nas cidadelas da Provença. Sancho Raimundo aprovava a rebelião tolosina e era mesmo o seu principal instigador. As primeiras armas que entraram na cidade pela poterna para os insurrectos eram dele. Não punha o corpo à vista como o sobrinho, o malogrado Pedro II, mas empurrava na rectaguarda, escorado mas igualmente indócil, o carro do revirete. Chegava pois o momento de conquistar o jovem rei para a causa que fora do pai e que ele agora patrocinava.

Falou-lhe primeiro dos laços de vassalagem que o condado tinha com a coroa de Aragão. Eram elos que o jovem rei destrinçava bem das histórias anódinas que os monges lhe contavam na hora noa. Desconhecia era a veemência com que o tio condenava factos e pessoas.

– Vilanagem e roubo, eis o que por lá houve – exclamou furioso, aludindo à morte do pai e à entrada de Simão de Monforte na capital pirenaica.

Depois não se escusou a falar do papa Inocêncio III, que já cá não estava, como se dum salteador de estrada se tratasse. O massacre de Béziers fora ordenado em seu nome. As fogueiras diabólicas de Minerve, Carrés e Lavaur eram acção sua. A queda de Toulouse fora porfia dele. E como se essa obra não chegasse para danar um homem para sempre, ainda soltara uma cruzada tão cruenta como casquinada de carrasco contra os pobres serviçais da Prússia, nas solidões geladas do Norte, e só porque andavam a baralhar o céu de Cristo com a mansão de Wotan e as santas com as valquírias. Aquele sujeito orava a Deus com as mãos tingidas de sangue inocente; era um criminoso vulgar e um vilão da pior sorte.

– Não esqueça el-rei que o papa é homem como nós e só vale pelo poder que tem. O seu Estado vale em tamanho, riqueza e homens de armas o do rei de França.

Baralhou-se o rapaz depois da lição do tio. A matéria era um imbricado mais delicado que loiça fina. Lembrou-se do semi-deus de Domingos de Gusmão e esteve um momento sem saber o que pensar entre dois modos tão contrários um ao outro. Assim como assim, sentia-se determinado a cogitar sobre o dilema. Não tardou em concluir que o pai morrera contra o papa, o que vinha a dar no mesmo do papa ter matado o pai. Teve um sobressalto. Aquilo pesava como montante descomunal de ferro mas aliviava o enigma que tanto o incomodara. A bem dizer, acabava de recolher os cacos do que sucedera por Muret. Tinha nas mãos a imagem do facto e podia mirá-lo de frente e de trás. Nada lhe faltava para perceber a estatueta grossa e feia do que fora a campanha do ano fatídico. Como era fogoso e tinha ímpetos de garoto rebelão, jurou ali mesmo vingar a derrota de Aragão e ir contra o papa e contra o barão francês que lhe roubara o pai. Era fogacho irreflectido mas esperado em moço que se vira atirado em tenra idade para enxovia lúgubre de Carcassona, enquanto o pai recolhia cadáver frio à terra natal.

Voltou o tio de novo para retomar com ele, em privado, a mesma fala. Vinha para reforçar os motivos de escândalo que haviam levado o pai a deixar o sossego de Saragoça. Estava ali o nó, cria ele, que podia animar o rei contra o partido dos Franceses, principal esteio do papa na tessitura de forças da Europa. Para o conde do Rossilhão nada importava tanto naquele tempo como assegurar o reviralho contra os Franceses e a reposição da influência de Aragão nos condados da Provença e da Occitânia. Formara a têmpera no tempo da expansão de aquém-Pirenéus, fora feito senhor na vizinhança de Toulouse, dera por lá tudo na observância dessa forma de vida. Nada no mundo valia para ele essa visão dum reino empoleirado no pico dos Pirenéus, rolando por ambos os lados da montanha como se esta fosse só uma escaleira de subir e descer. Aí temperara a fibra e fortalecera a durindana.

Depressa percebeu porém que não precisava de dizer palavra. O sobrinho enrolara bem o fio do discurso anterior e fizera com ele um engraçado enfeite. Mostrava-se animoso e destemido contra os cruzados e só parecia esperar que a charamela do arauto tocasse para se lançar à desfilada ao combate. Era bem o filho do ardido Pedro II que preferira deixar a pele na luta a regressar a casa de mãos vazias. Antes de partir, puxou-lhe o freio, para que não lhe sucedesse algum desastre.

– Cuidai, senhor, que a coragem não é precipitação e a honra não se confunde com a morte.

Veio logo de seguida o cerco de Toulouse e a morte de Simão de Monforte. – Morreu como cão raivoso que era – gritou-se logo em Aragão ao saber-se da pedrada.

O regente, que estava por detrás de muito sucesso, não dava porém a ver a cara. Era tronco velho e nodoso, cheio de nós e cautelas, ainda por cima castigado pela derrota em campo aberto nos outeiros de Muret. Preferia por isso o veneno à funda e o oiro ao montante. Alanzoava-se que a pedra certeira que fora à cabeça de Simão, quando este se entesava na torrinha de madeira que havia de abalroar a muralha da cidade, e lhe esventrara logo os miolos pelo rombo do elmo, fora lançada de aragonês furioso. Vingava assim a mão punitiva a morte infame do rei pelos cruzados do papa. E bons morabitinos, clamava-se,  rendera o tiro junto do regente Sancho Raimundo.

Ainda assim os novos eventos de Toulouse criaram discorde agitação em Saragoça. O rei fazia figura de recluso, para norte, a caminho de Jaca, na primeira escadaria dos Pirenéus. Era rapaz de treze anos, muito alteado para a idade, destemido e atrevido em todos os trabalhos de cavaleiro, mas sem qualquer intervenção na cadeia das decisões. O governo repartia-se entre o conde de Rossilhão e o conselho que com ele reunia. Giravam pois aí os redemoinhos da discórdia. Por um lado, o regente e os seus deputados vibravam de entusiasmo com a reviravolta  e o fim do facínora que torrara meio milhar de inocentes em Lavaur; por outro, o infante Fernando e os seus representantes, com interesses e mordomias junto de Roma, torciam a cara diante das vitórias de Raimundo VI.

Quando, depois da morte de Simão de Monforte, Fernando se deu conta do rápido périplo que o filho do conde de Toulouse levava por diante, deitando borda fora os cruzados do rei de França de quase todo o território ocupado, esteve tentado a dar um golpe palaciano para afastar Sancho Raimundo. Percebeu porém que o apoio de que dispunha não lhe permitia mais do que uma aventura inconveniente. Não quis assim comprometer a parcela de governo de que ainda dispunha, tanto mais que farejava que os estrategos adversos o empurravam para uma traição. Avisado anda quem sabe que a política é, igual à guerra, a arte dos enganos. De aventura incôngrua, a arma do golpe decaía-lhe assim em armadilha. E bons ribaldos conhecia que não lhe poupariam pele e osso caso o apanhassem em tal desvio.

Optou por isso por mostrar o desacordo de forma aberta mas sem torção, falando da vinda próxima do rei de França a Toulouse para de lá arrancar o conde pelas bragas, desta vez para o deixar cair com casquinada grossa no grelhador. O argumento não colhia porém junto de gente que se experimentara na expansão do reino para lá da escaleira dos Pirenéus. Mais convinha a ideia de que o papa, mexendo no clero regular como nas peças dum tabuleiro de jogo, não daria instante de tranquilidade a reino que acoutava os heréticos foragidos no tempo de Simão e ousava agora enterrar nos pauis do Garona os cruzados do norte.

– Em Roma Honório III – dizia-se – está já de olhos postos em Aragão, preparado para lhe lançar o anátema máximo.

E acrescentava-se com apreensão.

– Aquilo que Inocêncio III poupou, este gastará.

Aproveitando as atoardas que deitavam a correr por muita boca sobre a excomunhão próxima do reino, Fernando propôs a deposição de Sancho Raimundo e a sua substituição pelo rei. Devia este antecipar a maioridade e resolver assim a crise de governo em que se entrara com a desgraça do regente junto do papa e com a guerra das facções no conselho. Aceitou-se a solução para se sair do afunilado beco que deitava cara cada vez mais feia. Veio o rei de Monzon para o palácio da Aljaferia de Saraçoça. Era rapaz de treze anos, que botava por então muito palmo de altura. A seguir assim, fazia-se aos vinte anos gigante de pelo menos três côvados de altura. Tinha testa alta e ampla, mas o cachaço era atarracado e baixo, assente em ombros que se faziam grossos e poderosos. Os colmilhos eram sólidos, rasgando sem esforço carne crua, e o nariz severo e curvo como garra adunca. Mostrava por esse lado carranca fera, capaz de ser intimativa enérgica a qualquer próximo. Os lábios sanguíneos, ao modo da mãe, sorriam porém e o mesmo faziam os olhos claros, entre a cinza e o anil de céu, onde tanto adejava uma asa de além como um resquício de névoa presa a ramada de terra.

O rei trazia dentro de si as ideias do conde de Rossilhão e por isso a ele se chegou nos primeiros dias de governo. Não queria mais que apoiar os condados pirenaicos onde a pressão da guerra se fazia sentir. Quem o olhasse nessa época, julgaria que para ele o destino da confederação se jogava subindo e descendo os degraus da montanha, como no tempo da transumância. Ainda assim a Aljaferia de Saragoça deu-lhe pela primeira vez a perceber uma cidade desusada, outrora marca do Islão, onde se mesclavam com harmonia e surpresa moslins, judeus e cristãos. Havia um século que a cidade fora tomada por Afonso I mas tirando os flancos da alcáçova, que muito haviam crescido, com visível alteração do figurino das muralhas altas, a cidade não trocara de gente nem mudara de hábitos. Todas as tardes, nas almenaras das mesquitas da mouraria, se ouviam os muezzins a chamar os fiéis à oração. E todas as madrugadas, mal despontava a luz, se viam na parte baixa da cidade as hortaliceiras mouras mercadejando as novidades, enquanto os homens batiam os ónagros na direcção das hortas, para encher os alcatruzes de água e começar a labuta nas belgas, sacho de pau na mão.

Não podia durar muito o governo do rei nestas condições. Logo que o infante Fernando confirmou que o jovem rei se chegava por inteiro às ideias de Sancho Raimundo, as tensões que vinham do tempo da regência precipitaram-se ainda mais explosivas.

Era a época em que o rei de França se lançava em aflições no Sul tentando recuperar o que acabara de perder nos muros tolosinos. A cruzada, que a princípio rolara melhor que mó polida de moinho batido por vento veloz, estava agora a retrair-se diante do ímpeto do herdeiro do conde de Toulouse. Para bem dizer, não houvesse cautela e os cruzados dentro em pouco eram empurrados para Paris. Faltava gente e víveres para manter o alude com que Simão de Monforte amedrontara Béziers e submergira Carcassona e Toulouse. O formigueiro andava dividido e desnorteado para acorrer a tão desencontrada resistência.

O papa, por seu lado, como principal financiador da expedição, começava a temer pelo sucesso. A empresa perdia-se se o maioral não desse a mão, ou pelo menos o anel do sinete ou a mitene de renda. Deu em assentar no caso, e depressa viu que o coração do negócio estava em Aragão, onde todos pediam um desforço e ninguém fazia caso em se meter a escalar os degraus da cordilheira, bulhão na cintura e baraço no alforge para dar ao demo o seu cruzado francês de presente.

No seguimento destes sucessos, Fernando recebeu mensageiro do papa, pedindo pulso firme contra os empreendimentos do rei e do conde de Rossilhão. As urgências eram tantas, com as cidades da Occitânia a perderem-se em fio, que o papa não hesitava em pedir disposições extraordinárias.

– Se houver mister, afastai o rei – sugeria.

Fernando esteve tentado ao golpe de força a que antes se escusara. Desta feita era o próprio papa que dava os avales à rebelião. Ainda assim, o caso era desta vez bem mais entrelaçado que outrora, quando a reviravolta visava um mero tio-avô do rei. Agora botava abaixo o próprio rei, se bem que púbere e por instruir, como dizia Fernando.

Andaram cautelosos os partidários do papa e mais uma vez rodearam a desobediência. Em vez do levantamento, trocaram a paz por um pedido e tramaram o casamento do rei com uma filha de Afonso VIII de Castela, que falecera pouco antes, ao tempo da desgraça de Muret, e sempre andara em bons laços com o palácio de Latrão. O neto, Fernando III, que faria a nova e definitiva união entre Castela e Leão, acabara de casar com uma Hohenstaufen, Beatriz da Suábia, filha de Filipe, duque da Suábia, e neta de Frederico I. Afonso X, o primeiro filho do casal, nasceu por essa época. Ainda não se atendeu à importância crucial que esta mulher teve no desenrolar do plano gibelino na Península e até, em piso mais térreo, o contributo que deu para o resguardo da cultura judaico-muçulmana na expansão para a Andaluzia. Fernando III andava desejoso de pôr mão na Córdova de Averróis e Maimónides e na Sevilha almóada. Não sei se foi por isto que muito mais tarde o canonizaram em Roma. Se sim, é caso então para afirmar: eis mais um santo oco, de resina sintética, tão artificial e aparatoso, mas também sem pingo de seiva viva, como a flor de plástico a tremeluzir viçosa na jarrinha de porcelana. Mas não creio, que este Fernando é pai de Afonso X e por via disso ascendente directo de Dinis de Portugal. E, o que é supino, teve como padrasto um Hohenstaufen e como esposa essa Beatriz, que foi a primeira a fazer o decalque do projecto gibelino nas raízes próprias da cultura ibérica. Que meandros os da santidade! Devem ser tão aleatórios e incertos como a força que se imprime a um dado.

Casou Jaime I à força aos dezasseis anos com uma mulher muito mais velha para satisfazer o acordo das facções. Era menineiro de idade, mas de aspecto robusto e nodoso, quase se confundindo com homem batido nas intempéries e nos desarranjos da vida. Andara já metido com fêmeas, que o instinto dera em apertá-lo como tenaz insuportável desde os tempos de Monzon. Demais a condição que havia – árbitro do reino e cabeça dos ricos-homens – abria caminho a colher o que nem servo nem escudeiro sonhavam sequer existir. Espalhara bastardos, ao que se dizia, como o vento frio de Abril esparze pólens. Cresciam os ilegítimos um pouco por todo o lado, anónimos e pascácios, como tortulhos em época de declínio e putrefacção.

Não teve por isso pudor em deitar mão à mulher que lhe punham no leito como rainha. Estava numa idade em que metia para dentro tudo o que lhe punham na escudela; mais que cavaleiro inextripável era bufarinheiro de estrada. O apetite era desmedido e o estômago robusto, capaz de triturar um fraldão de ferro. Tinha dente alvo e regular, mandíbulas rijas e musculadas. Nasceu-lhe assim no matrimónio um primogénito, Afonso, que chegou a ser o herdeiro jurado do reino.

Mas aquele enlace era outrossim para evitar o enfrentamento civil e a rebelião aberta contra o rei e o conde de Rossilhão. Mais do que uma festa, tratava-se duma avença; a mulher era embaixatriz duma ideia, não pitéu para ser degustado, menos ainda estrela muda do céu para ser contemplada. Confiavam os partidários do papa que o leito traria ao rei novo juízo pelos conselhos que lá encontraria. A rainha, bem industriada na política do herdeiro de Castela, estudara a lição e prestava-se ao papel.

A princípio os dias correram a contento. O rei vinha ao escurecer aos aposentos da rainha, despia gibão e descalçava escarpins. Ficava em camisa de fralda larga, de linho fino e branco, e logo se metia nos lençóis de brim onde a rainha o esperava. A rainha era uma dessas mulheres de meia-idade que surgiram em Castela num tempo de cinza e pedra, em que as moirinhas das marismas ainda não misturavam o perfume voluptuoso dos cabelos no gineceu austero do palácio. Boa ecónoma e melhor cabeça, era ela que guardava a bolsa das despesas e fazia todas as contas do deve e do haver familiar. Não havia nenhum que se levantasse antes dela. Abria as portas ainda noite escura e punha a pé a primeira serva para puxar lume das brasas. Ela mesma enchia os panelões de ferro com a água da selha, que na noa anterior deixara a cuidado, e punha a ferver as castanhas, as couves tronchudas e os nacos de cerdo bravo, que marchavam lestos no almoço da corte. Ela mesma servia à mesa para cima de quarenta pessoas. Mulher assim diligente, cumpridora de tão severa pragmática, servia bem para regular gastos, ter olho de lince nas mercancias e mão de ferro nos serviçais de dentro mas pouco préstimo havia para as torturas da paixão e as delícias do amor.

Esperava pois a rainha nos lençóis de brim que o rei chegasse. Mas em vez de beijos e carícias, tinha para lhe dar o rol das despesas. No momento de gemer, quando o marido se contorcia em descarga raivosa de relâmpagos, espanava ela em aflições, às vezes falejando para si, com algum maravedi perdido numa dobra de negócio com o ferrageiro que viera nesse dia pelas ferras dos mulos do paço ou coisa que o valesse. Enquanto bateu massa nova, o rei não se deu por agastado com tal sussurro à antiga. Depois, à medida que a roda dos dias foi dando voltas e voltas, cansou-se de pragmática tão rasteira. E mais se desgostou quando percebeu preto no branco que a mulher se lhe metia nos despachos, embirrava com o tio do Rossilhão e lhe murmurava que melhor lhe ia liança rija com o tio abade.

– Traz selo o recado – disse uma noite o rei com assobio seco, quando abandonou a câmara da rainha.

Para lhe fazerem o ninho atrás da orelha era preciso muita indústria e pés de lã, o que não era o caso, pois a mulher, Leonor de Castela, usava sapatorro ferrado que nem mula carregada de almocreve em estrada seca de piteiral. Ele não era falaz, nem mesmo fingido, mas tinha a esperteza ou a argúcia do órfão. Passara nas masmorras de Carcassona muita noite insone, a ouvir o pingue-pingue da água na cisterna. Fizera-se atento e desconfiado do mais leve ruído e aprendera então a medir qualquer gesto, por mais pueril e inocente. Ninguém lhe fechava os olhos para ir ao descanso do cabeçal, quanto mais para lhe tirar a vida. Se o quisessem degolar, mesmo criançola, como mandava a praxe de rico-homem, haviam de dar com ele acordado, olhos abertos a varrer a linha do horizonte como dois fanais vigilantes na noite escura. Só quando a vazante do sangue lhe toldasse a cintilação da íris, e já nada houvesse dele para conquistar, lhe fechariam as pálpebras. Uma vez só, essa para sempre e para não mais abrir aquilo que outros vão cerrar, pensara nas aflições da época.

Nada tinha contra a mulher, que trouxera vida ordenada a um palácio onde os homens, sargentões brutos e piteireiros, costumavam cair no desleixo. Mas em troca de boas contas e casa limpa e arrumada, não podia aceitar que a esposa lhe fosse ao governo. Afastou-se e deixou de lhe aparecer nos aposentos com o tabardo de lã ou o gibão de chamalote por cima da camisa larga de linho. Entretinha-se por outro lado, que tinha boa figura e donas havia que se danavam por se chegar a ele. Demais mulher assim prática e lidadora como a esposa, que chegava a falejar de almocreves e libras perdidas quando ele se  retorcia, aborrecia-o.

– Não me deixa lembranças nem desejos – dizia ele, para se desculpar, encolhendo os ombros, quando os próximos lhe perguntavam pelas visitas à rainha.

Corria por então a depressão mais funda dos cruzados de França. Luís VIII vira de feito cumprirem-se as piores promessas do passado. A hoste da cruzada fora empurrada para Poitiers e os territórios de Raimundo VII reconquistados por inteiro. Confrontado com tão disforme desastre, o rei francês decidiu envergar o arnês e pegar no montante para se dirigir à frente dos cruzados para os condados heréticos. Por lá se perdia agora numa luta sem saída que o mergulhava num tristeza funda.

O isolamento da rainha, o agravamento da situação dos cruzados, a urgência do papa, a coroação de Frederico II como novo imperador do sacro império romano-germânico fizeram alarde junto da facção adversa ao governo do conde de Rossilhão. Desta vez, secas todas as outras fontes, só restava ao abade a rebelião aberta e se preciso fosse o afastamento do rei. Iniciou-se o levantamento dos homens de armas, a princípio para mostrar ao rei uma assuada ruidosa mas sem desacatos, depois, quando o rei deu mostras de nada atender, em desobediência declarada. Em pouco tempo todo o território da confederação estava em armas, dividido entre as duas facções. A guerra pegou e alastrou nas cidades com velocidade improvável. A guerra é o fogo da acção e por isso se espalha como faúlha em tapete de caruma estaladiça. A atmosfera andava há muito carregada de electricidade e a trovejada só não disparara em grande aparato, com chamarelas de fazer medo, porque entretanto se levantaram os expedientes da maioridade antecipada do rei e do casamento em Castela. Mas em lugar de resposta, eles foram apenas procrastinação. Por isso, os trovões rasgavam o céu em aceleração livre e ninguém podia dizer onde ia parar aquele ribombar de atroar os céus.

Entretanto morria do lado de lá da cordilheira, em abatimento fundo, o rei de França. Deixava um pitorro, Luís IX, nas mãos da mãe, Branca de Castela, outra filha de Afonso VIII, irmã da Leonor que reinava em Aragão, muito chegada à política do palácio de Latrão e dos parentes de Castela. O facto reacendeu com estrondo o confronto civil em Aragão. Os rebeldes, espicaçados com os revezes, torturados pela urgência duma reviravolta, apoderaram-se de algumas cidades na linha do Ebro e levaram a ousadia a um lance de mestre, passar a rede ao rei, deitando-lhe a mão. Sem perceber como, Jaime I, um corpulento rapaz que nem dezoito anos ainda havia, passava para a custódia dos revoltosos e regressava às enxovias da infância. Num repente a minoria desenxabida de ontem alçava-se ao governo e mostrava-se pronta para distribuir novo jogo. Com consentimento da rainha foi dada ordem de regresso às tropas aragonesas que andavam do outro lado da cordilheira a flanquear o conde Toulouse. Aligeirava-se ao menos a pressão em que os heréticos mantinham as tropas do papa e do rei de França.

A nova regência contava porém com um apoio restrito. Tirando o clero regular, na vassalagem directa do papa, todas as outras classes eram adversas ao novo mando. Mesmo explorando a favor as pretensões feudais dos ricos-homens contra a coroa, não era fácil fazer olvidar aos homens de armas a humilhação de Muret, o homicídio do rei e as barbaridades da cruzada. O governo da confederação era pactista, quer dizer, o rei ou quem o representasse não governava sozinho mas em assessoria regular com os súbditos, sobretudo os próceres. Assim sendo, os próprios revoltosos não se tinham por seguros na vitória e sabiam que mais mês, menos mês, mercê das pressões em que se veriam apertados, seriam obrigados a ajustar o regresso do rei à governação.

Entretanto o conde de Rossilhão colhia maleita de que não mais se livraria; acamado e sem transe para mais, desistiu de lutar. O rei, nos cárceres de Saragoça, perdeu esperança numa repostada militar que levasse diante o tio abade e o recolocasse no poder sem mais ajustes. Na catedral de Paris, Luís IX por sua vez pegava da durindana e prometia regressar vitorioso de novo troço de cruzada contra os heréticos da Provença e dos Pirenéus. Começou por essa época a pressão militar que em pouco levou ao tratado de Paris, pelo qual Raimundo VII se deu por esgotado na luta contra a monarquia francesa e o papado.

Ao tempo, Frederico II, o novo imperador, começava a desenhar-se como o mais extravagante dos monarcas europeus. Acabara de fundar a universidade de Nápoles, uma das primeiras da Europa e decerto a primeira na liberdade e na largueza do ensino. Em nenhuma outra, e só duas havia, Bolonha e Paris, se liam e escoliavam os autores árabes e judeus. Demais contavam-se  graças singulares sobre a guarda pessoal que o acompanhava. Cinco vezes ao dia os homens iam humildemente ao chão, posternando-se em direcção da Caaba, no centro de Meca, onde estava a pedra preta que Deus em momento de atenção e múnus oferecera a Adão. Também os heréticos encontravam abrigo seguro debaixo da capa do imperador; fustigados pelas cruzadas de Inocêncio III, enxames de heréticos demandavam as terras quentes do reino da Sicília à procura de sossego e indulgência. Enviuvara há pouco duma irmã do Conde de Rossilhão e projectava agora ligar-se à família real de Jerusalém. Congeminava já o teatro da cruzada ao Oriente para se tirar de desagravos com a Igreja e abrir a nova idade do mundo. O mundo de Inocêncio III estava no termo, prestes a quebrar, e só ele, Frederico, tinha estalão bastante para o substituir.

Fioristas e beguinos faziam-se por então arautos nos caminhos da Calábria e da Apúlia deste novo e derradeiro milénio. Bastava molhar a goela, rasgar a túnica, pôr a espórtula toda na bolsa comum para logo as bocas aparecerem a cantar em línguas desconhecidas.

Jaime I nos calabouços de Saragoça teve tempo para cogitar em todos estes sucessos. Nunca se dera a pensar o mundo que o rodeava e achava agora na tarefa um sabor de mercê. Tinha a visita dos parciais do conde de Rossilhão e com eles se  entretinha na hora terça a dissecar o estado dos condados de além-Pirenéus e a ouvir as últimas graças que se contavam do novo Barba Ruiva. Vinham estas como postre de refeição; as graçolas eram o complemento do prato grado, a farófia fofa que servia de desenjoativo. De qualquer modo, ao cabo dum tempo, a sobremesa acabou por calhar mais que prato grado. Alturas havia em que o grupo não saía da distracção do pospasto, até porque foi nesse momento que Gregório IX chegou ao trono pontifício e afastou o imperador da comunhão dos fiéis. Logo correu pela Europa dos reis a primeira epístola ao monarca de Roma, alertando para a excepção inaceitável duma instituição que não pagava ao fisco dos reis, estava isenta da sua justiça e respondia com a guerra a qualquer desvio de doutrina.

Frederico II, ao mostrar-se um desafio e uma extravagância, ganhava ascendente e popularidade. Era o tempo em que ganhava, para o bem e para o mal, o sobrenome de Leopardo. Todos se acotovelavam para falar dele, mais ainda em Aragão, onde a casa real mostrara sempre simpatias pelos Hohenstaufen e não hesitara mesmo em casar a primeira das suas princesas, Constança, com Frederico, herdeiro do império, alvo agora de todas as atenções.

Um dia, quando mais uma vez ouvia encarecer a figura do viúvo da tia Constança, não teve mão em si e depois de cruzar os informes que lhe traziam avançou com anúncio. Era predição curta mas mais despistante que os vetustos e extensos enigmas da tebana Esfinge.

– Bom e destro monteiro, senhores, será o imperador, mas vereis ainda caso mais raro na terra que tem por armas as vermelhas esfoladuras do Leão heráldico.

Sazonara entretanto no isolamento em que vivia uma nova visão da vida e do reino. Até aí o modelo era o pai, o mártir de Muret; de igual modo o trilho por onde seguir era a reconquista dos condados perdidos, fosse de bordão astuto na mão como o tio, que acabava agora de partir para junto de anjos e arcanjos, ou de montante em punho como era havia pouco seu sentido. Isso lhe ficara em herança da memória antiga do reino e dos dias mexidos da infância. Germinara nos aljubes de Carcassona e brunira depois na fortaleza templária de Monzon. Agora o herói mudara; em lugar do pai via o imperador, o viúvo da tia, pouco mais velho afinal do que ele e felino de muita habilidade. Se havia, como se dizia, uma nova idade que aí vinha empoleirada nas novidades do rei da Sicília, o lugar de adjunto pertencia-lhe. Batalharia cerca dele e favoreceria a expansão de acções similares no lado do mundo que lhe pertencia.

– Por que não? Já meu avô se chegou ao primeiro Frederico… – interrogava-se ele numerosas vezes na solidão da noite, de olhos fechados, quando procurava arremedar o sono e este lhe fugia para longe, afugentado por tanta euforia.

Também o caminho não mais eram os degraus da cordilheira, a norte, por onde os contemporâneos insistiam em passar como por corredor único e sem peias. O avô que se chegara ao primeiro Barba Ruiva, casando princesa da casa com o herdeiro da família, ou deixando aos filhos tal indicação, fora o mesmo que percebera que o reino não punha termo no Ebro mas alcançava, sem esforço nem muita ousadia, as serras de Albarracim, propínquas quase das fontes do Jucar e do Tejo, o último dos quais galgava tanto outeiro que chegava às pedras do termo do mundo. É verdade que fora esse avô que anexara o Rossilhão, trouxera para a coroa o condado da Provença e aplainara a vassalagem do de Toulouse. Embora! A hora era outra e estava pronto a baratear o corredor dos Pirenéus se pudesse meter os pés em caminho novo. Cativava-o o mar do meio, azul como uma safira delgada e brunida, com as terras antigas e sumarentas, por onde tantos haviam deixado sangue e mercancia. Cria que a pérola maviosa lhe estava guardada e não se via na sáfara como a raposa aos grilos. Mas, cabo grosso e sonhador, Sol da manhã a assolar os campos como uma enchente de luz, se pudesse deitava mão a manto e broche, pois ambos lhe haviam de servir na hora própria.

Pensara muito no caso. Passara horas a inteirar-se com os prebostes do tio, sempre bem informados, dos planos e das acções do novo Barba Ruiva. Acompanhara o que se passava em Nápoles e seguira de perto as acções de Palermo, Catânia e Messina. Tivera por seguro o encontro de crenças em que se fundava a administração do reino da Sicília e por justa a ideia de que o clero não podia ser excepção nos reinos; o frade tanto precisava de verter o óbulo para o erário de todos como prestar contas nos tribunais do rei das iniquidades em que se metia. O clérigo que se havia por excepção era afinal um homem vulgar, como qualquer, que tanto punha o dedo no alheio como desnarigava por uma léria um pobre servo. Por fim a maquinação do papa contra o imperador parecera-lhe negócio de somenos que tivera porém resposta de monta. Lia e relia as letras de fogo da epístola do imperador. Aquilo parecia-lhe escrito com o fluido eléctrico dos altos pregadores que haviam subvertido por um capricho da vontade ou do espírito os destinos dos césares romanos. E mais se dava a pensar naquela obra realizada no reino da Sicília, que alguns, antevendo a derrota do papa e do rei de França nos castelos cátaros, já davam por modelo e forma da Europa próxima com as novas catedrais. Ao termo dalgum tempo acabou por exclamar.

– Mais me cumpre viver estas letras que andar aqui a espantar apetite e sono com o seu arruído.

Convencia-se que aquilo que passava por uma novidade – o convívio de moslins e cristãos – era afinal o atributo fundo, a raiz mesma da terra em que reinava. Nascera em Mompilher, à vista da romana Nimes e do frio Ródano, mas desde que viera para Monzon que se convertera num peninsular certo. Saragoça então abrira-lhe na alma uma porta por onde entravam jorros de luz. Ali se banqueteavam em conjunto judeus, muçulmanos e cristãos. Já no tempo de Urbano II, depois da incorporação do reino taifa de Toledo nos domínios de Castela e Leão, um monarca peninsular se havia intitulado imperador das duas religiões. Também os cantares de Amor que se ouviam como maravilha na corte do reino da Sicília, com Frederico a compor em língua vulgar, se faziam ouvir desde há muito por toda a Península. Dizia-se até que os primeiros acordes poéticos em romance vulgar haviam nascido na voz dolente dos menestréis moçárabes da Córdova muçulmana. Guilherme da Aquitânia, o primeiro trovador da Occitânia, que deixara escola por toda a Europa, aprendera com eles a arte de trovar na viagem que fizera ao vale do Ebro no tempo de Afonso I de Aragão e da tomada de Saragoça. E como não ver na Escola de Tradutores de Toledo, fundada na primeira metade do século XII por Raimundo de Sauvetât, um precedente da Universidade de Nápoles? Já em Toledo, no tempo de Afonso VI e Afonso VII, se vertiam obras árabes e hebraicas para língua vulgar e desta para latim, num processo de tradução simultânea. E nos lendários lugares da Marca Hispânica, em tempos carolíngios, como Vic ou Ripoll, se haviam estudado pela primeira vez em terras de Europa a matemática, a astronomia e a música árabes.

– Eis a terra prometida! – exclamava ele, pondo os olhos húmidos nas névoas esparsas que se levantavam na parte baixa da cidade.

Fixou-se pois num trajecto todo voltado para a Península. Nas terras da meninice, entre Mompilher e Narbona, tão do agrado do mártir de Muret, faltava aquele aspecto invulgar que fazia o encanto das acções do imperador. Essa feição descendia em linha directa do legado muçulmano, cuja importância se sobrepunha aos estratos anteriores como o oiro à pedra comum, gasta por muitas mãos. Só que em Palermo o mundo árabe parara de passagem para descanso ligeiro, tomando o primeiro almoço e logo seguindo viagem, enquanto em Córdova comera, dormira, pusera tenda e deitara pé e haste para geração de muitos anos. Logo as probabilidades eram de molde a deixar um sorriso capitoso a pairar sobre os desígnios.

Deu em sonhar. Passava horas na pedra do parapeito, espicaçado pelo que ouvia contar do imperador, a mirar as soltas vastidões do sul. Por fim lembrou-se que em frente de Barcelona se levantavam as ilhas Baleares, uma taifa autónoma, regida pelos Almóadas, cuja capital, Palma, era um importante centro comercial do Mediterrâneo. As ilhas tinham boas leiras para o cultivo de frutas e hortaliças, além de terem uma população de mais de cento e cinquenta mil muçulmanos. Maiorca era na época um ponto crucial da cultura islâmica no Mediterrâneo com centenas de mesquitas e teólogos conceituados em todo o norte de África. Eis então a pérola que lhe estava prometida nas névoas do Ebro! Com ela ia rasgar na adjacência do Barba Ruiva a nova idade do mundo.

– Nem o meu avô que deitou a mão a Teruel e quis casar a filha com o herdeiro do primeiro Frederico se lembrou de desenho assim perfeito – envaidecia-se ele.

O rei não punha porém os olhos em tal riqueza pela simples cobiça que pode levar um homem a esconder um tesouro para lhe admirar na solidão e às ocultas a beleza. Não era de natureza, menos ainda de idade, um avaro; antes lhe ia por índole e tamanho o entusiasmo e o delírio. O arquipélago, a boiar na safira azul do Mediterrâneo, pareceu-lhe menos uma jóia de bom quilate, sem impureza, que um campo escarlate de aventuras. Ninguém se lembrara dele, mas estava ali, mesmo ao pé, disposto a entregar a polpa e o sumo a quem lhe pusesse a mão. As cinco ilhas – Maiorca, Minorca, Ibiça, Formentera e Cabrera – dariam a Aragão aquilo que as cidades do Etna haviam dado ao reino da Sicília, exotismo e novidade. Já se visionava a arbitrar as parlendas entre os muftis árabes e os teólogos cristãos descidos do Sena parisiense ou saídos das abadias de Huesca e Jaca. O novo mundo, tal como o encarava Frederico II, ia ter ali nas extremidades da confederação catalã-aragonesa uma praça redonda de apresentação.

– Mais limpa que qualquer outra – juntava ele.

Demais a operação, havendo mister da convergência de muito cabedal, mostrava-se ocasião favorável para fazer a paz entre as facções em guerra interna. O próprio papa não se negaria a favorecer a empresa. E depois das Baleares havia muita terra idêntica para modelar nas mãos e sonhar na cabeça. Lá estava o Guadalaviar, com Sagunto e Valença à cabeça, e depois ainda o Jucar e se preciso fosse Múrcia e Alicante.

Fizeram-se pois as pazes entre os desavindos. O rei desinteressava-se dos condados de além-Pirenéus, dava de barato a cruzada do rei de França, deixava os cátaros entregues a si próprios, dava carta branca à fradulagem domínica para instalar o futuro tribunal eclesiástico – já inevitabilidade nas terras vizinhas da Gália – nos povoados da confederação, saturados de heréticos foragidos à cruzada. Em troca tinha dos súbditos a lealdade e o esforço na ocupação das ilhas do Mediterrâneo. Acordaram as partes no caso. Ele ia pelo Barba Ruiva e pelas grimpas do delírio; a facção que batalhara pelo conde de Rossilhão avançava pelo rei e pelas avenças de paz; por fim, os partidários do tio abade iam pelo fim das campanhas na Provença e na Occitânia e ainda pela mola papal que era o novo tribunal eclasiástico. Em mó, como alões aflitos mas arteiros, juntavam-se-lhes os burgueses catalães de Barcelona e Tarragona, esses por via da mercancia que ansiavam por multiplicar no Mediterrâneo. Salvante o rei, que tinha menos de vígaro que de faceiro, todos punham a atenção na ganhuça do empreendimento.

Mas antes de se pôr à testa de tão grossa fábrica, fez o rei uma exigência.

– Senhores, vejo que não vos negueis às novas que vos peço. Isso me praz muito. Sabei porém que para as levar a vosso contento é mister afastardes a rainha.

A porteira que tão bem lhe tomara conta da Aljaferia de Saragoça, Leonor de Castela, passara entretanto de desprazer a empeço. Bandeara-se com os revoltosos, pusera a coroa ao serviço dos interesses da nobreza, intrigara com a irmã, rainha de França e mãe do azougado Luís IX, o pior inimigo dos condados da Occitânia. Não podia suportar no leito a felonia da mulher, mas isso era até de somenos. Já antes lhe topara a velhacaria peçonhenta nos conselhos furtivos e não a pusera fora de portas por tal impudência. O casamento era maquinação de parentes ou de facções áulicas, quando não codilho do destino, não jugo de leito. Quantas vezes o almadraque nem sequer existia! Ele próprio, Jaime I, era disso exemplo, pois o pai apenas dormira uma vez com a mãe e ao que se dizia por ludíbrio de dois palacegos interesseirões. Agora, no caso de Leonor, o obstáculo ao casamento não estava no leito nem nos farroupilhas mas nos desenhos mentais que na estratosfera do sonho a euforia do rei adornava de estrelas e luz.

– Nova moradora hei-de receber – respondeu ele, quando a corte lhe perguntou estupefecta sobre o apartamento da rainha.

Concebera entretanto matrimónio mais adequado às ideias em que andava e ao futuro em que se via. Leonor fora recurso de infortúnio e até de idade tenra. Agora, espantado o momento azarado, sem um único danado a ladrar ao flanco, havia que deitar outros planos e conceber outros pactos. No fundo o que desejava era ver-se livre do vínculo que o ligava ao centro da Península, e por via dele ao reino de França, o mais cerca do papa e o mais adverso aos Hohenstaufen, para se poder ligar por novo vínculo ao círculo do imperador. Sem um novo matrimónio, que o colasse aos próximos de Frederico, a empresa de Maiorca, por muito soldo que puxasse ao reino, ficava com um pé a menos. Coxa, sem engonços, não tinha situação para grande caminho.

– Sem dona não logro pousada – comprovava ele.

Passava o momento em que Frederico, casado já com Violante de Briene, herdeira da coroa de Jerusalém, beijava pela primeira vez o filho Conrado, que mais tarde tentaria sem sucesso meter o ferro rude no cachaço soberbo da cidade do Tibre. Era outrossim o momento em que o imperador fazia no Cairo as avenças com o sultão aiúbida, pelas quais punha mão em Jerusalém sem levar consigo mais do que uma escolta pacífica de homens. Ia para lá como o primeiro dos islamófilos e não como o novo cruzado ignaro, que tudo punha no ganho sórdido e na crueza à solta. O projecto gibelino com a pinta oriental no sangue ganhava bom andamento; na Europa, onde o equilíbrio de forças ainda não descaíra de todo, começavam a correr para espanto de solarengos e cavaleiros as novas das bizarrias orientais do imperador. Não tardariam a germinar nesse húmus imaginoso as primeiras esperanças milenaristas em torno da figura de Frederico.

Acordaram os súbditos em desalijar o rei de Leonor de Castela. Era o estipêndio que a facção adversa ao antigo conde de Rossilhão pagava pela neutralidade do reino na cruzada do rei de França; era ainda o o penhor que os ricos-homens punham desde o átrio da nova empresa, exigindo em câmbio o livre alvredrio diante dos muros de Palma e das ricas herdades de Maiorca.

Com a dona ganha, que a tanto vinha aquela perda, veio a campanha das ilhas Baleares. Maiorca, larga e abundante em bens, era a primeira finalidade da garrida e empavesada frota que saiu dos portos catalães e convergiu para Palma, onde se concentrava a resistência almóada. A operação não seguiu como o rei sonhara. Entusiasmado com os informes que davam a entrada do imperador em Jerusalém com uma escolta desarmada, dera-se a pensar que algo de próximo podia suceder na ilha. Depressa se desgostou, porque de ambos os lados só viu sinais de fereza. Primeiro os mouros da cidade tiraram o sopro aos cristãos que lá viviam; depois os magnates de Aragão e Catalunha juraram cenas dignas dos parciais de Godofredo de Bulhão. Quando o rei escandalizado lhes pediu tento e serenidade, logo lhe responderam com afoiteza.

– Esqueceis, senhor, o apartamento da rainha?

Percebeu o rei que tinha o casamento na penhora. Deixou correr, porque o matrimónio lhe pareceu valer uma jazida de oiro, e quando Palma por fim se rendeu a crueza foi tanta que nem espaço houve para dar sepultura aos sarracenos. Os corpos ficaram a apodrecer nus nas areias da praia, à espera que as ondas os levassem.

Com o saque, a excitação abrandou e cada um sossegou por um momento a admirar num canto o bolo que lhe calhara em sorte. O rei, por sua vez, apressou-se a garantir protecção aos muçulmanos, mostrando-se liberal e pesaroso. O pânico instalara-se porém sem remédio. Levas de gente fugia de noite, em fustas improvisadas, para o norte de África. Muitos eram engolidos pela goela funda das ondas e acabavam triturados pelas voltas das correntes. Os que ficavam eram os que se amedrontavam com os cadáveres que cada manhã o mar cuspia nos escolhos da ilha.  Mesmo assim a ganância ou a toleima dos ricos-homens aproveitava qualquer fresta para lhes deitar gadanho, escravizando-os nas propriedades rústicas que arrebanhavam. No fim foi possível ensaiar um arremedo daquilo com que o rei sonhara. Cinco vezes ao dia se ouvia o muedem do alto da almenara a chamar à oração.

Pôs-se o rei a pensar no casamento, sem desistir da expansão que lhe fora o primeiro amparo do reinado. Acordou a marcha para o Guadalaviar, desta vez exprobrando qualquer excesso.

– O saque de Palma limpou a penhora – garantiu ele, em abono da ordem.

Sentia-se à vontade para pedir ânimo moderado aos soldados, que de credores passavam a súbditos. Ele por sua vez ia de devedor a soberano. Já não existia nenhum crédito à solta que precisasse de ser garantido. Não admitia por isso desta vez a menor falta às orientações. Não queria roubos, estupros, homicídios. Concebia a ocupação de Valença e da taifa árabe que lhe ficava na traseira como uma obra ilustrada que o tornasse herdeiro do antigo direito peninsular de Afonso VI, rei de três religiões e protofundador da Escola de Tradutores de Toledo. O que se passara em Castela, no tempo de Afonso VIII, não fora de boa regra e mais parecera desconchavo de cruzado francês que sazonado propósito de homem que tinha no paço rabinos mosaístas e alfaqueques mouros. Agora com Beatriz da Suábia as avenças levavam outro caminho. Do reino de Navarra, onde os mudéjares se contavam pelos dedos duma mão, nada dizia, nem do de Portugal, no cu de Judas da finisterra, cujas novas demoravam a chegar e pouco contavam na Europa bárbara de além-Pirenéus.

Era por então Jaime I um homem a caminho de tocar as três décadas de vida. Fizera-se de feito barra de três côvados. Ganhara talhe e encorpara a fibra rija do arcaboiço. Quem lhe olhasse as mãos, logo veria duas pás capazes de cavar um metro de terra com o rebordo metálico das unhas. Quem lhe visse tal rebordo, logo lhe percebia a índole brava e eriçada. Dizia-se que era capaz de estrangular nos compridos braços de ferro um urso e se preciso fosse tirava a vida a um lobo fero com uma única dentada, tal era a força da mandíbula e a rijeza certeira do dente. Arruivara mais o pêlo e visto de perto, com a tez tão brunida como tijolo cozido, dir-se-ia um arbusto de fogo, pronto a roborar tudo na passagem. Raro levava  tesoura à guedelha e os cabelos corriam-lhe pelo peito, misturando-se no pêlo da barba, cuja ponta se lhe enrolava no couro rijo do cinto. Os olhos porém haviam ganho mais doçura e claridade e os lábios vivos e leais pareciam sorrir de enlevo no anil do céu.

Com Leonor encerrada num mosteiro, era altura de procurar esposa. Não desejava arranjo de leito, que esse tinha com farteza, mas patim de se chegar ao círculo do imperador. O papa acabava de levantar o interdito que pesava sobre Frederico, sem que este renunciasse às críticas e ao aperto em que se esforçava por meter os excessos temporais do papa. Foi o momento em que Gregório IX, pressionado por Luís IX e pela resistência da Igreja cátara, temeroso ainda das picardias do imperador na Lombardia e nas bordas dos Estados pontifícios, aceitou pôr mão na inquirição das heresias. Em menos de nada os fraduns de Domingos de Gusmão, ginasticados que já andavam, olearam os gonzos da Inquisição, parturejando uma poderosa máquina repressiva, capaz de sujeitar num ápice qualquer desvio que se mostrasse deslavrante da doutrina romana ou adverso aos interesses da sua Igreja. Com o esticão que os frades deram à perseguição dos heréticos nos condados do sul da Gália, a luta da teocracia papal contra o projecto laico do império entrava na derradeira etapa, a mais crua, que só teria termo com a execução pública de Conradino, neto de Frederico e criança de curtos anos. Mas ao mesmo tempo que se levantava no mundo a mais perversa fábrica de morte que ainda se vira, o gibelinismo na sua versão meridional punha-se a embalar o substracto inventivo da Europa, soprando-lhe na alma aspiração e sonho. A História tem destas astúcias; quando tudo parece na derradeira lima, a mais fina, ergue-se uma nova muralha a pedir pico e punho grosso.

Deitou Jaime I os olhos às casas reinantes que lhe podiam interessar para negócio de matrimónio e pareceu-lhe encontrar na Hungria o que procurava. Reinava André II, que consolidara o reino magiar e se liara por parentesco à Morávia e às famílias latinas de Constantinopla. Tinha uma menina de dezoito anos por casar, Violante, muito gabada nas cortes europeias. Mas aquilo que mais favoreceu a requesta foi o facto de André II ser um monarca na vizinhança do imperador. O reino magiar fazia estrema com o império. Uma outra filha sua, Isabel, resultado das suas ligações com a Morávia, também nos domínios do imperador, ligara-se em criança com Luís da Turíngia, herdeiro de importante feudo do sacro-império. Isabel viveu depois na entrada da puberdade uma muito choruda história de amor, que tanto punha de erótico como de sublime. Amava com ardor nunca visto o esposo ao mesmo tempo que manifestava uma devoção mística sem limite. Quando lhe perguntavam se a paixão que mostrava pelo marido não era um remorso para o espírito, ela abanava a cabeça e sorria. Respondia depois branda e sem suspeição.

– A carne é a via do espírito.

Foi com certeza por isso que a história desta Isabel chegou até Marguerite Yourcenar, que nela viu um dos mais curiosos enigmas da alma feminina. Uma criança que corria para os braços do esposo para neles se consumir em gemidos e orações ou era inocente ou inspirada; vulgar e safada é que não. Merecia assim o pífaro anacreôntico ou a biografia filantrópica. Ou então a canonização como de feito lhe aconteceu pouco depois da morte, ainda no tempo do severo Gregório IX. A Idade Média é no mais alto grau a idade dos santos; tropeçamos a cada momento com um, não sei se pela nostalgia que a época tinha pelo momento sem mácula da origem, onde tudo era sainete e folga, ou se mais prosaicamente pela protérvia duma instituição brutal.

Começavam então a correr pela Europa as histórias alucinantes de Francisco Bernardone, o doido de Assis. Despira-se na praça do burgo e abraçara com um sorriso de encanto a pobreza da nudez. Tomara pousada nos bosques e fizera-se camarada dos farroupilhas que por lá se escondiam da justiça. Tinha êxtases diante dum raio de Sol enlevos místicos à vista duma florinha anónima e humilde de Abril. Comportava-se com a singeleza duma criança e nenhum lhe ouvia lástima ou lamúria. Reconstruía graciosamente as igrejas dos caminhos; quando dava com uma, parava e durante dias acarretava pedra, que de seguida britava, ajeitava, imbricava, montava e polia. As mãos saíam-lhe da tarefa em sangue mas ele sorria ainda com mais mesmo enlevo; quem lhe visse os olhos seráficos, diria que o pobre em vez de esfolar as mãos nos calhaus das fragas as mergulhava em pétalas aveludadas de rosa. Não tinha mais que um burel esburacado e sebento para se tapar dia e noite. De tanto jejuar perdia por vezes a recordação do que era mastigar uma côdea rija de pão. Tinha dias em que não levava à boca mais do que a água fresca das fontes. E os bichos mais feros, apiedados por tanta inadvertência, esquecidos de tanta magreza, vinham zanagos e mansos lamber-lhe os dedos feridos.

Por fim, não tivera pejo de procurar as gafarias, onde nenhum entrava. Os gafos, mal se percebia em público o primeiro leproma ou espessamento da pele, eram de imediato empurrados a borrifo de chuço para os arrabaldes mais agrestes das vilas e dos burgos. Aí viviam em grupo, num tipo primário de currais de pedra, quando não em grutas naturais, no mais túrgido isolamento. Mais do que viver, aguardavam a morte, com o desfiguramento do rosto a crescer e o apodrecimento dos órgãos ou das extremidades do corpo a galopar. De quando em quando, passava algum clérigo enviado pelo paço para em época de maior abundância lhes deixar à distância uma perna de borrego, um cesto de pão, um braçado de ervas ou um punhado de frutas. De resto, não viam vivalva. Eram vigiados de longe por besteiros do rei e por fundibulários dos homens-bons do concelho. Eram havidos por impuros e como tal haviam de viver arredados para sempre do convívio humano. Já Moisés lhes legislara a química infernal do isolacionismo. Os gafos eram os heréticos do corpo como os heréticos eram os gafos da alma. Se algum tinha a veleidade de escapar, apertado de saudades do que atrás de si deixara no mundo, era logo varado por seta ervada ou atingido por pedra certeira. Lá ficava de borco no perímetro do recinto maldito a deitar raiz na terra, enquanto os corvos e os abutres lhe limpavam o arcaboiço.

Francisco furara o interdito destas gafarias que eram o lado bárbaro e pérfido da época como os hospícios das lobotomias e dos choques eléctricos são o da nossa.

– Nem o Demo martiriza assim as almas que lhe vão portas dentro – apiedara-se ele em instante de aflita compaixão.

Conseguira pois fugir à vigilância da guarda e perante o espanto dos gafos passara a aparecer a espaços, com o sorriso de criança a rasgar-se na tez macilenta de cinza. Trazia com ele ou cesto de pão, ou avental de fruta, ou tabardo novo que conseguia arrebanhar nas redondezas. Tomava nos braços os mais novos, consolava os moribundos, juntava-se aos outros, para lhes contar casos de entretém e recitar com bonomia as palavras das rezas infantis de sua inventiva. Com o briche do avental fazia compressas grosseiras, limpava as feridas mais sujas e chegava a amputar membros com perturbações tróficas.

Com o caso dos gafos Francisco tornara-se o espanto do mundo.  Já se punha nele o regresso do Salvador, que também andara a curar leprosos na Galileia e na Samaria. Pelo sim, pelo não meteram-no um dia a caminho de Roma, a ver o papa, que era o chefe da Igreja e o dono dos Estados por onde o pobre lazarone andava a distribuir a beneficência. Depois de muita reticência e desconfiança, o caudilho pusera-lhe diante dos beiços descorados a mão coberta de rendas e seda, dando-lhe a beijar o oiro do grosso anel episcopal. Aprovara assim a contragosto a regra do livro comunidade que se reunia em torno do madraço que começava a deitar corpo de lenda viva.

Mas Francisco Bernardone era apenas mais um. Muitos outros havia, que se acotovelavam nos arrabaldes soltos do espírito, dentro e fora dos Estados da Igreja. Os caminhos bárbaros da Europa estavam desde Urbano II cheios de beguinos inflamados que apostrofavam o advento do Paracleto. Desde que Pedro, dito o Eremita, despovoara aldeias inteiras, pondo em movimento uma multidão de centenas de milhares de vizinhos, ansiosos de porem pé em Jerusalém, terrestre ou celeste tanto montava, todos criam que era chegada a hora duma surpresa descer do céu e tocar de extraordinário a alma dos reinos. Uma cornucópia de milagres, debruçada na borda do céu, esperava o instante de derramar sobre o mundo a refulgência de numerosas estrelas de luz.

– É mister apenas trabalhar em conjunto – dizia-se.

E foi esse o papel que Isabel da Hungria, a filha de André II, se deu a si mesma. Quis fazer avançar o mundo, puxando a borda da toalha onde repousava o vaso das maravilhas. Era a forma que ela tinha de laborar em conjunto com a realidade escondida do céu. O primeiro puxão que deu na ponta do pano foi esse amor altamente pertubador com Luís, de quem teve em curto espaço três filhos. Mas esse amor, se foi um passeio sem regresso na neve fria, foi também uma consumpção das aparências; os amantes ficaram congelados nas largas estepes da Euroásia, enlaçados um no outro, sob o manto branco da pureza, mas ficaram outrossim nus, em pêlo, lavados e tranquilos, diante do mundo. Nenhuma serenidade vale o amor, porque só este volta costas à morte.

Por isso, desperta pela paixão de eternidade que o jovem soberano da Turíngia fora capaz de atear na sua alma, Isabel sentiu forças para mostrar um exemplo. Resolveu assim dar continuidade às histórias que então corriam do mesquinho que em Assis se dera sem pudor. Procurava os desvalidos para lhes dar as roupas que vestia; esvaziava os cofres do palácio de Wartburgo para espalhar riqueza pelos servos; respondia com um enlevo de agrado às agressões que uma alma assim próspera despertava nos familiares de Luís. A sogra baralhava-lhe os gestos com palavras azedas e intrigava-lhe ainda os actos junto das servas com lástimas de instigação; os cunhados, Henrique e Conrado, rosnavam por perto aleivosias, a ver se ela se descaía. Pruíam de lhe sentirem a vontade mole para depois darem uma casquinada grossa, que tanto era vingança como alívio. Ela alheava-se com um sorriso feliz e punha o sentido na paixão do marido e nos arroubos do amor pelos fracos. Por fim, num relâmpago de loucura, foi às gafarias dos outeiros e iludindo o cerco acalentou nos braços os impuros. O escândalo rebentou com bravata e a comunidade cindiu-se sem remédio. Dum lado estava o pequeno grupo que via na soberana uma revelação enviada pelo céu, mais inspirada que essa Clara de Assis que o povorelo recebera em Porciúncula, e do outro estava a imensa maioria dos que a acusavam de contumácia e insanidade.

Chegou entretanto a expedição do imperador à Palestina. Seguiu-o como era de obrigação o vassalo da Turíngia. O contubérnio desfez-se e enquanto Luís atravessava os Alpes para ir morrer em Otranto de peste ou de saudade ficava Isabel da Hungria com os desgraçados a quem dava os gibões de tela, os saios de seda e os cintos finos de pele de gamo. Os parentes, sem o freio do soberano, habituados ao vilipêndio e ao abuso de poder, beliscavam a infeliz com maltratos cada vez mais descarados. Sofria com resignação, sem uma queixa, a fúria tempestuosa que se abatia sobre ela. Desde que houvesse dentro de si a recordação da paixão que fora a sua mercê e tivesse os desgraçados à mão, para lhes valer, era feliz.

Mal chegou a notícia do passamento do soberano,  Isabel da Hungria viu-se num palude. Veio o dito ofensivo, já que a gargalhada de alívio nunca arranjara modo de descarregar.

– Queres os pobres? Pois não demores, dona. Vai-te já haver com eles… – disseram-lhe com fedúncia, apontando a porta de saída.

Abandonou de boa cara o palácio que era seu e foi entregar os filhos a pessoa caridosa, que cuidasse deles. Depois sentiu-se livre e venturosa. Sem o esposo, nada lhe podia calhar tão a contento como a expulsão da riqueza em que vivia. Que dádiva dos céus! Só havia gratidão no inexplicável músculo que lhe latejava no peito. Pôs-se a deambular pelas florestas da província, dormindo onde calhava e ensinando as rezas e pregações que entretanto ia inventando. Nelas gritava o amor e a graça que revelava na vida. Na verdade, para bem dizer, nunca fora tão feliz. Continuava a ter a lembrança da paixão que vivera – e tão viva era que lhe parecia que o esposo não havia dali saído, dedos entrançados aos seus – e para onde se virava dava de caras com um triste de mão estendida, à espera da dádiva e da presença. Sempre que recolhia um cesto de pão ou um avental de fruta corria a rir, cheia de alegria, para as leprosarias dos arrabaldes à procura de satisfazer os mesquinhos que viviam arredados de todos. E assim, de nuvem em nuvem, este anjo tomava a tormenta por delícia.

Por fim, ralados com os primeiros remorsos, temerosos das represálias do imperador, muito atento a casos assim iníquos, os parentes mandaram-na buscar. Foi encontrada entanguida numa ruína, quando já não inculcava esperanças de ver os filhos. Acabou depois disso por se ir encerrar numa casa de religiosas em Marburgo. Deram-lhe o hábito cinzento de burel das clarissas, de capuz e cinto de corda com três nós. Pouco mais durou, pois a sua vida era sempre a mesma, com hábito ou sem ele. Assim se foi aos vinte e quatro anos este coração de criança. Logo que o imperador tomou nota do tocante conto da soberana da Turíngia deu-se a canonizá-la. Não era preciso, pois o povo, desde o Hesse à Francónia, já a turibulava como a anjo descido do céu para minorar o sofrimento dos miserandos deste mundo. Não tardou que se metesse no culto o esposo, o príncipe que despertara nela a vocação do céu e se fora numa terra sem nome, nas praias do cerúleo Mediterrâneo, quando secundava a aventura do segundo barbirruivo.

O corpo de Isabel da Hungria arrefecia ainda, quando Jaime I deitou os olhos para a planície do Danúbio à procura de matrimónio e se decidiu pela filha de André II. Violante da Hungria era cerca de dez anos mais nova que a meia-irmã Isabel. Não tinha a mesma fêvera de combatente do espírito, mas mostrava ainda assim qualidades que podiam fazer a felicidade dum destro como Jaime I. Ao que lhe diziam os legados aragoneses que batiam meia Europa à procura de desentocar esposa para o rei, a menina magiar era brava e indómita, além de ser galante e musical. Vista no coxim da sala, diziam, tinha aparato de onda cálida e luxuosa.

– Tem bolsa de maravedis presa no cinto e sapato ferrado? – mandava perguntar o rei suspicaz.

Chegava de volta a nota, garantindo que não. A menina usava túnica de púrpura, ao costume de Constantinopla e parecia puela romana do tempo áureo de Octávio Augusto; nos braços nus punha braceletes de prata e até no artelho passava a sua anilha preciosa, de oiro e pedraria, ao modo das moirinhas de Córdova. Era useira e vezeira em artimanhas de chiste e casquilharia. Tanto bastava ao rei de Aragão.

A derradeira surpresa que queria em casa era mulher tão pundonorosa como essa Leonor de Castela que pusera a andar, com a ponta do pé, antes da campanha das Baleares. Não tinha porém propósito de reformar os hábitos de femeeiro. As mulheres eram para ele como as terras novas do Sul; tinham tanto de extravagante como de atractivo. Como pombas assustadiças, era mister pôr-lhes a mão de manso nas asas, com blandícia, sussurrando baixo, para não as espantar. Festejadas e cortejadas tornavam-se mais airosas. E estava com o imperador: se era festa e donaire aprender o árabe para chamar à mesa do banquete judeus e muçulmanos, então ao menos que se fizesse uso dessa docilidade excelente, almadraque de plumas no ginásio da civilização,  que era o harém.

– Louvado seja Deus por hábito tão garrido – dizia adrede.

À medida que se fizera homem taludo, garantindo o mando e colhendo o favor indisputável dos homens, mais se chegara às donas. Não era descarado e materialão a ponto de apresentar as mulheres como num circo, dando espectáculo, mas gostava do volteio e de ter a sua barregã em cada castelo por onde circulasse. Tivesse agora a esposa buço rijo de arame ou massa branda de açúcar tanto lhe dava. Nesse campo não pensava reformar os cavalos.

Mandou vir a menina da Hungria e contentou-se quando a viu. Temia-se dos avisos dos legados, burlões e interesseiros, segundo ele; receava pois uma santa desbragada, que confundisse casquilharia e devoção, e aparecia-lhe uma donzela em idade núbil, pestanuda e sumarenta, além de recatada, que não se diferenciava em nada das mocinhas nédias e cheias que ele tinha por hábito requestar.

Combinou-se o casamento para a catedral de Barcelona. Desde a aventura das Baleares que o rei se enamorara de Barcelona, a cidade branca, de casas de alvenaria, com vastos terraços caiados donde se podia avistar a frota que empavesava o mar. Os quatro bairros da cidade fechavam-se em cerca de dez portas, cinco delas voltadas ao mar. A zona ribeirinha, entre a Porta Antiga e a do Sol, concentrava os ofícios, os comércios e os desembargos relativos à navegação e ao pescado. Nas traseiras, entre a Porta das Pulgas e o Baluarte do Esporão, ficavam as humildes choupanas de colmo negro onde viviam os reguengueiros e os colonos, no geral mouros forros, que labutavam nas hortas e nutriam a cidade de hortaliças, frutas, carne e farinhas. As ruas eram amplas e limpas e a alcáçova de Montjuich, no cimo dum socalco, flanqueada pela catedral, tinha quatro torres albarrãs de dez côvados de altura.

A tomada de Maiorca abria perspectivas de grande crescimento ao burgo, já que a cidade vivera até aí apertada pela concorrência directa de Palma e pelos ataques da pirataria islamita. Agora, com o desafogo dos mares, a veniaga para Marselha, Génova, Roma e Palermo prometia, além das carreiras diárias para as Baleares. O arsenal sofrera expansão notável e todos os dias os calafates faziam rolar nos troncos que serviam de calhas nas areias do porto galeotas, fustas e naus que iam engrossar a floresta de mastros que se baloiçava jactante nas águas, mansas e azuis, em frente da cidade. O mesmo as terecenas, que empregavam agora o dobro dos homens e se começavam a expandir para sul, rasgando ruas novas nos arrabaldes, em direcção da foz do Llobregat. A cidade começava aos poucos a viver desafrontada no exterior da apertada cinta de muralhas que fora no tempo do lendário Carlos Magno o seu miolo inicial.

O rei, colhendo este movimento, deu em trocar o palácio de Saragoça pela alcáçova de Barcelona. A cidade era amorável, sem frios exagerados nem estiagens de torrar, como sucedia no interior do vale do Ebro. Demais, o catalão, industrioso e vivo, era vizinho fácil, que se bastava a si, no ofício de remador, cocheiro, empregado de copa, regatão, tiborneiro, curtidor, cesteiro, ourives, belfurinheiro, almocreve, doceiro ou outro afim; ao contrário, o aragonês, mais estrambótico e pedante, era de formalidades penosas e exigências constantes. A expansão para Valença, corroborada em sucessivas cúrias régias, prosseguia impante, com a ocupação de várias localidades no litoral. Assim, a cidade catalã disputava a qualquer outra a primazia; vibrava nela por todas as razões conhecidas e desconhecidas o novo centro sensível da confederação nascida do casamento de Raimundo Berengário com Petronilha de Aragão.

Realizaram-se pois os esponsais de Jaime I e Violante da Hungria na catedral de Barcelona. Dali foram os esposos para a alcáçova, onde o rei pedira arranjos recentes, não sei se para cumprir com elevação a funçanata ou se para impressionar a donzela que vinha dos castelos de pedra do Danúbio. As bodas foram demoradas, com vinhos de Gerona e Huesca a correr a rodos. Os menestréis faziam soar pífaros, sistros, atabales, trombas e tamborins. Pelas ruas, os servos do paço distribuíam mimos aos mesteirais e homens-bons; açafates de tibornas, bôlas de ralão e regueifas corriam de mão em mão. Nas praças rodavam ao fogo, em espetos de ferro, a assar, novilhos, que eram dados a quantos queriam. Ao perto, estavam tinas de vinho a nenhum vedadas e em que todos se serviam a gosto com canjirões de pau. E o povo comia, bebia e bailava, a passo medido, braços ao alto, rolando o polegar no anular, ao som dos adufes, num rufo tangido, e à luz de oiro das tochas com que o rei mandara enfeitar as quelhas.

No himeneu, a esposada tirava túnica e véu; mostrava os lábios carminados e os olhos aumentados, boiando como duas luas cheias na brancura do rosto, sublinhados que estavam com fumos de carvão. Os cabelos rescendiam aromas de unguentos magiares onde entravam o nardo e o cinamomo. Quando o rei a contemplou em camisa, vendo-lhe através da seda transparente a curva lânguida do corpo, o relevo saliente dos seios, tão pequenos e duros como duas metades de marmelo, os braços apertados de braceletes esplendentes, suspirou, para exclamar de satisfação.

– Boa razão tinham os gardingos. Vista no coxim é com certeza mais voluptuosa que onda cálida.

A rainha não lhe entendia ainda o linguarejar vulgar mas era experta em ler a gulodice dos olhos e o latejar dos lábios. Entregou-lhe o hímen da flor e mostrou doçura humilde e tímida, aninhando-se com arrulhos de carinho nos braços rijos do varão. Revirava os olhos de delícia e punha palpitações brandas nas pomas do peito. As curvas do corpo, mais quentes que brasa, electrizavam como anémona de veludo. O rosto afogueado parecia um incêndio de Verão, à hora terça. Que diferença para com o calhau quadrado que lhe regulara as contas e tivera mão de ferro nos servos de dentro!

Corria a época em que os fradolas de Domingos de Gusmão punham de pé a fábrica do horror, ganhando ascendente dentro da Igreja. O papa já os via como a primeira guarda da doutrina. Nos condados do sul da Gália as casas dos irmãos pregadores haviam-se multiplicado como os pães e os peixes na Galileia, no tempo de Jesus. Haviam começado com um miolinho – o pai fundador e a meia dúzia de seguidores – e estavam agora com um forno gigante de fazer pão, bôla e arrufada, mais de cinco mil abrigos distribuídos entre a Lombardia e as fraldas de Aragão. A azáfama era tanta que havia sempre um par de frades a trabalhar, noite e dia, em cada localidade; nem uma fresta ficava por varrer com tal cuidado. Ao mesmo tempo, a resistência militar, com o tratado de Paris, entrava em momento de desespero e retracção. Ao lado da Igreja bogomila ficavam apenas os faydits, cavaleiros intrépidos da pequena nobreza rural, sobretudo da região pirenaica, ligados por laços de estreito parentesco com as diaconisas e restante clero cátaro. Começava nessa altura a grande diáspora em direcção de Montségur, que se tornaria durante uma década a nova e segura Jerusalém da Igreja perseguida.

Entretanto na Itália marralhavam as lutas entre partidários do papa e do imperador. Os guelfos, persecutórios, deitavam mão da peçonha para limparem dos Estados pontifícios a gramínea gibelina, ao mesmo tempo que faziam levantamentos de aleivosia e traição no Piemonte e na Lombardia. O papa, desejoso de ver por terra tão poderoso trambelho, pagava os primeiros brigões para meterem bulhão às ocultas no peito do imperador. Este, iludindo as rufiadas, começava o derradeiro troço da sua actividade, diga-se, mais ridículo que martagão. Perdia o pêlo, corava o rosto, descria de razões. Quão longe andava já nessa época do tempo em que ao lado de Constança de Aragão equilibrava na ponta do mindinho, sem esforço, o prato do mundo novo! As tristes distracções que agora o entretinham eram as gatas do harém e as gárgulas disformes do seu circo de animais exóticos. Entrara, é certo que perspicuamente, no plano inclinado e decadente da vida.

Por seu lado, Jaime I ia de vantagem em vantagem. A mulher não desmentia o que dela percebera nos esponsais. Era sensual e exótica, sem deixar de ser reservada e até severa em público como convinha a rainha de reino com aura de sisudo. Demais a fecundidade não lhe faltava. Poucos meses depois da boda apareceu logo cheia, sem que isso a mareasse com o mundo como afinal acontecia a tantas mulheres. A prenhez não lhe dava nojos nem repelões, antes a serenava. O parto, no termo do tempo certo, foi tão regular e natural quanto a passagem dum astro do alto céu para a cinza do horizonte. Não tardou a encher de novo e a despejar com a mesma regularidade de milésimo. Tal como o balão da Lua subia e descia na carreira celeste, umas vezes cheio, outras vazio, também ela crescia e minguava sem que isso lhe alterasse a fácies de atracção e mistério. Nunca deixava de ser a Violante da Hungria, de unguentos magiares e túnica de seda. Antes se diria que as dilatações da prenhez e os apertos do parir lhe sazonavam o corpo, tornando-o mais elástico e apetitoso.

Em pouco mais de três anos metia Jaime I dentro de casa três pitorros, duas meninas e um menino, futuro Pedro III, que Dante apodou de excelso na sua comédia. E não há paradoxo como este! Uma comédia muito mais terrível que cómica! O rei, que passava por emotivo e sentimental, fazia ainda assim cálculos irrequietos para tanta e tão boa fazenda. Era a época em que Fernando III de Castela e Beatriz da Suábia punham mão falcata na Córdova madura do Califado, preparando-se para colher Jaém, Carmona, Sevilha e Cádis, as quatro espigas gradas da serra Morena. A nova união de Castela e Leão paramentava o vestido com as pérolas do Guadalquivir e ficava ainda mais distinta e perfeita que no tempo do talismã toledano de Afonso VI. Fernando III, casado com uma prima-irmã de Frederico II, fazia do corredor central da Península uma outra extrema da Europa, onde se rapiocava o tacho e o jarro com judeus e muçulmanos. Os fradetes pregadores bem se podiam juntar à esquina a crocitar argumentos de ferocidade, que ninguém aqui os chamava para espias de heréticos e de infiéis. Ficassem pois pela parlapatice, que ainda lhes cabia meter o dedo na pândega. Melhor andavam os de Francisco Bernardone, amantes dos caminhos e das pedras, adictos das ruínas ovelheiras, muito dados às visões, ao cenobitismo, à pobreza e ao deixar correr.

– Os fradinhos menores, de hábito cinzento e corda na cintura com três nós, são tão devotos de Cristo – exclamava-se com enlevo. Para logo se juntar com malícia picante.

– … E mais ainda do seu sangue.

Com a Suábia assim a correr por perto, ou a Sicília dentro de portas, Jaime I não deitava olhos mais além para colocar a fazenda que tinha em casa. O negócio para cá dos Pirenéus, no lastimável estado em que os condados do sul da Gália andavam, Montségur sitiada e os podengos de capeirão preto açulados para mandar queimar heréticos, era o mais seguro. Demais não havia parentela próxima do imperador livre de embaraços e compromissos. A luta entre o papa e o imperador, apesar do plano desfavorável a este, tinha ainda momentos de equilíbrio. Pela segunda vez excomungado, Frederico II cogitava agora em nova carta aos monarcas europeus, propondo desta feita nada menos que a extinção do papado e a nacionalização dos bens da Igreja. Todos diziam que letras assim ousadas iam ser mais perigosas que pedras calibradas em catapulta apontada às muralhas de Latrão. Diante de tal perspectiva os familiares de que dispunha para fazer negócios e parentes nas casas aliadas não lhe chegavam para as requestas.

– As meninas vão direitas para os herdeiros do parente de Burgos – decretou Jaime I.

E não tardou muito que a mais velha fosse maridar o futuro Afonso X e a segunda o infante Manuel, pai de João Manuel, o mesmo que mais tarde mandou a filha mimosa, Constança Manuel, de presente ao príncipe Pedro de Portugal, dando origem ao episódio de Inês. O rapaz, Pedro III, logo veria onde o colocaria, mas o mais acertado era procurar-lhe enlace fora da Península.

Mas além de rica de enfeites, daquela abundância que dava vontade de repetir, Violante da Hungria não era para despautérios. Na corte reservava-se como dama de bom trato, séria e circunspecta, fazendo de conta que vivia apenas por cerimónia; em privado tinha comoções e desgostos como toda a gente, mas sabia calar e compensar. Assim, quando o marido se começou a cansar de apaladar o mesmo prato, habituado que sempre andara a variar de ementa, e isto desde a primeira idade púbere, ela engoliu em seco o amargo da situação e pouco se rebelou. Limitou-se a um arrufo silencioso e por fim, quando as saídas do rei se fizeram notórias no pequeno círculo dos ricos-homens palacegos, dando lugar a dichotes reservados mas mordazes, a um veredicto menos duro que estratégico.

– Se andas a visitar outras donas, não venhas ter comigo.

Durante algum tempo deixou o rei de aparecer na câmara da rainha. Era homem de harém, com muito convívio muçulmano na vida, que tinha por modelo Frederico II, conhecido pelo espectáculo feminino que dava em casa e fora dela. Também ele, rei de Aragão, da Catalunha, das Baleares e da Valença moura, não se concebia sem uma sala grande de mulheres. Voltaram os bastardos do rei a brotar como túberas escondidas no Outono.

Depressa ressentiu porém a falta da rainha. Uma coisa era um salão feminino com a rainha por cabeça; outra era um salão sem o peplo dela. Violante da Hungria, além de peça que se degustava com desejo na lembrança, e por isso com ardor renovado, era conselheira de ânimo. A tomada de Valença e dos burgos que lhe ficavam na rectaguarda, numa altura em que o rei parecia querer frenar os primeiros impulsos da expansão, beneficiara muito do empenho que ela pusera na empresa. No fim o rei agradecera-lhe a diligência. A campanha revelara-se a mais equilibrada de quantas empreendera desde o acordo com o tio abade. Os mudéjares, em vez de fugirem com a trouxa às costas, por lá haviam ficado, a labutar nas hortas e nos ofícios; o mesmo acontecera aos judeus, que não despegaram das tendas onde mercanciavam a veniaga pobre, das rosquilhas de pão aos vasos de barro cozido, passando pelos vidrilhos coloridos e pelas uvas de Málaga, ou a muito mais fidalga dos adornos de oiro e prata, quando não da banca de câmbio do maravedi, da dobra ou até da libra real.

– Não há modo de dispensar uma mulher assim – concluiu o rei ao fim de pouco.

E voltou-lhe ao leito, dizendo que dava de barato a ementa que lhe serviam por fora. Preferia a comida de dentro, a bom recato e sem rebuço. Voltaram os filhos a nascer em catarata; quase não havia ano em que não lhe aparecesse dentro de casa mais um. Num rufo, voltava a ter em seu redor um pomar de rebentos, três rapazes e três raparigas. Estava outra vez rico para dar e vender alianças.

Andava de bem com a vida. Montségur caíra e a Igreja cátara desaparecera na pira; o imperador catapultara a carta contra o papa, fazendo-a circular por toda a Europa, mas a impressão que dava é que perdera a pujança de outrora, quando o seu nome era defeso em qualquer abadia tal o pânico que levantava. Todos estes factos não eram maravalhas para quem perdera o pai nas terras de Muret e amargara em Carcassona, menino ainda de aia, nas mãos brutas do assassino do pai. Ainda assim eram de somenos para quem como ele voltara costas ao levante. Avançara entretanto para lá do Guadalaviar e tomara a província que ficava para cá do Jucar. A campanha fora ainda mais desprendida que a anterior; chegara sem custo às portas de Múrcia, quase sem tirar o montante do cinto. Chamavam-lhe já, com ufania, se não com soberba, o conquistador, mas aquilo que na verdade ele sentia dentro de si era um cavalheiro de avenças, civilizado e astuto, que tomava por modelo a entrada de Frederico II em Jesusalém depois de parlamentar às boas no Cairo com o parente de Saladino.

No fundo, quando juntava as pontas da vida recente, cruzando as contrariedades do imperador e os sucessos que ele próprio vivera além da cordilheira de Albarracim, merencorizava de bom humor.

– Afinal, no tabuleiro, parece que só fica o adjunto.

Era desabafo de homem realizado em momento de solidão, mas podia tinir como profecia. Ao invés de Frederico II que no mesmo momento, fechado na Apúlia ou na Calábria, descria de tudo e lembrava a queda da Occitânia como o estrondoso desabar das flechas de pedra das novas catedrais, Jaime I mandava aprimorar Poblete e Santa Creus, os dois grandes conventos cistercienses do tempo do avô, Afonso II, onde a abóbada em nervura da nova arquitectura bregonhona fora pela primeira vez enxertada nas toscas casas conventuais da Península. Ao mesmo tempo dava um novo semblante a Barcelona, preparando-lhe a fácies burguesa e aventureira. Uma nova muralha nascia, contendo dentro de si a extravagância dum barri gótic. Radiavam na pedra as primeiras rosas polilobadas. A catedral, o palácio real, o episcopal, a igreja de Santa Catalina, a bolsa, a alfândega, o arsenal ganhavam foros de exórdio duma Jerusalém futura.

– Eis o céu ao alcance da mão ­– exclamava, quando via a renda da pedra trabalhada de mistura com a luxuriante e fosfórica vegetação dos novos jardins plantados à beira-mar.

De momento porém o futuro pouco lhe importava. O que lhe ia era vizinhar a esposa, que de mármore magiar passava a cristal da Boémia. Ainda assim não deixava de investir por fora, só que desta vez longe dos dichotes mordazes do círculo da corte. Preferia os páramos secretos aos tálamos ilustres. De tanto chegar à fala com os mouros de Valença e Jativa, para nada dizer do devaneio juvenil de adjungir o barbirruivo da Sicília, fizera-se femeeiro incorrigível.

Violante da Hungria era porém muito ciosa dos pertences, nisto se mostrando muito diversa daquela irmã primaz, Isabel da Turíngia, que não aguentava na arca, enquanto houvesse por perto um desgraçado, uma túnica pregueada ou um escarpim em pele de gamo. Desde a vinda para Aragão e Catalunha que a filha de André II tinha um nó na garganta. A princípio era um pólipo mole e insignificante, que se adaptava à mucosa como limo a molusco escorregadio, mas depois, à medida que os filhos foram nascendo, tornou-se bossa fibrosa, incómoda e deslocada. Ao fim dum tempo, já não suportava a protuberância estranha. Em vez de molusco plástico e fluido fazia-se tortulho duro e amotinado.

Que mal-estar era esse? Ora, qual havia de ser. Chamava-se Afonso e era o primogénito de Jaime I. Nascera quase por acaso nos conturbados dias das avenças de Jaime I com o abade de Montaragon e era produto da ecónoma do real palácio da Alfajeria. Fora reconhecido à nascença como primogénito do rei e em 1240 a cúria régia tomara-o como herdeiro da coroa de Aragão. Foi nesse momento que a menina húngara estrangulou o nó que tinha na garganta. Não houve modo de lho aliviar. Foi ela própria que se meteu ao assunto, quando o rei lhe voltou para os braços.

Falou mansa, quase críptica, a princípio.

– Os nossos filhos, Jaime, não hão-de ficar nas mãos de ninguém.

O rei sossegou-a com afoita energia. Cavilava em partilhas, afirmava. Mas mais interessado se mostrava nos apotegmas do amor que nos equívocos da repartição. Nenhum exórdio se fez. Ela agastou-se. Não podia pensar que os herdeiros ficavam dentro de portas a prestar vassalagem ao filho duma proscrita, Leonor de Castela. Via Afonso crescer na soberba de se pensar o herdeiro da coroa e temia pelos filhos. Demais na corte todos faziam questão de aceitar Afonso como primogénito do rei e, o que supino era, como herdeiro da coroa de Aragão. Em breve o julgariam com direito aos novos territórios do pai, com Jativa e Alcira à cabeça. Estava aterrorizada, a esposa de Jaime I. O nó que tinha na traqueia era pior que peçonha de víbora.

Sufocava tanto que só a revolta lhe podia aliviar o garrote. Fazia-se mulher cruzada de gato tigrado. Meteu os filhos no ódio ao enteado e falou desta vez grosso ao rei.

– É tal o dano em que me vejo que só quando os nossos filhos abrirem a guerra terei sossego.

E insistia, açulando-o, ainda mais irrequieta.

– Mais me vai o dano da guerra que o dano desta afronta.

Jaime I, que logo percebera o mal-estar da rainha no que dizia respeito ao enteado, deu em pensar no assunto com inquietação. Os territórios que havia por seus estendiam-se do Rossilhão, além Pirenéus, até Múrcia, quase às portas do grande oceano do fim do mundo. E não punha nas contas o senhorio de Mompilher, herdado da azougada mãe, e que dele continuava sendo, nem os condados da occitânia, que lhe pertenciam por direito centenário mas que a cruzada da vergonha, conclusa com o grelhador de Montségur, em definitivo lhe roubara.

Demais o mar crescera muito, pois alargara a influência aos dedos das Baleares, um reino de quatro ou cinco pérolas no meio da safira da água. Já alguns barcinonenses experimentados no tráfego para Génova e Roma falavam de alargar a expansão aos portos ocidentais da Córsega e da Sardenha, onde as fustas catalãs eram recebidas como suseranas. Seria devaneio, mas ainda assim deixava preto no branco a força da coroa que recebera do pai. Nunca os territórios unidos pelo casamento de Berengário e Petronilha haviam sido tão vastos e tão vários! Ninguém os sonhara assim a perder de vista, com contornos tão variegados e ricos! Era um embutido de peças pequenas que ao modo dum mosaico formava desenho seguro e ingente. Não chegava porém a grandiosidade da representação para lhe resolver o enredo.

O reino, tal como ele o tinha de momento, era um imbricado de parcelas; logo da convergência das partes nasceria o todo. A tradição foral estava na raiz da confederação de Aragão e Catalunha; fora também ela o penhor que pusera na mesa para negociar a integração na coroa de Valença e Jativa. O sonho, mesmo não o confessando, era que um dia o reino se fizesse império com os vários feudos por alvéolos e os vários reis por senhores. No cimo, como flecha do edifício, estaria o novo Alexandre dos Estados onde se falasse ou entendesse o matizado patoá dos Pirenéus orientais.

Fizera-se no passado sectário instintivo de Frederico II porque o pai lhe morrera em Muret, humilhado na luta contra os cruzados do papa, e o imperador era na Europa da época, por tradição familiar, o figadal inimigo do papa. Esse fora um motivo espontâneo e sentimental mas não exclusivo. Outros havia, mais maduros e ponderados. Além do gosto imparcial que o segundo Frederico punha na cultura árabe, e que tanto o ajudara a polir o projecto de expansão para Maiorca e o Guadalaviar, estava a superioridade que o imperador evidenciava por governar príncipes cristãos, apresentando-se ao orbe, com a displicência de quem estava acima de qualquer disputa, como rei de reis. Não repugnava assim a Jaime I dividir pelos herdeiros o que havia colhido pelo mundo com mão cauta. Era manha de prospector , pouco mais, mas tanto bastava para esperar com ela barrar a indisposição da rainha.

Fez-se o testamento do rei e dividiu-se em cúria régia o reino em fracções autónomas; pôs-se em cada uma delas um herdeiro por titular. Ficavam as meninas de fora porque já haviam partido para casar, como sucedera a Constança, que casara com o herdeiro de Fernando III, ou haveriam um dia de seguir o destino da mais velha. A Afonso, o primogénito, coube a coroa primigénia, a de Aragão. A Pedro ficou o principado da Catalunha e o reino de Maiorca. A Jaime calhou o reino de Valença e a Fernando, o cadete, enfezado e dolente, sobrou o condado do Rossilhão e o senhorio de Mompilher. Serenou Violante da Hungria por ver os filhos arrumados em sua gaveta. Também ela, resultado que era das destrezas de Constantinopla, entendia a astúcia que corria pela decisão do marido. Ainda assim não tinha a ânsia do porvir.

– Logo se verá quem será a abóbada da construção.

Quem desembestou desta vez foi o primogénito do rei. Ao contrário dos irmãos, pegados ainda a mama e cueiros, Afonso era rapaz a atirar ao homem. Cresciam-lhe na cara as primeiras cerdas ásperas e manuseava a durindana da cabeça aos pés sem o menor embaraço. No lugar da materna proficiência tinha talvez um jeito de meticuloso ou de maníaco, que descaía na susceptibilidade fácil. Percebera há muito a desconfiança da madrasta, mas andava longe o bastante, no lufa-lufa dos ricos-homens, para lhe sofrer a má cara. Para bem dizer nem dela se lembrava nas surriadas em que gastava os dias cómodos da mocidade. Com a desafogada opulência que o pai amealhara nas torres albarrãs do reino fizera-se um estoira-vergas sem rival.

Mal soube porém das decisões do testamento não se conteve. Reuniu à pressa o novel círculo dos privados, explanou queixas e diatribes. Por fim esteve vai-não-vai para lançar uma rebelião que fizesse regressar o tempo negro da prisão do rei nos calabouços de Saragoça.

– Haja a ponta dum montante, senhores. Ninguém espedaça o reino de meus avós como se fosse ração distribuída em casa de podengos.

Mas a época mudara. Jaime I não era mais o mancebo inexperiente e ignaro, saído do desastre de Muret, a quem uma parte da nobreza, mancomunada com o papa de Roma, aproveitara para deitar o laço. Uns queriam mordomias; outros o abandono da estratégia de apoio militar aos condados heréticos do sul da Gália. De momento, entre pares, o rei erguia-se como o Héracles sem discussão que fizera as geniosas campanhas das Baleares e do Guadalaviar. Demais era mirado como o vedor que tornara Barcelona a cidade esplendente do novo milénio. Concitava a admiração genérica e não havia, salvante Afonso, quem ousasse levantar contra ele uma palavra de desfavor. Até o clero regular, tão cru e tão cioso de excepções, não o desquitava. Farejavam-lhe a manha e a gramínea de gibelino, mas deixavam andar que a Hispânia não era a Provença, menos ainda a Silésia ou a Prússia bordalenga, e não havia decerto Inocêncio III que se atrevesse a levantar contra ela uma cruzada de pendão e espada.

Contumaz na rebeldia, não restou a Afonso senão exilar-se no reino da mãe, onde reinava o primo-irmão Fernando III. Beatriz da Suábia falecera já mas o projecto de expansão no Guadalquivir prosseguia. Jaém acabava de chegar às mãos do rei de Castela e Leão; a avalancha das operações rolava agora diante de Sevilha, sempre de acordo com o vetusto princípio que inspirara a Afonso VI a acertada designação de rei das duas religiões ou imperator totius Hispaniae. Por lá andavam, mais de topete feito que de elmo descido, o rei e o príncipe, o futuro Afonso X, cunhado de Afonso, casado com Constança de Aragão. E para lá se dirigiu o filho de Jaime I com os privados, na esperança de se fazer ver na campanha. Depois, por via do crédito grangeado, esperava meter os parentes de Castela em lanças contra o pai e os irmãos.

Não gostou o rei de Aragão da feição que as partilhas tomavam e, sem tocar na direcção do princípio, que tinha o assentimento da rainha, ajeitou-as ao modo do primogénito. Não queria testilhas com Castela numa altura em que a descida do Guadalaviar excedera todas as promessas, abrindo trilho para Múrcia, onde Ibn Hud, se tornara vassalo, por acordo hábil do príncipe herdeiro, de Fernando III. Elche e Alicante, na estrada de Gandia, ninguém lhas tirava e só esperava ensejo de lhes lançar o chapéu de raposão. Por codicilo, voltou a cúria régia a deliberar novas partilhas, tanto mais que dos quatro varões já só cá estavam três. Fernando, o raquítico, já lá ia como raiz que não vingara em tronco e braços; apodrecia na arca de pedra do panteão de Poblete, nos sertões de Montserrat, a poucas léguas de Barcelona. Desta vez Afonso, além de Aragão, recebia Valença. Jaime, que perdia o negócio promissor do Guadalaviar, ficava com Maiorca e Mompilher, enquanto o primogénito de Violante, o futuro Pedro III, ficava com a Catalunha e o Rossilhão. Regressou a contento Afonso das marismas do Guadalquivir. Quando lhe falaram em pedir perdão ao pai, empertigou o peito.

– Só quem erra tem de pedir perdão. Quem não erra fica assossegado. Eu não errei, senhores. Porende me vereis calado.

Demais a mais não estava satisfeito. Andara pela Suábia castelhana o bastante para perceber a manha que se escondia por detrás da decisão do pai. E bem vistas as partilhas, ao invés das aparências, não lhe cabia a parte de leão, pois Aragão era a velha decrépita da casa, nada mais. O porvir estava na lista catalã, e até no pequeno Rossilhão, onde o pai tudo investira nos últimos anos. Não era por descaso que Barcelona era gabada como a nova maravilha do mundo e Perpinhão começava a tecer os panos mais ricos que ainda se haviam visto. A cidade do Llobregat crescera como nunca se vira acontecer a outra e a riqueza que todos os dias lhe entrava pelas águas era tanta que o batalhão dos escrivães da alfândega crescia hora a hora. Havia derrotas quase diárias para os portos da Palestina e até para os da Flandres, tocando Lisboa e a Biscaia, para já não meter nas contas as que aportavam aos portos vizinhos do mar Tirreno. Chegavam a sair duas vezes por dia comboios com destino a Marselha, Génova e Nápoles. Quem tivesse a cidade na mão, tinha a suserania dos irmãos. Ora a cidade ficara-lhe fora do quinhão; havia caído por inteiro no saco do irmão Pedro, decerto por esperteza velhaca da madrasta.

De qualquer modo, Afonso percebia bem que no peito do pai morava mágoa. Chamava-se a mancha Muret. E doía, mesmo que não pungisse na hora como outrora afligira como nos cárceres de Carcassona. À medida que os anos desenovelaram o fio, um véu de névoa caíra paulatinamente sobre os eventos da infância, apagando-lhes os contornos graves de horror; eram hoje um mar de cinza, sem esquinas nem picos. Doíam, doíam ainda assim. Sempre que no meio da filáucia em que andava, acumulando sucessos no leito e no reino, se recordava do pai infausto, descabeçado em Muret, sobrevinha-lhe uma ligeira náusea. Não tanto pelo pai, que mal dera por ele nos primeiros anos, mas pelas vastas tafularias que iam de Foix ao Ródano e que haviam feito no tempo do avô a sublimidade da coroa de Aragão. Isso, sim, pungia, pungia fundo, mesmo que em troca lá tivesse posto as pérolas do Mediterrâneo, o oiro dos minaretes do Guadalaviar e a prata do acume comercial que as galés catalãs embolsavam.

Afonso percebia-lhe a tristeza e prometia a si mesmo secar-lhe as fontes. Um dia recuperaria os condados da Gália mediterrânica e logo o pai veria nele a mão inevitável do reino. Então lhe poria no saco a lista catalã com a pérola barcinense cerzida ao tecido. Começou por procurar enlace nas terras fustigadas pela cruzada e lá desencantou parente que lhe servia de alpodra para pôr pé seco em Toulouse. Depois fez-se ao pai com falas duras, contrárias ao rei de França. Jaime I, que tivera o primogénito por perdulário e o tinha agora por procaz, fez-se desentendido.

Mas Luís IX, o carrasco de Montségur, o vedor atento dos pregadores de Domingos de Gusmão, andava metido na desesperação de Mansurá. Os Franceses, atolados nas lamas do Nilo, espalmados na parede da fortaleza, sem cairel nem amparo, morriam como baratas tontas apanhadas por carreira de fogo mortífero. Aproveitou Afonso para devanear uma contra-cruzada que num rufo de tambor recuperasse o que se perdera.

– Agora – insistia ele com o pai – a desforço é seguro.

Mas Jaime, além de fatacaz e prudente, era cavalheiro. Continuou pois a fazer-se desentendido, embora no recôndito do pensamento pusesse ao menos uma letra de benção aos projectos do filho. Assim como assim era tentação defesa voltar de novo o braço contra os Franceses. Abanava por isso a cabeça em sinal de desaprovação, falho de interesse, e atirava, para o descoroçoar de vez, um dito fatal ao rapaz.

– Quero que saibas que vou mais depressa pôr a mão em Jerusalém do que em Toulouse.

Entretanto chegava a disenteria que limpou deste mundo o imperador. Conrado, seu filho, herdeiro do reino de Jerusalém, arrebatou-lhe da mão fria a bandeira das águias gibelinas. Com o pendão bem alto, cruzando sem cessar as cristas apeninas, prometia reanimar os partidários e dobrar a cerviz da petulante cidade do Tibre; mostrava-se denodado e esforçado, sem freio nem obstáculos. Época houvera em que o imperador o ordenara mordomo de correrias e monteiro arrebatado de virtudes.

Em Aragão, por momentos, as atenções concentraram-se na cavalgada de Conrado. Violante da Hungria, que crescera na admiração dos brios do Hohenstaufen, acomodava-se ao revelim de Barcelona, debruçando-se no parapeito atenta ao choque que lá vinha. Era como se apoiasse o braço em palanque de justa ao ar livre – arnês, pique, gládio, cavalo fouveiro a escarvar o chão como dragão furioso, gonfalão heráldico de três pontas a esvoaçar na aura agitada e conto no estribo. Dentro de si não perdoava ao rei as visitas, mesmo discretas, aos almadraques macios de outras donas, mas agradecia-lhe a luta em que andara com Afonso por causa dos filhos. Agora, nas tranquibérnias do papa, tinha um momento de repouso e distracção.

– Há-de querer o filho vingar no papa os danos que lhe fez no pai. Curiosa coisa é de se olhar.

Mas não chegou a gozar de espaço para mirar fosse o que fosse. Não correra ainda um ano sobre a partida do imperador, adoeceu ela de febre maligna. A princípio, tremendo de frio, lacrimejando dos olhos e tossindo um tanto, os físicos falaram num resfriado ligeiro que depressa se emendaria. Depois, quando a febre obstinou e a tosse se encatarrou no peito como hábito vicioso, deram o alarme mas ainda assim acreditaram na emenda. Por fim, mal a rainha perdeu de todo o siso com o incêndio da febre, deram por radicado o erro e por impossível a correcção. E em menos de nada se foi a rainha para outro orbe. Neste fechou os olhos e não mais se mexeu, hirta e glacial. Bateu o saimento lastimoso, acompanhado por muito povo, para as verdoengas solidões a sul de Montserrat, cerca de Montblanc, onde já dormia o sono indelével o filho enfezado Fernando.

Era mulher de trinta e poucos anos e muito se espantou o reino de despedida de rainha assim jovem. Dera à luz nove filhos, sinal salutar, além de penhor seguro da devoção que lhe dedicava rei com passada tão larga como femeeira. Dizia-se que não havia castelo a juzante do Ebro onde ele não tivesse cabeçal de dona onde repousasse o toutiço. Isto para não pôr na aritmética Vic, Urgel, Gerona, Huesca ou Monzon, primícias das suas conquistas; por lá pululavam os bastardinhos simplórios e sem nome que foram os primeiros rebentos de Primavera deste Adão úbere e povoador. Para bem dizer nada fazia prever o passamento de mulher tão determinada como benquista. Morreu porém de costas voltadas ao rei, com a mágoa de o saber tão impenitentemente infiel.

O rei, que a estimava como rainha e a prezava como mulher, ressentiu o desaparecimento e durante um tempo andou aos tombos, rondando solitário o sarcófago das serranias, em Vallbona de les Monges, mais parecendo lobo perdido da alcateia que homem assisado de luto. Tinha o nojo do luto, mais o remorso do mau porte. Uivava à Lua, dormia nas penedias, bebia nas fontes, trincava carne crua que ele próprio frechava ao alvorecer. As barbas encresparam tanto como mar em dia de tempestade e a figura de grande naco fez-se adarve grosso de fortaleza. Menos lhe custara pôr mão nas praças do além do que perder o corpo galantinho da rainha húngara.

De regresso, levando o cavalo pela arreata, os olhos baixos no chão, o coração a pular fugitivo como láparo em sobressalto, chegou a pensar fechar-se num mosteiro de cister, envergando o hábito branco, ou mesmo tomar o alforge, as sandálias e a corda de três nós, fazendo-se mendicante, para se pôr a caminho de Compostela, na finisterra do Poente.

– Há trinta anos que rejo este reino – exclamou ele na corte, em Barcelona. – Meu pai regeu-o pouco mais do que quinze. Eu vou a dobrar. Sabede, senhores, é tempo de desquite.

Estava disposto a abdicar nos filhos e meter-se a frade. Faltava-lhe um lustro para o meio século de existência, vira muita terra e pusera muito trilho novo na História. Pegava na guedelha, mais comprida que o musgo das luras de Montserrat, e via os fios de prata a brilharem na mão como raios finos de luar. Julgava-se já na noite da vida, quando o melhor é repetir ladainhas, beiços murchos, e pedir perdão em pensamento das loucuras da mocidade insofrida.

Mas depressa percebeu que uma tal decisão se arriscava a lançar o reino nas convulsões pretéritas. Afonso, sem o freio da madrasta, sempre insatisfeito com as cúrias e as partilhas, desejoso de ver os irmãos vendidos às rebatinhas, dava mostras de não desbaratar desta vez o golpe que antes arreceara. Já não era o cabritinho rebelão do passado, mas o macho seguro, que se fizera reflectido pela idade e pelas andanças. Também Pedro, o mais velho dos filhos de Violante da Hungria, se espevitava à voz de renúncia do pai, deitando os olhos cobiçosos à lista catalã, que por ourela alguma não queria perder. Sem a escora que a mãe lhe punha, começou a calçar coturno para mirar de alto. Embora de rosto mais glabro que a casca lisa da melancia de Valença, engrossava a voz, para se fazer ouvir, reunindo à volta facção ruidosa e aguerrida, flanqueada pelos privados da mãe. Acabara de entrar na puberdade, mas percebia bem que tinha de se fazer temporão, caso não quisesse acabar empalmado, com palha no rabo e nabiças nos ouvidos.

E além destes dois, que eram as extremidades da algazarra, havia os outros, que faziam fila por um ou por outro. Primeiro, Jaime, um pitorro que acabara de deixar cueiros e gineceu, muito agarrado nesta época ao irmão Pedro; depois, a legião dos ilegítimos, filhos de boas donas, castelãs e alodiais, que o rei metera no paço pela porta de serviço e se agarravam como ferro a íman aos pólos principais. E nestas contas deixava de fora os bastardinhos das faceiras, a quem nem o topete distinguia; vinham de simplórias e para borra-botas seguiam.

O rei viu o céu tapado, negro e pesado, e ouviu os primeiros estrondos da tempestade. Não teve ânimo para mais e deu de barato o hábito branco ou a vieira de romeiro mais as sandálias e a algibeira de mendicante. Havia de ficar como rei para não ouvir bordoada grossa. Na primeira ocasião, junto dos cortesãos, emendou o dito sobre a renúncia.

– Deixai por agora o desquite. Haveis de continuar comigo até meus filhos mostrarem siso.

Guardou Jaime consigo coroa e ceptro e ao fim de pouco voltou o céu a aliviar, mostrando aqui e ali, entre restos de nuvens esgarçadas, um bonito anil. Regressaram os filhos às ocupações, deixando para mais tarde a disputa do reino. Deu o rei em olhar para a crina com outra atenção e lá descortinou, entre muito raio branco de luar, labaredas fulvas. Estava de apetite remoçado. Pouco lhe vinham já às areias movediças do pensamento as recordações infelizes da esposa, amortalhada na flor da idade no panteão real. Olhou a vida doutro modo e não tardou em se meter pelos caminhos poeirentos do sertão; em vez do bordão de peregrino, levava o alaúde de poeta. Não tinha pejo em afinar o instrumento; em lugar da pedra onde repousava o apóstolo, procurava o leito de seda onde se deitava a barregã perfumada e velida.

– Temos rei – dizia o povo consolado.

E assim se esqueceu em Aragão e adjacências o infortúnio de Violante da Hungria.

Não tardou a queda de Conrado nos dentes cariados dos Apeninos. O denodo do jovem não chegara para evitar a excomunhão e a vida molesta de foragido. Vieram as febres paludes que o corromperam e levaram. Ficava em campo Conradino, recém-nascido, que os privados, temerosos da desforra brutal do papa, afastaram para as florestas da Bavária, onde tinha lar, segurança e cervilheira para se fazer um césar de corpo inteiro. Em seu lugar, tomando na mão o pendão das águias, ficou Manfredo, o bastardo do segundo Frederico, que tanto nos comove no obituário de Dante. Tinha pouco mais de vinte anos, mas olho penetrante de falcão. Logo a facção gibelina se reanimou por toda a Itália ao sopro de tão valoroso capitão, que não tardou a ser feito rei da Sicília, ameaçando nas fronteiras do Tibre com ruidosas picardias os Estados do papa.

Em Aragão abriam-se novas disputas entre Afonso e Pedro, os dois morgados. A luta que começara à morte de Violante regressava agora mais estrondosa. Subia sobre os outeiros o eco das palavras, antecipando o estrépito dos ferros. Pedro, que à morte da mãe era uma criança, depressa sazonara. Cresceu com os olhos postos na ousadia de Conrado e ao invés do irmão dava de barato a perda de Toulouse. Para ele Muret era desastre tão antigo e tão fora de mão como o dilúvio de Noé ou a morte de Roldão em Roncesvales. Sonhava um mundo novo, feito com as galés catalãs, todo voltado para a expansão no Mediterrâneo.

– As sete partidas do mundo esperam por nós. Por que havemos de verter uma lágrima por uma nesga de serra – inquiria.

E nisto tinha o consentimento do pai, que vivera na carne o revés de Muret mas dele se afastara com repelão que além de lépido se mostrara profícuo. Nunca antepassado seu reinara sobre tão vasta soma de territórios! Por isso não chorou muito na época o tratado que fez com o rei de França, Luís IX, barateando por um pau seco a suserania definitiva dos territórios de além-Pirenéus. Ficava-lhe apenas o feudo de Mompilher e o de Perpinhão, paredes meias com Barcelona e rico armazém de panos. Este último nem por fieira de oiro o dispensava, pois a galera catalã perdia metade dos remos caso cedesse o Rossilhão. Como selo e lacre das avenças deitou-se ao tavolado um casamento oficial; Jaime de Aragão dava ao morgado da casa de França, futuro Filipe III, uma filha, Isabel, que tomara de empréstimo, por confirmação da mãe, o nome da tia da Turíngia.

Ao tempo do tratado era Isabel donzelinha de langor menineiro, muito miúda e ensimesmada. Não se via bem que tronco ia deitar tal semente; estava ainda a germinar o pedúnculo tenro e as pétalas andavam longe de rebentar o hímen. O pai, depois de lhe indicar o destino, desabafou com algum descrédito para os privados.

– Talvez faça no Sena e no Marne as maravilhas que a outra praticou no Meno e no Lahn.

Mais se zangou depois disto Afonso com o pai. A quezília foi tanta que pensou desandar de novo para Castela. Reinava o cunhado, Afonso X, seu confrade dos tempos do primeiro exílio. Ao que se dizia, estava por lá refartado, vivendo uma idade de oiro, no meio de judeus e muçulmanos. Fazia questão de alardear o parentesco que tinha com Conrado e Manfredo e escrevia ao papa palavras de direiteza e desafio, que não se envergonhava de firmar com selo gibelino. Era filho duma prima-irmã de Frederico II, neta como ele do primeiro Barba Ruiva, e seguia pela mesma quelha laica e distinta. Toledo, com a rica tradição que havia, estava transformada numa outra escola de Nápoles. Sucediam-se os apólogos a favor das três religiões do Livro, qual deles o mais convincente. As disputações teológicas eram arbitradas pelo próprio rei e retomava-se a bom ritmo o fio da tradução simultânea do árabe ao latim, por meio do linguarejar vulgar, de muito cartapácio maometano. Ao que corria, em momentos assim favoráveis à retórica, o rei não tinha pejo em aparecer a arbitrar as rodas de manto escuro, largo como quatro paredes de salão paçal, onde se cerziam a linho branco as primeiras suratas do Corão. Não havia modo dos pregadores de Domingos de Gusmão atravessarem os adarves dos Pirenéus com o leito de Procustes aos ombros; se queriam, vinham leves, em hábito, com a tonsura à mostra e os dedinhos ao ar, como os de Francisco Bernardone, que não faziam mal a uma pulga. Quanto soube dos propósitos do primo de Aragão, Afonso X, que tanto tinha de sábio como de magano, lambeu os beiços e atirou com gulodice.

– Recebo-o de braços abertos!

Andava em litígio com Jaime I por via de Múrcia, carmim e nácar da cobiça de ambos; punha pois todo o interesse em abrir uma brecha e retirar um trunfo.

Mas no derradeiro momento, quando embalava a trouxa para se escapar, Afonso julgou-se desvalido com a partida. Granjeava risco de não mais regressar, pois o pai, apanhando-o homiziado em Castela, a baratear avenças e castelos, era bem capaz de mandar reunir cúria régia, para o deserdar a favor do irmão Pedro. Pelo sim, pelo não, ficou-se pelo reino, trocando de vez Barcelona por Saragoça.

Pedro, por sua vez, mais se chegou ao pai. Crescera a mirar a safira azul do Mediterrâneo. O passatempo preferido, além de montear, era fazer-se ao mar. Mostrava-se tão velejador como justador ou caçarreta. Nos mirantes de Barcelona a mãe desde menino lhe apontara o mar como o minério mais fino do reino. Mais tarde, em Palma, já com a mãe entanguida no mausoléu , certificara a proposição. Por isso, para bem dizer, não deu sequer pelo tratado de Corbeil que reconhecia em definitivo a situação nascida da longa cruzada papal contra os condados heréticos da Gália meridional. Se o pai o avençou com uma mágoa escondida num recanto da alma, ele só lamentou não ter sido mais rápido.

– Assim as mãos ficam livres – sentenciou.

Foi por essa época que o pai o pensou casar. Depois do acordo com os Franceses precisava de encontrar um motivo de peso, que o aliviasse dum tratado que ele sempre soubera mau mas que agora, com o tempo a correr, lhe punha algum amargo. Demais, mesmo percebendo o desagrado de Afonso, não lhe suportava a insubordinação. Que ficasse pois no palácio de Saragoça, que a falta não o estorvava. Antes lhe deixava espaço vago para se consagrar a Pedro, que mostrava idade de casar. E nesse casamento via o rei o motivo ponderoso que o podia compensar dum mau negócio.

Tal como as coisas estavam e ponderadas todas as razões, as internas e as externas, foram os olhos tombar em Manfredo. Salvante Conradino, recolhido nos fojos da Suábia e que muitos davam por morto ou por desaparecido, era ele, primeiro como regente e agora como rei da Sicília, a descendência directa do grande Frederico. Do seu casamento com Beatriz de Sabóia, uma próxima da família Hohenstaufen, houvera Constança, uma menina acabada de chegar à puberdade, que estava livre para uma aliança. E assim se aventurava a ficar porque Manfredo era por esta época um inimigo jurado da Igreja e nenhum ousava pedir-lhe a mão da filha. Todos assobiavam para o lado, à espera do desenlace do duelo.

No sólio papal estava mais um talo do clã dos Segni, Alexandre IV, que não hesitaria em lançar a rede do interdito sobre tal ousadia, quando não o leito de Procustes dos seus fradetes. Andavam estes agora, com cara de crocodilo, metidos à tortura, reconhecida, documentada e oficiada que esta fora por Latrão. No cárcere da Inquisição trabalhava a polé, rangia o esticador, rodava a roda e comprimia a prensa; em lugar de casa de religiosos, devotada à oração e à caridade, mais parecia refúgio de facínoras, dado ao roubo e à extorção. O que por lá se ouvia não era o murmúrio brando das pregações, as palavras mansas da Boa Nova, o sussurro do turíbulo, mas os gritos cortantes das vítimas no matadoiro. Em vez de rezas, reses. A religião de Cristo fizera-se cartilha de açougueiro.

Mas Jaime I, que andara excluído da comunhão por ter dobrado a língua ao clero malcriado, não temia Latrão. A Inquisição, que no tempo do tio abade lhe fora imposta como escambo de movimento, nunca saíra dos vágados do parto; gemia, gemia, mas não se via. Os foliculários do Gusmão ou se dedicavam à horticultura ou cruzavam os braços, já que os rei os proscrevia da polé e até da singela confissão forçada. E cruzados do papa, prontos a levar-lhe o reino como canalhas casa alheia, mau grado o trauma de pitorro, não era preságio que ele temesse. Os biltres não se atreviam a pôr pé em Palma, quanto mais a passarem com as mulas de carga os desfiladeiros dos Pirenéus. Estavam tão longe da ousadia de Aníbal como a estrema oriental do império mongol distava das águas da foz do Tejo. Por outro lado, a Santa Sé devia-lhe finezas largas, com as terras que de mão munífica fora distribuindo por esse sertão dentro, desde Albarracim até Alicante, às ordens religiosas, militares ou não.

– O papa aqui não embarga nada – respondeu ele, a seu gosto, quando o sondaram sobre as represálias daquele enlace.

Queria aquele casamento. Desde os tempos de Monzon e Saragoça que sonhara repetir os passos do imperador; desfizera um casamento, que era coisa que custava por vezes um empório, para encontrar matrimónio nos arrabaldes da corte do imperador. Fora então ao Danúbio buscar a mão da menina do peplo de púrpura que o céu, muito antes de tempo, sabe-se lá por quê, dera em chamar. Fizera-se entretanto um potentado, disputando com o parente de Castela a primazia da administração da Península. Agora contendia com ele em Múrcia, onde já metera alferes e colonos. Amanhã, se preciso fosse, estaria às portas de Mompilher para dar uma lição aos reizetes da Europa, não aos da taifa, que eram cordatos e probos. Mas isso era de somenos; o que de verdade lhe interessava era a esquírola do Mediterrâneo. Tinha uma mó de gente nos portos da Catalunha, de Perpinhão a Tarragona, aflita por tirar as espadrilhas e saltar à água. Lobrigava assim uma aliança forte com o reino da Sicília, que se dizia ser alpodra segura para se pôr dedo enxuto na África e no Oriente. E mais se veria, se o houvesse, que desde pião pequeno, nas enxovias do homicida do pai, aprendera a ser cauto como a raposa em quintal de levita.

Demais também o filho aspirava por aquele enlace. Desde que lhe apontara como noiva Constança da Sicília, filha de Manfredo, o punho de ferro que reanimava em toda a Itália as águias gibelinas, que não falava noutra coisa. Maridava-se de momento, sem hesitações, em capelinha singela, para não demorar em bodas e festas, se lhe fosse possível. Andava desejoso de se ligar ao grande capitão, cujos feitos corriam já do Ebro à Biscaia, mais famosos que os de Rodrigo Dias de Vivar, que em tempos de Afonso VI deixara obra memorável entre Saragoça e Valença. Dizia-se, com inflação casquilha, que Manfredo suplantava em energia o pai e que estava para breve a queda definitiva do papado. Punha naquela filha única todo o mimo e apesar dos transtornos em que andava, afirmava-se, só a muito custo a deixava sair do reino da Sicília. Não era o homízio, a guerra, o esbulho, a usurpação, ou mesmo a morte no campo de batalha, que lhe metiam medo mas a solidão sem ela.

Pedro, que lera e cogitara cheio de deliciosa surpresa as letras em fogo da carta do imperador a Inocêncio IV, jactava-se daquele enlace como gato bravo de caçada farta. Há muito que tomara o lugar da mãe no revelim de Barcelona; era ele o mais atento à disputa das duas facções. Não despegava os olhos do torneio de arnês, gládio e rede que estrondeava no palanque itálico. E já se via, ao lado da esposa, a neta de Frederico II, a saudar efusivamente da bancada o futuro imperador. Man-fre-do!, eis o nome que retumbava como toque de baqueta em timbale aos ouvidos do príncipe.

– Há-de ter aos pés, em sinal de preito, a rosa da vitória – aventava ele.

Por cima de tudo, aquele matrimónio com a filha do grande cabecilha gibelino garantia-lhe uma supremacia indisputável no reino. A mulher do irmão Afonso, ao lado de Constança da Sicília, era bigorrilha desconhecida. Demais tinha o enxoval bem ornado com o rendado precioso de Barcelona – novas igrejas, novos palácios, novos jardins, novas esculturas, novas terecenas, novos bairros, onde os ricos burgueses da alfândega e das terecenas vinham comprar casa e fazenda. Multiplicava agora os adornos com um aljôfar especioso chamado Constança da Sicília. Com tal reforço de bragal o irmão Afonso não teria fôlego para lhe acompanhar a passada.

Mas o irmão Afonso depressa se ficou pelo caminho. Sobreveio-lhe uma febre – assim se disse – que não o deixou avançar. Perdeu o apetite, anuviou-se-lhe o entendimento, não foi capaz de se levantar. Em poucos dias rendeu estupefacto corpo e sopro, deixando a vereda aberta aos irmãos. Pobre Afonso, que tanto se molestou pelos anéis que o pai lhe havia de deixar e que se foi aos trinta anos, sem dedos nem descendência! E para auge e paradoxo da vida foi o pai, a quem ele esperava depois do esticão tirar dos dedos as jóias, que puxou pela arreata o par de burricos que lhe levou o esquife.

Veio depois o enlace de Pedro com Constança da Sicília. O rei, para impressionar o genro, atravessou os Pirenéus e foi receber a Mompilher na companhia do herdeiro a noiva. A boda aí se fez, com a aura do Ródano a soprar perto, o tomilho em flor, a palha centeeira a amarelecer nos campos, o rosmaninho a rescender mais que incenso, naquela impressão de olor e glória, própria do Éden terreal, que Cézane emprestaria depois às tintas. A cidade era o que sobrara à coroa de Aragão dos antigos senhorios da Gália; a cruzada de Inocêncio III começara por levar os viscondados vizinhos ao Mediterrâneo e a queda de Montségur acabara de pilhar o resto. Desta guisa, Jaime I, pouco dado a supérfluos, e menos ainda a nostalgias, pespegava um aviso ao Anju, novo mandante do senhorio da Provença, mais ao irmão, Luís IX, rei de França e rematado senhor dos antigos domínios da casa de Aragão. O filho do vencido de Muret, queria ele significar, ainda tinha um pé postado nas terras da Occitânia. Firmar uma aliança com Manfredo era aproximar Aragão da Itália gibelina, pondo a salvo, no meio, essa alpodra chamada Mompilher. Outras havia, como as Baleares, que tornavam a aproximação uma muralha inexpugnável ou, logo se veria, uma fatalidade.

Não tardaram novas dissensões a dividir o reino de Aragão e a torturar o rei. Desta vez o filho mais velho, Pedro, soberbo do sonoro enlace, levando pela mão a flor da casa da Sicília, voltava-se contra o irmão Jaime, a quem o pai destinava a coroa das Baleares e do Rossilhão e ainda o senhorio de Mompilher e o dos portos da granítica e mal provida Sardenha que estavam a cair nas mãos dos catalães de Perpinhão. Pedro, depois da morte do sénior, reunira na cabeça as coroas de Aragão, Valença e Catalunha. O entendimento entre os dois manos era sofrível, mas Pedro,  agora primaz, sem a tutela equânime da mãe, fazia reclamações e tomava amuos.

– O que foi ontem já não é hoje – sentenciava, sempre que lhe falavam do desacerto entre o passado recente e o presente.

E exigia do pai, se não a coroa com a totalidade das jóias, pelo menos a titularidade do tesouro. Sem a vassalagem nominal do irmão não se contentava. Postado na situação de morgado, começava a temer, ao invés do pai, que da pulverização se passasse à secessão. Era efeito inexorável? Era pelo menos resultado possível e chegava. Reclamava pois a titularidade das Baleares, do Rossilhão e demais senhorios, que não o domínio real, que deixava às boas nas mãos do mano.

– É magra coisa de se ver mas pode embargar o fim do reino – justificava ele.

Não era só Constança quem o instigava. A menina, acabada de entrar na puberdade, era um anjo de inocência. A administração para ela fazia a vez de território defeso; conhecia tanto dela como da montaria ao cerdo de colmilhos ou ao urso escuro dos Pirenéus. O pai brunira-lhe gosto e hábito; dera-lhe uma educação esmerada, voltada porém para o gineceu caseiro, com discrição e recuo, a que juntara apenas uma pitada de formalidade cortês, já que pensava maridá-la, não podia acontecer doutro modo, numa corte da Europa. Tinha pois de fazer sarau com o landgrávio, para além de enfiar contas num fio, cerzir linho ou bordar a fio de oiro colgaduras e coxins, tarefas predilectas em que era insigne. Tentara ainda o pai levá-la ao beiral da Geografia e da História mas a menina não mostrara pecha por Heródoto e Ptolomeu. Mesmo assim percebia que a confederação para onde ia, bem resguardada nas dobras do Mediterrâneo, havia de servir ao pai de fojo em caso de desastre. E punha todo a atenção no destino núbil, estofada por uma roda grada de estrategos e conselheiros.

Com a vinda para o palácio real de Barcelona maravilhara-se Constança de vida tão regalada. Não tardara a engravidar e toda se consumia por ora em auscultar as inusitadas transformações do corpo.

Quem influía no ânimo de Pedro não era pois só a esposa. Quem mais lhe incutia ânimo adverso ao cadete eram os próceres experimentados que haviam chegado no séquito da maridada. Ponderando em privado a situação do novo aliado, cruzando dados e montando estratégias para o porvir, depressa viram em Jaime, proprietário das Baleares, e por consequência senhor de parcela grada do Mediterrâneo, um perigo para os interesses de Nápoles e Palermo.

– Quando se apanhar em Palma para compensar a influência do irmão, se não para se livrar dele, é capaz de se prender ao rei de França – aventuraram uns sobre Jaime.

– E ainda de apelar ao papa – juntaram outros.

Fizeram-se sem excepção desconfiados e intrigantes. O que menos aproveitava a Manfredo era ter na vizinhança das ondas um sujeito com quem o papa e as adjacências guelfas se pudessem liar de interesse. Pedro, a princípio surpreso, depois convicto e temoroso da seccionação futura de tão vasto reino, depressa lhes assumiu as ideias. Bateu o pé junto do pai e deu em tecer, inspirado pelos jurados de Manfredo, a distinção necessária entre titularidade e domínio real. Dava de barato este mas exigia a outra. Era pedido magro, mas de muito empacho a bizarrias futuras, acrescentava sempre.

Mas pedido magro ou não, o pai não se mostrou disposto a ele. Era o tracalhaz dos tempos antigos, só que agora branco como as invernias dos Pirenéus ou o luar das noites limpas e geladas. Ainda assim continuava femeeiro e leve, muito solto nas visitas às barregãs, como se fosse coração de pouca experiência e nervo de muito entusiasmo. Amava e trovava como os mais moços, em rodas de donas e jograis; bailava ligeiro nos saraus palacegos e era sempre o primeiro a tomar passo e o último a recolher ao cabeçal. Demais resguardava, ligada por um passadiço aos aposentos, uma sala de mourinhas púberes, perdizes olorosas, para as horas de mais acídia. Como iam longe os tempos frios em que mais hirsuto que um urso das penedias batia os ermos de Montserrat à espera de se tornar santeiro de burel e corda!

Por isso, quando o filho lhe puxou da manga do tabardo para fazer novo codicilo ao testamento, ele sentiu o caso como uma extravagância ou uma brincadeira. Depois, quando o filho tripudiou, alarmou-se; e por fim qauando insistiu, atirando aos maus modos, não hesitou em o tomar por escândalo e desobediência.

– Sandeu vil! Pedi perdão ou arredai da corte se não quereis passar por tredo a vosso rei.

Pedro, que se fizera temporão com a morte da mãe e ganhara a sua parte de altivez com o casamento na pródiga Sicília, não encontrou dentro de si força de modéstia para se ajoelhar aos pés do pai, beijando-lhe os dedos e requerendo-lhe com humildade remédio para o assunto. Não lhe sobrou outra saída, senão vergar um tanto o cachaço e seguir as pisadas de Afonso. Logo se ausentou para Saragoça com a esposa e os privados. Ia rodeado da família de Manfredo; para bem dizer, tinha à sua volta uma corte de gente firme, experimentada em muita controvérsia, mas que não hesitava em lisonjear a sua tenacidade. De precoce e altivo, o príncipe fazia-se teimoso e soberano. E foi na Aljaferia de Saragoça que lhe nasceu o primeiro filho, um recém-nascido de soturno remugir, olho taciturno, em que se revia e que Dante mais tarde celebrou. Esteve vai não vai para lhe dar o nome do avô da mulher, o grande Frederico, mas depois retrocedeu.

– Há-de lembrar de nome o avô que pela primeira vez congraçou na cabeça as coroas do Aragão e da Catalunha.

E chamou-se Afonso o primeiro rebento do casal e herdeiro futuro da coroa da confederação.

Foi ainda em Saragoça, no meio das inclementes securas continentais, entre o vento pulverulento de Castela e a tramontana fria dos Pirenéus, limpa como vidro esmerilado, que Constança da Sicília experimentou as primeiras nostalgias. Andava longe de mais da temperança marítima! Que falta lhe fazia a aura cálida da prata salgada! Não teve outro refrigério senão os braços do marido; logo o alforge se lhe encheu de novo. Prenhe, sentindo a gestação do grão dentro de si, era como se o anil do mar se lhe fizesse mais propínquo. Foram-lhe os filhos nascendo no sertão do exílio para tapar saudades; era entretém de afecto e de sociedade. Adorava enfiar as contas no fio, cerzir o linho das túnicas, bordar a seda fina dos cinco véus, cuidando o enxoval com que os inocentes iriam nos braços fortes do pai lavar a moleirinha careca no baptistério da catedral.

Primeiro aterrou outro menino, o futuro Jaime II, mais azougado que o morgado, choro argênteo, olho cristalino; depois chegaram duas meninas, a primeira estranha como uma açucena e a segunda arteira como um olho da cara, e um outro rapaz, que parecia a mescla versátil dos dois irmãos, entre o taciturno e o precavido. O pai, que decidira no varão anterior deitar passadiço até ao rei, com quem continuava às avessas, desta vez não hesitou.

– Há-de este lembrar o nome do grande avô.

E ficou Frederico o rebento do casal. Depois, por fim, chegou ainda um varão, que ficou com o nome dele, Pedro, e que foi o derradeiro botão de Pedro e Constança.

Entretanto nos Apeninos Manfredo tocava a rebate; o decisivo embate com as tropas do pontífice estava à porta. Urbano IV chamara a Roma Carlos de Anju, senhor da Provença e irmão do rei de França, com grossas promessas de cabedal. Tornava-o nada menos que chefe dos guelfos na Itália pontifícia, nomeava-o senador de Roma, fazia-o senhor de Turim e protector de Florença, onde o gibelinismo rondava sempre como uma ameaça de alcateia feroz. Veio a hoste do Anju servir o papa, obtendo vitórias de monta sobre as águias gibelinas.

Recebeu-o o novo papa, Clemente IV, em Roma para lhe impor as insígnias de senador e as de chefe do partido guelfo. Ofereceu-lhe então, a troco de novos serviços, a coroa da Sicilía; ficava rei em Nápoles, Brindese, Palermo e Siracusa por um nada. Bastava dar cabo de Manfredo e dos seus sarracenos.

Mal soube da intromissão, Manfredo saiu de Cápua, no Vulturno, ao encontro da hoste do Anju. Foi a batalha de Benevente, que deu em romance de massacre, ficando no campo, despelado, o filho de Frederico. Foi assim que Dante o viu, entre a vida e a morte, já esquecido da derrota, clamando perdão e penitência. Num rufo toda a ponta da Itália foi ocupada pelos Franceses; Carlos de Anju passava de seguida o estreito de Messina e punha a bota na ilha que vira a primeira guerra púnica. Em menos de nada, no lugar onde há dois dias reinara Frederico II, estava instalada a dinastia dos angevinos.

O choque que estas notícias provocaram em Aragão e Catalunha foi imenso. Jaime I metia o pé na dança, meio esquecido das primeiras esperanças com que respondera às angústias em que o destino o metera com o desastre de Muret. Fazia-se um velho gaiteiro, folião e quase lascivo, depois de ter sido um homem industrioso e sonhador. Sentia porventura uma força no nervo que muitos rapazes da sua gestação confessavam já haver perdido e uma tal proeza envaidecia-o. Ainda assim o estrondo da morte de Manfredo, depois da queda de Conrado, não podia passar despercebido a quem tanto se vira nas adjacências de Frederico II. Levou tranquilamente os dedos à barba para sentenciar que a vida era uma surpresa e uma migalha. Quem lhe diria a ele, no tempo do tio Sancho, que ainda havia de ver a morte do imperador, pouco mais idoso, logo seguida pela morte dos dois filhos, Conrado e Manfredo.

– A vida é grande zombadora! Deus brita-nos a vida sem porquê e havendo mister mete-nos no céu mostrando-nos o inferno.

Era o pensamento dum homem maduro, que vira muita água correr ao longo dos anos debaixo das pontes do velho Ebro e que se dava por um momento a filosofar sobre o curso largo e contraditório dos eventos. Para bem ver as coisas parecia-se o rei de Aragão o seu tanto com Frederico II nos momentos de cepticismo e abandono.

O filho, por sua vez, em Saragoça, não despegava os olhos dos acontecimentos de Roma. Em seu redor estavam os conselheiros de Manfredo que haviam acompanhado a princesa como privados depois do enlace. Tinham metade da vida em Aragão e a outra metade em Nápoles ou em Palermo. Para muitos a derrota de Benevente foi como se lhes tivessem amputado uma parte do corpo; uns perderam familiares e outros sofreram a ruína com a nova distribuição de rendas e feudos pelo angevino e parciais. E, o que era mais, havia ainda Constança da Sicília, que ao saber da morte de Manfredo chorou amargamente a morte dum pai e não dum simples cabecilha de facção.

– Mataram um mui bom pai… E nunca mais o ver… Não se magina maior crueldade…

E lá ficou, lavando o nojo com as lágrimas e tirando o medo com as preces. Bem se pode dizer que em nenhum outro paço da Europa se chorou tanto e tão amargamente, com convicção tão funda, a morte e a derrota do gibelino como no paço de Aragão. Por via duma morte a confederação aragonesa-catalã mostrava quanto estava próxima do projecto gibelino. O sonho de Jaime I tornava-se realidade no filho; já não se viam fronteiras entre os interesses dos Hohenstaufen e os de Aragão.

À medida que o Anju avançava, ocupando castelos e fortalezas, os sobreviventes ainda em liberdade da batalha de Benevente punham o pensamento aflito num refúgio. A hoste do Anju não poupava a vida a qualquer antigo soldado de Manfredo. A crueza que ali se desatava era a mesma que se vira com Simão de Monforte no condado de Toulouse. E logo atrás do Anju vinham agora os inexoráveis de Domingos de Gusmão para dar caça aos heréticos e aos infiéis. À ocupação do território, ao avanço militar, seguia-se a limpeza do terreno. Qualquer combatente inimigo dançava no patíbulo ou espirrava no cepo; quanto aos heréticos, iam direitos ao leito de Procustes sofrer os tratos de polé do tribunal da fé. Os angevinos estavam desejosos de reinar sem a bambinela da oposição e o surrobeco da heresia.

No meio deste incêndio, os homens de Manfredo fugiam e deitavam os olhos oprimidos a abrigo seguro. Estava tudo a ser varrido pela onda dos ocupantes; em breve nada restaria, a não ser a boca aberta do Etna, onde trabalhavam as forjas escaldantes de Vulcano. O único resguardo credível estava do outro lado do mar, no reino onde Constança da Sicília era senhora e princesa. Ela própria, quando percebera a dimensão da catástrofe, dando-se conta da aflição dos conterrâneos, muitos deles familiares ou antigos privados, não se coibira de lhes abrir os braços em aflitiva preocupação.

– Que venham de pronto! Haverão aqui terras e pousaduras.

Em desespero muitos dos que fugiam diante da avalancha demolidora não tiveram pois outro remédio senão aceitar convite tão cómodo como oportuno. Fretaram fustas e galeotas e meteram-se ao mar, fugindo da bota da cruzada. E lá foram dar a Palma, a Barcelona, a Valença e a Perpinhão, pondo pé enxuto em terra amiga. Jaime I, que embora desconfiado sempre fora hospitaleiro, fazia questão que lhe encaminhassem para a alcáçova de Barcelona todos os recém-chegados.

– Que assosseguem! O rei de Aragão ainda tem pão para repartir por quantos o não tenham.

Com o alude de gente que lhe entrava no paço, o rei fez-se ainda mais perplexo. Os homens que haviam servido Frederico II e Manfredo estavam agora de geolhos, diante do seu trono, oferecendo-lhe serviço e lealdade, beijando-lhe a ponta dos dedos, pondo-lhe aos pés o grosso montante. Voltou a entufar, quando se lembrou que aos seis anos não passava dum proscrito recolhido por caridade numa casa de monges. Preferiu porém não se empenhar de mais e despachou grande número para Saragoça, onde a nora se escaldava por os acolher. Guardou apenas junto dele um pequeno escol selecto com quem se entretinha a saber pormenores da corte da Sicília no tempo do grande imperador. A sós, passava as cordas da barba entre os dedos e sentenciava surpresas.

Ainda não tinham os ossos de Manfredo arrefecido, quando se ergueu do outro lado dos Alpes Conradino para vir meter na ordem o usurpador francês. Foi a curta aventura duma criança de quinze anos, que teve termo meses depois na batalha de Tagliacozzo, perto de Áquila. Faltava só o curto epílogo: a execução pública do neto e herdeiro de Frederico II. Com tal remate de sangue mostrou o papa que nada restava do antigo poder dos Hohenstaufen e manifestou o angevino que nada fazia obstrução ao novo mando. O ponto final deixou porém uma omissão, que mais tarde, com as Vésperas da Sicília, se tornou na desforra dum novo começo. Conradino, momentos antes da morte, sem filhos nem herdeiros directos, passava os direitos da família para a sua prima-irmã, Constança da Sicília, filha do tio Manfredo, casada em Aragão com Pedro. E eis porque foi esse o primeiro pecado de Isabel de Aragão, a rainha santa de Portugal, que foi uma das duas meninas que nasceu no tálamo de Pedro e Constança.

O primeiro? Porventura não, que já antes houvera o pecado de Muret na casa de Aragão. E tão sério foi ele, que o reino esteve para naufragar na onda rolada que levou os condados de Toulouse e da Provença. Assim como assim, o facto da mãe, herdeira de Manfredo, ter recebido do primo suábio os direitos intactos da família Hohenstaufen, ficando depositária duma longa história de excomunhões e insubordinações contra o papado, faz dela a mais visível e duradoira das várias manchas que podem macular a história do nascimento de Isabel de Aragão. E aquela que mais nos ajuda a perceber a natureza da placenta cultural com que ela veio ao mundo e que tão pouca conformidade mostra para com os sectores grados da Igreja.

Habitue-se pois o leitor a ver em Isabel de Aragão uma personagem marginal, sem conceito, afastada dos eixos dominantes, manchada por um tálamo vencido, se não banido. Nasceu no leito da herdeira das tropelias dos Hohenstaufen, numa altura em que o gibelinismo se havia retraído por toda a Europa, deixando vacatura à Igreja e aos capetos de França. Em momento de asfixia, as longínquas praias da Catalunha e da Andaluzia foram para o gibelinismo o repouso dum asilo. Foi no perigo e no amargo de tais lençóis que nasceu Isabel de Aragão; se este introito não serve para mais nada, que preste ao menos para se entender o vínculo subterrâneo que lhe serviu para beber o nutriente do crescimento. Sem raiz, nada se percebe do tronco da rainha santa; só ficam banalidades ou astúcias, essas que infestam qualquer biografia autorizada. E as banalidades são num romance aquilo que na vida é o tempo morto.

O testamento de Conradino foi um gesto de inteligência e um motivo de desespero. Fosse como fosse, Aragão, que se tornara já o valhacouto dos seguidores de Manfredo, tornou-se de imediato, com a corte de Afonso X de Castela, o novo refúgio dos sobreviventes de Conradino. Tagliacozzo foi o último grande reencontro entre os partidários do papa e a facção dos Hohenstaufen. Dum lado estavam os capetos e os homens do papa e do outro os landegrávios germanos, os gibelinos de Siena e de outras cidades italianas, os suábios castelhanos de Afonso X e os aragoneses de Constança da Sicília. Com a derrocada de Conradino, as estradas cortadas para Norte, a perseguição feroz a tudo o que exalasse germano ou gibelino, fosse chibarro ou novilho, só sobrou a fuga pelo largo e despovoado mar. Afonso X, que julgou perder na batalha irmão seu, Henrique, feito prisioneiro durante vinte e seis anos, prestou-se de imediato a receber os parentes da mãe. O mesmo fez Jaime I, acolhendo de novo os próximos da nora.

E de repente Aragão viu-se entumecido pela fina flor do reino da Sicília. Desta vez não havia infanção ou rico-homem que por lá não se visse, fosse para encomiar os tempos do imperador, fosse para planear às escâncaras um desforço contra o papa e os angevinos. Jaime I, que antes se dera apenas a nostalgias de entretém e desfastio com os homiziados da Sicília, deixou-se nesta ocasião embalar por planos de exaltação.

Regressava, com seis décadas de vida e alguma quebreira, aos sonhos de juventude, quando as orientações do imperador surgiam como a solução do enfrentamento civil em que a confederação caíra depois de Muret. Se o nervo do corpo lhe deixava ainda folga bastante para se surpreender com o calibre da folia, natural era que a alma, depois dalgum desvio, se lhe inflamasse ao contacto do lume. E fogo ardente eram aqueles privados do reino da Sicília, glorificando-lhe o reino, a durindana, o porvir, a liberalidade. Enchiam-lhe a cabeça de sonhos e regalos. Chegou a projectar a reconquista de Palermo e a tomada de Nápoles mas depois, confiante no conhecimento do Oriente dos novos privados, fixou-se numa expedição à Palestina, que repetisse os feitos do segundo Frederico. Era o devaneio mor de quem se fizera maduro no momento mesmo em que o imperador acertara a tomada de Jerusalém com o sultão do Egipto.

Mas no instante da partida tomou-se de paixão por uma dona e com o espinho doce do desejo a pungir o pensamento regressou para os braços da cortesia, entregando o comando da expedição a um dos bastardos do paço, Pedro Fernandes. Malogrou-se esta como era de força mas salvou-se a dona e tanto bastou para que o rei se desse por contente. Tinha o coração mais forte do que a espada e nem mesmo a idade o fechava a amar doidamente. Por isso, nesta época, que foi aquela em que se fez velho e valetudinário, não tardou em trocar os devaneios gibelinos pelas fantasias de burel e sandálias com que outrora se pensara meter a mendicante. Feitas as contas, acabava nas mesmas mantas grosseiras, sem lençóis nem copo de cristal, em que o seu modelo, Frederico II, acabara no exílio da Apúlia.

Viveu o derradeiro lustro em Barcelona, rodeado pela neta mais velha, a nossa Isabel de Aragão, que era quem melhor acordava nele os luzentes ecos dos orbes. Por um lado vinham-lhe aos lábios as extravagâncias da cunhada da Turíngia e por outro as recordações magoadas da filha Sancha, uma das meninas que lhe nascera de enfiada no tálamo de Violante e se fora de casa na mocidade, descalça e pobre, rosário tosco na mão, a caminho de Jerusalém, sem que nenhum mais a visse ou dela soubesse. Para lhe afligir a vetustez teve de amargar uma nova rebelião contra a coroa, capitaneada por um bastardo influente, Fernão Sanches de Castro, que acabou por morrer às mãos do herdeiro da coroa, mancomunado com os gibelinos sicilianos.

Morreu por fim Jaime I num dia quente de Julho, desenganado de tudo e já sem múnus. Passara encargo, ofício e ainda almuinhas e laparotos; ia-se sem nada, mãos vazias, como dera em sonhar nos derradeiros dias. Os filhos levaram-no em arrastado passo para Poblete, onde o esperava a pedra áspera do moimento que lhe havia de despir a carne, pondo-lhe a nu o osso rijo que sofrera Muret e os cárceres de Saragoça. Esse mesmo que recebera depois a rir, contra as ordens do papa e dos inquisidores, para quem se estava a cagar, os fugitivos de Manfredo e de Conradino.

O filho, Pedro III, herdou-lhe a bossa gibelina e não tomou descanso enquanto o infortúnio do sogro andou sem desforço. Também ele era órfão e temporão, além de ser contumaz e enérgico. Tinha tudo do pai, até a lubricidade ardente que o levara num arroubo de loucura, aos sessenta anos, a trocar uma expedição que lhe podia ter dado os loiros da Europa inteira por um leito anónimo de dona frágil e veludosa. A perda de Toulouse já lá ia, sem que nenhum na confederação a lastimasse com fúria, arrepelando pêlos e penas; a da Sicília porém fiava mais fino. Depois do desastre de Muret, houvera Palma e Valença como após Montségur houvera as delícias de Alicante e Múrcia; depois da Sicília nada houvera, a não ser o rancor, as intrigas, as opilações e os desesperos dos homiziados junto do príncipe e da filha de Manfredo. Barateavam tudo; até uma expedição ofereciam aos catalães, prometendo feudos e ducados na outra ponta do Mediterrâneo, como se vira com a extravagância de Jaime I. Enchiam o saco de petas? Parece que não, porque foram estes mesmos capitães, ou os filhos que os adjuvavam, que uma geração depois, à frente dos almogáveres, aliviados já dos angevinos, levaram tudo diante, instalando-se em Atenas e Neopatria. Pedro III foi a semente da seara de oiro da cultura catalão como Jaime I foi o seu primeiro alimento, o húmus onde o grão germinou e fortaleceu o pedúnculo, mamando o leite suculento do desenvolvimento.

Por todo o Aragão os exilados da Sicília acorreram ao palanque do novo rei. Uma nova geração crescera no Ebro com os olhos postos na reconquista do reino natal e uma outra nascia embalada pelos seus cânticos. Fomentaram-se revoltas contra os angevinos, aproveitando a insatisfação que corria pelos antigos territórios dos Hohenstaufen. A repressão bárbara contra os restos do exército imperial, a perseguição religiosa, tão feroz como uma batida ao cervo, o sentimento cada vez mais geral de que os angevinos governavam como um bando de quadrilheiros, tornavam o terreno propício aos motins. Como em Toulouse, no tempo de Simão de Monforte, os maravedis do rei de Aragão e Catalunha serviram para fazer entrar armas em segredo pela poterna da fortaleza de Palermo; não tardou que o mesmo acontecesse em Messina, Catânia, Siracusa, Nápoles e outras alcáçovas da Campânia, da Calábria e da Apúlia. Em pouco tempo estalou tormenta séria, capaz de virar os angevinos ao mar. A rebelião, que alastrou como fogo no restolho seco de Agosto, tomou o nome de Vésperas da Sicília e  marcou o início da desforra gibelina sobre Carlos de Anju.

No clima de insubordinação em que os territórios do reino da Sicília caíram, Pedro III tocou a rebate. Acorreram os suábios que andavam cerca de Afonso X a estudar as tábuas astronómicas e a geografia de Estrabão e a de Edrice, o geógrafo árabe que viveu na corte da Sicília; formaram os almogávares, que eram desde os primitivos caboucos do reino a cavalaria destemida de Aragão e Catalunha; juntaram-se os mudéjares, temíveis na funda, nos trabucos de arremesso e no tiro da besta, e vieram por fim os contiados do rei e dos ricos-homens que combatiam a pé, como mirmilões romanos, cabeça coberta de cervilheira, chuço, pique ou ascuma numa mão e escudete redondo na outra. Não se via hoste assim copiosa desde as campanhas de Jaime I em Maiorca e no Guadalaviar. Embarcaram os homens nos portos catalães e velejou a frota para a Sicília. Dois meses depois Pedro III fazia-se coroar rei da Sicília na catedral de Palermo. A hoste angevina fora vencida na ilha e estava em fuga para o continente; perdera para cima de dez mil homens e não via modo de estancar a sangria. A revolta, montada por um agente de Pedro III, João de Procida, antigo médico de Manfredo, era nariz faustoso e de sucesso.

– Nem com o próprio Cristo à cabeça das lanças, teríamos vitória tão pomposa – dizia-se com estupefacção entre os antigos partidários do imperador.

Não quis o estado-maior da confederação aragonesa-catalã pôr termo à campanha. Os almogáveres adaptavam-se bem à experiência diuturna dos exilados sicilianos e há muito que o comércio catalão estava em aflição por meter cunha nas feitorias da Sardenha, da Córsega e de Malta. Limparam desta o palmo, abrindo assim carreira para fazerem seu o mar. Foi então que ascendeu a estrela do grande Roger de Lauria, filho dum companheiro de Manfredo, abocanhado como ele em Benevente. Derrotou a frota francesa ao largo de La Valeta e mostrou a fêvera de tranca-ruas ao matar em combate mano-a-mano o almirante da frota inimiga. Atacou depois Nápoles, um dos derradeiros redutos de Carlos de Anju. Tomou Capri e desafiou os angevinos para nova batalha naval. Meteu de novo ao fundo a armada francesa e aprisionou o filho de Carlos de Anju. Exigiu em troca a irmã de Constança da Sicília, prisioneira desde o homicídio do pai. Atacou os portos da Calábria, obrigando os franceses a recuar para o interior. Tomou de seguida as ilhas da costa oriental da Tunísia e subiu para a costa catalã, onde mais uma vez destroçou a armada francesa. No Mediterrâneo, de Perpinhão a La Valeta, de Tunes a Barcelona, da antiga força dos capetos só se viam, por baixo do pio zangado dos gaivotões, restos a boiar, destroços a apodrecer nas ondas; em seu lugar, soberbos e senhores, de velas inchadas, erguiam-se os afiados mastros catalães.

Entretanto o papa Martinho IV alarmado com a pirueta decretava a excomunhão de Pedro III. Os despautérios de Frederico II e de Manfredo estavam de regresso no rei hispânico; o filho de Jaime I acabava de se tornar no terror do papado. Chamou-se ao entalão a desforra de Benevente. Sim, mas foi também a desafronta de Muret que todos os aragoneses esperaram às avessas durante décadas. O caso tornou-se tão sério com as campanhas navais de Roger de Lauria, que o papa, na eminência de se ver cercado e deposto, que até aí chegava a sanha dos gibelinos de Palermo e Nápoles, determinou a expulsão de Pedro III, entregando o trono da confederação aragonesa-catalã ao rei de França, Filipe III, viúvo daquela Isabel que servira de selo e lacre ao tratado de Corbeil e que morrera no regresso da última cruzada, a oitava e última, na qual o rei de França, Luís IX, perdera a vida diante dos muros de Tunes.

Voltaram a Aragão os piores temores do passado, quando correra que a cruzada de Inocêncio III e de Simão Monforte se preparava para fazer de Saragoça uma nova Toulouse e de Barcelona uma outra Béziers. E enquanto a armada de Roger de Lauria metia a pique as armadas de Carlos de Anju, punham-se os exércitos do rei de França em marcha, dirigindo-se aos Pirenéus. Era a nova cruzada ao serviço do papa e dos capetos, repetindo a expedição vergonhosa de Inocêncio III. Veio Pedro III esperar os franceses e desbaratou-os nos desfiladeiros dos Pirenéus. A derrota foi tão completa que o próprio rei de França lá deixou pêlo e cabedal.

– É o epílogo final da desforra de Muret  – bazofiou-se com alívio na antiga Marca Hispânica.

E foi. Mas foi ainda o desatar dum nó que vinha de Jaime I. Como os homiziados anteviram, o cadete, Jaime, que herdara à morte do pai a coroa das Baleares, juntara-se, nos distúrbios que se seguiram às Vésperas, às forças do papa e dos angevinos. Com a derrota do rei de França nos desfidaleiros dos Pirenéus, houve expedição punitiva às Baleares, passando o rei de Maiorca a prestar vassalagem obrigatória ao rei da confederação aragonesa-catalã. Estava resolvida a tranquibérnia que opusera pai e filho depois da morte de Afonso, o primeiro filho de Jaime I.

Excomungado ou não, morreu pouco depois o rei de Aragão deixando a coroa ao primogénito Afonso III, que pouco reinou, passando a prova ao mano Jaime, que esse teve um reinado longo e afortunado, recebendo os louros da campanha dos almogáveres no Oriente, capitaneados por Roger de Flor, filho do falcoeiro de Frederico II, morto na batalha de Tagliacozzo. Ficou Pedro III em Santa Creus, nas proximidades de Poblete. Este rei foi com certeza outro dos pecados de Isabel de Aragão, pois se não morreu fora da comunhão dos fiéis por qualquer desembaraço de momento acabou sem o perdão do papa. E sem Pedro III não há retrato da rainha santa que nos valha. Assim é, já que este Pedro foi o pai e o patrono de Isabel de Aragão. E sem pai, sem estirpe, sem quedas e sem raízes, o que resta a uma personagem, para mais histórica, são tapa-buracos. São eles que servem aos biógrafos para compor um retrato sensaborão e inverosímil de Isabel de Aragão; betumam o mais vivo da alma e remendam os desvios, que são afinal o mais arguto e castiço duma vida.

Quem acredita numa biografia de Isabel de Aragão  cheia de mimos e de delícias? Farófias assim são de fácil digestão, mas nada adiantam ao conhecimento real duma personagem de carne e osso, que penou como eu e o leitor. Não anseio senão tocar o cerne desta vida, conforme prometi na abertura deste livro; dou tudo para humanizar estas personagens que a História empederniu em figurões de pedra e a Igreja transformou em santarrões de marfinite. Prefiro por este motivo a caricatura grossa mas reconhecível ao retrato cor-de-rosa mas falso. E isto mesmo numa época em que o Diabo tinha tanta realidade como uma pedra ao Sol, que a Idade Média é outra infância, quer dizer, uma região original ou abscôndita onde qualquer maravilha pode a todo o instante tomar forma.


III. OS CORREDORES DE LAMA


Chegou a altura neste livro de entrarmos na vida de Isabel de Aragão; até aqui falámos sobretudo dos seus antepassados e dos acontecimentos em que andaram envolvidos. Se outro interesse não têm, as personagens ajudam-nos a perceber o berço em que Isabel nasceu e as acções mostram-nos os pecados que do ponto de vista da igreja herdou. E tantos foram. O bisavô materno – o mais façanhudo inimigo que Roma afrontou em dois mil anos – morreu excomungado num rochedo da Apúlia, envenenado porventura pelo papa; o bisavô paterno morreu no sopé dos Pirenéus a defender os heréticos da Igreja cátara contra as hostes do papa e do rei de França; o avô materno, Manfredo, excomungado morreu no campo de batalha contra os exércitos do papa; o avô paterno foi o que sabe, com a morte do pai em Muret e a prisão às ordens do papa; o pai acabou do mesmo modo, depois de ter varrido os angevinos franceses e os papistas da Sicília, relançando em todo o Mediterrâneo o gibelinismo, desta vez numa liga nova, uma amálgama resistente, numa síntese aragonesa-siciliana de longa duração. A família de Isabel de Aragão tinha no código genético o laicismo e o anti-romanismo. Foi com essa inscrição que Isabel de Aragão apareceu no mundo. Passemos então ao nascimento da nossa personagem.

Quando no abrigo de Saragoça estava para vir à luz o terceiro rebentão de Pedro III e de Constança da Sicília, já pensada com o nome de Isabel, andava o príncipe às avessas com o pai por causa das partilhas do reino. Foi testilha que durou e demorou, com o filho reclamante, cada vez mais recriminatório, e o pai endurecido. Assim como assim, mal tomou notícia em Barcelona de que a nora ia dar à luz na Aljaferia de Saragoça, o rei não pôde evitar o impulso da viagem e deu aos mordomos ordem de saída. Bateu as serranias que separam a linha do mar de Lérida, desceu para o vale do Ebro, correndo à ilharga do Segre, seu afluente, e aportou aos arrabaldes de Saragoça. Caíam as neves ralas de Fevereiro, sopradas pela tramontana, e não se via um foreiro nos campos ou um almocreve nos caminhos, batendo com a chibatinha de junco nos flancos peludos do ónagro. Também no eirado, sobranceiro às águas do Ebro, onde de hábito os feirantes armavam o bazar, não se via vivalma. A neve anichava-se nos recantos ou no sopé das árvores; luziam estas, de braços despidos e imóveis, na humidade fria do ar, como polido metal. Apenas de quando em quando se ouvia dentro dos colmados uma voz aflita ou lastimosa. Um fio de fumo azulado atravessava o tecto das choupanas e mais parecia uma emanação fosfórica dos pântanos, um olor mefítico de sepulcro, que um sinal de agitação e cor. A mesma desolação fria e cinzenta encontrou o préstito real nas ruas do burgo, onde não se lobrigava um mesteiral a trabalhar nos tugúrios de porta cerrada. Até os escanzelados cães, mais vadios que os frades menores do toscano doido, que rabiavam o dia todo de cima para baixo na velhacaria dum osso roubado por descaso, haviam desaparecido das quelhas, onde, além da neve que se fundia num fio sujo e lamacento de água, quezilavam apenas as rabanadas odientas da tramontana.

Mal o rei pôs o pé na alcáçova da cidade e logo um velho bucelário, que servira o rei nos tempos de Monzon, se descobriu para lhe dizer com ênfase, os olhos arregalados, o capuz descaído no ombro e a mão direita espalmada no peito:

– Por São João, senhor, acabais de haver a vossa primeira neta. Graças sejam dadas ao céu.

Levou o rei os dedos aos malares para alisar algum fio de barba que para lá se tivesse escapado. Primeira neta não é, pensou ele, que desde o ninho de Monzon, comecei a deitar gente ao mundo, mais copioso que patriarca antigo, já lá vai cerca de meio mundo. Nesses cinquenta anos, que tantos devem ser, muita água correu maneirinha pelo Ebro, vinda lá dos Cântabros, ainda mais vedados, ao que dizem, que os Pirenéus; e nessa água, de Logronho até Tortosa, até trinetas minhas, de boas ventas e mãos taludas, se devem banhar. Mas neta, filha de filho criado na minha casa, mamando da mesma canada e sugando do mesmo cibo, esta é mesmo a primeira.

– Graças sejam então dadas ao céu – respondeu ele ao velho gardingo, com ar de alívio e curiosidade.

E lá foi pelo estreito corredor, seguido pelos seus, desanuviando num trejeito lento dos ombros o corpo do pesado manto escuro de lã, pejado de minúsculos cristais de neve, que lhe servira para bater durante dias as serranias selvagens da Catalunha e os desamparados e nevoentos vales de Aragão.

À entrada da câmara da filha de Manfredo, onde se agitavam as camareiras e as donas mais chegadas da princesa, deu o rei de caras com o filho que vinha a sair com dois conselheiros sicilianos; por um momento, no meio da gente que atarantada genuflectia, os dois contendedores ficaram frente a frente mas o rei, que levava ainda no braço o grosso manto, desviou os olhos, fez-se entender com um camareiro, desfez-se da incómoda veste e seguiu em frente sem ligar ao morgado que continuava especado na pedra da ombreira. A filha de Manfredo, quando soube da chegada do sogro, emitiu um som flébil de agrado.

– Em boa hora chegais, senhor! Grande mercê é esta…– acabou por dizer, estendendo com um sorriso as mãos finas e brancas para o rei.

Andara fraca na prenhez com uma febre de Outono, de que custara a recuperar. Lacrimejavam-lhe os olhos, purgava do nariz, sacudia fundo o arcaboiço com a tosse. Na Natividade do Senhor ainda não se atrevia a pôr o pescoço ao ar. Demais a invernia andara rigorosa e em Fevereiro, que tanto era o tempo em que se andava, nem sequer um dia de sol se mostrara. Com o esforço do parto afundara-se, exausta, sem energia, mas serenara muito com a expelição. Ao alívio mesclara-se surpresa, porque a menina nascera envolvida por uma túnica placentária. Lá dentro, suspensa ainda do além, protegida e isenta, sem perturbação, respirava um híbrido, entre grão vegetal e pássaro, ainda de olhos fechados. Avançou o rei para o leito, tomando nas mãos as das nora.

– Boas novas! Já me põem como primeiro avô duma menina… Sabede que a vós devo a alegria e o ganho.

A um gesto da princesa, a camareira tirou a menina do berço, já enfaixada nos linhos novos, protegidos estes por uma capa de terciopelo. Tomou o rei a recém-nascida nos braços e gabou-lhe os olhos fundos e grandes, a testa larga e alta, os lábios finos e bem desenhados, a pele limpa e delicada.

– Há-de ser rainha como vós – sentenciou por fim, agradado com o luzimento da menina.

Contou-lhe a nora o episódio da túnica placentária. Forçava tanto a surpresa que parecia menos tocar em sucessos presentes que gizar romance de menestrel.

– Vede – exclamou ela – que pela terceira vez repito o transe e nunca tal vi­.

Desde cedo que acompanhara outras donas no esforço de hora idêntica e nunca dera conta de tal sucesso. À cautela mandara guardar o invólucro numa porcelana pelo que dele se maravilhara.

­– Mais parecia cristal resplandecente, raio de Sol, que massa carnal ­– não se cansava de repetir.

Assentou o rei os olhos curiosos nos da menina e perscrutou as águas fundas que por lá brotavam como de manancial oculto por muita erva parrana. Pareceu-lhe notar ligeira perturbação nos olhos aguados e pacíficos. Sem a protecção natural com que nascera, e que o físico logo decapara para que não se lhe colasse aos membros, a luz embaraçava-a. –Esta menina – pensou – precisa de guarda, quando não há-de sucumbir mais depressa que mariposa frágil.­­

Ficou ali um momento com a troixa na mão, absorto nas tristes recordações da infância, já que do nascimento em Mompilher, nos baldões em que depois andara, nem relatos houvera. As patadas da tramontana faziam-se lá fora tão rijas e assustadoras que não custava crer que a neve engrossasse à medida que a hora descaísse para as vésperas. Não tardaria que a luz do dia se fechasse numa cinza insolúvel; em menos de nada, os sinos repicariam chamando ao ofício e marcando o fecho das ruas e o recolhimento dentro de portas. Por fim, antes de devolver a menina ao berço, assestou-lhe de novo os olhos e, sentindo nas narinas abertas o olor primígeno da recém-nascida, fez para si promessa firme. – Não hás-de tomar – garantiu ele – aqueles receios doidos em que eu andei depois de meu pai ser varado por treda lança nas magoadas margens do Garona; há-de a vida cantar para ti uma nota de oiro, sem outro defeito que ser a corda de arame que serve ao menestrel para tirar o som suave do alaúde.

Ao contrário do que se esperava, o rei decidiu nessa noite aguardar pelo baptismo da neta. Seria sacramentada já no sisudo tempo da quaresma no grande baptistério da catedral de Saragoça, tomando o nome da tia-avó, Isabel da Hungria, que o papa Gregório IX, o mesmo que despachara a Inquisição aos fradetes de Domingos de Gusmão e excomungara o grande Frederico, canonizara pouco depois do martírio, temeroso das histórias que se espalhavam na Turíngia, na Francónia, na Boémia, na Suábia ou na Renânia, mais velozes que fogo em tapete seco de caruma dum pinhal.

Pedro III, ainda príncipe, vivia a época picante e raivosa da morte de Manfredo no campo de luta e do homicídio de Conradino na praça comum. Afluíam aos enxames os exilados sicilianos às areias da Catalunha. Vinham sedentos de pôr o coiro a salvo dos horrores que os angevinos inculcavam; chegavam por causa da filha de Manfredo, a quem Conradino deixara o laço dos Hohenstaufen, e davam com um príncipe que queria valer um César. Foi o momento em que o herdeiro de Aragão se viu como o gibelino da desforra e tomou a peito tudo o que desse topete à história da família. Isabel da Hungria, irmão de sua mãe, fora nada menos que landegravina do império de Frederico e antes mesmo do papa se render já o imperador mostrara benignidade e devoção por figura tão extrema. Isabel pois se chamaria a primeira filha.

– O nome vale um sinal. Do resto nada sei – respondia ele insensível, aos que lhe perguntavam se queria ao modo da tia da Turíngia uma filha santa.

Guardava para si o resto. E o resto era que também irmã sua, menina calada, de poucas prendas, guardadora de patas, tivera por primeira benção o nome da tia Isabel. Nada tinha de santa, senão ter maridado o herdeiro de Luís IX, o rei francês que, enquanto inculcava um tribunal eclesiástico nas mãos do clero regular, trincava de vez em Montségur a resistência da Igreja cátara.

Sacramentada a menina, partiu o rei Jaime I para Barcelona. O tempo aliviava de rigores; viam-se nos prados as primeiras clareiras verdes a brilhar por entre os fofos da neve; nos braços das vides engordavam os botões, prestes a abrir; raios tímidos de Sol por entre os bulcões das nuvens anunciavam a rejuvenescência dos organismos. Também a cabeça do rei fermentava de renovação com aquela nova de recair no filho a herança da casa Staufen. Continuava a não haver dia, ao que lhe diziam, que uma galeota ou uma fusta não chegasse da Calábria, da Campânia ou da Sicília, carregada de refugiados. Chegava para conceber uma expedição punitiva à Sicília, dando uma lição de azorrague ao poltrão do angevino. – Sobram-me razões – amargurava a sós. Acabou porém por se conformar com uma expedição ao Oriente que retomasse a direcção da entrada de Frederico II em Jerusalém. Remoçou tanto com o assomo que quando se viu no salso argento, com o pio rabugento das gaivotas, se tomou de desejos duma dona e regressou ao paço. Tomou-lhe o lugar o rei de França, que foi morrer diante das muralhas de Tunes, logo lhe seguindo a nora, essa Isabel de Aragão, irmã de Pedro III, mais dada às pitas da capoeira que aos cristais da cabeceira.

Jaime I, depois da morte da filha que lhe servira de selo às avenças de Corbeil, deu a entrar na senectude. A vida era um arco a perder de vista; enfiava lá tantas décadas que não atinava com as contas. Entre anos e donas era labirinto de tantas voltas que não lhe topava luz nem saída. Lembrou-se então da menina da túnica placentária que estava para Saragoça com os pais e que lhe valera o pasmo dum prazer inesperado. Pareceu-lhe que já nada queria da vida a não ser um toro de sobro a arder lento no lume, para aquecer os ossos frios e serenar o tumulto dos pensamentos. Em vez duma gata que lhe saltasse para as pernas, enroscando-se no pêlo do tabardo a ronronar, havia de ter à mão uma neta mimalha, que o ajudasse a espantar o torpor dos membros. Demais, recordou as palavras promitentes com que a sua varinha, numa tarde fria de Fevereiro, fadara a neta. – Uma idade de oiro há-de cantar na meninice da pupila – repetiu ele. – Uma Isabel se foi, outra vem, e esta melhor que a outra – juntou.

Partiu o mordomo-mor do reino à velha capital de Aragão pedir com empenho a menina aos pais. Mais do que ordem de rei, era rogo de velho. Não se opuseram os pais em deixar seguir a menina para o demandante. O príncipe viu mesmo nisso um sinal de reconsideração.

– Talvez meu pai se lembre assim daquilo que tão mal me desarranjou – disse ele.

A filha de Manfredo, pelo seu lado, andava outra vez prenhe e não tinha mãos para tanta criança. Afonso, o songa-monga, ronceiro mas lustroso de cabeça, não era incómodo; ainda assim parecia não respirar sem a mãe por perto. Jaime, por sua vez, mais azougado, era menino de cinco anos e nem o gineceu ainda deixara. Não havia instante em que não gritasse com desaforo pelo colo da mãe, a que queria mais que aos bonequinhos de barro, pintados de azul e vermelho, com águias pretas no peito, ao modo gibelino, sem os quais ninguém o deitava no almadraque para a dormição da noite.

– Agora, no berço, é que Isabel há-de ir – firmou. – Depois não ganha jeito e vem de volta.

Partiu a menina para a sua primeira grande viagem. Abria o Verão as suas delícias e os vales de Aragão eram um tapete fofo de verdura com os quatro cantos queimados pela brasa do Sol. Boeiros pacíficos buscavam com os gados as terras altas, mais frescas e viçosas, levando a tiracolo o cabanejo com o corcho grosseiro, o corno das bagas, o queijo curtido e o cibinho duro. De quando em quando, arrumavam-se nos loendros em flor, a prender o fio no junco, para deitar o isco às enguias  dos corgos ou às lampreias dos açudes, levando para o torgal em lume da noite uma petiscada de pescado fino.

Quando o avô viu a menina chegar, nos braços da ama, a Montjuich teve um sorriso de boa cara. Tardara-lhe a vinda da neta e agora que a tinha chegava-lhe ao espírito a inquietação dos sonhos imanes, próprios da idade moça. Destraçou os faixas de linho que serviam de protecção à menina e, tomando-a nos braços, voltou àqueles olhos que tanta apreensão haviam badalado no ar. Lá estavam fundos, grandes, aguados, desta vez com a coloração acastanhada bem entranhada. A testa ganhara altura, os lábios haviam tomado nova fineza e a pele, esplêndida e olorosa, parecia pétala de rosa ou porcelana translúcida; no todo era aquela mariposa delicada, que qualquer aspereza ou estiagem apagava.

– Nem cisco de fuligem te há-de chegar aqui comigo, quanto mais secura de Verão – ciciou-lhe a sorrir o avô, resguardando-a de novo, com extremoso cuidado, nas faixas brancas de pano.

Começou para ambos um aro feliz. A menina, ainda de berço quando arribou à alcáçova de Barcelona, depressa começou a tentear os primeiros passos, abrindo os olhos para o avô que não despegava dela. A paciência do velho não conhecia termo e o único gosto que tinha na vida era fazer-se camarada da cachorrinha desengonçada que ensaiava trepar a haste. Comia com ela, adormecia ao lado dela, maravilhava-se instante a instante com a inocência do ente que preenchia uma mão de espaço. Quando ela começou a soletrar as primeiras palavras, foi ele que lhe deu a beber os sons e os sentidos. O velho não encontrava outra satisfação que não fosse a neta. No Inverno puxava-a ao colo e deixava-se ficar a cabacear de sono ao pé do lume; no Verão era com ela que se refrescava à sombra do pátio ou das árvores do pomar; na Primavera vinha ao jardim pela sua mão apanhar os primeiros raios luminosos de Sol. E era ainda pelo desvelo de sua mão que recolhia em Outubro aos aposentos para se acautelar das primeiras tramontanas frias.

Mimada assim, a menina depressa se fez um vaso de encantos e de perfumes. Risonha sempre, não havia nenhum que lhe negasse um dito benévolo. Era já o botão da rosa que os próximos do rei louvavam como a mais rica prenda do reino de Aragão.

Um dia vieram os pais de Saragoça a Montjuich mostrar ao rei os dois rebentos que entretanto haviam nascido, Frederico e Violante, e não pôde a mãe represar uma exclamação de júbilo, tal era o brando e dócil estilo que encontrava na filha.

– Esta menina há-de ganhar guerras com um sorriso – vaticinou-lhe.

O pai, que era atrabiliário mas não dispensava um ponto de velhacaria, replicou.

– Sempre ouvi dizer que as camas conseguem o que nem as armas mais feras alcançam.

Para bem dizer o sorriso de Isabel era o espelho da primeva inocência. Do mundo só conhecia o que o avô lhe mostrava e tanto bastava para dele haver uma ideia pura e equilibrada. Das traseiras da alcáçova, onde ficavam os jardins e os pomares, que lhe serviam de recreio, avistava as flechas da catedral e o rendado especioso da pedra, onde parecia vir cantar o azul do céu. Para além dele, apenas lobrigava cachos de verdura que pareciam subir de lado nenhum; folhas viridentes, movidas por uma energia que vinha de dentro, abanavam no ar e punham uma nota de favor na glória da luz do Sol. Esplendor sem igual! Fausto sem mancha! Ela ficava ali, quieta, muda, arrebatada, sentindo no silêncio a roda gloriosa a radiar por todo o orbe, também ela imóvel e esplêndida. No fundo, continuava vestida pela clâmide luminosa e transparente que lhe servira de protecção no momento do nascimento e de que o físico apenas decapara a primeira película.

Uma prenda acompanhava a visita dos pais a Montjuich. Era Vataça Lascaris, filha da infanta Láscara da Grécia e do conde de Vintemilha, que as voltas do saque da Sicília e de Nápoles trouxeram até à corte da filha de Manfredo feita valhacouto de acossados. Tratava-se de menina pouco mais idosa que Isabel, sisuda e expedita, que a mãe punha como pedra angular da casa futura da filha.

– Escolhi-a entre muitas. Tenho a certeza que lhe há-de valer sempre como remédio em moléstia má.

Achou o rei despropositada a tenção da nora em pião tão pequeno mas ainda assim não intentou contestá-la. Sabia que os exilados eram um alfobre de sonhadores ou de aventureiros, capazes de pintarem a manta em todo o lugar, mas não lhe passara pelo cogitar que pudessem também ser avental de camareiras. Dentro de si corria um bulício de ciúme; quando viu porém a sisudeza da menina emendou-se. –  Não é um tal botão que pode competir com um rei padreador – riu-se ele.

Adaptou-se Isabel à nova menina que os pais deixaram em Montjuich. Integrou-a no miúdo fazer dos dias e em pouco mais de nada era como se a moldura a tivesse sempre contido. Dava tanto por ela como ao acordar a mão direita cumprimenta a esquerda; em menos de nada, aquela menina trigueira, olhos húmidos, brilhantes como duas azeitonas negras, fazia parte da vida de Isabel, sem outra estranheza que o nome. Mas até esse foi assimilado como o alfa da novação. Nem mesmo o rei, atrido e desconfiado a princípio, se importunou com a nova presença; em vez duma mimalha ao colo, passou a ter duas. E com o passar dos dias, o regresso alternado dos dias quentes e dos frios, chegou até a pensar que assim, com as duas meninas, ora nos joelhos, ora nas mãos, como dois lenços brancos ou duas asas de anjo, é que o destino estava certo.

Correram as estações o seu curso de glória, pelo menos aos olhos encantados da princesa. A entrada de Vataça não chegara a pôr um abalo na vida. Nenhuma interrogação, nenhuma tremura, pois. O número de pessoas do círculo que acedia à princesa era muito restrito e a área dos passos que dava muito limitado. Tudo o que conhecia do mundo era a figura borralheira do avô. Além dele, apenas as duas camareiras que lhe renovavam a câmara e o comer, numa prudência calada e terna, Berengária e Sancha, e alguma serva de dentro, discreta, calada, tímida, que vinha fazer serviço nas câmaras ou trazer o repasto nas friezas do Inverno. Demais, só mesmo as flores que desabrochavam no jardim, as árvores do pomar e algum alão do avô que aparecia nas tardes frias para estender o corpo ao borralho e encostar o focinho a escarpim conhecido. Nunca saíra de Montjuich e mesmo dentro da alcáçova o rei limitara o itinerário da neta a uma ala das traseiras, contígua ao pátio e aos jardins, onde só ele tinha acesso. Não via a corte e não ia ao assento dos legados externos que vinham ao beija-mão do rei. Demais nem nota dava da criadagem do rei. Do exterior, a menina só conhecia o azul do céu, o baio da terra, a renda de pedra da catedral, a fluorescência garça das folhas vindas de lado nenhum; isso e o silêncio que percutia naquele canto perdido do mundo como se se tratasse dum eco vivo da eternidade.

Uma tarde de Março, quando a luz do equinócio explodia, rompendo as trevas da invernia, Isabel, habituada já às alternâncias do borralho e dos curtos carreiros do pátio, atreveu-se em momento de ausência do avô a sair sozinha para o jardim. Vataça, a companhia de toda a hora, estava acamada com catarro forte; a inflamação era de tal modo aguda que perdera fala e olfacto. As camareiras rodeavam-na preocupadas, pondo no estado toda a atenção. Aproveitando o descuido, esgueirou-se Isabel por uma fresta da porta de carvalho chapeada a faixas de ferro, fechada a duas chaves, que separava a ala das câmaras do pátio, onde estavam jardins, pomares e parque.

Diante de si estava um mundo reconhecível. Era o doirado da terra e o azul desenvolto do céu. Por detrás, verdadeira linha de infinito, o recanto alto onde se rasgava a pedra amarela da catedral, desta vez com as folhas verdes sumidas. Correu pelo pátio à procura dos canteiros conhecidos, onde o avô se sentava nas tardes de Verão, desentorpecendo os membros presos e aspirando o bâlsamo do rosmaninho. Quando atravessava um recanto escuso, debaixo dum beiral, deu com um espectáculo nunca visto. Um ser em ponto pequeno, coberto dum fato escuro, dois olhos a brilharem na escuridão da veste, uma boca em bico, agitava-se em desesperado esforço, numa acção nunca presenciada ou concebida.

Ficou Isabel paralisada naquele recanto escuro do mundo, procurando compreender o que se passava. Que mistério! Que estranheza! Não ousava dar um passo, mas por nada era capaz de despegar os olhos da cena em que se envolvera. O que mais a perturbava eram os dois olhos rodando no vazio sem nome. De seguida, vinham os sacolejos do corpo, como quem queria andar e não podia. De repente, num arranque inesperado, pareceu-lhe sair do bojo um dos braços daquele estranho ser. Reparou melhor. Não era um braço, mas um membro vestido de penas, uma asa.

Uma asa! Conseguia distinguir uma asa dum braço, mas até esse momento, pelo menos cerca de si, só vira braços, nunca asas. Em tardes quentes de Verão  viera pela mão do avô passear nos jardins e ficara a olhar o céu a tingir-se de tons alaranjados. Uma hora, quase por acaso, reparara que bólides sonoros riscavam linhas escuras no anil do infinito. Abrira os lábios de surpresa. O velho, sempre muito atento à neta, sorrira do pasmo e explicara em palavras directas.

– São aves. Em vez de braços, têm asas. Cantam e voam.

Sabia pois Isabel distinguir uma asa dum braço. Ainda assim aves e asas, existindo para ela – recordava bem as palavras do avô – eram seres do céu, que viviam para lá do círculo onde se desenrolava a vida dos homens. Pela primeira vez percebia que uma ave se podia misturar à vida que ela vivia e tal facto pasmava-a. E na surpresa punha toda a contemplação de que era capaz. Afinal não só as aves se misturavam à vida dos homens, o que era impensável até àquele momento, como tinham olhos e boca, coisas repetidas e próximas. Isso a surpreendia e afligia, porque nunca notara nos olhos de ninguém uma agitação tão estreme. Era uma perturbação sem nome, que não havia até aí identificado em nada e que a alterava por dentro, criando-lhe uma dor moral que nunca conhecera e não sabia que podia existir.

Encaminhou-se para o pássaro com a disposição de lhe dar carinho. Venceu nisto uma repulsa interior, que ditava afastamento. Ao aproximar-se notou que a aflição do olhar se intensificava e o esforço tocava um paroxismo insuportável. Experimentou então o desespero e o sofrimento da vida em toda a crueza, mesmo desconhecendo ainda as palavras que os significavam. Cresceu a repulsa, mas subiu também o impulso de acarinhar tão desprotegida experiência. Retundiu-se, no receio que a proximidade mais assustasse o pequeno ser, mas avançou de seguida, tomando entre as mãos o embrulho escuro de penas.

A princípio sentiu o desespero do pássaro explodir numa derradeira rebentação de força; depois sentiu nas tremuras o desânimo, a desistência e até a acomodação ao estreito nicho das mãos. Procurou o olhar daquele ser e de novo chocou com a crueza do desespero; cheirou-lhe o corpo e nele aspirou o olor cálido duma manta numa noite gelada de tramontana. Mas aquilo que na verdade agora a pasmava era a fragilidade da peça que se aninhava no abrigo das mãos. De tão quebradiça, era quase inexistente. Que inconsistência! Que leveza venial! À força de sentir o drama que ali se alongava, penetrou por instinto na verdade da acção. Um pequeno pássaro, sem razão aparente, queria voar e não atinava com a matéria que o lançaria pelo espaço.

Hesitou no que fazer. Depositou no chão o migalho, na esperança de que ele desta vez alcançasse o voo. Mas a ave de novo se debateu no esforço e na impotência, acabando por se imobilizar, com o olhar carregado de tristeza. De seguida abriu o tenro bico, mostrando a mucosa rosa da minúscula língua. Isabel lembrou-se então que fome e sede deviam afligir aquele organismo abandonado. Encontrou aí um sentido para os seus passos e esgueirou-se para dentro da ala de habitação, esperando encontrar um cibinho cheiroso e um dedal de água com que matasse fome e sede ao seu novo amigo. E já agora uma bambinela de surrobeco que lhe servisse de almadraque macio.

Nos corredores não viu ninguém; haviam-lhe dito nessa manhã que o avô se ausentaria o dia e que Vataça ficaria recolhida e garantida pelo calor  da cama. Não percebera porquê mas pouco lhe dera. Ao ver-se só, com a porta do pátio entreaberta, principiara a congeminar o plano de se retirar sorrateiramente para o exterior, se possível ao grande parque, mundo sem fim, onde nos dias grandes o avô se perdia com ela no meio do arcaboiço de árvores tão largas e cheias como torres albarrãs. Afinal não passara dos primeiros canteiros e ali estava agora de regresso à câmara para desencantar uma espórtula. Não lhe foi difícil regressar com um caco de água, uma côdea de pão e uma borla de pano. Colocou o conjunto ao lado do imobilizado pássaro e esperou a ver a reacção. Antes mesmo de se aquietar, pareceu-lhe ver lampejar no desespero do olhar que tinha diante de si um traço de alegria.

De súbito os ares tremeram; os sinos puseram-se a badalar, batendo pancada fortes e álacres. Reconheceu a hora sexta. Uma porta bateu no interior da ala. Berengária espaventou o seu nome.

– Isabel.. Isabel.

Para não ser surpreendida no exterior, disparou para dentro, sem mesmo dar um adeus ao novo amigo. Serviu-lhe Sancha o jantar mas ela pouco debicou, tal era a excitação em que estava. De seguida, a mesma aia, como de hábito, a gasalhou no almadraque. Mas foi incapaz também de sossegar. Ficou na penumbra, olhos abertos, coração a palpitar, quieta de membros, enrolada no calor da lã, absorvida apenas pelo que acabara de viver. Revia o encontro no canto escuso, cerca dos primeiros canteiros, por baixo do beiral; no interior do espírito, refazia o ser alheio que lhe aparecera e a argúcia que mostrara em identificá-lo com as aves de que lhe falara o avô. Revia depois no olhar do pássaro o desespero e o sofrimento; voltava a sentir dentro de si a dor moral que tanto a perturbara. Só tinha um anseio, ouvir bater a hora noa para despedir do estrado e regressar ao pátio.

Quando os sinos repicaram a noa, saltou do estrado, mostrou-se à aia e não demorou a descer ao fecho da ala para se esquivar de novo. O avô continuava por fora e Vataça estava de vez escondida. Mas nesta ocasião deu com a pesada porta de carvalho já com as duas linguetas fechadas. Ficou inconsolável mas não se atreveu a pedir a nenhum que lhas abrissem.

Depois do ofício de vésperas, chegou o avô, que a sentou nos joelhos, à beira do lume. Logo aproveitou a menina para lhe avivar as recordações do Verão.

– Lembrais as aves que voavam e cantavam no céu?

– Sim, os andorinhões…

Seria assim o novo amigo? Andorinhão? Tanto dava. Regressou à excitação da tarde. Na manhã seguinte, conseguiria furar a vigilância e tomar de novo nas mãos o amigo dos céus. Por um curto momento teve receio que a porta não soltasse os ferrolhos, vedando-lhe para sempre o acesso ao jardim. Prometeu que nesse caso imploraria ajuda de Berengária ou de Sancha, que com certeza não lha recusariam, tanta era a ternura e a atenção com que a tratavam. Aninhou-se no colo do avô e não demorou a adormecer.

Na dia seguinte teve o avô por perto; Vataça continuava desaparecida. Em momento que se encontrou sozinha, seguiu a experimentar a porta de carvalho, que desta vez cedeu. Num rufo estava ela por baixo do beiral. Teve dificuldade em reconhecer o lugar; chovera de noite e a terra escurecera um tanto. Precisou de pôr toda a atenção no lugar para procurar o amigo. Do caco e do cibo nem sinal; deu porém com a borla, que lhe pareceu tábida e desconsolada. Por fim divisou o pássaro mais miúdo e amarrotado. Tombara de lado e ao que percebia as pálpebras, como duas colgaduras de janela estendidas, haviam descaído. Mostravam um lado esbranquiçado muito mais repugnante que o todo do dia anterior. Veio-lhe ao espírito medo e dor, aquela dor moral, que fora a grande novação do dia de ontem, e que se agravava agora numa angústia indefinida, numa amargura de alma que doía mais que os espinhos das roseiras que às vezes lhe feriam ao de leve a carne delicada.

Venceu-se de novo e encaminhou os passos para o animal. Pegou nele e sentiu um choque brutal. A leveza que antes tocara era agora dura e inteiriçada. Pintas pretas, que o avô um dia a rir lhe mostrara numa cova do jardim, atarantavam-se a passear pelas penas e começavam já a subir-lhe pelo braço. Poisou na terra a ave, curiosa de espreitar o que aquelas pálpebras cerradas como colgaduras escondiam. Novo choque. As órbitas dos olhos estavam imobilizadas. A vida angustiosa que por lá vira no dia anterior gelara num pasmo de terror. Será isto a morte? – perguntou-se horrorizada. Ouvira certa vez Berengária, a mais velha das camareiras, referir-se à rainha defunta,Violante da Hungria.

– Ai, senhora, a sua avô que Deus tem era tão minha amiga. Morreu sem por quê. Sofro-lhe a falta e não há ensejo que não me vá para nela pensar. Sem vós, menina, nem sei o que de mim seria…

Percebera então que havia gente ausente, que desaparecera para sempre e cujo único rasto era a memória que deixava naqueles que ficavam. Só agora porém, no jardim, diante daquele embrulho duro, a morte se lhe desenhava com contorno de realidade. –  É assim então que se morre – pensou amedrontada.

Por instinto cobriu de terra e folhas o cadáver e regressou ao interior do paço. Procurou o avô para se aninhar ao colo mas não deu por ele. Começava a tremer de frio e a sentir-se tonta. Apetecia-lhe rir e chorar ao mesmo tempo, as mãos tremiam-lhe, as pernas caíam-lhe lassas. Não tardou a perder a consciência. Berengária levou-a em braços para o coxim, abrigou-a nas lãs que serviam de gasalho na invernia e não mais a desamparou. Quando o rei regressou, Berengária apareceu-lhe em grande aflição, com as mãos no burel sujo do capuz.

– Senhor, Isabel está com a moléstia da menina Vataça. De nada serviu o impedimento de se verem.

Chamou de imediato o rei um dos físicos do paço. Não encontrou este na pitorra sinais de resfriado ou catarro, como se esperava, e ficou de vir no dia seguinte.

– Estas moléstias são assim. Só nas horas seguintes se mostram – disse à despedida.

Veio o físico do rei na manhã seguinte e nada de novo lhe encontrou. O mesmo sucedeu depois da hora sexta. Para maior estranheza, Isabel estava mergulhada numa letargia de que não dava acordo. À hora noa mexeu-se, abriu os olhos, acordou, mas pareceu não reconhecer os que a rodeavam. – Onde estou? Ao que vim? Para onde vou? ­– perguntou-se de chofre. Recordou de imediato a experiência que tivera no jardim, mas o facto, tão real há pouco, surgiu-lhe apagado e nimbado por uma luz onírica, como se tivesse acontecido num dos recessos do sono. Deixou-se ficar. Em redor, reconhecia o círculo dos conhecidos mas era como se uma porta cispada a impedisse de comunicar com eles. Por fim voltou a cair na morrinha das últimas horas.

Inquietaram-se os circunstantes. Tentou o físico reanimá-la, mas nada conseguiu. Vieram outros físicos; nenhum porém atinou com a sezão que a molestava. O avô exasperava-se, antevendo o pior.

– Em vez de físico, hemos aí cónego para lhe rezar o responso… Que vai ser de mim…

Ao fim de muitas horas, quando batiam as pancadas da hora prima, voltou a a menina a mexer-se. Ninguém arredara pé e o avô cabeceava num banco de braços, embrulhado num tabardo velho que por ali estacionava. Sancha e Berengária renovavam panos molhados em solução de malva na testa a arder da donzela. Deu esta um novo sinal. Os tecidos do rosto franziram; as mãos, dentro da lã, mexeram.

– Menina, menina … – gemeram as cuvilheiras alvoroçadas.

Acordou o rei e olhou a neta estremunhada. Não tardou porém que esta voltasse a tombar no torpor vegetal anterior. Nem repelão de Sancha a incomodou.

– Se isto assim segue – choramingou o rei – é mister que alguém bata para Saragoça a dar sinal aos pais.

Em vez do rei gárrulo que vira mundo largo, que trincara bispos e nobres, que andara excomungado e vira o pai morrer ao lado dos heréticos de Toulouse, o homem que ali estava parecia uma criança ensimesmada, desnorteada pela solidão. Era um trapo enxovalhado pela doença da neta. Não houve todavia necessidade de mandar mensageiro à aljaferia de Saraçoça. Daí a pouco voltava a menina a mexer o corpo. Abriu os olhos e de novo franziu o rosto. A muralha espessa que antes se interpunha entre ela e os presentes desaparecera. Recordava os eventos do jardim, mas tão perdidos lhe pareciam nos corredores do sono, tão irreais e ilusórios os tinha nos longes da memória, que já nenhum incómodo lhe davam. Sorriu.

– Hei sede, donas! – exclamou com simplez garrida.

Voltava a ser a mesma. Uma aura de inocência e travessura tomava-lhe o rosto oblongo, com os olhos a sorrir como dois lagos tranquilos e cheios depois da tormenta. Logo Berengária lhe trouxe a moringa para lhe matar a sede e uma caçarola de arroz de açafrão, prato das marismas de Valença. Fez Isabel cara de aborrida.

– Água! Água! Arroz, não… – replicou.

O avô não se tinha de contente e logo mandou vir comida e bebida para os que ali estavam. Raiava o dia e cantaram o ofício da primeira hora. Um júbilo sorria nos olhos de todos. Até Vataça veio embrulhada numa gonela de terciopelo beber o caldo à entrada da câmara. Ao invés da vontade de Isabel, nenhum lhe permitiu levantar-se; foi obrigada a uma longa convalescença no estrado. Todos os dias um físico a vinha observar mas nunca toparam com sinal mau ou anormalidade. Assim como assim, o susto fora grande e o avô insistiu em tê-la resguardada na câmara.

– Deixo-te dar uns passos, não mais. No resto, ficas no coxim, apoiada em almofadas.

Ela aceitou as restrições. Passava a maior parte do dia sentada no estrado, embrulhada numa manta, com Sancha ou Berengária por perto. Cantarolavam, contavam casos, faziam momices. Vataça ainda andava encatarroada e só lhe aparecia no umbral, embrulhada numa manta de lã, para lhe fazer adeus. Momentos havia em que experimentavam cantar as duas algumas notas do ofício da manhã. Depois da hora sexta ficava sozinha, já que Sancha e Berengária, se retiravam para um curto descanso e Vataça há muito que recolhera. Era nesse intervalo que se dava a pensar nos sucessos do canteiro. À medida que os dias deslizavam uns sobre os outros, avaliava o caso como imaginário e sem tutano. Perdeu mesmo o hábito de pensar nele. A única realidade era o círculo em que vivia, não mais. E esse estava vivo, tinha cor e brilho, parecia eterno e mesmo imutável. Eis pois o bastante à segurança do seu espírito.

Chegou por fim a altura em que o avô lhe entrou na câmara a sorrir. Vinha arteiro e loquaz; trazia com certeza manha com ele. Entreteve-se com ninharias e ao cabo dalgum tempo atirou-lhe de olhos muito abertos.

– Amanhã, filha, levantas-te para sair da câmara.

Logo a menina atirou os braços ao pescoço do avô; uma alegria doida tomava conta dela. Tudo voltava à antiga harmonia, quando os aposentos em que vivia eram um eco vivo da eternidade. Na manhã seguinte Vataça foi também autorizada a juntar-se ao grupo e as duas puderam andar de mão dada na companhia de Berengária e de Sancha pelos corredores do paço. O avô esperava-as no salão, de borralho aceso, para as mimar no colo.

Passaram as semanas e caiu o esquecimento sobre o sucedido. O mês de Maio chegava ao fim e o tempo corria esplêndido. A rijeza das meninas via-se no apetite com que mastigavam as tibornas estaladiças. Estavam sãs e prontas a forrar tareco. Decidiu o rei voltar com elas ao jardim. Isabel ao passar a porta de carvalho da ala para o pátio amedrontou-se. Por um instante, vieram-lhe ao pensamento os terrores em que andara metida. Os sucessos de então voltaram a tomar corpo; por instantes duvidou da sua irrealidade. Depois pé ante pé atreveu-se a seguir o avô. Espreitou o canteiro de terra onde deixara o pássaro mas nem um vestígio encontrou; sumira-se tudo como se nada houvesse acontecido. No lugar apenas uma roseira começava a abrir os botões vermelhos. Encantou-se com aqueles pontos teúrgicos de fogo, enrolados em si mesmos.

Na manhã seguinte regressou com o avô e Vataça. Uma luz esplêndida envolvia o pátio. Silvos de pássaros cortavam os ares; as árvores do pomar espetavam os braços para o céu com um vigor desconhecido e fecundo. No parque, ao fundo, vibrava na aragem a gloriosa cabeleira verde dos choupos. Um aroma de balsâmo ondulava nos ares e do lado de fora da cerca irrompiam no azul do céu as flechas da catedral. Palmas virentes prosperavam na luz do Sol. Correu para a roseira; os botões fechados do dia anterior haviam desenlaçado as pétalas do exterior, desembaraçando os folíolos do cálice. Cada pétala assim descoberta espiralava na luz uma abertura perfeita. Era o esplendor sem mancha dos dias antigos que voltava ao presente.

Sucederam-se os dias e a mesma impressão de glória se manteve. Acentuou-se mesmo à medida que as rosas iam abrindo, radiando uma harmonia simétrica e um perfume de êxtase. Gostava de contemplar cada flor com demora, vendo em cada uma delas uma fogueira, disparando labaredas nas direcções do espaço. Vataça partilhava o exercício e o entretém das duas era apressar a metamorfose de cada pétala numa chama. O jogo ganhava tanta realidade que momentos havia em que Isabel se afligia.

– Chega atrás, filha! Olha que te queimas.

Vataça pulava então para trás, afastando-se da haste da roseira, também ela convencida que a roseira era uma haste viva de fogos acesos.

À noite, na chaminé, no colo do avô, diante da combustão dos toros, mirava as línguas de fogo e entretinha-se a ver nelas o rodado labirinto duma rosa extática.

Uma tarde em que se apanhou sozinha no pátio, o que acontecia agora com frequência, viu a sua primeira rosa murchar. Outras por lá havia, secas e desfolhadas, mas na verdade nunca reparara no assunto. Desta vez porém era rosa que tinha debaixo de olho; logo percebeu nessa tarde, ao primeiro olhar, as metamorfoses que nela se haviam operado desde o dia anterior. A pujança do todo derribara; a cor viva desbotara; algumas pétalas haviam caído e espalhavam-se agora por terra. Onde está o fogo? – interrogou-se alarmada. Nada soube dizer e recolheu intrigada ao interior. Na manhã seguinte nova surpresa. A murcha rosa da tarde anterior desaparecera e dera lugar a uma prega seca e negra. Fazia semblante de carquilha sinistra. Nessa noite, enrolada aos pés do avô, por ocasional associação de ideias, percebeu que a cinza da combustão da madeira que diante de si se consumia equivalia à gelha que nessa manhã vira.

Mas a pior experiência estava ainda para chegar. Durante dias seguiu o processo de privação de viço das rosas. Vataça, por empenho de Isabel, acompanhava a observação. As pétalas que haviam sido lume perdiam cor e vida, fraziam bambas e  soltas, acabando por tombar uma a uma em terra, onde em pouco tempo se tornavam ciscos negros e secos.

– Cinza e mais cinza! – exclamava então Isabel com desânimo, apanhando na mão os restos.

Uma tarde, depois do ofício de vésperas, já depois da ceia, quando o solstício dava um arco de folga aos seres do pequeno círculo da princesa, esquivou-se Isabel ao portão de carvalho para seguir o exame do processo seguido pelas rosas. De resto, e só de momento o percebia, outras flores seguiam curso idêntico. O pomar, com árvores de fruta, era um viveiro úbere a confirmar a suspeita. Antes, tudo lhe parecera imarcescível; agora, entendia que havia quadras distintas, sazões que alternavam glória e queda.

Quando se dirigia para o interior do pomar, na beira da terra, entre o tojo que secava e que de quando em quando Berengária vinha roçar, sentiu um restolhar novo. Habituara-se ao zumbido sonoro de insectos invisíveis. A princípio tomou o ruído como sendo de idêntico estalão; depois avaliou diferenças que o tornavam irreconhecível. Enquanto o zumbido vinha do interior mesmo da terra, como se se tratasse duma emanação dela, aquele esbracejar estava ali a dois palmos das pernas dela. Demais, fosse o que fosse, arrastava-se pelo tojo. Abeirou-se a espreitar por entre as gramíneas. Teve um embate. Um pássaro negro, forte, grande, assustador, de bico alaranjado, olhos piscos, estava preso num laço de ferro, que lhe tomava todo o corpo. A aflição era evidente. Fazia momento a momento um esforço desesperado para se livrar da armadilha. Sacudia o corpo, arrastava as patas, ensaiava bater as asas, que, presas no laço, não chegavam sequer a abrir as rémiges. Desistia, cerrava os olhos de tristeza e recomeçava. Pelo esforço, pelo cansaço, pelo desespero, pela exaustão percebia-se que andava naquilo há muito.

Ficou em estado de choque Isabel. Lembrou-se de imediato do que vivera por baixo do beiral do pátio e que entretanto se apagara na memória. Não teve espaço para reflexão; a urgência do desespero era cada vez maior. Debateu-se num dilema: deitar as mãos ao bicho para o tentar livrar do laço ou afastar-se, subjugada pelo susto e pela repulsa. O ser que ali estava era assustador, muito superior em tamanho às suas mãos. Demais era repelente, com o pêlo tão negro como carvão, os olhos arregalados, o bico fino, longo, agressivo como um bulhão polido sempre pronto a espetar. Ficou por um instante paralisada, entre o medo e o ensejo de ajudar.

A fadiga do pássaro era porém óbvia. Os arranques para se livrar do metal que o cingia faziam-se mais raros. Os olhos fechavam em sinal de desistência e o bico descaía-lhe sobre o peito. Um líquido encarniçado pingava-lhe sobre a penugem e escorria para a terra sôfrega. Entorpecida, Isabel continuava metida no dilema. Por fim, ante os sinais da agonia, decidiu-se. Superou susto, repugnâcia, torpor, e avançou no tojo, disposta a deitar as mãos ao corpo do bicho. – Há-de voar, com a minha parte – pensou. Quando porém se baixou para terra, o pássaro num derradeiro arranque sacudiu com inusitada violência o corpo, rastejou, crocitou zangado, abriu caminho no tojo, forçou o laço com a pressão das asas e acabou por se imobilizar uns metros adiante. Isabel quando dele se aproximou viu na mole escura e desfalecida do corpo, os olhos tábidos no vazio, estrangulados de pasmo.

Regressou de imediato aos aposentos. A luz do Verão não se apagara ainda; recortavam-se nas paredes dos corredores, contraponto das aberturas altas, alguns losangos de luz, onde tremulavam sombras. Não tardaria Berengária a andar por ela para a levar para o estrado. Isabel não se teve e foi pelo seu pé enovelar-se nas roupas da noite. Daí a pouco tinha cerca a camareira. Esta, quando a viu de olhos fechados, imóvel, muito pálida, amedrontou-se.

– Santa Maria val! Estais de novo molestada. Acudi, senhores.

Despediu. Não tardou a reaparecer na companhia do rei e dum físico. Mostrava grande atrapalhação, parolando a um e a outro. Isabel, mal deu conta deles ao rés do estrado, sentou-se, olhou em redor, ensaiou tranquilizá-los.

– Ide-vos, senhores. Estou apenas cansada…

Escurecera entretanto. Depois do físico lhe passar a mão na testa e lhe observar a língua, nada lhe encontrando de anormal, os visitantes saíram. Ficou Isabel na escuridão, sentindo o músculo interior latejar dentro de si. Afinal tudo o que se passara antes, debaixo do beiral do pátio, fora real.  Vislumbrava agora o erro em que andara; os pássaros não eram riscos do céu, mensageiros incorpóreos, impalpáveis, feitos apenas de som, como chegara a pensar. Eram seres com olhos, boca, língua, pernas, sangue – o mesmo que de si soltava, quando rasgava dedo em pico espetado de roseira; em vez de braços tinham asas e no lugar de cabelos, penas. Ainda assim, no resto, que tanto era, faziam-se iguais à meia dúzia que conhecia. Se a morte dos pássaros acontecia na ordem dos factos, como ela tivera possibilidade de provar no carreiro do pomar, também a morte dos humanos devia um dia ocorrer. – Como acontecerá a morte do avô? – interrogou-se cheia de mal-estar. Num sopetão, sobreveio-lhe ao espírito a imagem das carquilhas sinistras em que as rosas se tornavam depois de desfolharem.

Levantou-se. Depositara num cofre, onde o avô lhe pusera dois anéis e uma pulseirinha fina, duas gelhas de pétalas. Tomou-as nos dedos e sentiu a dureza, a insignificância, a insensibilidade do que outrora fora veludo, carne, lume. Dentro em pouco nada delas sobraria. Levou-as às narinas e aspirou o indolor que há bem pouco fora perfume. Entendeu então que a morte era a experiência de tudo – o tudo que lhe era familiar. As árvores morriam; as aves morriam; as flores morriam; os humanos morriam. – Até as pedras, o Sol, as estrelas se hão-de extinguir – rematou com um calafrio. A existência universal estava fadada a consumir-se. Nada era imarcescível; tudo desaparecia para sempre.

Voltou a deitar-se, depois de arrumar o que sobrava das duas pétalas no cofre. Visualizou no escuro em que estava o desespero do pássaro antes de morrer, o último arranque da vida, num esforço supremo para se livrar da cilada em que se perdera. Reviu depois o pavor gelado dos olhos na morte e recordou a rigidez do cadáver em que pegara umas semanas antes. Tremeu, convulsa e agoniada. O sofrimento associava-se à morte tal como o sangue se juntava à dor. O sofrimento de morrer e a dor de viver, eis o drama da existência! De repente a dor era tudo; as sazões doiradas que haviam nimbado os entes de luz eram insubstantes, pura ilusão; bastava um momento, a fracção duma badalada, para desfazer o oiro mais delicado das manhãs. Ora se isto assim acontecia era porque o miolo íntimo da vida era dor e morte. Mesmo o escuro, o escuro daquela noite em que embalava os pensamentos, lhe pareceu uma das formulações da dor universal.

Regressou-lhe então ao espírito a dor moral que tanto a torturara semanas antes. Ali estava ela, de novo, em visita, a dor, a dor sem sangue, a dor interior, a dor amarga e indefinível, sem lugar, que magoava mais que os espinhos metálicos das hastes. Ela ali estava, para lhe mostrar que tudo era dor; até a privação de dor era dor. Que amargura tão abissal! Que aflição tão funda! Eis um dos momentos mais impressivos da vida de Isabel de Aragão. Era uma criança de pouca idade, recolhida nos aposentos do avô, na alcáçova de Barcelona; vivia porém uma amargura tão entranhada, tão sincera, tão adulta, que ninguém lha pode negar, mesmo a sete séculos e meio de distância. Quem me dera libertar-te, Isabel, dessa tua dor como tu quiseste livrar o melro do fio que o embaraçava. Seja como for, este teu momento, Isabel de Aragão, é o da formação da tua alma. E por isso, muito mais tarde, numa carta escrita ao teu irmão Jaime, escreveste estas palavras supinas do teu ser, vivo vida muyto amargosa.

Essas tuas palavras parecem escritas com a pena molhada no tinteiro da blasfémia cátara. Vida muyto amargosa, dizes tu, como se dissesses que a criação foi feita por um demiurgo malévolo que nos acorrentou em ilha de maldição, em cárcere de escuridão. Vida e amargura, vida e condenação, parecem ser sinónimos no teu pensamento. Eis o teu primeiro pecado! A primeira blasfémia da tua inteira responsabilidade! E dessa não te livras, que a escreveste em português. Mas essa heresia em vez de te condenar faz-te simpática. Tu não és uma santa de marfinite; és uma santa pecadora, como as do tempo de Jesus e sofreste, sofreste, sofreste. A tua vida é um bulcão de dor. Não foste, não, a donzela prendada e sossegada que levou o prémio do altar, mas o ser sofrido que arrastou uma vida de dor e de absurdo, igual à de todos nós.

Na madrugada seguinte, não tinha ainda batido o sinal da hora prima, já o avô e Berengária estavam cerca do estrado para lhe tomar o pulso e saber novas dela. Uma tristeza infinita bailava-lhe nos olhos, mas no resto comportava-se como de hábito. Almoçou na câmara, por indicação do avô, mas logo pediu a presença de Vataça. Esta, confidente  provada, assistira com ela à metamorfose das rosas; só ela podia pois entender a aflição em que se metera. Quando a menina chegou, tomou-lhe as mãos nas suas e chorou. Depois levou-a ao cofre, mostrou-lhe cheia de lágrimas as gelhas, contou-lhe por fim o caso da véspera.

– A vida é morte – concluiu a tremer de horror.

Propôs de seguida uma expedição confirmativa aos tojos do pomar. Não se puderam furtar ao olho desconfiado de Berengária nos dois quartos seguintes, mas depois do jantar, antes da noa, durante o descanso da camareira, esgueiraram-se para o pátio e depressa alcançaram o pomar das frutas. O calor apertava, o Sol expelia uma labareda de fogo, os insectos zumbiam, o ar estava mormacento. Explodia a luz, cegando os olhos e dissolvendo as substâncias.

Demorou Isabel a encontrar o local onde tudo se passara. Por fim reconheceu o lugar onde encontrara o avejão; lá estava o ninho onde o ouvira restolhar ocultamente e o carreiro que ele abrira até se imobilizar. Seguiram a pista e deram com o corpo negro esparralhado por terra, rodeado por moscardos grossos, zumbindo silvos surdos e chispando reflexos verdes na luz do sol.

– Que horror! – assustou-se a princesa grega, levando os dedos à boca e cerrando com força os olhos.

Aproximaram-se a medo. Milhares de pontos negros alastravam no espaço. Haviam forçado os olhos do animal e por aí corriam para dentro dele, numa sofreguidão apressada de o roubarem. Por força da invasão, ou por qualquer outra razão desconhecida, voltara-se e mostrava agora as patas retraídas e secas, sinal de impotência e nulidade. Um cheiro nauseabundo sobraçava no ar.

– Vês? A morte… – adiantou Isabel diante do espectáculo.

A palavra morte assustou-as muito. Metia medo, aquele som. Ficou a ressoar dentro delas como um veneno abrasador. Demais, ondulava no mormaço nauseabundo que as envolvia. Abraçaram-se a chorar, de olhos fechados, e assim ficaram um longo pedaço. Cada uma delas dizia para si a palavra morte e soluçava. Ao tempo, enquanto assim arfavam, apertavam-se muito uma na outra.

– É mais horroroso do que aguardava – acrescentou a neta do rei de Aragão.

E ali teve pela primeira vez a intuição da evolução desfavorável da existência, que se liga a um pessimismo, que é inclinação para o pior. No momento dessa percepção,  soltou-se e desprendeu-se do corpo de Isabel a segunda película da clâmide luminosa e transparente que lhe servira de protecção no momento do nascimento. O físico decapara-lhe a primeira; a experiência da vida, relativa à morte, removia-lhe a segunda. Sobrava ainda a terceira, que só mais tarde, muito mais tarde, já em terra estranha, em Portugal, lhe tiraram, deixando-a nua e desprotegida. Nessa altura, Isabel, é que tenho pena de ti; nunca deve ter havido sofrimento mais duro. Nessa altura, já na maturidade tardia, longe de Barcelona e Aragão, haveria ela de confessar ao irmão Jaime em letra redonda o desespero. Fá-lo na carta em que lhe revelou a vida amargosa que vivia. Nessa carta deixou a expressão – cada dia para peyor.  Estas palavras retratam a figura e a alma da sexta rainha de Portugal. Há traços irreflectidos, na aparência irrelevantes,  que se tornam retratos fiéis. É o caso dessa frase, com o valor dum ex-libris.

Se a apreciarmos bem, também ela parece escrita com a ponta da pena molhada no tinteiro da blasfémia cátara. O pessimismo de Isabel de Aragão torna a vida condenação, ideia-motor do desvio cátaro. E quando vemos Isabel e Vataça a descobrir a morte, num recanto perdido do paço de Jaime I, no alto de Barcelona, rodeadas de vegetação, mais compreendemos o fundo doloroso em que se formou a alma de Isabel de Aragão. O que impressiona é a cinza, o escuro, o feltro espesso e apagado que parece dos dias de hoje. Não morreu, ainda o sinto por perto; está vivo. Até o leitor o pode sentir no ar. Isabel de Aragão é irmã dos existencialistas, os das ruínas dos bombardeamentos, e até dos abjeccionistas, ao modo do Pedro Oom que viu no ar um vómito. Ainda não se viu quanto esta expressão do poeta surrealista português é gnóstica e está afinal próxima da visão do pior e do amargo de Isabel de Aragão. Se assim não fosse teria Mário Cesariny dedicado a atenção que dedicou a Isabel de Aragão? Com certeza que não. Assim homenageou-a com as tintas, consagrou-a como uma das suas raízes, falou dela como outros falaram de Flamel, dos alquimistas medeviais ou de Swedenborg.

E pergunto-me: o que era hoje Isabel de Aragão sem o quadro de Cesariny? Para outros tudo, mas para mim nada. Essa homenagem de tintas é que é o sinal da sua presença entre nós. Ela e a heresia ingénua que se sente na neta de Jaime I, e que de resto serviu a Cesariny para molhar os pincéis. Essa heresia também a aproxima de nós porque a santidade sem o pecado é falsa e só existe nas hagiografias oficiais. De qualquer modo neste momento da vida de Isabel de Aragão não há doutrinas nem doutores; é só ela, o avô, a ama, as duas cuvilheiras, as servas de passagem, e a princesinha grega, Vataça. Nem sequer a corte ainda está presente, menos ainda a rua. Mas mesmo sem doutrinas e sem doutores, sem corte e sem quelhas, nós sentimos a heresia dos primeiros sentimentos e percepções da menina. É a heresia a que chamei ingénua, pólen apenas ondulando no ar, quase invisível nada mais.

Regressemos ao paço de Barcelona, onde deixámos Isabel. Correram os dias e as semanas. Vataça e Isabel viviam de mãos dadas, apertadas na mesma aflição. Sentiam porém em seu redor o carinho e o cuidado com que todos as mimavam. Vieram os dias de Verão e os longos passeios com o avô pelo arvoredo fresco do grande e faustoso parque. À noite, no estrado, em cima do linho fresco do almadraque, ficava a pensar em tudo o que vivera. Refazia os passos no pomar, que cruzava com o que lhe sucedera no beiral do pátio. Eram recordações constantes, que tudo sobraçavam. Levantava-se então, procurava o cofre, retirava as duas gelhas, dirigia-se ao umbral da janela e cogitava sobre o destino da vida. Cada dia que passava, as gelhas mais se enroscavam secas e miúdas. Dentro de pouco, seriam nada, se nada pudesse haver.

Uma noite que assim estava veio-lhe ao pensamento uma nova suspeita. – Se deste modo isto acontece no paço de meu avô, que é rei e senhor, o que não irá lá por fora – pensou. – Lá fora, lá fora – repetiu com estranheza. A expressão chegava para a açular. Sabia que existia um exterior, um lado de fora, com gente outra, mas não tinha imagem ou memória dele.

No dia seguinte, ao passear com o avô no parque, reparou que numa das cercas mais escondidas se rasgava uma porta de carvalho, cintada de ferro, idêntica à do fecho da ala. Enquanto subia a alameda, avistou Sancha, a cuvilheira, meter-se açodada por ela com um dos alões do avô. Reconheceu-o; era um dos que de quando em quando lhes vinha fazer companhia na chaminé. Nessa noite, no linho dos lençóis, congeminou o plano de se escapulir no dia seguinte pela fresta reveladora, indagando da gente nova que por lá havia. Pela primeira vez, havia a certeza que do lado de fora da ala não existia apenas a pedra fenestrada da catedral. Vataça tivera a visita dos pais e ausentara-se. – Embora; vou só – pensou com curiosidade e determinação.

Foi. Depois do jantar, quando Berengária e Sancha se retiravam para fechar os olhos na sombra do coxim, passou ela o portalete do parque e deu com um logradouro cheio de canis. Ao fundo viam-se dois caminhos paralelos. Mal se pôs em movimento, pé ante pé, explodiu um ladrido infernal por todo o lado. Assustou-se e ficou paralisada, sem saber o que fazer. Não tardou a aparecer um pagem, de andar lesto, por um dos caminhos.

– Que fazes aqui? – perguntou.

– Vou de caminho. Apenas desejo lobrigar o que possa haver para além do paço.

– E quem és tu?

– Sou Isabel, a neta do senhor do paço. Talvez tenhas ouvido falar de mim.

Ouvira, bastas vezes. Avistara-a mesmo, no parque, com o avô e a princesa grega, em momentos que recebera de Berengária ou de Sancha o mato seco, roçado, para mudar a cama dos animais. Reconheceu-a. Decidiu satisfazer-lhe a vontade.

– Levo-vos a ver o que quereis, mas haveis de me prometer não mais passar aquele portalete sem a companhia de vossa aia.

Desandaram. Ao cabo dum momento estavam os dois a caminhar num adarve espaçoso, sobre um fosso. Não tardou a ter diante de si a mole da catedral, com uma entrada lateral, onde se juntava uma multidão. Nunca Isabel vira tanta gente junta. Era uma novidade e um múnus. Estava ali para indagar o que se passava à luz das estrelas.

– Eis o que queríeis! – exclamou o pagem, mostrando com a mão direita a gente numerosa, as casas, os animais que passavam, as velas que ao longe se viam no mar.

– Sentai-vos por um momento – pediu Isabel. – Preciso de descansar.

Sentaram-se os dois no talude. O pagem não tardou a recostar-se, estendendo-se por terra, mordiscando o pé duma flor e contemplando o anil limpo do céu. Isabel, por seu lado, pôs toda a atenção no estranho quadro que se desenrolava ante si.

Primeiro viu o conjunto. Assustou-se. – Como é possível que haja tanta gente? – perguntou-se. – Como é possível que isto assim aconteça? Com que fim e com que origem? Para onde vão e donde vêm? Quem são e o que fazem? A mor estranheza era tudo suceder a umas tantas passadas do lugar onde o curso dela corria tão solitário. Nunca vira mais que uns poucos, sempre os mesmos, iguais e certos; à força de os ter dia a dia ao pé, mesmo conhecendo por outiva que muitos outros havia, eram esses poucos que existiam, nenhuns mais. Agora pasmava diante de mole humana tão agitada como compacta.

Depois reparou nos pormenores. Antes de mais atentou nos degraus de pedra do portal. Um aglomerado de gente movimentava-se, entrando e saindo. Outros estavam sentados nos degraus do portal, alguns estendendo o braço, de mão aberta, olhos suplicantes, para os que passavam. Uns havia que apontavam para mercancia que espalhavam no colo ou em bancas de lona, armadas nos degraus. De repente, do lado direito, surgiu um ser disforme; arrastava-se no chão, meio nu, apoiado nas mãos. Dois cães, negros de pêlo, que até aí se haviam quedado por terra, recebendo o fluido quente e generoso do Sol, ergueram-se e vieram cheirar o intruso. Logo ladraram furiosamente, as patas fincadas em terra e o pêlo do cachaço eriçado. Outros, vindos não se sabia donde, chegaram a correr ao som dos latidos. Envolveram-se todos numa gritaria descomunal. Do outro lado da praça, um rapaz vestido com um tabardo de burel roto, descalço, pau nodoso na mão, surgiu, seguido por um rebanho de animais gravosos e lentos, revestidos a lã branca, patas finas mas firmes. Haviam de ser as ovelhas de que Berengária lhe falava, pensou, sempre que tomava nas mãos o fuso e se punha a tirar da estriga enovelada da roca um fio perfeito e branco.

Entretanto o homem continuava a arrastar-se no chão, apoiado nas mãos. Agora, no ângulo, encarava-o, observando-o de frente. A cara, de tão próxima da terra, enfarruscara, mostrando-se mais negra que o carvão dos toros que ao serão ficavam ardidos por metade no borralho. A boca arrepelava-se-lhe num esgar torto, beiços belfos, fendidos, deixando à mostra as mucosas vermelhas das gengivas, onde se prendia um dente sujo. Não tinha pêlo na cabeça, duas orelhas colossais abanavam ao ar e os olhos, concorridos de sangue, ardiam no meio da cara como dois tições acesos. A um trejeito, percebeu que não tinha pernas e por isso rastejava por terra, puxando o corpo com as mãos. Chegado ao portal, imobilizou-se, estendeu o braço esquerdo, apoiou o cotovelo direito, sustendo-se no ante-braço. A cara era de súplica desesperada. – Mas que suplica ele…? – perguntou-se Isabel aflita.

Daí a pouco surgiu no seu encalço um homem sem o braço esquerdo, espada traçada à cinta, calção castanho e capa curta, que o invectivou com palavras que pareciam duras. Do outro lado da praça o rapaz encostara-se a uma cerca e esperava, de perna traçada, encostado ao cajado, que os animais demandassem a abertura que se via à esquerda, entre duas frontarias baixas. Furibundo, dando conta que as palavras ditas não produziam efeito, já que o outro continuava de braço estendido, indiferente, olhos nos transeuntes, orelhas moucas, o maneta desferiu com a biqueira de sola da bota uma pancada seca e rija no antebraço do pobre, que, perdendo apoio, foi de cara ao chão. Quando o viu esparramado, assentou-lhe a sola da bota no crânio nu e calcou fundo, de modo que o homem afocinhasse no esterco da terra. Cuspiu com fúria no crânio do homem e arrepelou um impropério. Depois desandou, puxando com o braço a capa para o peito e dando o caso por arrumado.

Ficou Isabel metida em tormentos com a cena. Nunca vira qualquer violência, senão aquela que decorrera da morte dos melros. Tratava-se pois – no que aos humanos dizia respeito – dum espectáculo novo; ainda assim o efeito que tinha sobre o pensamento era idêntico ao que experimentara diante das aves. Repugnava e assustava, ao mesmo tempo que pedia audácia e determinação. A tibieza, o desvio, o esquecimento, o fazer de conta, não lhe serviam; diante de cenas cruas precisava de tomar resoluções rápidas, que se misturassem com a dor.

Não teve porém muito espaço para se entregar à reflexão ou para decidir fosse o que fosse. Os quadros seguiam-se, em cascata, sem parar. Rodavam churriões cobertos, puxados por pares de animais cornígeros. Dentro, de vez em vez, ouviam-se gritos de aflição. Reguengueiros, com o rosto tapado por chapéus largos e descaídos, levavam aos ombros animais de patas presas, que de olhos tristes grunhiam oprimidos. Outros, em vez de animais, avançavam com pesadas sacas assentes na omoplata. Mulheres, capuz de burel puxado aos olhos, rosto quase tapado, seguiam em passo apressado. Umas levavam cestas, passadas no braço, tapadas com pedaços de pano cru; outras arrastavam na terra com dificuldade visível trouxas de pano.

Uma nuvem de crianças passou a correr, apedrejando-se aos gritos. Duas delas estavam nuas, mostrando o corpo esquelético, pintalgado de escrófulas ulceradas e manchas de lama seca; as outras, enfiadas em sacos rotos de burel encardido, pés descalços, ramelosas, sorvendo o monco esverdeado, faziam a vez de espantalhos de sebe. Empurravam-se, riam, caíam por terra, mofavam, insultavam-se, choravam. Nisto, do interior do portal, saíram dois peões, cervilheira de ferro na cabeça, loriga de escamas de metal, chuço na mão, que se puseram a correr, cada um para o seu lado, visando cercarem o ajuntamento. Quando disto deram conta, as crianças em pânico, sem gritos, dispersaram numa corrida veloz, como um bando de pássaros atingido por uma pedra. Em pouco mais de nada, nem uma ficou na praça; esgueiraram-se todas para as frestas mais escusas como lagartos perseguidos em dia de Sol. Regressaram os dois homens, em passo lento, chuço ao alto, ao portal da igreja.

Nesse momento, do lado das frontarias baixas em que há pouco o gado recolhera, surgiu um pelotão de homens armados de bestas, elmo na cabeça, loriga laminada, bota caneleira de sola. À cabeça, avançando a passo, postava-se um cavaleiro, metido no arnês de ferro, pendão na mão, onde se viam as barras de oiro alternando com as tiras de sangue de Aragão. Depois, a boa distância, presos uns aos outros por correntes de ferro, vinha uma mole de homens, tronco nu, pano de burel preso à cintura por uma corda de esparto, cabeça descoberta e pés descalços; avançavam em conjunto, aos baldões, tropeçando uns nos outros. A fechar, formando em meia lua, uma fila de peões empurrava com a ponta metálica do pique a mole dos desgraçados, deles mantendo uma distância de vários metros e vituperando-os com ditos ferozes e arreganhos faciais.

Cuidou Isabel nos homens que ali iam presos. Alguns acordavam ecos do miserável que há pouco se arrastara no chão e que continuava de braço estendido na entrada da escadaria do portal. Também eles mostravam as mucosas da boca à mostra, dois ou três dentes negros e corruptos, os olhos injectados de sangue, a cabeça com peladas. Mas a pele era dura, rugosa, intumescida, apresentando aqui e ali escoriações fundas que deixavam à vista a carne, e os membros disformes e cheios. A anormalidade era tal que os olhos se afundavam nas pregas carnudas do rosto, nada sobejando deles à superfície. As passadas eram pesadas, rombas, balanceadas. No todo pareciam pipas bojudas, toros cilíndricos, descomunais, a sangrar, acabados de descortiçar, ou paralelepípedos rectos que, querendo movimentar-se, transformavam em pés as arestas da base.

Não teve tempo de maior indagação, porque nesse instante o movimento da praça – vizinhos tocando os churriões de cortinas corridas, mulheres de capa passada na cara, pedintes lazarentos, uma ou outra criança escanzelada, foreiros de animais ao ombro, peões, mesteirais de avental de sola – se retraiu num clamor sonoro. Toda a gente, à vista do préstito capitaneado pelo cavaleiro chapeado de ferro, se deu a fugir aos gritos, arrepelando o pêlo, para um dos cantos mais afastados do lugar. Até a larva que se arrastara ao portal e sofrera as sevícias do transeunte de capa fez meia-volta e se pôs a remar em desespero com as mãos em terra, cheio de pressa, desejoso de se afastar. Quando a multidão se acantonou, um petintal lançou um urro violento e logo foi seguido por uma apupada gigantesca, dirigida contra os desgraçados que em grupo, ligados por grossas correntes, tentavam avançar aos tombos, escapando à ponta metálica dos piques. Alguns dos mesteirais agacharam-se, buscaram em terra pedras aguçadas, outros bostas secas, adiantaram-se e fizeram chover sobre os miseráveis uma revoada raivosa de tiros.

Isabel levou os dedos à boca, soltou um grito de susto, levantou-se. Não cria no que via. Entretanto os miseráveis, debaixo da saraivada de projécteis, tentavam proteger com gemidos de lástima os parietais com os cepos dos braços. Nisto, a uma ordem do cavaleiro, o pelotão de besteiros voltou-se para a multidão e dele se desprendeu a primeira fila, que foi genuflectir a meio da praça, o joelho direito em terra. Assestaram o cabo da besta contra a omoplata e retesaram a corda. Recuou a multidão aos gritos de medo para a cerca da igreja, tentando alguns pular para o interior do cercado. Avançou o préstito, enquanto a mole de gente assim fugia sob a  ameaça dos virotes.

Ao mesmo tempo que isto sucedia, erguia o pagem do paço o tronco do chão, alertado porventura pelo grito da menina, tomando com interesse nota do que sucedia no rectângulo da praça. Entendeu a aflição em que estava a princesa e por isso se explicou.

– Descuidai, senhora. São os gafos que vão para as covas.

Não houve tempo de ouvir mais. A procissão dos gafos passara, a linha de besteiros destroçara, a multidão retomara no espaço o desordenado movimento e já Isabel reparava noutra novidade. Seis ou sete velhos, agarrados uns aos outros, de enfiada, bordão na mão, avançavam agora na cerca da igreja, vindos não se sabe de onde. O da frente, mais idoso, de barbas todas brancas, capuz passado na cabeça, tinha a mão esquerda livre e tacteava com ela o ar como se buscasse algo que não chegava. Avançava muito lentamente, voltando-se para todos os lados e palpando o ar vazio com a mão. Com o bordão batia o chão à volta e só depois se atrevia a dar o passo. Ainda assim punha com cuidado máximo o pé no chão, temendo com certeza algum perigo desconhecido. Os outros, em fila, mão esquerda no ombro do companheiro da frente, mão direita no bordão, seguiam atrás, varrendo também eles com o pau nodoso, num gesto que parecia mecânico, o espaço em volta.

Foreiros, vizinhos, peões, mesteirais, desviavam-se e davam passo ao grupo dos velhos, que avançava aos pequenos saltos. Altura houve em que um vituperou o conjunto pelo incómodo. Os velhos amedrontaram-se e pararam, desnorteados. Por prudência ficaram quietos. Como o mesteiral se calasse, logo arrancaram no mesmo movimento coordenado. Não tardou que um rapaz lazarento, tronco nu, burel passado à cintura, panos atados às canelas, aparecesse a correr dum dos cantos da praça e viesse por trás, agachado, empurrar o último dos homens. Quando este se desequilibrou, toda a fila tremeu. Surgiu então do portal da igreja um homem de garnacha preta, talar, que veio sermonar o rapaz, apontando-lhe o portal da igreja, onde surgiram dois peões, chuço na mão e cervilheira de ferro, a chispar lume ao Sol alto da hora de noa.

Reparou Isabel que o homem da frente, o guia daquele estranho corso, avançava de olhos fechados. Tão extremadas cautelas só se deviam a tal facto. Experimentou ela própria cerrar as pálpebras, apertando os olhos, e logo ficou imersa na escuridão. Percebeu quão difícil lhe seria dar um passo, quanto mais seguir em frente no meio de gente e churriões.

Entretanto a fieira de velhos retomara a ordem primitiva, pondo-se em movimento com mais cautelas ainda. Não foi difícil a Isabel perceber que todos os velhos, com excepção dos dois últimos, haviam os olhos fechados. Um deles, para maior espanto, não tinha sequer olhos; a pele seguia lisa, ligeiramente franzida, no lugar onde aqueles deviam abrir ou fechar. – Até os pássaros os têm? – perguntou-se incrédula. Os olhos mostravam as águas do sentimento, o fogo das emoções, os mares revoltos das sensações; eram o espelho da alma ou do pensamento. – Como é possível não os haver? – voltou a questionar-se. Mas o caso dos dois últimos velhos, não era menos surprendente. Ao invés dos outros, mostravam os olhos, mas estes eram duas bossas brancas, leitosas, vazias de luz. Não davam o mais pequeno sinal de vida; estavam mortas e petrificadas.

Ficou de tal modo perturbada, que não hesitou em interrogar o acompanhante, que continuava sentado, a trincar um pé de flor e a olhar com displicência o espaço rectangular da praça.

– Que se passa com esta gente?

– Não sabeis, senhora? Esta gente é cega.

– Cega?

– Sim, cegos; não vêem.

– Não vêem?

– Experimentai fechar os olhos. De olhos fechados, sois cega. A diferença está em que eles não podem abrir os olhos e vós podeis. E quando podem, como acontece com esses dois – e apontou com os dedo os dois da fila – nada topam com eles.

Já experimentara fechar os olhos. Percebia o que era ser cego.

– Também há cegas?

– Santa Maria val! Até recém-nascidos há! Já nascem assim.

– Os gafos de que falastes há pouco também são cegos?

– Os gafos, senhora, são gafos. Têm olhos e vêem como nós. Mas a carne engorda-lhes tanto que lhes engole os olhos. Ah-ah! Nunca se aproxime dum; estão empeçonhados por dentro e a peçonha comunica-se ao menor contacto.

Nesse instante levantou-se, olhou o Sol, mostrou alguma agitação, deu a mão a Isabel.

– É tarde, senhora. Hemos de entrar. As camareiras vão dar por vossa falta.

Nessa noite, no linho do coxim, olhos fixados na claridade marmórea que ao rés da janela se derramava, incapaz de adormecer, não despegava o espírito do que vira. Estendia-se na concha do almadraque, mas era como se continuasse no terreiro da barbacã. Ouvia os cães lazarentos a ladrar, o chiar das rodas dos churriões, o bater das correntes de ferro, as imprecações dos transeuntes, os pregões dos mercadores, o balir do gado, a gritaria dos rapazes. O Sol ofuscava como uma labareda de proporções descomunais. À luz desse brandão contorciam-se os corpos repelentes dos gafos, o rosto desnorteado e sofredor dos cegos, o dente podre a rir na mucosa vermelha da boca do miserável que se arrastava por terra com o apoio das mãos; chispava ainda o lume na ponta metálica dos piques, no laminado das lorigas, no dedo do homem da garnacha preta que saíra do portal a repreender o garoto que fizera tombar o último cego. O mais impressivo, o mais doloroso, o mais repugnante, eram os gafos pusilânimes, aos tombos, quase nus, presos por correntes, descomunais e assuastados, debaixo dos arremessos, com os cepos dos braços escondendo o tortulho gordo da cara. A seguir vinham os cegos de olhos mortos, a boiarem no leite opaco e espesso da membrana ocular. Mas o que nessa hora vira, sem excepção, era feio, sujo, repelente. O mundo encarado duma barbacã era um circo de sofrimento; não fazia diferença entre o grunhido dum animal, patas atadas, e o gemido de lástima dum gafo protegendo-se duma chuva grossa de pedras.

De repente entendeu que todos aqueles seres se assemelhavam às aves que vira tombar dos céus no exterior do paço. Todos iam cair, todos iam morrer. A agitação que presenciara nessa hora era equivalente ao estertor em que as aves se meteram antes de se imobilizarem. – A vida é morte – pensou horrorizada. A ilacção aflorara pela primeira vez ao espírito diante do processo de degeneração das rosas; fizera-se depois mais aguda, no momento em que visitara o pomar com Vataça e contemplara o cadáver putrefacto. Explodia agora como uma certeza sem abalo diante das impressões duma quermesse humana. Momentos há na vida em que um tombo vale a queda duma cidade cercada e uma certeza representa um veredicto de morte.

De madrugada, quando a luz clareou em cinza no olho da janela e se ouviram chilrear os primeiros pássaros nos beirais do pátio, Isabel não pregara ainda olho. Estava paralisada de medo; aquele mesmo espinho moral que nos momentos decisivos do pátio lhe rasgara os tecidos da alma, magoando mais que pico grosso de laranjeira, tomara de novo conta dela. A novação é que desta vez sabia que não mais se livraria da punção. Ao invés viver era tão-só aprofundar a pressão. A dor é a matéria da vida e nada do que vive se furta à sua constituição; por isso quanto mais se vive, mais a dor se grava e agrava; uma filosofia assim é uma traça roedora no pensamento ou uma bicha solitária alojada na alma.

Para bem dizer, só neste instante a segunda protecção da túnica placentária foi de todo removida. A remoção da adstringência levou-lhe pedaços da pele, deixando-lhe a carne à mostra. Pela primeira vez tomou consciência que tinha o coração a sangrar e que assim o levaria momento a momento, até o corpo se paralisar na morte. Por isso na letra ao irmão em que confessa muitos anos depois a vida amargosa que vivia, em que transmite ainda o pessimismo ingénito que lhe estruturava o pensar, diz também que ei eu ende gran pesar no corazon. Esse desgosto, que se tornou aos poucos autêntico remorso de viver, é o que mais toca, Isabel, na tua vida. É uma invulgaridade, que não pode servir de regra de conduta, com a qual nem sequer me identifico, mas é ela que faz de ti um ser único e inconfundível, dando-te uma pureza e uma autenticidade sem par. Os que sofrem são puros e merecem uma palavra de esperança. E é por isso que és digna de atenção.

Mal se levantou pediu a Berengária para ver Vataça. Precisava de se aliviar com ela. Não estava a princesa, pois de novo se ausentara com os pais, ainda em Montjuich. Passou o dia numa agitação infrene. Chegou a ir espreitar a porta da cerca, onde na tarde anterior tantas coisas novas descobrira. Não teve a menor curiosidade de voltar a passar por ali, voltando a ter diante dos olhos a agitação da cidade velha. Viver era sofrer a morte; por consequência, se menos vivesse, menos suportaria a morte. Nasceu aqui, neste instante, o sentido de reclusão de Isabel de Aragão, que tanto significado veio a ter no porvir.

Só na manhã seguinte encontrou Vataça. Logo lhe contou o que vivera. Também a princesa grega, na companhia dos pais, padecera choque idêntico, nas imbricações do barri gótic. Abraçaram-se a chorar; o medo do mundo, o temor de seguir em meio que mais parecia açougue de carniceiro que quadra de coribante ou mimo de alifafe, pisava-lhes o coração. Bem podiam gambiar que nada mexiam. Por fim perguntou Isabel.

– Que sabes tu dos gafos? Quem são?

Nada sabia. Nunca ouvira sequer a palavra. A primeira notícia que deles havia era aquilo que ali ouvia. Reconhecera muita da experiência da amiga, mas não aquela parcela. Até cegos, aos pares, ela vira, de olhos vazios, mãos aflitas, tacteando medrosos as paredes das frontarias. Assim como assim, no dia seguinte voltava com os pais aos comércios da parte baixa da cidade, ao rés das águas, e logo tentaria saber que estranhos entes eram esses que se arrastavam em mole, presos por correntes, provocando reacções de repulsa tão violenta.

Passaram dois dias antes de virem a novo encontro as duas meninas. Isabel estava ansiosa por saber o que entretanto a princesa apurara. Não houvera instante em que não pensasse no assunto e chegara mesmo a tentar-se com Berengária. Evitara porém interrogar a aia, já que não queria estar com explicações sobre a fuga de há três ou quatro dias. Mal vieram uma à outra, logo Vataça lhe confidenciou o que tirara nas conversas que tivera com as aias da família.

– Os gafos são gente com moléstia.

– Como gente com moléstia?

– Sim. Aquilo que nos sucedeu, obrigando-nos a ficar de cama, com o físico à cabeceira.

– Fomos gafas então?

– Não os gafos têm moléstia doutro modo. Há dentro deles uma peçonha que os engorda. Depois há pedaços de carne que apodrecem e caem. As partes piores agarram-se ao rosto. Ao fim dum tempo morrem. Outros vivem muitos anos, sem cura.

– Que horror! Se assim é, por que os prendem e por que os apedrejam? Mais certo era deles cuidarem.

– Os gafos vivem em covas ou grutas, afastadas das cidades e dos lugares onde mora a restante gente. Ninguém pode lá entrar. Nem mesmo um físico se pode lá chegar.

– Por quê?

– Quem se aproxima dum gafo, gafo fica. Por isso os apedrejam.

– Como vivem?

– Uns com os outros. Vigiados à distância por peões do paço, com piques e bestas. De vez em vez, parece que algum lhes atira um balaio com roscas de pão e restos de montaria.

Coincidiu este momento com a decisão do rei meter a neta na vida da corte. Sabia que a menina, como uma árvore em que abrissem as primeiras flores olorosas, mudava agora de idade; na verdade conhecia todos os nomes, praticava o diálogo, começava a inquirir os próximos. Não tardaria a ter uma curiosidade imoderada pelo mundo como qualquer fruto desejoso de crescer. O episódio da barbacã não lhe era desconhecido, ainda que dele só soubesse parte e preferisse não lhe mexer, menos ainda com a neta. Assim como assim, sabia que não mais a podia preservar entre quatro paredes. A vida social pode ser um foco incendário mas por isso mesmo nenhuma borboleta lhe resiste; todas vêm bater as asas nessa praia de areias doiradas, umas para logo morrerem afogadas na avalancha das ondas, outras para o tirocínio do medrar. Nessa direcção preferia o rei pôr-lhe à disposição um foco brando de luz, encenado a rigor, que deixá-la tropeçar na luz traiçoeira de escaldantes labaredas.

O contacto com  a corte não se mostrou porém o que o rei aguardava. Tudo levava a crer, pelo que seguira, que a menina repetisse a experiência dos filhos e dos netos. Estes, mal os retirou do berçário, logo voaram cegos na luz da candeia social, borboloteando risonhos e convictos. Ao invés, Isabel, ao ser introduzida na corte, mostrou um mal-estar natural que não era incómodo passageiro de recém-chegada mas reserva obstinada. Tinha restrições constantes, retraimentos frios, recusas determinadas.

– Crede nisto, senhores, esta menina tem sinal de Sancha – exclamou aos privados, cara de caso, ao fim dum tempo.

Sancha fora a derradeira filha havida no tálamo de Violante. Mostrara-se sempre menina inconfessa e taluda, além de grave, expedita e solitária. Não tinha outro palinuro, além daquele com que nascera encasquetado, posto que fosse rigorosa na observância da religião, onde via a estrelinha da quintã paterna. Deixara a casa na mocidade, ao que se sabia, a caminho de Jerusalém. Deixara recado e fora-se pela calada, sem escusas nem pedidos. Ao que se dizia, desandara descalça, no meio de farroupilhas e latagões, coberta de burel, corda de esparto na cinta, rosário de pau ao pescoço, taleiga ao ombro, bordão nodoso na mão, com cabacinha rústica presa no cimo, para mitigar a sede em sítio adusto. Nenhum mais a vira ou dela soubera. Tudo o rei mandara devassar, de La Valeta a Famagusta, mas a filha levara sumiço exemplar.

– Tanto pode estar no coro dum convento a cantar o ofício das vésperas como numa taverna de ladroagem a frigir os fígados dum javardo, como ainda num buraco frio de igreja a secar os ossos – dizia muitas vezes o rei, olhos húmidos, refegando a pele do rosto, a propósito dessa filha perdida em tenra idade.

Agora, com o semblante oblongo de Isabel, lembrava-se muito de Sancha. A mesma gravidade, a mesma suspicácia! Também esta crescia e se fazia como a outra taluda e desconfiada. Era enxuta de membros mas alevantava como torre. Vataça, mais velha em anos, era porém mais miúda e acanhada; cerca dela fazia figura de carochinha. Um dia a neta fazia-se tão alta como pilastra.

Um serão, depois do ofício, quando os dias voltavam a crescer dando folga de luz até completas, deu o rei um sarau nos jardins do paço voltados à cidade velha. Por indicação do avô, compareceu Isabel na companhia de Vataça e das aias. Depressa as perdeu no enredo de gente que por lá havia. Decidiu então postar-se ao pé do estrado, onde uma roda de músicos tangiam sistros, alaúdes, crótalos, pífaros e pandeiros. Era sítio ameno e acanhado, longe dos indiscretos que bailavam na alfombra. Diante dela dois anões, vestidos de truões, cabeçudos e jocosos, davam cabriolas e faziam esgares e momices.

Não tardou Isabel a reparar num pagem muito atarefado, avental de couro cru, travessas de prata repletas de vitualhas nos braços. Circulava a grande pressa entre as mesas, com um sorriso prazenteiro e um olhar vivo, afogueado, que fazia lembrar o do gato tigrado que o avô há pouco recebera de Tunes e lhe vinha às horas do escurecer, com os dois olhos grandes acesos, fazer companhia. A graça é que ninguém parecia reparar no sujeito, apesar da presença pomposa, da invulgaridade do traje, do lume exaltado no olhar. Chegava a tocar, na pressa com que se movia, nos convivas, que ainda assim pareciam não tirar nenhum incómodo do caso. A princípio pensou tratar-se do antigo pagem que a acompanhara tempos antes na expedição da barbacã, e que raro encontrara depois; notou logo porém diferenças. O outro havia um olhar mortiço, sem chispa; este mais vivo que labareda. – São com certeza duas pessoas distintas – acabou por concluir.

A certa altura, quando acabara de perder o pagem no novelo de gente que se levantara para bailar a volta, ele reapareceu diante de si, sempre atiçado e sorridente. Para seu espanto, enquanto os pares iniciavam a dança, dirigiu-lhe a palavra.

– Conheço a vossa cisma, senhora.

– De que falais?

– Mas… que há-de ser?! Aquilo em que vos atormentais desde que assististes ao trespasse no beiral do pátio.

– Como sabeis tal?

– Sei tudo o que se passa nesta terra. Esta terra é minha.

–  Como assim? Pois pensava que era de meu avô…

– À vista do que vos digo, sabede que não. Mas deixemos tal. Quereis novas? Pois sei como atalhar a vossa cisma.

– Mas como, senhor?

– A morte é o vosso agouro não é?

– É.

– Pois eu dispo-vos a morte do corpo como se vos despisse dum tabardo largo. Nada mais fácil e nada mais ao jeito. Vivereis eternamente.

– E que é mister fazer para que isso aconteça?

– Não vos atrigueis. Asinha vos direi.

Desapareceu o homem sem deixar rasto. Ainda esperou Isabel vê-lo surgir com as duas travessas em equilíbrio nos braços, entre as mesas, mas nada topou. O homem desfizera-se em fumo e o vapor rarefeito dissolvera-se no ar. Impossível encontrar o mais pequeno traço da sua presença.

Quando os sinos tocaram a completas a multidão dispersou. Anoitecia e o azul do céu ainda apresentava rubores vivos no poente. Nos recantos, alguns servos acendiam fogueiras. Os dois truões vieram caretear ao pé da menina. Berengária apareceu por fim na companhia de Vataça aflita por tão larga espera. Os chocarreiros, enxotados como se fossem dois moscões, cabriolaram para outras paragens. Abraçou-se a aia à princesa. – Minha rica menina – exclamava nos afagos. Logo Isabel se livrou do aperto pingueiro, ansiosa por trocar novas e quadros.

– Haveis visto o pagem do avental de couro?

– Que pagem, senhora?

– Aquele que se atarefava mais que todos. A testa fervia-lhe e o olhar afogueava. Era decerto o que mais servia, pois sempre passava com duas travessas de prata repletas de pão cozido e espetos de vianda assada.

Ninguém topara com tal personagem. Nem mesmo Vataça foi capaz de lhe dar dele um sinal, apesar da descrição minudente e da insistência. A ignorância quase a melindrou, pois parecia-lhe impensável que aquele homem não tivesse sido percebido no meio dos outros. O desconhecimento, além de atrevido, é queixoso e por isso tanto se retrai, em passinhos tímidos, como galga os mares, à desfilada, num par de botas.

Os dias correram. Aos poucos enterrou o mordomo. Pouco mais era que uma recordação esbatida, sem contornos e realidade. A morte sim, essa tinha uma presença dia a dia mais densa e larga, uma espessura de garrocha ou de bombacho. Todas as estações os botões das flores abriam e fechavam; no mesmo lugar do pátio, debaixo do beiral, novos recém-nascidos tombavam das alturas, agonizavam e desapareciam, engolidos pela terra, devorados pelos vermes. Homens e mulheres abandonavam este mundo em camas de pedra; deles se falava na corte como pó que ao pó regressa. A morte grifava as unhas e blasonava ao vento; estava no coração da vida e era ela que lhe dava alma e homizio. A morte dói como brasa, pois é ela que arrefece a vida; quando esfria prepara-se para morrer e quando aquece mata.

Algo porém ficara do diálogo com o pagem. Bailava-lhe no espírito a possibilidade de se livrar da morte, conforme o voto que aí ouvira. Despi-la como um tabardo, assim afirmara o soldado estranho. Nos momentos mais agudos da lembrança deitava ainda em redor os olhos na esperança de poder alcançar o homem que lhe garantira um tal prodígio. Nada via e por isso a concretude de tal ser se esfumava mais e mais. Sobrava essa certeza de que algures algo ou alguém a podia livrar da morte. À força de cogitar no caso, concluiu por esforço seu que o corpo é que impedia a vida de ser vida; logo o modo de desfazer a morte era livrar-se do corpo, recusando nascer.

Que eu saiba, nunca Isabel escreveu esta recusa de nascer. Dêem-me porém liberdade de a usar, porque ela é consequência do seu desespero, da sua dor, da sua amargura de viver, todos eles documentados na carta escrita, já no declinar da vida, ao irmão Jaime. Estes sentimentos absolutamente pessoais é que a fazem precursora de modernos abjeccionistas e existencialistas. Tão bem que ela dá as mãos a Pedro Oom e a Mário Cesariny! E a todos os outros que teriam preferido não nascer. Quantas vezes isso não me aconteceu a mim e ao leitor! Nascer é o erro estrutural da vida! Só erra quem nasce e só nasce quem erra; não há erro fora do nascimento. Os que nascem, escolhem o erro; ficar por nascer é ficar por errar. E tanto faz nascer lagarto ao Sol, escaravelho de cornos ou mariposa leve e linda dum dia.

Uma noite decidiu abrir a alma ao avô. Percebia que Jaime I era um rei excepcional, que alargara a fábrica do reino para além do expectável, tirando desforço de muitos inimigos poderosos; acreditava por isso que ele teria uma resposta para todas as perguntas e que só ele estaria em condições de lhe confirmar a conclusão que tirara. Demais a conclusiva trazia no bojo uma interrogação cheia: como se livrar do corpo, sem ser pela morte? Quer dizer, como desfazer o nascimento? Desnascer foi a primeira ambição de Isabel de Aragão. Eis o único desejo que se afigura verosímil na entrada da sua história. Ao resto podemos chamar atoardas, que são a forma honesta e descomprometida de firmar uma falsidade.

No dia seguinte, depois do almoço, veio o avô postar-se ao borralho. Estavam de regresso os primeiros frios e caía bem passar as horas gagas de luz a desentorpecer os membros gastos ao pé do fogo na companhia dos dois alões preferidos e das duas meninas. Aninhou-se Isabel no seu colo e logo lhe veio com confissões.

– Tenho uma cisma dentro de mim.

– Os teus bonecos de terra quebraram, menina?

– Não, avô. Os bonecos de terra não me interessam. Quero saber como me posso desfazer do corpo?

– Como assim?

– Sabes, ando doída com a morte. Sem corpo não há morte.

– Quem te grasnou tais contos?

– Cala-te, avô. Ninguém. Isto me veio de meu aviso.

Nisto ficou o rei a sós e muito se surpreendeu com a alma precoce da pitorra. Não pôde deixar de sorrir quando se lembrou das palavras que ela jogava. Razoava como um doutor de Bolonha. Melhor andava se pusesse atenção nos bonecos que lhe trazia das locandas dos novos bairros, um nunca mais acabar de bazares e bancas, mas ainda assim orgulhava-se dum espírito assim desembaraçado e limpo. Mal se apanhou com os privados, não pôde deixar de exclamar com surpresa, não sabia se grata ou se inquieta.

– Bem dizia eu que esta menina era o traslado de Sancha.

Nessa noite tomou como decisão entregar a neta na mão dos escolares. Era o momento em que ela tomaria contacto com os rudimentos do trívio. Mais que isso, estreava-se na religião, que até aí nenhuma fora. Jaime I tinha de laico o que nunca pudera ter de papa-missas. Por um lado, criara-se no rescaldeiro de Muret, que foi o braseiro onde ardeu a moral de Roma, crescera no dissídio dos tios, e inspirara-se no imperador proscrito para fortalecer a autoridade que tão débil lhe chegara às mãos; por outro, gerara um filho que se tornara o herdeiro da casa Staufen e as terras que tinha na mão estavam cobertas de gibelinos desejosos de irem à desforra contra o papa. E os domínicos diabólicos que acendiam infernos no sul da Gália comportavam-se em chão seu que nem meninos tontos.

Demais tivera de lidar com os mosaístas que os antepassados lhe haviam deixado nos povoados herdados e com os muçulmanos que exumou nas novas terras que tomou. Meteu-se com ambos pelo trilho da conversa à maneira do que o imperador fizera por Palermo e Nápoles. Criara assim as famosas disputas no seu próprio palácio, em que punha a falar um rabi, um doutor islâmico e um teólogo romano, cada um deles com liberdade igual de estender e explorar os argumentos da sua escritura.

Isabel cresceu na mão deste homem. Não é de crer que um fulano assim tolerante, a roçar o cepticismo, tal a diversidade de crenças em que se enovelavam os que o rodeavam, se tenha apressado a pôr a neta nas mãos da escolástica religiosa. E quando tomou a decisão de a estrear na religião, teve decerto o cuidado de diversificar as fontes, pois Vataça era decerto praticante do rito grego. Não fosse assim e nunca um homem como Mário Cesariny teria dedicado a atenção que tributou a Isabel de Aragão. É esta Isabel que foi educada com tolerância no domínio da religião que me interessa, por ser a mais verdadeira; é ela que é preciso desenterrar do lixo em que a entulharam séculos de sedição e imbecilidade. É ela que está muito próximo de nós. Habitue-se pois o leitor à heterodoxia de Isabel, onde reside o inesperado da sua figura. A heterodoxia é uma alteridade e nesse sentido só a surpresa dela resulta.

Ainda a propósito da primeira educação religiosa de Isabel junte-se que os privados do pai, o futuro Pedro III, que morreu com certeza excomungado depois de tanta tropelia feita ao partido papal, eram todos anti-papistas; por esse motivo não tiveram dúvida em se fazerem muito indulgentes com tudo aquilo que pudesse fragilizar ou mesmo abalar certas zonas da doutrina da Igreja. Até muito tarde – não custa ver – Deus foi para Isabel de Aragão algo de inconcebível. Antes de assumir a noção de Criador, que é conceito que se elabora no crisol da mente por influxo exterior, tomou nota da criação, que é resultado líquido e prático, dia a dia, do filtro dos sentidos. Percebeu assim a dor de tudo o que se manifestava, antes mesmo de se pôr a questão da responsabilidade do sofrimento, a dividir ou não entre Criador e criação, conforme a sensibilidade e as provas dos factos.

Isto não quer dizer que a corte de Jaime I fosse um valhacouto de ateus ou de agnósticos ao modo de hoje. Não era. A crença era estrutural ao tempo e as diferenças não se estabeleciam entre crer e não-crer, mas entre aceitar apenas uma crença ou conviver favoravelmente com várias delas. A primeira inclinação deu a política papal dos séculos XII e XIII, que levou às cruzadas de cristãos contra cristãos de Inocêncio III e à criação duma Inquisição regular, não-episcopal, admitindo a tortura e a extorsão, com Gregório IX e Inocêncio IV; a segunda deu a administração intersticial e combativa dos últimos Staufen e dos seus herdeiros ibéricos, aragoneses e castelhanos. O laicismo naquela época não era camalha que servisse para esconder cabeça estranha mas uma gala com o topete à mostra; ao invés do papa, que queria molhar o dedo e fazer da cruz espada, o projecto era pôr o temporal a participar do sagrado, sublimando por desnecessária e inútil a virulência das relações sociais. Foi o plano desta obra que Isabel seguiu e sem o seu entendimento nada se entende da sua figura e das suas acções pósteras.

Dos prolegómenos da sua educação religiosa, folgada o bastante para não se ver numa camisa-de-onze-varas, tirou Isabel, antes de qualquer outra novidade, certificações várias. O Antigo Testamento era um contínuo de atropelos e sofrimentos. Houvera na origem do presente a queda, quer dizer, o pecado do princípio. Formara-se depois um corpo monstruoso, que começara com o homicídio de Caim e continuara com as atribulações dos descendentes de Set. Dilúvio, Babel, destruição das cidades de Sodoma e Gomorra pelo fogo e pelo enxofre, fuga de Abraão, lutas fraticidas entre Esaú e Jacob, ludíbrios de José, pragas do Egipto, lutas de Sansão contra os Filisteus, felonias de David, prisão e morte de Absalaão, destruição de Jerusalém e deportação para a Babilónia. Que cardápio imenso de aflições! Que súmula de tormentos! Não se podia calcular roteiro de terror tão completo e tão esclarecedor! Razão tinha ela para pensar assim, digo eu, pois basta o castigo de Adão e Eva para o mundo ser um absurdo. Se ao castigo de Adão e Eva juntarmos as penas de Job então o mundo deixa de ser um absurdo para passar a ser um escândalo, em que o Criador faz a vez de nódoa ou de infâmia. E é a parte mínima que se pode dizer dum fulano que se entretém a jogar com outro a vida dum pobre inocente.

Com a experiência que tinha, não se admirou porém Isabel. Os rudimentos da História humana de que ali havia tirocínio, as gerações que vinham da criação do mundo, certificavam tão-só aquilo que ela já aprendera a custo seu. A vida era um fio ininterrupto de morte.

A novidade vinha agora da presença dum Criador do mundo, que vivia acima da sua criação. Tal ideia não a chocou, pois se as nações todas tinham reis também a criação no conjunto havia de conhecer um fundador, que fazia à vez, como os reis, o papel de supervisor e de promotor da justiça. A única perplexidade estava em tal Criador ter originado um mundo perverso, cujos fundamentos eram a dor e a morte. Entrava aí a rectificação do Novo Testamento, que lhe parecia por esse motivo o mais belo documento da história do homem sobre a Terra. Jesus curara gafos, reabilitara prostitutas, restabelecera paralíticos, ressuscitara Lázaro. Predicara o amor como única lei para a regeneração dos descendentes de Adão e Eva. Recusara por isso levantar a espada para se defender; preferira morrer a matar. O Deus do Antigo Testamento matava, castigava com látegos de água e chuveiros de fogo, quezilava por um cabelo; era exigente, inexorável, colérico, fero. Era um pilorda que vociferava e maltratava. Cuidava de si e exigia faustos de nababo; até peuguinhas de lã punha nos meses de barbeirinho. Era um Deus mundano, de água-doce e marmelada. Por sua vez Jesus Jesus perdoava e deixava-se matar para depois negar a morte e mostrar a vida eterna. Enviado pelo Criador em momento de superior arrependimento, introduzira neste mundo, ao ressuscitar os mortos, ao curar gafos e cegos, ao falar por parábolas, ao responder com mansidão à agressão, uma esperança nova e distinta. Era um Deus sem ranço e sem vesânia, incontrastável e puro, nada devendo ao aparelho vicioso da arte de bem viver neste mundo.

Assim como assim, o Deus que enviara Jesus à Terra estava longe da obra que modelara. Prova disso era que mesmo depois da vinda de Jesus o mundo continuava destinado à fatalidade da dor e da morte. Lázaro fora um episódio sem continuidade. Jesus, representando um instante privilegiado de aproximação entre Criador e criação, estava ainda assim longe de ter unido os dois. As disputas continuavam, as divisões aprofundavam-se, as forças destrutivas fortaleciam-se. Criador e criação permaneciam afastados entre si. Com tal afastamento explicava Isabel o estado sórdido em que topava o mundo. Tinha razão? Alguma teria. Ainda hoje a morte se ri de nós em cada esquina e por isso o mundo continua a ser o que é.

As primeiras razões de Isabel de Aragão não coincidem com a doutrina oficial da eclésia romana. Isabel de Aragão cresceu numa corte de gibelinos, no rescaldo distante de Muret e no choque directo da morte de Conradino. Os influxos das Igrejas orientais, presentes na Sicília, e os contributos de certas franjas do pensamento heterodoxo da época, aferido nas disputas do palau de Barcelona e na recepção das Igrejas banidas, eram grandes no meio em que se formou. As ideias da primeira filha de Pedro III e da herdeira dos Staufen, Constança da Sicília, não se podiam ajustar com as de Roma. Esta mulher tinha no sangue o livre-pensamento do bisavô, Frederico II, e foi essa a sua grandeza.

A propósito de Isabel de Aragão contaram-nos demasiadas vezes a história da carochinha; até o pai puseram de joelhos aos pés do papa, mãos postas, olhos baixos, como cordeirinho manso. É tempo de pensarmos por nós e deixarmos as patranhas. E tanto é patranha grossa ver Isabel como antecessora do espírito moderno, ao jeito de Cartésio, como ver nela uma sequaz da doutrina de Roma. É inconcutível que se criou no caldo da cultura bíblica e só nele a sua acção e figura acusam sentido. Mas em vez de aguadilha insonsa de erva única, o caldo que bebeu estava muito bem adubado com ingredientes dos três monoteísmos e das várias tradições da Igreja cristã, antes de mais da Igreja oriental. Por isso tanto lhe corria no sangue o livre-pensamento do bisavô como a ecumenicidade do veio gibelino ou o universalismo da ideia imperial. Sem estas coordenadas nada entendemos de mulher tão pessoal.

O afastamento de Deus fez no espírito de Isabel a vez dum dilema. Por um lado o homem estava só e por outro aspirava ao Criador. A questão que se lhe pôs foi saber se o homem, na solidão em que caíra, encontrava por si a porta de saída para regressar ao Criador.

Assim andou com a pergunta a bailar-lhe no cogitar. Por fim quis que não. Entregue a si mesmo, nunca o homem chegaria para se redimir. As forças humanas ou naturais nada valiam; sem saber divino não se vencia um obstáculo tão desmedido como a morte. Tal era o sentido do Evangelho e da oração: o primeiro exarava o momento da intervenção vitoriosa do Criador na criação corrupta; a segunda alargava e rememorava, momento a momento, o privilégio dessa acção. Assim se estruturou o providencialismo de Isabel de Aragão, que é um dos traços fortes do seu pensamento. Foi marca que apareceu neste momento da sua vida, quando o  seu círculo de convivência se alargava a escolares e a homens de religião.

O providencialismo também se encontra gravada na carta que escreveu ao irmão Jaime. Diz ela: E se per Deus non ven hy alguna avinninça (…) non creo que por obra Domens se possa hy fazer rem. Este providencialismo, no caso dela, acentua o pessimismo ingénito, anterior, aquele que resulta do contacto sem mediação entre o ser de Isabel e o mundo envolvente. Falei de pessimismo já que se homem e natureza não se podem salvar por si e precisam do saber divino, então a tragédia da criação, o pessimismo reside no fosso que separa o Criador da sua obra.

Isabel sabia agora que a corrupção da carne, que tanto a horrorizara no seu primeiro contacto com o mundo, resultara da expulsão do Paraíso. E esta por sua vez era produto duma luta cósmica, cujas origens eram anteriores à criação da Terra. Antes da concepção desta, o Criador dera origem ao plano angélico ou subtil, que sofrera um abalo com a revolta de Satanás, um dos elementos mais proeminentes desse plano. A rebelião de Satanás, arrastando outros elos do plano subtil, levara a uma violenta porfia entre os que ficaram fiéis ao Criador e os que seguiram o anjo revoltado. Chegara então a criação da Terra, que fora a princípio o interlúdio onde o Criador vinha tomar a brisa olorosa com as gloriosas criaturas humanas e naturais, incorruptíveis por essa época, e descansar das agruras em que andava com alguns elementos da primeira criação. Logo a rebelião angélica encontrara modo de se infiltrar no plano da segunda criação, levando à queda de Adão e Eva e à degeneração geral da natureza terrena. Com a queda do género humano a rebelião de Satanás, até aí acantonada num recanto de enxofre e fogo, os Infernos, ganhara novo alento e estendera-se incontrastável a muitos lugares.

Satanás assenhoreara-se então de parcela da Terra e as mascaradas em que se metera não tinham conto e assim seguia alegremente com novas partidas e surriadas. Momentos havia em que tudo era dele; levava corpo, alma e ainda lhe davam a mortalha, o sepulcro e se preciso fosse os haveres do defunto. As tramóias do Carocho não tinham nesse tempo nem decoro nem limite. E digo nesse tempo, porque hoje ao que me parece o Diabo já bateu a bota e nem o Vaticano quer saber dele. Fizeram-lhe as exéquias e fecharam as portas da sua morada; ao que julgo o Inferno tem hoje escritos e está sem inquilino. É uma casa abandonada, nada mais. Não assim naquele tempo em que todos temiam o Demo mal viravam a esquina; habitue-se por isso o leitor deste escrito às tranquibérnias dos seus trejeitos. Uma vida de Isabel de Aragão sem o Diabo é como a Divina Comédia sem o Inferno. Não passa dum absurdo inverosímil.

Ao cabo dalgum tempo procurou o rei os escolares que ministravam a educação religiosa à neta. Andava ansioso por saber os desenvolvimentos da estreia da menina na matéria das escrituras. Um fradinho mercedário, Pedro Serra, seguidor de Pedro Nolasco, que andava no serviço do rei e se mostrara sempre de bom talante, de resto como o patrono, serviu-lhe de interlocutor.

– Entonce, irmão, que novas me dais de Isabel?

– Sabei, senhor, é menina de muito tino e de muito jeito para a História da salvação.

– Por que afirmais tal?

– Apesar da verdura dos anos, ouve a santa Escritura com atenção de mulher madura. É notável de se ver.

– Que passagens mais segue?

– Sempre as do Salvador.

– Não al?

–  A descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e os actos de Paulo, mormento em Trôades, cerca da Samotrácia, quando ressuscitou Êutico.  Foi a sua última descoberta.

Assim aconteceu. A vivência humana no primeiro Pentecostes depois da Ressurreição de Jesus, com a descida do Espírito Santo, a multiplicação das línguas, a alegria contagiante, a embriaguez que fez os observadores atónitos falar em vinho doce, foi o derradeiro momento da formação espiritual de Isabel. Ficou espiritualmente adulta depois de beber a cultura bíblica relativa ao Espírito Santo. É um elemento que lhe chega da formação exterior, religiosa, a única que é possível aceitar naquele tempo, mas que no seu caso, atendendo à corte em que nasceu e depois àquela em que cresceu, entre Saragoça e Barcelona, só pode ter sido uma educação tolerante e variada, onde entraram múltiplos elementos das três tradições monoteístas. Esta ecumenicidade, própria do gibelinismo tardio da época, é muito mais interessante na sua figura que a ortodoxia católica romana, dominada pelo poder temporal do papado e pela ascensão da Inquisição regular. Se não fosse ela, a tua figura, Isabel, nada me interessava; estava pouco mais ou menos ao nível de um Luís IX de França, sobre o qual passo de alto. Um santo falso, só para cumprir calendário, não merece da minha parte mais do que indiferença e desprezo.

A cultura bíblica do Espírito Santo serviu a Isabel de contraponto à inclinação pessoal, toda pessismista e contra o nascimento do Ser, que a aproxima do desespero moderno. Percebe-se o contraponto. O Pentecostes é o sinal de que o homem mesmo depois da partida de Jesus não ficou só; o Espírito Santo, a força que desceu no Pentecostes, funciona, por sua vez, como o mensageiro do Criador no meio dos homens. A própria vivência da primeira comunidade cristã de Jerusalém – comunhão fraterna, fracção do pão, oração constante – foi consequência directa da descida do Espírito Santo. E daí a importância da primeira assembleia reunida depois da partida de Jesus. A constatação da importância do Espírito Santo na primeira história que se seguiu à vinda de Jesus levou Isabel de Aragão  a afirmar dentro de si a possibilidade de estabelecer um elo de comunicação permanente entre Criador e criação. Sem Espírito Santo homem e natureza eram dois miseráveis sem saída; com ele tornavam-se apenas dois condenados a prazo. O Espírito Santo representou pois para Isabel uma mitigação do pessimismo inato da sua sensibilidade.

– O Espírito Santo é o único raio de luz que resta ao homem num mundo de escuridão e morte – repetiu a Vataça, por essa altura, quando as duas começaram a debater os aspectos da doutrina cristã.

Por isso muito mais tarde, num esforço de libertação da tendência para o niilismo, ela instituiu o Pentecostes como a festa cristã mais significativa e criou em Portugal as festividades populares do Espírito Santo. Foi a obra que a notabilizou e da qual falaremos a seu tempo.

Para já importa notar mais uma vez, a partir deste segmento da sua formação, os hibridismos religiosos da primeira educação espiritual de Isabel de Aragão. A visão que ela teve do papel do Espírito Santo na História da humanidade não é coincidente com a doutrina da Igreja romana, para quem a festa cristã determinante é o domingo de Páscoa. Segundo Isabel, o Espírito Santo é o único veículo que resta ao Criador para chegar ao homem e à natureza. Cabe por isso ao homem abrir no mundo uma idade do Espírito Santo, que signifique a aproximação definitiva da criação ao Criador. Estamos diante duma visão dinâmica, temporal, em que as pessoas da Trindade se sucedem em sentido escatológico, primeiro o Pai, depois o Filho, por fim o Espírito Santo. A igreja do Espírito Santo que Isabel de Aragão professou mostra de novo ingredientes dos três monoteísmos e de várias tradições da Igreja cristã, algumas nas franjas da heresia, como sucede com o joaquimismo paracletiano, condenado por Inocêncio III em Latrão, mas muito activo em Nápoles e na Sicília no tempo do segundo Frederico.

Devo confessar, antes de avançar, que estes elementos dissonantes com Roma e com a ortodoxia me agradam muito; humanizam Isabel e reforçam a imprevisibilidade do seu porvir, o que num romance pode ser crucial. Caso este elemento não existisse, a história de Isabel de Aragão perdia metade do interesse. Sem pecados, um santo perde verdade e proveito. Por isso, a formação de base de Isabel de Aragão, com o gibelinismo tardio que levou ao desforço aragonês de 1282 sobre os angevinos franceses e os papistas, é um dos elementos mais vivos e verdadeiros da sua vida. Sem ele, a sua figura de santa ficava muito mais pobre.

Regressemos agora ao paço de Barcelona, onde Isabel de Aragão prossegue o seu crescimento. É agora uma menina que, além duma impressão do mundo, fruto das suas experiências com plantas, animais e homens, tem consciência de Deus, resultado da sua primeira educação letrada e religiosa. Assim como assim, o problema do nascimento que se lhe colocou diante da dor do mundo não se resolveu por inteiro no seu espírito e nele permaneceu, como se documenta na carta escrita, já depois dos cinquenta anos, ao irmão Jaime.

O rei percebendo na neta uma sisudez que em geral só bastante mais tarde se desenhava, decidiu estabelecer-lhe casa própria, apesar da tenra idade. Proveu-a de rendas próprias, arranjou-lhe novas cuvilheiras e novas servas, instalou-a numa ala do paço mais ampla e mais próxima da corte. Vataça acompanhou-a, parelha cada vez mais inseparável da princesa.

Procurou Jaime I a neta nos novos aposentos para a tentar com casos passados. Ansiava por conhecer a reacção, não tanto para a estudar mas para nela urdir um talismã protector. O rei nesta época já pouco mais procurava do que servir de amparo à neta; a direcção do reino, além da que resultava da vontade popular que vinha das utsages do século XII, traçava-se pela avalancha dos exilados sicilianos, que, venerando a figura rei que os acolhera, faziam porém do príncipe a sua mola propulsora. Compreendia-se; o pai de Isabel de Aragão, Pedro III, era ao mesmo tempo o herdeiro da coroa de Aragão e dos direitos da casa Hohenstaufen, por via de Constança da Sicília.

Falou Jaime I à neta de Muret e da infância passada nos estarins húmidos de Carcassona e Narbona. Era passado em geral defeso, mas no círculo dos parentes próximos a história contava-se em voz baixa com vista a servir de exemplo. Era o próprio rei que a punha a correr, de geração em geração, juntando as memórias que dela conservava. Agora voltava ao sucesso, para industriar a neta no ponto de partida do reinado e lhe dar um apanhado recente da História do reino. Isabel ouviu impassível o relato. A tristeza que descobrira no mundo refreava a emoção. Aquela história era só mais um episódio da grande praça em que os gafos passavam acorrentados, as crianças se apedrejavam e os cegos tacteavam sem norte o caminho. Não havia novidade naquela história, a não ser o facto dela se ter passado com o avô. Nem o grande Jaime I escapava às dores e às humilhações de quem havia nascido. Sob esse aspecto a vida dum rei era idêntica à duma rosa ou à dum pobre pássaro recém-nascido.

– Que pensas? – perguntou por fim o avô

– Que as acções dos homens por si não valem mais que o ladrar feroz dum cão.

Viu-a pessimista o avô mas não se alarmou. Mais se lembrou de Sancha, a filha que nunca sorrira e que um dia desandara do paço, ao que se dizia, descalça, vestida de burel, encardida e misturada na mole de gente miserável que se atirava à socapa para o porão das naus que partiam Mediterrâneo fora.

Regressou no dia seguinte o avô com novas histórias. Desfiou as campanhas de Maiorca e Valença, que eram a idade nova da confederação aragonesa-catalã. Encapelou-se com os sucessos graves do segundo Frederico e de Manfredo, avós maternos da donzelinha, mas sempre Isabel ouvia impassível, com aquele freio que lhe vinha da experiência que já tinha do mundo. Era uma pedra na aparência; por dentro porém tilintava e comovia-se com a dor que se expunha na praça da História. Voltou a questioná-la o avô.

– Que me dizes hoje destas acções?

– O que te disse ontem, avô. Os homens parecem cães a ladrar alto por um osso.

Não voltou o rei a surpreender-se com a resposta. – Sancha não me dava palavra diferente – pensou. Decidiu por isso no dia seguinte regressar à conversa com a neta, desta vez com histórias bem distintas. Batia a hora noa e estava o avô a entrar na tarde seguinte na câmara da neta. Levantava-se esta da hora calmosa e logo se dirigiu ao avô para lhe passar os braços à cintura. Nessa manhã, por voltas de Berengária, estivera no imbricado das ruas que levavam à catedral. Sempre que isso acontecia, voltava a menina a viver os momentos de espanto e horror que tivera na barbacã do paço, na companhia do pagem que tratava dos cães do avô. Para bem dizer, sempre que via um cego, uma criança escrofulosa, um homem feito verme, arrastando-se no chão, nu por metade, areado de feridas, sentia o mesmo horror que a tomara pela primeira vez. Gafos, nunca mais os vira, mas não mais deixara de esquartejar po juízo, desde que Vataça lhe dera as derradeiras novas sobre a doença e vida deles.

Desta vez o rei trazia à neta os casos invulgares da cunhada, Isabel da Hungria. Logo os olhos da neta se incendiaram de interesse ao contacto desses sucessos que em vez de guerra falavam de dádiva e mais pareciam um passo da Escritura que um trecho da vida estuporada daquela idade em que andavam. Calou-se o rei, mal tocou os primeiros casos de Wartburgo. Era o momento em que a cunhadinha magiar começara a esvaziar os cofres por aflição para com os pobres. Logo a menina se mostrou irrequieta.

– Continua, avô. Casos assim, não são de calar.

Sorriu o rei; já aguardava semelhante comentário. Regressou-lhe de novo ao espírito a filha estranha, que nunca mais vira e lhe deixara para sempre um travo de desnorte no espírito. Continuou porém a discorrer. Falou-lhe do amor escaldante, apaixonado, louco, que unira os dois soberanos da Turíngia. Insistiu nele. Falou dos poetas que cantaram em versos abrasados esse amor. Recitou fragmentos, que então corriam na língua da Catalunha e que haviam sido vertidos no tempo de Violante. Vendo a neta fria a tanto ardor, inquiriu

– Não te comovem estas grinaldas de amor?

– Não sei do que falas, avô.

Embatucou aqui o rei, a pensar consigo no que seria o fado daquela neta. – Será rainha… – como vaticinara no baptistério de Saragoça. – Será monja… – como às vezes agora pensava quando com ela falava. Seria o impensável, como decerto aconteceria, pois o pensar dum nunca chegava para acertar com o porvir doutro. Olhou-a. Era uma menina composta, igual a tantas mais da corte, vestindo o saio carmesim de seda até aos pés e passando o véu de gola pelos cabelos. Tinha a alma sossegada, pois era capaz de passar uma tarde tranquila, no estrado, vendo as duas cuvilheiras a tirar do fuso o fio da lã, a ensartar contas de vidro ou a franjar roupas e estandartes.

– Isabel! Boas são as razões do amor mas tempo haverás para elas. Voltemos ao conto.

Retomou o rei a figura da cunhada. Dedicou nos primeiros conflitos no paço de Wartburgo. Passou depois à expedição do segundo Frederico a Jerusalém, onde o landegrave, perdeu a vida. Relatou por fim os sucessos impressionantes que se seguiram. A expulsão da landegravina e dos filhos, a deambulação desta pelos bosques da Suábia, da Turíngia e do Hesse na companhia dos mais mesquinhos, a morte numa casa de religiosas em Marburgo.

– Continuas a achar que os homens são cães a ladrar em volta dum osso? – perguntou-lhe por fim o avô.

– Fazes bem em perguntar. Casos assim põem os homens ao pé de Deus.

Na tarde seguinte regressou o rei, à câmara da neta. Estavam de volta os dias grandes, com folga para passeio largo no parque de Montjuich; o rei vinha ao encontro da menina depois da calmosa pausa que se seguia ao jantar. Contavam por desfastio histórias, entretinham-se a falar da vida do palácio, espreitavam o céu à espera de ver o escaldão do Sol arrefecer um tanto. Quando a tarde começava a declinar, saíam então para tomar ar. Nessa tarde, mal a neta lhe veio com mimalhices, atirou-lhe de chofre uma pergunta.

– Sabes quem inspirou a vida que ontem te contei?

– Deixas-me sem saber. Nada me disseste.

– Pois foi um homem chamado Francisco Bernardone. O mercedário Pedro Serra não te falou dele?

Ninguém lhe havia falado em tal fulano. – Francisco – disse ela – só conheço o bucelário que guarda a tua câmara. Logo o avô se sentou no estrado para lhe contar nessa hora a história do inspirado de Assis. Começou nos momentos perdulários de Perugia e acabou com as marcas tangíveis que se dizia terem agraciado a carne macerada do eremita. Pelo meio relatou os episódios da reconstrução das igrejas de Assis, a peregrinação no mundo, a companhia de mesquinhos e miseráveis, o encontro com Inocêncio III em Latrão, a dedicação aos gafos. Quando o avô tocou em tal assunto, logo Isabel se sobressaltou.

– Como assim? Não o embargaram os besteiros e os peões de pique?

Explicou-lhe o avô que não. Francisco conseguira iludir a vigilância de todos e andara por largo espaço intrometido junto dos gafos. E o mesmo fizera Isabel da Hungria, quando andara a seu talante pelas florestas do centro da Germânia. Antes mesmo de Gregório IX canonizar os dois, já os gafos da Toscânia e da Turíngia o haviam feito – concluiu Jaime com faceirice.

Nessa noite Isabel foi incapaz de dormir. As novas que tivera nessa noa não deixavam sono limpo. Afinal havia gente que se aproximava dos gafos e com eles vivia. Era novidade de tal ordem excitante que nem os olhos fechava, arregalados que estavam de pasmo.

Foi o instante em que ela tomou consciência das figuras de Francisco de Assis e Isabel da Hungria, que tanta importância vieram a ter na acção posterior da sua vida. Só nesse momento a sua formação religiosa ficou próxima de estar completa. Antes disso faltava-lhe a comporta do presente e a certeza de que era possível repetir os afusilados relâmpagos da primitiva Igreja de Jerusalém, areada pelo primeiro Pentecostes. O Espírito Santo era o colóide que Jesus deixara depois da sua ascensão, mas faltava a Isabel a prova de que a demanda estava viva e actuante. A morte, a miséria, o mal que se desenvolviam em seu redor, e lhe sopravam uma dor moral mais penosa de suportar que qualquer dor física, não lhe deixavam crer com absoluta segurança na energia presente do Espírito Santo. O contacto com as vidas de Francisco de Assis e de Isabel da Hungria, tão próximas da sua como o calor estava do Sol, foram o testemunho de que essa energia continuava operativa entre os homens.

A modéstia destas duas vidas funcionou pois para Isabel de Aragão como uma epifania. Na noite mesma da conversa com o avô, incapaz de cerrar as pálpebras, notando a macieza secreta do luar que lhe limpava o estrado, tomou decisões. O lampadário da alma estava aceso e ela lavrava decretos à luz do seu incêndio. Visto estar já de posse de casa própria, passaria a partir dessa hora a alimentar, com as rendas, dez pobres que todos os dias viriam comer às cozinhas do palácio. Também uma parcela da comida destinada à casa seria retalhada e entregue nas gafarias que ficavam nos montes Collserola, nas traseiras da cidade. Tais resoluções puseram a correr no sangue um requebro novo, com algo de sensitivo e jubiloso, um eflúvio perfumado que a fazia sorrir; quando rodaram na sua vida como os astros rodam todas as noites no céu, por hábito e destino, mais esse prazer moral se acentuou.

Ainda assim as dúvidas subsistiam. Com o alargamento da casa, a chegada de novas cuvilheiras, a passagem de grande número de servas para os trabalhos de dentro e a obrigação de gerir uma comunidade de gente com funções diversas, a responsabilidade da princesa empolara muito. Servia-lhe de escora Vataça, delegando nela muitos dos contactos com as servas, mas ainda assim esse novo círculo era enredo suficiente para se tropeçar em testilhas, vilezas, invejas, porfias, contumélias, iras, azedumes, que em geral se traduziam num vasto relambório de queixas e acusações. Os azedos embates da gente, notava, não eram moralmente menos dolorosos que a visão seminal da morte que tivera no pátio e no pomar, no momento das primeiras surtidas ao exterior.

Nesses instantes, haver nascido era só horror; Isabel ansiava então desfazer o nó em que ganhara ser e corpo. Quando a vejo assim, a sufocar diante do absurdo de estar viva, quer porque vê a morte num recanto do pátio, quer porque as invejas a prostram, percebo nela uma angústia funda. Esta angústia é que a traz até ao nosso tempo tornando-a próxima da nossa dor.

Procurou o avô para lhe confessar a recidiva das inquietações. Nessa altura já subira pela vez primeira os degraus do altar para receber a porção fina do cibinho consagrado. Sentia-se porém tergiversar na fé, entregando-se a uma dor moral, que não encontrava muitas vezes consolo na história do Evangelho. A alma sensitiva e genuína de Isabel de Aragão vinha ao de cima, sobrepondo-se ao lastro denso da doutrina e recusando-se à mistura.

Ficou o rei por momentos suspenso da cisma. Recordava, nem sabia porquê, a história dum escudeiro, Raimundo Lullo, filho de cavaleiro que consigo andara na ocupação de Maiorca, quando se metera na primeira idade do rei a alargar os territórios da confederação que tomara do infausto pai. Raimundo entrara-lhe pelo paço, com pouco mais de dez anos; logo tomara lugar de pagem, mostrando-se um rapaz azougado, mais interessado na galanteria fácil que no uso das armas. Assim andara catita e jactante sem outra nova dar de si. Compunha versos ao modo dos occitanos, tocava alaúde, cortejava as donzelas, organizava saraus e batia a cavalo, altas horas da noite, para se amantar nos bosques solitários com as galantinhas. Um dia viu a fatuidade da vida e deixou família, mulher e filhos, para se refugiar no monte Randa, onde viveu como na Tebaida. Aprendeu a língua árabe, meteu-se a predicador, fez-se irreconhecível. Em pouco menos de nada passava de alfitete com juízo a mendicante sem trambelho.

Contou o rei a historieta, olho ainda naquilo que contara sobre a cunhadinha magiar. Era mais um caso para tornar irrequieta aquela alma angustiada. Esmerilou por fim as questões relativas à transformação do alfenim em fradinho de cogula franciscana.

– E que é feito agora do teu pagem ? – questionou Isabel.

– Ao que me dizem está a passar em letra escrita um grande tratado.

–  E sabe ele, avô, responder à pergunta que te fiz outrora?

– Como te hás-de desfazer do corpo?

– Isso mesmo.

– Não! Nem Lullo, a quem começam chamar doutor iluminado, te responde a essa questão.

– Mas tu és sábio e um grande rei, avô; maior que David e Salomão. Decerto que tu saberás responder.

Riu o avô com gosto, tomando-lhe as mãos nas suas.

– Tu és mimosa. Vive só para seres admirada. Não te ocupes de mais. És e serás a rosa de Aragão.

Depois deste remate, percebeu Isabel que nunca o avô lhe poderia dar saída às inquietações que de quando em quando lhe enrugavam doidamente a alma; nem o avô, nem qualquer outro. Entendia que as respostas não mais viriam de fora, apenas de dentro. O exterior dera-lhe o Evangelho, que era a visão dum Criador atento à obra do mundo, empenhado em aproximar a criação de Si; acrescentara um codicilo que era a noção de Espírito Santo como veículo dessa aproximação. Nada lhe podia dar além disso, que na aparência era porém tudo. O que um sofre, outros sofreram e por isso é possível encontrar uma lâmina com os electuários necessários; assim como assim, uma coisa é a maleita e outra a receita para a vencer.

Sentiu-se só, horrivelmente só, apenas ela e o vasto céu, tantas vezes mudo e distante, entretido que este andava com as desavenças do plano da primeira criação, o dos anjos. Só em pensamento o Espírito Santo era o fluxo do contacto do Criador com a criação, pois na realidade as intermitências, as falhas, as quebras, as desatenções eram muitas. Logo a solidão e a instabilidade eram a condição comum, quase constante, dos viventes terrenos. A angústia domina sobre a crença, pois são tão raros como prodigiosos os momentos em que o pensamento se sobrepõe à realidade.

Uma Isabel de Aragão que tivesse na primeira juventude descoberto na religião as respostas certas para todas as dores humanas, mesmo que só suas, era uma Isabel de Aragão perfunctória e sem qualquer interesse para mim e para o leitor. Perfeição e certeza só existem nos formulários vazios. Assim instável, com momentos de descrença, só e desamparada, sem saber o que fazer, sem respostas e sem certezas, é que Isabel se faz igual a nós. E só assim, igual e próxima, nos pode ensinar algo. Dou de barato uma santa que tenha encontrado a verdade e viva fechada com ela. Que lhe faça bom proveito, que aos outros de nada serve. Os milionários da Fé são tão detestáveis como os outros, os que vivem das acções em Bolsa. Entre a irmã Lúcia e o Berardo dos milhões não escolho um nem outro; fico-me pelo intervalo, onde os cães uivam as agruras da fome física e os homens suam as da fome metafísica.

Livre mas carente, eis o melhor retrato de Isabel de Aragão! Por uma tal combinação apurou ela pouco a pouco uma regra de conduta, regulada pelo silêncio, pela oração e pelo trabalho manual na total independência do clero regular e com forte componente laica. Sem este laicismo, a defesa da sua liberdade – como aconteceu muito mais tarde na sua viuvez – não se entende como não se percebe o gibelinismo anti-papista onde foi educada e que não pode ser branqueado quando se fala da primeira formação da princesa. Nem Jaime I, nem Pedro III teriam aceite menos do que isso, o que transforma a nossa santa numa pecadora entranhada, cuja primeira heresia foi o próprio meio em que nasceu e a que sempre foi fiel pela vida fora. Se mais pecados não houvesse, este lhe bastava para ser uma santa romana a contragosto.

Quanto à sua regra de conduta, o silêncio era o vazio, a purga das testilhas e das contendas em que por norma os palradores desatentos tropeçavam, enquanto a oração se fazia a palavra divina em acção no espaço dessa ausência. Por sua vez o trabalho manual era aquilo que ligava a vida do presente à primeira comunidade cristã de Jerusalém, berço da Igreja universal, onde a propriedade era comum e todos encontravam o dever de se desfazer dos bens pessoais. Dividebatur autem singulis prout cuique opus erat. O produto do trabalho diário da comunidade – roupa bordada, colgaduras farpadas a fio de prata, colares ensartados, seda broslada – era dado ao fim do dia aos pobres que vinham ao paço comer à custa das rendas da casa de Isabel.

Uma manhã, depois do ofício de prima, quando se dirigia para o estrado, para se juntar às aias, que ensartavam pérolas de vidro na linha, Berengária tomou-a de lado e segredou-lhe com reprovação.

– Que vindes aqui fazer? Estes trabalhos não são para vós. Ide daqui.

– Não digas tal. Contra o desvairo do pensamento só a acção das mãos nos vale.

Também aqui Isabel de Aragão se faz próxima de nós. Nada mais repugnante hoje que a ociosidade do proprietário e nada mais repulsivo ontem que a inutilidade perdulária do grande clero e da nobreza feudal. Este primeiro gosto de Isabel pelo trabalho manual, a par duma vida frugal, faz dela um ser de eleição que merece hoje a nossa atenção. Se há virtude em Isabel de Aragão, é esta, a do trabalho manual a que se entregou desde tenros anos. Mas virtude aqui ao modo de Simone Weil, uma contemporânea que quis experimentar no século XX a condição operária, e não ao modo das santas de calendário, que cumprem à risca os artigos da cartilha eclesiástica. Poder aproximar Isabel de Aragão de Simone Weil diz mais do seu interesse para os dias de hoje que qualquer ponto de doutrina em que ela tenha andado ou desandado.

A par desta regra de conduta, capaz de acautelar desentendimentos na comunidade que em torno de si vivia, a neta de Jaime I acabou por se dar uma direcção pessoal, marcada pela dor moral. O Espírito Santo não vinha às contas; era como a luz do Sol no ergástulo do dia-a-dia. Existia mas não vinha daí parcela que se visse à soma do mundo.

A sós consigo, ao entardecer, antes de ir ao cabeçal, recordava vezes sem conta as duas mortes que pela primeira vez presenciara no paço de Montjuich. Contemplava então o cofre do avô, onde outrora guardara as pétalas rescendentes das rosas do quintal. Nada sobrara delas. Reconhecia agora as causas de tal absurdo. Pela queda de Adão e Eva a humanidade trocara o corpo glorioso por um corpo corrupto. Ao meditar sobre esta dupla experiência, sua e do mundo, acabou por reparar melhor no corpo que chamava seu. Percebeu que se tratava dum composto de túneis, de líquidos e de gases tão complicado e sinistro como uma máquina de arremesso. A percepção das matérias fecais, resultado das tranformações interiores, foi para ela um alvoroço tão magoado como a constatação da morte da matéria. Que cheiro pestilento! Que náusea! E o jacto da urina, ácido como triaga, cortante como bulhão, despejado num esguicho bestial na cara da terra, era surpresa capaz de tirar o sossego a um morto. Que tremedal maninho!

Não tardou a confessar o novo desgosto a Vataça, A princesa grega passara de confidente inocente a irmã de trabalhos e de silêncio. Era a sua sombra e eco.

– Que fábrica tão fedorenta o corpo.

Passou a detestar o corpo. Por isso adoptou roupas escuras e grossas, em várias camadas, para dele se afastar. Tapava cabeça e ombros com pano e mantilha e muitas vezes usava um véu sobre a cara como as viúvas. Não tinha a mais pequena curiosidade em contemplar as partes íntimas, que lhe provocavam repugnância; além das mãos, que aplicava no trabalho, ou dos pés que calejava no chão, nada queria do corpo. Ao invés de outras donzelas, nunca procurou contemplar a nudez num pedaço de metal polido; o gracejo era de muita valia num círculo onde a galantaria occitana punha regra mas ela sempre o teve por ruim e desfavorável.

Defecava e urinava num buraco de terra, cavado adrede para ela, sempre de olhos fechados. Bastava sentir as contracções do ânus e do subterrâneo da vagina para se agoniar. Lembrava-se então das galinhas que vinham debicar as gramíneas do pomar e que de vez em vez baixavam o bico, erguiam ao ar o ventre e expeliam a caca verdosa das entranhas. Até elas tinham ao centro do corpo, a meio das patas, em zona penugenta, aquele buraco elástico e nauseabundo. Eis o corpo como sinistra máquina de arremesso! Em vez de calhaus, catapultava excrementos fedorentos. O físico do avô dissera-lhe certa vez que o tubo onde se arrumavam as fezes era tão grande nos humanos como o fio de muitas e muitas polegadas que os pescadores do barri gótic usavam para tecer rede.

Ainda assim, esta disposição áspera e austera, sem queda para o prazer, teve momentos contraditórios, como a seu tempo veremos. Isabel de Aragão não é personagem linear, riscada a lápis de carvão no papel branco; é uma encruzilhada de caminhos, onde a sensualidade também meteu a mão. Momentos houve em que detestou a vida e controverteu a criação; são os momentos em que as suas palavras, reflexos directos do seu sentimento, parecem escritas com a tinta blasfema da heresia cátara muito arredia da prodigalidade da matéria. Mas outros houve em que ferveu de sensualidade e embriaguez pelo pedrisco. Foi um carácter singular e único, dividido entre dois extremos e quase sem termo médio, um pouco ao modo duma espiral, cujas pontas não conhecem nem repouso nem linearidade.

De qualquer modo, as singularidades de carácter eram na corte de Aragão um motivo de regozijo, não de crítica e azedume. Outra coisa não era de esperar numa corte que nascera das cinzas de Muret. O primogénito de Pedro III, que depois teve um curto reinado, como se vê em Dante, era um salomónico e Jaime, que depois reinou em seu lugar, dava-se a sonhos e chegou a escrever versos em catalão em que zurze a Igreja mal amarinhada. Também Frederico, que depois foi rei da Sicília, se fez famoso pelas visões alucinatórias que ficaram registadas em escólios dum físico do pai e do avô, Arnaldo de Vilanova, que soprou ventos de favor ao crescimento dos descendentes imediatos de Pedro III e de Constança da Sicília.

Este  Arnaldo de Vilanova, que a Igreja chamou bigorrilha e condenou por hereje, foi personagem grada da cultura catalã da segunda metade do século XIII. Não vi ainda exarado o seu papel de adubo gordo no caldo do gibelinismo tardio, aquele que resultou do enxerto aragonês. Seja como for, invectivou os inquisidores domínicos, defendeu a leitura das Escrituras em língua vulgar, advogou a pobreza dos valdenses, anunciou o fim da Igreja romana, afirmou a superioridade de qualquer obra de misericórdia, por mais ínfima, sobre a celebração da missa, onde nada de próprio, nem mesmo a vontade, o celebrante punha. Foi ele o receptor catalão das ideias de Gerardo de San Donino, o autor do Evangelho Eterno, onde entrança joaquimismo e franciscanismo. Tal mescla, pelo descaminho que dava à Igreja, depressa se tornou na argamassa de ideias das tropas anti-papistas de Conrado e Manfredo. Com a vinda para Saragoça de Constança da Sicília as ideias de Gerardo de San Donino chegaram a Aragão. Quem as alargou e divulgou foi esse Arnaldo de Vilanova, médico, reformador e visionário da história de Deus, que o grande Pico de Mirândola chamou mais tarde Arnaldus Hispanus.

Se mais não houvesse, bastava a presença de tal exótico na corte do pai de Isabel de Aragão para se perceber a natureza livre desse círculo; chega uma tal personagem para tornar a princesa suspeita de heresia na barra do tribunal da posteridade. Sabendo do convívio estreito dos dois, inclusivé da vinda do físico a Portugal para visitar Isabel, ninguém de boa fé pode crer na limpeza doutrinal da rainha portuguesa. É mais um ponto forte a favor de Isabel. O próprio do humano é errar, não andar de passo certo.

Correram os dias e as noites. Veio a estação fria e regressou a sazão do crescimento; viu Isabel a agonia de novos pássaros e assistiu ao definhar de novas rosas. Todos os dias se convulsionava de nojo, olhos cerrados, mergulhada em náusea e escuridão, ao defecar e urinar na vaza da latrina. De vez em vez, ao acompanhar Berengária e Vataça à catedral ou às ruas do barri gótic à procura de pérolas de vidro para ensartar no fio, voltava a deparar com o espectáculo degradante da humanidade. Cegos agarravam-se às paredes, boca aberta de pasmo e aflição; pedintes, nus por metade, cobertos de escrófulas, boca coberta de pústulas, arrastavam-se no pó das ruas; crianças lazarentas e famintas, olhos salientes, pele macilenta, ossos a perfurarem o saco da pele curtida, levavam à boca pedaços de lama, com o único fito de entreterem a rilhadura; carcaças purulentas de cães secavam ao Sol, cobertas por enxames negros de moscas zumbidoras; marítimos de pele tisnada, gengivas vermelhas à mostra, onde apenas boiavam um ou outro dente cariado, olhos ramelosos e zanagos, contorciam-se nos enjoos do vinho.

Ao aviltamento respondia ela com o recolhimento. Apertava mais o horário de oração e insistia no trabalho. Juntava o pudor extremo, nunca descobrindo a pele dos panos, e a acção caridosa, alimentando todos os dias na cozinha do paço com as rendas de sua casa dez pobres e enviando fornido fardel para os buracos de Collserola onde se encafuavam os gafos que eram despelados na cidade e nos arrabaldes.

Acrescente-se a leitura dos Actos dos Apóstolos, porventura em língua vulgar. Como não, se por lá andava o corifeu dos begardos na Catalunha, como chamou Menendez Pelayo ao físico de Jaime I e Pedro III, Arnaldo de Vilanova. Como não, se Lullo começava a projectar o catalão como grande língua de ideias; como não, se Raimundo Muntaner, coetâneo de Isabel de Aragão, que a cruzou vezes sem conta na corte de Barcelona, começava a sonhar na efusão do gibelinismo aragonês-siciliano a Crònica, que fez dele o antecedente ibérico de Lopez de Ayala, Froissart e Fernão Lopes.

Uma madrugada, quando o avô se despedia no átrio do paço para ir montear para as margens do Besòs, reparou Isabel num dos falcoeiros da corte, que se alinhava na fieira dos pagens. A princípio, o que lhe chamou a atenção foi a cogula de coiro, com ombreira larga, diferente das mais. Enquanto as casulas eram no geral ameadas, em rebordo largo, aquela recortava-se direita, desguarnecida de parapeitos. Era um pormenor ínfimo, que a obrigou porém a reparar melhor no usuário de tão estranha e invulgar veste. Mal pôs os olhos no semblante do oficial da corte, o avô deu sinal de partida. Ainda assim teve ocasião de perceber um olhar vivo, qual labareda, que acordou nela algo de conhecido. Vasculhou as lembranças e não tardou a recordar o pagem dos olhos de lume, travessas de prata repletas de vitualhas nos braços, circulando a grande velocidade entre as gentes, que na canícula dum entardecer encontrara num sarau do avô e logo levara sumiço.

Viu a coluna dos homens afastar-se para as traseiras do paço, de modo a enfileirar para as margens do Besòs, a norte, onde a haste da salva se enchia de flores amarelas e o rosmaninho e o tomilho balsâmicos cresciam entre a urze arbórea e o medronheiro de fruto esférico e vermelho.  Aí se tomavam lebres roazes que viviam no fojo da charneca baixa; por cima, no plaino, subia a azinheira de bolota gorda e folha vivaz, que alimentava o porco-montês e abrigava os predadores deste.

Enquanto ao longe se afastava o som estridente da charanga, procurou de imediato Isabel a Vataça.

– Hei visto o pagem do avental de coiro.

– Que pagem?

– Aquele de que outrora te falei e que tanto procurei.

Perante a insistência, acabou a princesinha grega por tornar presente a seroada de Verão no parque do paço, com os víveres a fumegar nas mesas, os músicos no estrado, os pagens com os espetos de assar e as roscas de pão, os pares travando-se na relva para a volta, os momos abrindo visagens doidas na face e dando cabriolas de pasmar.

Na madrugada seguinte voltou Isabel ao átrio do paço, no fito de ver na enfiada dos falcoeiros a presença do pagem. No desassossego da noite, deitada no estrado, não pensara em nada mais. Mirou os homens do rei e não se desenganou. Lá estava ele, no meio dos outros, envergando a cogula invulgar, desguarnecida de parapeitos. Mal lhe avaliou o rosto, confirmou logo o pagem do olhar em fogo, que na época lhe fizera lembrar o gato trigado do avô, presente do sultão de Tunes.

Nisto, sem ela perceber como, o pagem saiu da fileira em que estava e para ela se dirigiu, sem que nenhum alteasse a voz ou desembestasse gesto, manifestando estranheza e desacordo. Galgou num salto o espaço que a separava da infanta, suspirou de alívio, ajeitou a ave na luva e tomou a palavra, perante a surpresa da menina.

– Folgo em vos ver. Fiquei de vos dar um segredo.

– Mas quem sois vós?

– Descuidai de tal. Aguardai-me hoje no regresso. Logo vos direi o que hoje me traz.

Reservou para ela o encontro da noa e passou o dia desatenta de tudo. Até as orações da manhã se lhe engrolaram na boca. De hábito, sempre tão atenta à missanga, que chegava a ensartar mais que as aias vezeiras, nesse dia não atinou com um fio. Ainda as charamelas não se ouviam e já ela estava na porta da barbacã, aflita e ansiosa, deitando os olhos ao horizonte; como nada via bulir, perguntava vezes sem conta para cima aos peões se viam ondular ao longe os gonfalões riscados a sangue do rei.

Mal a hoste surgiu, logo procurou o interlocutor. À maneira do que acontecera nessa madrugada, afastou-se o pagem da roda sem que nenhum o repreendesse, dirigindo-lhe a palavra sem outro espaço.

– Conheci, como sabeis, vossa antiga cisma, senhora.

– Sim… o agouro da morte…

– Mais valia. Desse vos despia eu como de brial incómodo. Por que haveis mudado vossa cisma?

– Que quereis dizer?

– A morte deixou de ser o vosso agouro. Agora tratais de saber como pôr termo ao nascimento…

– Mas como sabeis?

– Esqueceis que conheço tudo o que por essa Terra vai…

– Que quereis afinal de mim?

– Ajudar-vos, senhora. Percebi que sois expedita em topardes com problemas que não podeis resolver. Agora vejo-vos metida em falsidades… o que é pior.

– Falsidades?

– Sim. O corpo é tudo, senhora; malsão é querer dar cabo dele. A morte é a maleita da vida, não o corpo. No passado deixei-vos uma promessa.

– Que promessa?

– A mesma que ora vos faço, caso abandoneis a falsidade em que ora andais. A eternidade! O fim da morte! A vida eterna, senhora! Não menos do que isso. Pensai bem.

Nisto os olhos de Isabel arregalaram, a boca contorceu-se numa fera suspeição, as mãos ergueram-se. – Promessa assim só pode virr do Porco-sujo – pensou. Era tentação idêntica à do Senhor no deserto. Também aí o Piolhoso, diante de todos os reinos da Terra, dissera as palavras tribunícias e soberbas que se conhecem em Mateus (II,4) e ela recordava: haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me. Logo a mão direita de Isabel fez no ar o sinal da cruz, repetindo ao mesmo tempo as palavras de Jesus, vade satana, vade satana. O homem desapareceu de imediato não deixando de si rasto, a não ser um penacho de fumo sulfuroso, que aos poucos se dispersou no vazio.

Ficou Isabel prostrada no pó da barbacã. Logo o avô deixou a cabeça dos coiteiros e se dirigiu com urros de aflição para o corpo desfalecido da neta. Tomou-a depois nos braços e vendo-a sem acordo mandou vir um físico. Corria ainda o tempo quente, com o Sol mortal de Outubro a radiar no anil puro do céu. Contaram os guardas a aflição da menina, que ali passara um largo espaço de tempo, mirando o horizonte e pedindo novas do avô aos peões das ameias. Julgou o físico que se tratara de desmaio ligeiro e sem cuidado.

– Calor maligno, não mais.

Recomendou dois dias na sombra da câmara e fixou nas pancadas das horas canónicas – salvante matinas e laudes – um gole tépido de água de mistura com um pingo de vinagre branco.

Mal veio a si, recordou Isabel o que sucedera. Calou-se. Mais tarde, apanhando-se a sós na câmara com a princesa grega, relatou-lhe o encontro com o Carocho. Rezaram as duas o Pater, olhos aflitos, mãos a tremer. Ardia apenas no canto da câmara uma almotolia de azeite; sombras aracnídeas tomavam conta da pedra clara dos tectos, puxando a si o mundo com as largas e recurvas tenazes das patas. Repetiram vezes sem conta o Pater e assim estiveram as duas o tempo ordenado pelo físico.

Nesse interim, em memória do sucesso, pediu Isabel que novos dobrões se tirassem das rendas e se recebessem no paço, a cuidado dela, dois casais de cegos, tirados à sorte das ruas miseráveis do porto, onde deambulavam ao Deus-dará dezenas deles.

– Haverão seus guias e sentados, na borda da cozinha, ensartarão braceletes e colares – determinou.

Mal correu o espaço prescrito para a reclusão, correu Isabel ao átrio do paço à procura dos falcoeiros do avô para certificar a ausência da estranha personagem. Nem vestígio do Raboso. Correu depois com Vataça o paço à procura dele mas do Rabudo nem pêlo sujo ou cisco de casco. Levara sumiço de todo. Respiraram de alívio e um novo Pater foi dado ao céu pelo seu definitivo afastamento.

Não se admire o leitor deste passo. Já disse lá para trás que hoje do Diabo nem cheiro. E tão intenso que ele era! Agora nem o Vaticano dá por ele uma pataca nos saldos do moderno. É velharia que nem aos antiquários vai; a lixívia levou-lhe o odor para sempre. Não era assim no tempo de Isabel de Aragão. O grande Cornudo convivia por esse tempo com a humanidade tu-cá e tu-lá e cada família tinha o seu demónio metido em casa a pregar partidas, a dar traques ruidosos e mal-cheirosos, a fazer tentações e assédios. O paço de Barcelona então andava cheio deles; Arnaldo de Vilanova deu com tantos que até as mãos à cabeça levou, dizendo que não tardava aí o fim do mundo. Hoje os modernos nada sabem da Besta mas parece que topam algo mais do fim do mundo. E basta isso para nos deitarmos a pensar com hesitação sobre as profecias malucas do físico de Aragão. Calculo que se alguém desencantar um diabinho do passado, maroto e malcheiroso que nem tourão, as espécies em extinção voltam a povoar o terrunho.


IV. O TERCEIRO VÉU


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Foi por esta altura que se desencadearam as borrascas que levaram às cortes de Lérida e que obrigaram o rei Jaime a sair do casulo de Montjuich e a fazer menção de pegar de novo na durindana. Entre a legião de bastardos que fizera e que chegava para povoar as margens do Ebro, e ainda se preciso fosse as do Llobregat, um havia que se destacara e que mais e mais subira na corte, Fernão Sanches de Castro. Quando se dera a morte de Conradino e Carlos de Anju dobrara a cerviz de Nápoles e de Palermo, mandando para o Diabo ou para as areias doiradas de Aragão os gibelinos do império, vira este lapuz a ocasião de abrir no mando um trilho fácil. Às esconsas enviara inculcadores à Sicília com mensagens de amizade. Aceitara-as o angevino em estilo graúdo e pomposo, esfuziante de dividir os novos inimigos de Aragão, onde residia a herdeira dos Staufen, Constança da Sicília, a filha de Manfredo. Estava criada às ocultas a facção papista da corte de Aragão, que tomava do passado a herança do abade de Montaragon, que impusera as duras condições da paz de antanho.

A nova facção fazia partidários inflamados entre o clero regular, antes de mais os que levavam nas mãos o leito de Procustes ou os que punham menos interesse em dependerem do rei que do papa. Andaram assim as coisas até ao ponto em que o futuro Pedro III mostrara a traço fundo, sem tergiversar, intento de tomar desforço próximo dos guelfos do rei de França. Agitara-se então o bastardo do rei, picado pelos inculcas do angevino, dando os primeiros golpes e tomando para si alguns castelos. Chegaram as novas destes eventos ao paço de Barcelona, quando subia ao céu o Pater de graças de Isabel e Vataça.

– Mais um don Tredo que se alça contra o seu senhor – comentou o rei com desprezo, no momento em que delas tomou nota.

Num tempo em que as tranquibérnias entre os dois filhos de Violante da Hungria, Pedro e Jaime, que pleitearam a herança do pai depois da morte de Afonso, filho de Leonor de Castela, primeira esposa de Jaime I, davam mostra de acalmação, surgiam novas rixas e trapaças, que se arriscavam a deixar o reino na situação em que ele o encontrara depois do desastre de Muret.

Ficou o rei sem saber que medidas tomar diante da rebelião. O caso agitou-o; perdeu gosto e vantagem. Nem a sazão de caça nas margens olorosas do Besós que estava de regresso o alegrou. Tudo o que desejava era desabafar a história numa rebatinha sem efeito. Que outro colo, além do da neta, a linda e misteriosa Rosa de Aragão, de rosto oblongo e olhos serenos como lagos quietos, que ainda há pouco tivera desfalecida nos braços, era assim propício a tal propósito? Nenhum.

Por isso procurou o rei nesse serão os aposentos da neta dilecta para lhe confessar as mágoas em que se via metido em tão vetusta idade.

– Que mais pode suceder, Deus meu?! – concluiu ele.

– Custa muito a crer tal desgraça, senhor!

Não conseguia Isabel entender o desacordo. Conhecia o tio da corte e tinha-o por próximo. O confronto fazia a vez dum absurdo. Lembrou-se porém que os sucessos da humanidade haviam começado com as invejas de Caim e a morte de Abel. E assim haviam continuado num torvelinho infernado de sangue. Restava a desesperança amarga e o recolhimento. O desespero era a condição dum mundo que escapara às mãos de Deus e a vida retirada o antídoto para tanto abuso.

Decidiu por fim o rei entregar o caso ao seu herdeiro mais velho, o futuro Pedro III. Não esperava este outra coisa. Há muito que desejava haver-se com o irmão, já que o sabia em ligações com Carlos de Anju. Os gibelinos sicilianos gritavam-lhe pela pele e estavam insofridos; viam no bastardo do rei o primeiro papista a ser abatido. Era ele a primeira ponta do desforço contra os cruzados do papa. Logo a guerra cobriu uma parte da Catalunha.

Veio o cerco ao castelo de Pomar, nas margens do rio Cinca, onde se refugiara o capitão da hoste papista. Os tempos não mais eram aqueles que levaram à humilhante prisão de Jaime I em Saragoça nos anos de abertura do reinado, obrigando-o a negociar um acordo com os papistas, em que até a Inquisição dominicana tivera entrada. A relação era agora outra e os papistas seguiam curtos de vontade, além de descoroçoados. Não levantavam grimpa nem se atreviam a insolências; o abade de Montaragon já lá ia e tudo o que facção pedia eram sopas, além dos ritos sacramentais. O tribunal eclesiástico não chegara a armar raiz, substituído que fora pela antiga e quase banal Inquisição secular; estava cada vez mais próxima a hora em que um neto de Pedro III havia de se gabar de expulsar do reino um Inquisidor-mor dominicano, Nicolau Eymerich. Demais, na época em que Jaime I enfrentou a rebelião papista do filho, as serranias de Aragão mais se cobriam de heréticos gibelinos que de raminhos bravios; era uma multidão de sicários que abafavam qualquer bulcão do céu, quanto mais uma trabuzana de dois ou três estalos.

Não tardou a fortaleza do Cinca a ver-se perdida diante da multidão dos assaltantes. Os papistas viam-se em dois tempos estoirados e trataram por esse motivo de salvar o cabecilha, de modo que ele pudesse alcançar Toulouse ou Marselha e de lá autorizar novo levantamento. Pintaram-lhe fúcias de zagal, meteram-no na familagem dos rabaceiros que andavam nos arrebaldes do castelo a pastorear gado e rezaram com denodo ao céu para que ele pudesse saltar são e salvo a tormenta. Os esculcas do príncipe porém não se deixaram ludibriar, atentos que andavam a qualquer tramóia de bigode e cabelo. Mal o príncipe pôs as mãos no irmão maniatado, arrastou-o pelas barbas zagalescas até às águas do rio e ali o afogou por suas mãos, enviando depois de presente aos sitiados o corpo lívido e entumescido. Era homem que não transigia com a sensibilidade nem perdia uma ocasião de levar por diante os seus propósitos.

Quando estas novas chegaram ao paço de Barcelona, escandalizou-se Isabel de Aragão com o fim do tio.

– Como é possível que Deus ordene tal sucesso? – perguntou ela em aflição.

Não mais recordava a lição bíblica; atendia apenas ao que sentia. Foi a primeira vez que experimentou no cheviote da pele inconsútil, sem marca de protérvia, as dissensões de ódio entre familiares próximos. O conto que começava no Cinca haveria de ser saga sem fim e ao longo da comprida vida muitas vezes haveria de voltar a ele. Para os outros, ao que via, os confrontos não passavam de frioleira comum; para ela faziam-se farfalha dura, insuportável, que se lhe enterrava na alma como aguilhão de ferro. Doía mais que tudo. Foram eles a causa do descrédito em que teve a vida; se Isabel de Aragão nos parece uma angustiada ao modo de certos modernos é por via destas desavenças que rasgavam as famílias reais e faziam delas uma estropeada de ominosas lutas.

Ao invés o avô, muito mais dicaz e prático, conhecedor das antigas desavenças entre os tios, que se odiavam de morte, recebeu com alívio a derrota dos papistas e o homicídio do filho.

– Melhor! O terreno fica esterroado para nova semeadura.

Ainda assim aquela talisca de guerra civil incomodou-o. Sentiu-se velho e acabado. Olhou as mãos magras e deformadas e as gelhas caídas do pescoço. Nada dou por mim – pensou. – Não fosse o filho e ainda acabava os dias como os começara, no estarim de Saragoça.

Decidiu abdicar e ficar livre dos encargos da coroa. Visitava a neta e lembrava-se do feitio de Sancha, discreta, recolhida, cogitativa dos enigmas da existência e das coisas. Veio-lhe a cisma do passado, a recordação da rainha, o remorso dos leitos em que a magoara, o nojo do sangue que derramara. Fechou os olhos e viu-se outra vez a uivar à Lua, desejoso de abandonar o mundo e vestir desta vez a casula dos monges brancos de Poblete. Delirava já na febre que o colheu em Valença e o levou pouco depois feito cadáver para Poblete, onde ficou em solitária tumba, por não se achar em lugar de emparelhar com a rainha que lhe voltara as costas na hora de morrer.

Viveu Isabel a morte do avô como uma desfeita cósmica. Se o Sol se tivesse apagado a surpresa não seria mais funda nem mais doída. Há muito que experimentara a moléstia da morte e há muito que tomara nota das Escrituras que prometiam a Ressurreição; ainda assim o avô como carvalho sem idade estava fora do ciclo devorador da vida. Havia ela, Isabel, de passar e o avô continuar como era. Era um Deus de pedra ou um Titã, um anjo que chegara doutro plano não sujeito à lei da corrupção terrena.

Por isso, quando o viu em Poblete, enxuto e amarfanhado como um insecto, insignificante como uma casca seca, pronto a subir ao féretro de pedra, sofreu um choque mais largo do que aquele que experimentara diante dos primeiros cadáveres que contemplara no paço de Barcelona. Levou os dedos à boca e gritou.

– Não pode ser! Não pode ser!

Revirou os olhos, tremeu e desfez-se numa trouxa murcha na lousa do chão sem forças nem sentidos. Foi preciso levarem-na em braços para uma cela onde ficou dois dias sem dar acordo de si, rodeada pela aflição das cuvilheiras da corte. Depois dessa letargia, mais a vida de Isabel de Aragão seguiu aquele rumo de ascese e severidade que começara anos antes. O luto prolongou-se; o desespero aprofundou-se. Certificara-se que nem mesmo um gigante mineral como o avô escapava à roda trituradora da morte e tal certeza era para ela um abalo tão grande como outrora foram os primeiros cadáveres. Enfastiou-se mais do corpo e de tudo o que o pudesse lembrar. Estava metida na vida amargosa que muitos anos depois lemos como desabafo ao irmão Jaime e que faz dela uma original ao modo dos existencialistas modernos. Restringia ao mínimo a comida, que detestava; não tocava em carne de animal sólido e o seu passadio não discordava muito daquele regime de pão e água que era de rigor entre os mendicantes mais ásperos. O único desejo era encafuar-se nos aposentos do paço de Barcelona a ensartar missanga, ao mesmo tempo que repetia em coro o Pater e outras orações que corriam entre os gibelinos sicilianos, cujo substrato era o joaquimismo franciscano, muito comum por esta época na corte de Aragão.

É preciso sublinhar este carácter heterodoxo da acção da futura rainha portuguesa; faz sempre falta chamar a atenção para o meio extensamente herético em que ela se formou e se desenvolveu. É o lado mais autêntico da sua pessoa e aquele que mais nos pode interessar hoje; tem sido calado e até apagado com uma borracha ostensiva, mas sem tal condimento a figura da aragonesa perde sabor, a ponto de se fazer intragável. Sem as influências heterodoxas da corte de Jaime I e de Pedro III, eu dava de barato Isabel de Aragão; para nada a queria. De que me serve uma santa sem pecados? É mais inútil que um plástico sujo nos alvorotos do vento. Exemplar humano que não erra ou é burro ou é hipócrita; em qualquer das eventualidades é caso para deixar para trás. Fique-se o leitor com esta: sem os erros da heresia, Isabel de Aragão não tem vida própria; é apenas um sombra pálida e falsa que alguém muitos séculos depois decidiu recortar e colar num álbum

Corriam assim os dias iguais e apartados. A coroação do pai tivera como consequência a abertura da esperada ofensiva política contra os papistas fora de fronteiras. Era o princípio da sublevação que levaria ao desforço das vésperas da Sicília e à expulsão dos cruzados franceses, logo seguida pela expansão catalã em todo o Mediterrâneo. Para bem dizer, este Pedro III, pai de Isabel de Aragão, iniciava o reinado chamando a si a desforra de Muret contra a casa real de França e a vingança dos Hohenstaufen contra o papado, que lhes roubara Palermo e Nápoles. Assim sendo, Pedro III de Aragão, com as contadas vitórias que obteve contra uns e outros, foi com certeza o monarca europeu mais poderoso da época. Teve os elogios de Dante e de Boccacio e a fama célebre dum segundo Alexandre. Por isso, depois do saimento do pai, não tardou o novo monarca em chamar Isabel para uma conversa a sós. Nos planos em que andava com os exilados sicilianos precisava de alargar influências e fazer conluios. A família servia-lhe de escora para meter cunhas e abrir portas.

– Filha, meu pai chamou-te a Rosa de Aragão. Sabes o que isso quer dizer?

– Senhor, sou a  mais sofredora das almas que vive debaixo da roda do Sol. Melhor me ia o nome de espinho que de rosa.

– Filha, a riqueza duma mulher é a prudência do seu coração.

– Nada valho, a não ser sofrimento.

– Pois asseguro-te que vales um rico casamento.

Foi esta a primeira vez que Isabel ouviu falar de casamento. A palavra passara-lhe até aí despercebida. Não tinha ideia do que fosse a reprodução sexual e o que antes ouvira nas Escrituras sobre tal assunto fora engolido por um buraco negro. Ninguém se preocupara em tocar no assunto e ela passara por ele como pardal por árvore depenada. O corpo para ela era uma agrura que nada morigerava, e do mênstruo ainda nem sinal houvera. Vivia alheada de tudo, devido àquele desgosto pela vida material, que foi nela ingénito e talvez originalidade sua, se bem que o irmão sénior, Afonso, se mostrasse frio ao mando e a tia Sancha fosse o que já sabemos, uma peregrina personagem que um dia, vestida de serva, deixou o paço do pai, para nunca mais regressar nem de si mandar novas. Nesta época Isabel superara já o medo da morte e tudo o que ansiava era morrer em vida para se livrar do corpo.

Mais uma vez se sente aqui, neste enfrentamento da morte, uma tintura cátara. Tal demão deve agradar a certos modernos, mais que não seja por compreensiva simpatia para com as vítimas desse tempo. Não me parece todavia que este morrer em vida se possa aproximar do suicídio, ao modo dos últimos cátaros, porque a endura foi um recurso tardio da Igreja cátara perseguida e no reinado em causa não havia motivo para tal socorro. Tratar-se-ia antes no caso de Isabel duma ascese em relação à matéria ao modo de certos franciscanos espirituais, presentes e influentes na corte aragonesa da época. Mas tanto bastou como o leitor já sabe para o Diabo se meter com ela desagradado e cheio de reparos; respondeu-lhe ela em latim, que é língua que serve ainda hoje para descompor os mortos.

Voltou passado pouco o rei a chamar a filha. Aprestou-se ela à chamada do pai.

–  Senhor, não sei o que de mim quereis.

– Filha não me arrependo do que te assegurei. Mal o disse, e já me chegam propostas de valor.

As propostas eram tão subidas, que até o angevino do reino das duas Sicílias lhe pedia Isabel para o filho Roberto. Que podia esperar o inimigo figadal de Aragão com enlace tão contranatura? Contava através desse elo baixar a borrasca que começava a levantar fervura em Aragão. O Castro estava entanguido num barranco de trela e os papistas mais revessos haviam sido homiziados junto dos capetos. Demais o Anju experimentava nos territórios ocupados as primeiras acrimónias sérias. O matrimónio em Aragão era pois um tentame de acalmação. Nem amor, nem amizade, nem mesmo simpatia, mas apenas interesse e cálculo. Segurar um reino pode bem valer um casamento. E Isabel era a única que podia entrar em tal negócio, pois Violante, sua irmã, era por esta época pouco mais que pitorra de peito.

Mas de casamento a nova Madalena nada sabia. O avô, quando a vira metida nas aflições angustiosas da morte, pusera-a à banca dos escolares, para aprender os rudimentos da gramática e da cultura religiosa da corte. O resto deixou para mais tarde, se é que dele se lembrou, tão empenhado que sempre se mostrava em proteger das voltas melindrosas do mundo a libelinha de asas transparentes que lhe aparecera em Saragoça num dia glacial de Fevereiro.

Coube por isso a Pedro III, no quadro da geopolítica do arranque do  reinado, alargar a formação da filha a aspectos de História e administração. Regressou a menina ao círculo dos escolares para desta vez tomar nota da configuração da Terra e dos reinos humanos. Era a época em que os nobres da corte, metidos a geógrafos, começavam a projectar a expansão catalã, convictos que o mando do mundo estaria a Ocidente, depois de ter estado a nascente, com Gregos, e ao centro, com Romanos. Neste sonho entravam elementos próprios do gibelinismo anterior, império e laicismo, e outros que vinham das heresias joaquimitas, como a ideia paracletiana dum quinto evangelho eterno, que levara à condenação pouco antes de Gerardo de San Donino e metera na cabeça duns tantos que a Igreja romana não passava dum fóssil do passado. Outros ainda, como o activismo comercial e a iniciativa pessoal, vinham do próprio âmago da confederação aragonesa-catalã. O mundo era um olho de água que vinha do Helesponto às Hespérides, onde Herácles roubara os pomos e a Catalunha estendia as suas praias de oiro; o restante, até Pequim, eram arrabaldes de incivilidade por onde corriam mongóis doidos, de olhos rasgados, com tendas e garranos selvagens.

Deste tirocínio tirou Isabel de Aragão um figurino gibelino de que não mais se desfez e que acabou por ser a estrela guieira da sua acção. A espiritualidade que bebera, entrosando elementos do cristianismo oriental com supostos do franciscanismo espiritual da época, estes virulentamente críticos do clero instalado, numa síntese próxima daquilo que nos dão a conhecer os textos de Arnaldo de Vilanova, ajustou-se bem à visão duma História política e escatológica, em que a Igreja romana era menos padrão ou sinal de permanência que vestígio dum mundo prestes a tomar fim. À porfia de Aragão cabia inumar de vez este mundo e abrir a porta da nova idade.

Neste sentido, os filhos de Pedro III, sobretudo os quatro mais velhos, foram os resultados mais sensíveis deste gibelinismo tardio do século XIII, que temperou o laicismo herético que veio da Sicília com o vigor ascendente da sociedade catalã. E entre os quatro, Jaime e Isabel, cada um a seu modo, braços distintos do mesmo corpo, foram os altos cumes do maciço. Ambos se criaram naquele anel ilustrado e doutrinado que produziu um Roger de Flor, filho do falcoeiro-mor de Frederico II, morto ao lado de Conradino na batalha de Tagliacozzo, e pouco mais velho do que os filhos de Pedro III. Este Flor foi depois um dos esteios da defesa da Sicília contra as investidas papistas e cabeça da coluna dos almogáveres catalães que, tingindo-se da glória de Homero, avançou vitoriosa pelo Peloponeso.

Eis aqui outro pecado grave de Isabel de Aragão! Tão grave que três séculos depois, quando a Inquisição domínica já estendera arraial pela Península, Camões nem sequer se atreveu a nomeá-la no seu Poema. Vêmo-lo no momento do nascimento, quando a sexta rainha de Portugal abeberou os primeiros riachos do projecto gibelino de Aragão. Na pretensão mínima este projecto ensaiou a reconquista da Sicília e a expansão de feitorias catalãs no Mediterrâneo; na vertente ambiciosa, de fácies espiritualista, pretendeu dar ao mundo a nova idade anunciada por Flora e San Donino. Isabel, pela formação religiosa, pela índole rarefeita e etérea, não se ficou pelo sentido material, geo-estratégico; precisou da escatologia herética que lhe andava associada. Foi pecadora a dobrar, pois quis tirar aos cruzados do papa o que eles haviam roubado aos Staufen e creu na dissolução da Igreja romana.

O gibelinismo de Isabel ainda hoje é chocante. Habituaram-nos a uma Isabel sem ambições políticas nem pensamento próprio. Fizeram dela uma máscara de obediência e servilismo, uma santa de calendário. Obrigaram-nos a esquecer que ela se formou espiritualmente na corte de Jaime I e que nasceu para a acção administrativa na corte de seu pai, Pedro III. Esconderam-nos sempre a conflitualidade destes façanhosos com Roma. Pintaram-nos Jaime I como um velhote de barbas, devoto, ilustre, amigo servil de Raimundo de Penhaforte, e Pedro III como um pai feliz, gorducho e insonso. Nada disso é verdade! Jaime I é o herdeiro de Muret e Pedro III o estropiador da Sicília papista, que se viu desautorizado e excomungado pelo papa Martinho IV. Não fosse a dura verve do aragonês, que dobrou a cerviz ao rei de França e o obrigou a deixar a pele num triste desfiladeiro dos Pirenéus, e o destino de Barcelona, Lérida e Saragoça teria sido o de Toulouse, Carcassona e Albi. E com estes antecedentes é que Isabel de Aragão nos pode interessar, a mim e ao leitor. Se não houvesse heresia e gibelinismo anti-papista, Isabel seria hoje um cadáver descarnado, igual a tantos outros, bom apenas para figurar entre os quarenta mil nomes do Martirológio Romano, vasto cemitério de canonizados. Assim, com o lado errado, é que Isabel toma corpo e passa a pertencer ao retábulo do porvir. Deixem-nos pois os desvios da rainha, que são o que nela há de mais precioso e original. E já agora paga o tempo acrescentar que o mais belo do cristianismo são as suas margens; sem heresias, o cristianismo era quase só um catálogo de banalidades ou um cartapácio de perversões escandalosas. Que tristeza, um cristianismo que fosse apenas a mão papuda e cheia de anéis de Inocêncio III, o manto de arminho de Pio IX ou os sapatos vermelhos, de meio-tacão, de Bento XVI. E que escândalo um Alexandre VI. Com os cátaros, os valdenses, os begardos, os joaquimitas e outros sonhadores é que o cristianismo se agiganta aos nossos olhos.

Não demorou o rei a dar seguimento ao negócio dos esponsórios. Voltou a filha à câmara do pai.

– Sabes agora, filha, o que é um casamento.

– Estou ao vosso serviço, senhor.

E assim continuaram a falar, o rei noticiando-lhe os pretendentes que a requeriam, Roberto de Anju e Eduardo de Inglaterra, e ela atenta a ver se percebia as inclinações do pai. Por fim pareceu-lhe avistar terra na Britânia distante, por mor do aperto em que era mister ter a França.

– Será então esse o meu destino?

Mas o pai sorriu falsamente inocente.

– Pequena é para ti essa pele. Esqueces que teu avô te chamou a Rosa de Aragão e viu em ti o tesoiro da nossa casa? Chegaram cartas de Portugal pela mão de três cavaleiros pedindo vossa mão para o rei Dinis.

– Portugal?

– Não vos falaram os geógrafos desse reino?

Encolheu os ombros finos a donzela, como que desculpando a vagueza em que estava. Logo o pai de novo sorriu, juntando uma primeira explicação.

– É reino que fica no cabo do mundo. É lá que o Sol se põe todos os dias. Os antigos pagãos punham nas suas praias a abertura do Hades. Chamaram-lhe os latinos a Finisterra. No berço deste reino fica Compostela, onde se diz que Francisco de Assis peregrinou depois do papa lhe ter dado a beijar o anel.

Foi esta a primeira vez que de forma impressiva a princesa aragonesa ouviu falar do reino português. Do noroeste assinalava Compostela, que os escolares metralhavam nas lições, nada mais. É momento muito singular da sua vida, pois foi nesse espaço que depois cumpriu destino durante mais de meio-século. O que é espantoso nesse primeiro contacto é Isabel não sentir nesse nome nenhum sinal premonitório. Portugal? – questionou, como se falasse das charnecas africanas ou das névoas asiáticas. Era-lhe indiferente, além de desconhecido.

Dois dias depois mandou-a chamar o pai para nova conversa sobre os esponsórios. Recebeu-a desta vez na sala do trono.

– Filha, os cavaleiros que vos nomeei no nosso último encontro insistem em pedir a vossa mão para o rei de Portugal. Que dizeis vós de tal trato?

– Que cumpro vossa vontade.

– O reino andou em perturbações com a disputa do reino por dois irmãos, Sancho e Afonso. O primeiro foi morrer a Toledo, expulso do reino, sem descendência e só, e o segundo ficou senhor do mando. Morreu há pouco. Dinis é o seu herdeiro.

E com o interesse por Portugal veio a formação da princesa sobre o reino lusitano junto dos escolares de Pedro III. Que tirou ela dessa primeira lição sobre o espaço em que ia gastar o resto da vida?  Antes de mais, que o lugar era terra de trovadores e que o seu falar acabara de ser usado pelo rei de Castela e Leão, Afonso X, para compor um extenso cancioneiro em louvor da Virgem. E depois que as relações com Aragão tinham o seu antecedente no casamento de uma irmã de Raimundo Berengário, conde de Barcelona e fundador da confederação aragonesa-catalã, com o primeiro Sancho português. E ainda que as igrejas andavam interditas e o reino excomungado. O pai de Dinis, porventura leitor guloso da carta do segundo Frederico a Gregório IX, tomara para a coroa muita fazenda do clero, acabando em inextricáveis contendas com os bispos e o papa.

Pedro mandou vir à corte de Barcelona os menestréis da corte de Castela, de modo que Isabel pudesse aferir da língua e dos louvores. Não tardou que os músicos tocassem no estrado os instrumentos e as vozes se elevassem limpas e solitárias para cantar as cantigas.

– Caso raro este é! Nunca se viu um trobador escolher para dama uma senhora assim casta e longe do mundo – comentou por fim o rei.

Não se pense porém que o florilégio de Santa Maria é colecção dum teólogo ortodoxo ou dum papa-hóstias. Afonso X teve pretensões à herança dos Staufen, por via da mãe, Beatriz da Suábia, prima-irmã de Frederico II. Um irmão do rei, Henrique, bateu-se mesmo ao lado de Conradino, contra o papa, na batalha de Tagliacozzo debaixo dos milhafres de Castela; no momento do casamento da princesa de Aragão, o infante ainda pagava a ousadia nos calabouços angevinos da Apúlia. Só mais tarde com o reforço das investidas catalãs, houve moeda suficiente para ajustar a sua liberdade. O gibelinismo batia à solta pelas duas grandes cortes da Península, a de Afonso X e a de Pedro III.

Talvez por esse motivo a Virgem que se louva nestas cantigas atenda cristãos, muçulmanos e partidários de Moisés. Bem se pode dizer que o mais lindo desta poesia é a sua heterodoxia; não fosse a alteridade em relação ao modelo cristão dominante na Europa além-Pirenéus, e estas cantigas religiosas eram apenas esqueletos frios, folhas secas num herbário morto. Quem toma a sério uma Virgem que faz orelhas moucas às dores dum sujeito só por ele não acreditar que Jesus é filho de Deus ou por se recusar a crer nas duas naturezas distintas de Cristo? Melhor se porta a Virgem de Afonso X, capaz de abrir a alma às dores de judeus e mouros. Não foi a Virgem dele, no caso a Santa Maria de Salas, que se apiedou duma moura e lhe ressuscitou o filho? Foi e por isso estes versos cantados nos continuam a comover e a tocar o coração. São de ontem e são de hoje, quando cristãos proibem minaretes e multam véus – que vergonha! – e muçulmanos perseguem cristãos. Que a Virgem de Afonso X nos oiça, sem distinção de credo ou de não-credo, e tenha misericórdia do nosso sofrimento e da nossa pobre condição! E já agora faça connosco a festa; venha daí bater pandeiro, retinir rabeca, elevar a voz e pular sobre o lume como nos tempos antigos em que os trovadores do Sábio dedilhavam alaúdes e molhavam no jarro o bico.

Mas, além das trovas, tirou também Isabel as testilhas. Não tardou a perceber que o reino de Portugal, pouco mais que um cu-de-Judas, voltara a cair nos baldões recentes em que andara com a guerra entre Afonso III e Sancho II. Dinis, um jovem de dezanove ou vinte anos, andava a braços com um levantamento do irmão Afonso, dois anos mais novo.

– O negócio dos reinos não passa deste escândalo. Aqui meu pai tirou a vida a meu tio no rio Cinca e lá um irmão anda em ânsias por tirar o reino ao outro.

Agoniava-se com estes confrontos. O enfado era tão grande que lhe subia à alma uma descrença brutal na vida; na boca sentia o sarro grosso do absurdo.

Nesses instantes o espaço que se intrometia entre o Criador e a criação era intransponível; o grande Bode cachinava pelas ruas, tomando conta do que era seu e pintando as portas de excrementos. A vontade que lhe vinha era fechar-se com o círculo das cuvilheiras, entregar-se ao trabalho da reclusão, nunca mais aparecer. Ou mesmo repetir os passos da tia Sancha, passando um burel pelo corpo e pondo um alforge ao ombro, para partir anónima pelos caminhos do mundo, não mais dando notícia de si. Vinham-lhe de seguida à ideia os compromissos que fizera com os pares e os mestres. Submetia-se então à vontade geral do reino e tentava conciliar a aspiração de ascese e de asco que sentia pelo mundo com a necessidade de acção que pediam dela.

Ora ao tempo que isto assim corria, estalavam em Castela os primeiros conflitos entre Afonso X e o futuro Sancho IV, seu filho, a propósito dos filhos de Fernando Lacerda. Beatriz de Castela, mãe de Dinis e Afonso, logo entrou na contenda, tomando o partido de seu pai, Afonso X. Dinis, por seu lado, vendo o irmão nas cercanias da mãe, tomou o partido do tio contra o avô.

Não tardou o rei de Aragão em chamar à presença a filha Isabel.

– Filha, a guerra em Castela acende-se como carqueja seca tocada com pau de lume. Já se vêem as labaredas subir de todos os lados e já se ouve o crepitar da ramaria a consumir-se no fogo.

– Triste coisa é ver a guerra entre um filho e um pai.

– Mais triste é ver um pai deserdar um filho. Sancho anda dentro da razão e esta guerra há-de pelo menos trazer um bem. Sabes qual, filha?

– Dizei, senhor.

– Esclarecer os vossos desposórios.

– Como, senhor?

– Dinis sofre a rebelião do irmão Afonso e deu por isso concurso a Sancho. Precisa da vossa mão para segurar o trono.

E foi assim, por um acidente da política dos reinos peninsulares, que o casamento de Dinis e Isabel se decidiu em definitivo. Ao escorar a rebelião de Sancho em Castela, não quis o rei de Aragão ver o rei de Portugal numa situação de falta diante do irmão e da mãe. Logo não hesitou em aceder ao seu pedido. Isabel avançou para Dinis, no espaço peninsular, movida pela mão calculista de Pedro III, como uma peça se move num tabuleiro de xadrez, à procura de fazer sofrer um revés. Às vezes um acto tão transcendente para a História dum povo, como o reinado de Dinis e Isabel, decide-se por uma ninharia tão prosaica como esta. Uma picada de mosquito pode deitar por terra um elefante. Que pantomina!

A atenção do rei de Aragão não residia porém nas lutas internas de Castela. – Caso pequeno – costumava ele sentenciar sobre as perturbações do vizinho peninsular. O cuidado de Pedro III concentrava-se todo no reino das duas Sicílias. Um agente seu, antigo homem de mão de Manfredo, João de Procida, andava por lá às esconsas a ambientar o levantamento contra os angevinos e o papa. O último projecto gibelino estava à beira de explodir; a Sicília não tardaria a cair. Por isso a decisão de enviar Isabel para Portugal também teve em linha de conta este acto. Na bagagem, entre pérolas, fio de prata, safiras e relicários, a futura rainha de Portugal devia levar a política do pai e fazer do reino receptador uma rectaguarda de segurança. Em caso de precisão Portugal devia oferecer refúgio aos exilados de Aragão como outrora Aragão soubera oferecer asilo aos foragidos da Sicília. Isabel de Aragão, uma geração depois, fazia junto de catalães e aragoneses o papel que a filha de Manfredo, Constança da Sicília, fizera junto de sicilianos e napolitanos.

Este calculismo geopolítico que encontramos na base do casamento de Dinis e Isabel não é para surpresas. A coroa de Aragão estava a atear uma fogueira, cujas consequências nenhum previa. Tratava-se nada menos do que vingar a derrota dos Hohenstaufen, retomar o reino das duas Sicílias, desafiar o papa, destroçar em campo as tropas experientes de Carlos de Anju, aguentar as represálias e as contra-ofensivas, tudo isto nas plagas do centro do mundo, onde Cartago e Roma haviam medido forças. Era obra para meter medo a Herácles, quanto mais aos pobres catalães, bons para dançar a sardana, beber o esguicho da moringa e enfiar as espadrilhas. Assim sendo, queriam um encosto seguro para o caso de se verem no lado errado da aventura; Portugal, que seguia excomungado, fora da alçada do papa, servia assim para respaldo. Não era porém proposição de pusilânime mas plano de cauteloso.

– Com gente bem corregida, logo se virá pelo que se almeja – dizia Pedro III.

Razão tinha ele, que mal pôs pé em Palermo, logo o papa lhe tirou o reino de Aragão, dando-o a Carlos de Valois, filho do rei de França. Caso a espera dos Pirenéus tivesse sido outra, e Barcelona caísse nas mãos de Filipe III como Toulouse caíra nas de Luís IX, sobrava ainda a gorda carta pintada de Isabel de Aragão.

Por quê Isabel de Aragão? Dos filhos de Pedro III e de Constança da Sicília, os que mais depressa, até pela idade, se ajustaram ao projecto dos pais foram Jaime e Isabel. Jaime herdou à morte do pai, quando Afonso ainda estava em vida, os duros trabalhos do feudo siciliano. Mais tarde, quando Jaime II teve de governar em Saragoça, Barcelona e Valença, Frederico, o mais novo desta ínclita geração, tomou nas mãos o gonfalão das águias imperiais e ficou à testa da Sicília; foi com este Fradique que os catalães bateram de vez o papa e os angevinos e se lançaram nas aventuras do Peloponeso. Isabel por sua vez foi para Portugal no momento mesmo em que o pai se despedia de Barcelona para deitar mão a Palermo. Ainda não se notou a coincidência da vinda de Isabel de Aragão para Portugal e o levantamento da Sicília contra Roma e o anjo guelfo que ficou conhecido pelas vésperas sicilianas? Assinale-se então a sobreposição e perceba-se o importante papel geo-estratégico da princesa na política gibelina da casa de Aragão.

Permita-me o leitor um parêntese. Não se alcançou ainda a audácia de catalães neste momento da História da humanidade. Os Hohenstaufen haviam sido derrotados pelo papa e pela casa de França; da família não sobrevivera um varão; as heresias eram perseguidas por um tribunal regular em estreita dependência do palácio de Latrão, cujo poder se renovara desse modo de forma excepcional; a casa de França enriquecera grosso com a ocupação dos territórios a Sul. Parecia impossível que alguém na Europa ousasse fazer frente ao novo eixo militar-religioso, que se desenhara entre Paris e Roma. Eis então que levantam a crista, lá numa ponta da Ibéria, os anões da Catalunha a planear a tomada de Palermo e de Nápoles, a expansão para La Valeta, o domínio do Mediterrâneo central e oriental, a prossecução das cruzadas moribundas, ao modo daquilo que o grande Frederico II fizera no tempo dos Aiúbidas do Cairo. Foi um desafio atrevido e desmedido, a fazer lembrar a desproporção – mas também a esperteza – de David diante do gigante filisteu.

Regressemos ao paço de Barcelona, onde começavam os preparativos da partida de Isabel. Escolheu-se uma casa muito vasta para viajar com ela; tanto lá enfileiravam as cuvilheiras do círculo da princesa, como Vataça Lascaris, a menina que fizera toda a primeira formação com ela, como os homens do pai, alguns saídos do anel siciliano no exílio, que iam como cavaleiros, criados e até clérigos da casa da futura rainha. Faziam de batedores da coroa de Aragão; na eventualidade de desastre, adiantavam-se na tarefa de alisar Portugal a refúgio seco e seguro para aragoneses e catalães. Era séquito largo, a perder de vista, com centenas e centenas de mulas e muitas dezenas de andas. Pelo menos umas cento e cinquenta pessoas acompanhavam Isabel de Aragão, entre a casa que levava, a guarda e os servos. Ia ali um enxoval de princesa, como se percebe, mas ia também, em caso torto, uma empresa para mudar um reino inteiro.

À despedida, momentos antes da partida, ainda em Barcelona, hesitou Isabel sobre a vida em que se via envolvida. Era menina para treze anos, muito espigada para a idade, olhos frios e azuis, pensamento cauteloso e ingénuo. Sabia, desde antiga conversa com o avô, que as perguntas que levantava não colhiam resposta, pelo menos exterior. A oração, a caridade, o trabalho manual eram mina pessoal; a bem dizer tinha medo de perder na agitação do mundo, viscosa como lodo, o pouco de tranquilidade que desvelara. Continuava a alimentar uma linha de pobres, a sustentar as gafarias de Barcelona, a proteger dois casais de cegos. Talvez a sua vocação fosse ficar por aí, na sombra do rei. Nesse momento chegou a pensar desistir daquele casamento, pedindo ao pai que a conservasse junto dele, como o avô fizera; tudo o que pedia era recolhimento. Chegou a falar a Vataça no assunto, que encontrou metida em idêntico dilema.

Veio-lhe porém rebate do pensamento, com a aventura em que a coroa de Aragão estava metida. Se não tinha pecha doméstica, herdada da mãe, tinha pelo menos o sentido da História do reino em que vivia.

– Sou princesa da coroa de Aragão e tenho por mim uma missão no delicado enredo em que todos andam – acabou por confessar à amiga.

Aceitou pois a partida para Portugal em nome do projecto gibelino do pai. Casava com o jovem Dinis, para servir Aragão e Catalunha. O laço moral que a ligava aos interesses do grupo próximo – pais e irmãos – sobrepôs-se ao horror do mundo, que lhe era ingénito.

Mas a relação entre a responsabilidade moral que Isabel sentia pelos interesses dos próximos e a natureza ínsita que a puxava para a solidão não se solucionou por inteiro com esta aceitação. Ela veio para Portugal como elo missionante dum projecto administrativo e espiritual, que era advogado pela família próxima, mas nunca esqueceu a consciência que tinha do horror e até as suspeitas de que a intervenção no mundo podia agravar esse horror. De qualquer modo, tendo em atenção uma carta da futura rainha de Portugal ao irmão Jaime, então rei da confederação aragonesa-catalã, em que agradece a Deus os mouros que ele desbaratou na Andaluzia, é de acreditar que a solidariedade que a ligava à família era superior ao seu sofrimento pessoal.

Neste interim, enquanto esperava a viagem para as terras do poente, notou Isabel o primeiro mênstruo. Não se admire o leitor desta afirmação. Isabel de Aragão, antes de ser santa romana, foi menina e moça e cumpriu o que as outras cumprem. Teve dois filhos e foi casada durante mais de quarenta anos. Cabe por isso segui-la nestes transes da vida como em todos os mais. Não se pode fazer o romance de Isabel de Aragão, como de resto de qualquer santa, sem falar da sua vida sexual e perceber o que nela isso foi. Não é gosto de provocação da minha parte; é exigência de viver com a minha personagem em tudo aquilo que foi a sua existência humana. E esta Isabel de Aragão casou, teve filhos, tratou do mênstruo e alguma vez tomou contacto com o processo da procriação humana.

Há meses que Berengária a inquiria discretamente de sinais estranhos, mas ela dava sempre a mesma resposta.

– Nada sei do que perguntas!

Dada a natural repulsa pelo corpo, a higiene de Isabel estava reduzida às mãos e à cara. Para bem dizer nunca se vira nua, pois era na escuridão que mudava os pano interiores de alcaz, que tanto se prestavam para protecção do brial e do manto de lã que sempre usava durante o dia como lhe serviam para dormir à noite no almadraque. Por esse motivo só tarde se apercebeu do fio menstrual. Quando se notou manchada ganhou medo. Andou dois dias em aflição, sem saber o que fazer com aquelas rosas que lhe manchavam a seda clara. Tinha sangue de mais para não se afligir e de menos para correr à procura dum físico.

Berengária, suspicaz, notou-lhe a preocupação e voltou a inquiri-la. Desta vez a resposta veio diferente.

– As entranhas desfazem-se em sangue, boa ama – gemeu.

Logo a cuvilheira a mandou deitar no estrado para a observar.

– Melhor vinha um físico para me ver… – reagiu a princesa a medo.

– Isto não são assuntos para físicos, donzela. Deixai comigo.

Depois demorou-se em explicações, dando-lhe as indicações sobre o ciclo do mênstruo e as protecções que era mister haver na ocasião. Berengária, picada pelo rei e pelos físicos, condimentou tudo com os rudimentos da ciência amorosa, entre homem e mulher.

– Quis Deus que assim se fizesse a vida – rematou ela.

Nesse instante abeberou Isabel as primeiras noções da presteza sexual. Foi surpresa e revelação que a deixou hesitante. Em silêncio, sem saber o que perguntar ou dizer, recordou Isabel diante de Berengária as inexplicáveis condenações da expulsão do Paraíso. Aventava-se à mulher: multiplicabo aerumnas tuas, et conceptus tuos: in dolore paries filios, et sub viri potestate eris, et ipsi dominabitur tui. Lera e ouvira vezes sem conta a passagem, mas nunca lhe ligara. Só agora, diante das frases simples de Berengária, percebia o sentido dessas palavras. Escapara-lhe até aí quanto aquilo era consigo.

Nessa tarde levou-a Berengária ao terreiro para ver o chiqueiro das galinhas.

– Nunca viu o galo a pular para cima das costas da galinha e a bicar o pescoço? Pois veja! É assim que tudo se passa entre varão e fêmea.

Depois passaram as duas pelos canis, onde a cuvilheira mostrou à princesa as cadelas no cio e a forma como os cães as montavam. Levou-a depois ao jardim a observar a germinação das sementes e a multiplicação de certas plantas por estaca ou enxertia. Por fim acabaram nas cocheiras as duas, com Berengária a pedir atenção para o cio das éguas e a padreação dos cavalos. Este naturalismo, que esteve na base da formação sexual de Isabel, só choca quem não conhece a corte de Pedro III e as teorias higienistas de Arnaldo de Vilanova; tomando contacto com a obra deste médico, percebemos que o itinerário escolhido pela cuvilheira não é disparatado. Ainda assim, não podemos aceitar que o tirocínio que deram à jovem princesa neste domínio se ficasse por uma visita despreocupada aos canis, aos viveiros do pomar e às estrebarias. A corte de Pedro de Aragão não era ainda uma Politécnica oitocentista, nem a obra de Villanova um curso de ciência positiva.

Por isso, nessa noite, antes de se deitar, Isabel tinha à sua espera o círculo de mestres, liderado pelo mercedário Pedro Serra, para lhe falar da sublimação amorosa dum acto animal. Não se concebe outro modo numa corte europeia do século XIII. Nessa sublimação tanto entrava o elo moral que ligava a princesa aos interesses do pai, como a disposição em dar muitos herdeiros ao reino que a recebia como rainha.

O choque que estes acontecimentos produziram no espírito da infanta foi imenso. Mal se viu sozinha sentiu-se ferida com rijeza por tudo o que sucedera. Nessa noite voltou a não dormir. A impressão era tão crua como a constatação da morte uns anos antes. Revolvia-se a pensar nas palavras da cuvilheira e nas imagens animais. Recordava então o jeito com que isso acontecera e sentia o travo daquele desgosto moral que já antes conhecera, na primeira idade, quando se dera conta, no pátio do paço e numa praça de Barcelona, da morte e da miséria.

A falta de interesse que até aí tivera pelo assunto da procriação, ou até pelo canto do amor, em que a corte do avô fora useira e vezeira, prova a pouca apetência de Isabel de Aragão por tudo o que tocasse a sensualidade. Não podia ser doutro modo em donzela que desenvolvera um asco pelo corpo e se recusara sempre a encarar a nudez. As preocupações pessoais da infanta eram de outra ordem e revelavam uma sisudez que era vigorosa por ser assumida de livre vontade; a gravidade da sua vida correspondia a uma propensão interior, não a uma imposição exterior. As suas inclinações, desenvolvidas no torvelinho da observação, estavam na oração, no trabalho manual e no impulso do amor caridoso pelos que sofriam. Acrescentou a isto, com a requesta de Dinis, o projecto gibelino da família, que fez seu. Atendendo a este lastro, é possível que a revelação do amor sexual entre homem e mulher, como base da união e do crescimento da família, tivesse para ela uma importância menor ou constituísse mesmo um problema que por precaução decidiu adiar. De qualquer modo, com o contrato de casamento com o rei português e com os preparativos da partida, Isabel atingiu a maioridade; tudo o que viveu a partir daí foi o desenvolvimento daquilo que já tinha ou a aplicação daquilo que já conhecia.

Neste ponto uma única preocupação subsistia nos assuntos da princesa por resolver: os pobres que havia a cargo seu em Barcelona. Hesitara sempre Isabel que fazer: não se sentia capaz de os levar consigo para terra tão distante, menos ainda de os abandonar de novo nas ruas de Barcelona. Acabou por acertar com o irmão Jaime uma saída: o infante mantinha-os no paço, fazendo o que faziam, tirando o pago das despesas da renda de sua casa. E ao cuidado de Jaime ficaram outrossim as cuvilheiras velhas de Isabel, entre elas Berengária e Sancha, que não sentiam forças nem ânimo para voltarem costas ao paço de Jaime I, em Barcelona, onde sempre haviam feito vida.

Chegou por fim o momento da viagem para Portugal. Escolhera-se o trajecto por terra, por parecer mais seguro; era como se Sancho IV tivesse o governo das terras e Afonso X o do mar. O rei levou-a até Tortosa, nas margens do Ebro. Aí se despediram os dois, pai e filha. Ele ia embarcar, ali ao lado, na armada que estava pronta para se lançar sobre a Sicília; ela estava de partida para a grande viagem da vida, tornando-se rainha e senhora.

– Filha, saberás reinar, sem mim.

– Senhor, valei-me sempre com o vosso conselho.

Foram as últimas palavras que disseram um ao outro; nunca mais se viram. O rei pouco passava dos quarenta anos. Morria poucos anos depois, com reputação firme e no acume da glória. Reconquistara a Sicília, ocupara Malta, lançara a expansão na costa africana, parara a contra-ofensiva do papa, destroçara a cruzada do rei de França. Ela por sua vez tinha diante de si uma longa vida. Era menina de treze anos, alta e ossuda; quem lhe tirasse os palmos do corpo pelo que dele se via no manto de lã, aventaria que ali seguia dona feita e sabida. Regressou uma única vez à terra natal, no reinado do irmão Jaime, já o pai e o irmão mais velho, Afonso III, haviam deixado este mundo. E foi tudo, que o resto é já outro torrão e outra história.

Há duas Isabéis: a que viveu em Aragão doze ou treze anos e a que esteve em Portugal mais de cinquenta. A primeira é uma gelha, enquanto a segunda tem estatura e porte de árvore monumental. E no entanto sem Barcelona, o castanheiro venerável da História portuguesa não passaria dum modesto arbusto de poucos palmos. Quem se lembra hoje da segunda esposa do pai de Dinis? E quem conhece Mécia Lopes de Haro, esposa do tio de Dinis, o infeliz Sancho II? E quem sabe soletrar o nome da esposa do avô, Afonso II? Ninguém! Todavia todas elas foram rainhas de Portugal, como Isabel de Aragão. Faltou-lhes porém Barcelona, quer dizer, careceram elas dum projecto administrativo e espiritual magnetizante, capaz de revolver as entranhas do país, refazendo-o por dentro e dando-lhe outro córrego para correr. Foi isso que Isabel de Aragão fez, tornando-se na primeira rainha portuguesa que de si deixou memória. Todos lhe conhecem o nome; todos a identificam ainda hoje, mais de setecentos anos depois, como rainha de Portugal! Talvez não haja em Portugal nenhuma outra mulher que lhe leve a palma em popularidade. Basta isto para se perceber a importância do gibelinismo na formação e na acção de Isabel de Aragão. Sem esse quadro político, que vem dos conflitos com o papado, a sexta rainha de Portugal não seria mais conhecida que Urraca de Castela, esposa de Afonso II.

A viagem foi demorada, mas Isabel deu pouco pelos incómodos. Seguia fechada em churrião coberto, na companhia da princesa grega e de três outras meninas da sua habitual companhia, Isabel de Cardona, Ximenes Cornel e Marquesa Rodrigues, sua irmã colaça. Passavam os dias a ensartar contas e a broslar tecido que seria usado nas festas da recepção em Portugal. De quando em quando uma delas chegava-se às cortinas do carro e espreitava o exterior.

– Que árido! Que deserto! – exclamava sem variação.

Sentiam-se despatriadas naquela paisagem glabra, onde só de quando em quando, no alto duma penha, avistavam um castelo roqueiro. Atravessavam Castela-a-Velha pela linha do Douro, numa curta recta, de modo a entrarem em Portugal pela província de Trás-os-Montes. Portugal era ainda o reino de Sancho I. Tratava-se dum valhacouto no fim do mundo, onde as igrejas andavam por ordem do papa fechadas, se bem que o rei tivesse os bispos que quisesse para celebrar. Na verdade a notícia que havia  era que o país vinha até ao Mondego ou, quanto muito, ao Tejo, com meia-dúzia de cidades que saltavam para fora da alcáçova militar: Braga, Guimarães, Porto, Coimbra, Leiria e Lisboa; o restante eram castelos empoleirados num cucuruto e rodeados de brenhas selvagens ou charnecas despovoadas, ainda fora da alçada real.

Também a rainha portuguesa abria os panos do churrião para espreitar a paisagem envolvente. Era o pedregal adusto que lhe entrava pelos olhos  e lhe vinha remexer a alma. – Para onde vou? O que me espera? Que devo fazer? – Tantas eram as perguntas que dava por si a fazer diante da desolação pardacenta, onde os milhafres piavam sinistramente à luz do Sol e os lobos famélicos uivavam à noite. A Primavera esplendia no céu azul, mas na terra não se via, por mais humilde, brilhar uma flor vistosa. Às vezes, entre as pedras escuras, avistava uma fortaleza. Ao longe a construção parecia fechada e muda; depois à medida que o churrião se aproximava, percebia-se que no adarve se especava uma mole de gente, a acenar, a apontar, a cabriolar. À passagem do carro da rainha, assinalado com o gonfalão real de Aragão, subiam nas torres albarrãs pendões de paz, garridos e leves, que ficavam a ondular com voluptuosidade na brisa de Junho. A província tomara voz pelo infante, contra o rei velho, e por isso todos festejavam o cortejo, com o balsão rebelde por diante e guiado por um dos irmãos de confiança do futuro Sancho IV.

Regressava Isabel ao interior do carro e punha-se em silêncio a enfiar contas de vidro. Procurava concentrar-se no trabalho mas depressa as ideias lhe voavam para as interrogações do porvir. À noite vinham-lhe as imagens do dia, em primeiro lugar algum milhafre austero que se aproximara da caravana aos pios desabridos e depois as gentes que se amontoavam nos adarves, a acenar, debaixo dos pendões festivos que bailavam na brisa. Nesses momentos punha o pensamento no velho rei de Castela, retirado para Sevilha e batido pelo filho. Experimentava então o desgosto da vida, cujo paladar azedo conhecia bem. Suportava a amargura, como suportava de resto viver, com o laço que a ligava à família; sem ele, teria querido voltar para trás como teria porventura desejado o suicídio. E isto não é catarismo, mas tão-só inclinação duma alma fria que viu a luz num dia cinzento e glacial de Fevereiro.

Uma manhã, em que Vataça descerrara as cortinas para deitar os olhos ao exterior, ouviu-se um cavaleiro exclamar:

– Vede, senhora! Já estamos no reino de Portugal.

Precipitaram-se as meninas para o revelim do churrião, à procura da novidade. Por um instante tudo lhes pareceu igual. As mesmas brenhas, os mesmos penhascos escuros, a mesma desolação de pedra negra e Sol escaldante.

Mas depois, à medida que as mulas avançavam, o plaino pareceu ganhar cor e viço. Viam-se tufos de verdura, com florinhas rasteiras no meio, campainhando no ar a cor caprichosa – branco, vermelho, lilás ou azul. Aqui e ali aparecia um casebre de pedra e colmo, com um fio negro de fumo a coar-se na névoa esgarça do ar. De seguida surgiram pessoas nos caminhos, umas especadas, acenando ao préstito que passava, outras apressadas, dando conta de afazeres. Velhas sentadas na beira do caminho, em cima dalguma pedra, punham de lado a roca e a estriga de linho, para olharem com pasmo aquele desfilar de andas, mulas, besteiros e cavaleiros. Zagais de pano de burel atado com corda de esparto ao tronco largavam a correr pelos corgos e vinham espetar-se na passagem, batendo palmas, abrindo a boca num sorriso rasgado e dando aos cavalos e às mulas hastes verdes e tenras de funcho.

– Gente! Gente! – exclamou com alívio e agrado Isabel de Cardona, uma das meninas que com a infanta vinha e que com ela tinha parentesco próximo.

Procurou a princesa com os olhos tirar as medidas a quem via. À primeira não lhe pareceu notar diferenças entre os pobres diabos que ali se perfilavam e o mundo que se contorcia de dor e agonia nas estreitas ruas do barri gòtic; a mesma massa informe de carne, picada de febre e fome. Mas atentando no pormenor, notava dissemelhanças. Os olhos duns dormiam em sonolência de névoa e álcool, enquanto os dos outros esquinavam lume; os primeiros esperavam, os segundos desejavam. Havia no portucalense um ar bronco, inútil, atónico, nulo, que contrastava com a vitalidade, a pressa, a determinação que conhecia no catalão. Até o ar que ali ondulava parecia desbotado, quando arrostado com o hálito cristalino que se filtrava nos cerros frios da Catalunha.

Eis a primeira impressão de Isabel sobre Portugal. Não teve nenhuma revelação particular sobre o reino que a recebia; recorreu à experiência que lhe era própria para tentar aferir da terra em que entrava como rainha e princesa de Aragão. E nesse contraste deu-se conta que a terra parecia dormente e parada.

Chegaram a Bragança pouco depois. Foi a primeira paragem em terra portuguesa. Lá os esperavam os homens do rei de Portugal. Descansaram as bestas e regressaram os homens de Sancho IV ao interior da meseta. Bateu pouco depois o préstito para Trancoso, na Beira, onde o esperava a corte. O balsão que agora seguia adiante era o do rei de Portugal e quem o levava era o conde velho, Gonçalo de Sousa, alferes-mor do rei e ainda seu parente. A seu lado, seguro e altivo, seguia o irmão de Dinis, Afonso, congraçado por ora com o rei depois das tropelias de Castelo Vide, da fuga para Sevilha, para junto de Afonso X, seu avô, e doutras desobediências várias.

Foi o troço mais penoso de fazer para a jovem rainha, apesar da ledice que para ela foi a reconciliação dos dois irmãos. Estava incapaz de se concentrar no fio ou no broslado. Qualquer ruído a inquietava, obrigando a levantar-se. Corria então às cortinas do carro, à procura de vislumbrar o que se passava lá por fora. Matas espessas de carvalho alinhavam-se agora ao lado carro; os cerros de pedra estavam ameados de gente, que acenava com panos de burel furado ou toucas de lã. Olhando matas e gente, confirmava a impressão que tivera há pouco; a gente envolvia-se em torpor e a paisagem, dormente e enevoada, carecia da limpidez que conhecera no levante.

Vinham-lhe ao espírito as perguntas que lhe remexiam a alma. – Para onde vou? Que acontecerá? Que farei? Quem me espera? – Ficava ainda um instante recolhida à cortina, agachada, de olhos cerrados. Na verdade tudo o que desejava era que nada daquilo existisse. Naqueles momentos tudo teria dado para poder estar na ala do paço de Barcelona, broslando e ensartando em silêncio descuidado, atendo nas despesas do dia aos pobres que tomara a cargo e tomando nota dos víveres que deviam seguir para as gafarias dos cerros de Collserola. Vinha então do interior do carro a voz mansa de Vataça ou de Isabel de Cardona, chamando-a para o seu lado.

– Vinde, senhora! Sentai-vos connosco.

Regressava ao interior do carro e voltava a pegar nas contas e no fio. Por um instante ensaiava aplicar-se, com as restantes donzelas, no trabalho de mãos. Mas não tardava que o desassossego regressasse e ela se pusesse à escuta dos ruídos que lá fora serravam o silêncio.

Pobre Isabel! Estavas tão inquieta na tua chegada a Portugal. Tinhas treze anos, eras rainha, vinhas casada, pesava sobre ti a responsabilidade de dares ao reino um herdeiro masculino. Pior do que isso, sabias que o teu pai rumava a Palermo nesse mesmo instante para se coroar rei da Sicília e que tu eras o derradeiro recurso em caso de desastre. Tremias de medo e de preocupação! Pelo meu lado estou muito contente por te ver em Portugal; também eu saio a caminho para te saudar, Rosa de Aragão. Trouxeste para Portugal as ideias do franciscanismo espiritual de Gerardo de San Donino e de Villanova. Bastou isto para Mário Cesariny te homenagear com as tintas, vendo em ti uma figura perene. E basta também para eu te dar as boas-vindas e te desejar uma longa vida entre nós.

Em Trancoso a corte aguardava o préstito das andas. As meninas mal viram as muralhas escuras da povoação saltaram a terra para deitar os olhos ao arraial da corte que se estendia pelo vasto terreiro de entrada. Era uma outra povoação com pagens passando com baixelas repletas de iguarias, curadores dando ordens, vivandeiras bordando colgaduras, menestréis afinando alaúdes, servos arrumando cabeças de gado, azeméis alisando o pêlo das bestas e o fumo negro das fogueiras onde tostavam no espeto vacas inteiras.

A rainha ficou protegida no interior do carro, à espera que o alferes-mor a viesse buscar com a guarda para a levar à presença do rei. Mas quem apareceu para surpresa de todos foi o próprio rei. Era um moço garboso, de rosto cheio, onde rutilavam dois olhos cor de mel, luminosos e serenos, e se abriam, bem desenhados, dois lábios vermelhos e carnudos. A barba, ainda rala e de pêlo fresco, deixava adivinhar a pouca idade. Foi ele que a ajudou com cuidado extremo a descer do churrião e a levou pela mão enluvada a passear primeiro pelo arraial empavesado e depois pelas quelhas apertadas da vila. Mostrava-se duma fineza inexcedível e via-se que a primeira impressão que tivera da menina era muito do seu agrado. Além de rei, era trovador e sabia cantar a cortesia e as leis de amor; tinha para si que havia de cantar com voz tão pura como a do avô de Castela. Agora que apanhava a seu lado uma donzela chegada de Aragão, berço da cortesia, ainda por cima sua esposa, não queria perder a ocasião de se mostrar uma alma de poeta.

Foi depois com ela à igreja de S. Bartolomeu confirmar as palavras de presente da cerimónia realizada na corte de Barcelona no ano anterior. As igrejas portucalenses andavam fechadas por ordem do papa mas o rei tinha as chaves de todas elas. Quando precisava puxava do chaveiro e abria as portas. Se tinha bispo por perto servia-se dele; se não havia era capaz de fazer um, como acontecera ao avô de seu avô, pai fundador do reino em Santa Cruz, quando despachou a pontapé o cardeal legado e sagrou bispo seu na Sé velha de Coimbra, para mais negro e clérigo de nome simples, Martinho. Não era que o rei português fosse um gibelino descarado como acontecia ao sogro, Pedro III, mas era com certeza neto de neto de Afonso Henriques. Também a nova rainha portuguesa pouco se dava de cultos e menos ainda de cultos em igrejas excomungadas pelo papa, como acontecia nesse ano nas igrejas de Dinis. Muitos dos homens que a rodearam na primeira fase da sua vida andavam fora da comunhão dos fiéis e um dos mestres, Arnaldo de Vilanova, tocado pelas ideias joaquimitas do franciscanismo espiritual, desvalorizava a missa litúrgica no templo, em que via apenas um sinal inútil de ancilose. A fracção do pão, instituída na derradeira ceia, tão natural como um repasto limpo em família, adoptada depois na primeira igreja de Jerusalém, não se confundia com a eucaristia romana, assente em ritual mecânico e ofuscante. Este fundo herético da formação de Isabel de Aragão é que faz o interesse e a actualidade da sua figura.

Mal a cerimónia religiosa acabou e antes mesmo das bodas, com jogos de armas, trovas de menestréis, cabriolas de bobos, fez o rei questão de chamar o escrivão-mor à sacristia da igreja para ali se aditar nova doação à escritura ante-nupcial, pela qual doara à rainha Óbidos, Abrantes e Porto de Mós, com todas as rendas, e ainda doze castelos. Pelo cuidado dessa escritura, a primeira que assim se fizera no reino, pretendera mostrar quanto lhe agradava uma aliança com Aragão; agora, no momento do recebimento, estava desejoso de se mostrar liberal com a esposa, por aí dando a entender quanto o satisfazia a menina que lhe mandavam. Por isso ali fez, com os sinos a repicarem de alegria e o coração desafogado, escritura de doação de Trancoso à rainha em memória do primeiro momento em que os dois se haviam encarado cara a cara.

As bodas entraram pela noite dentro; era dia de S. João e todo o serviçal estava convidado a comer rosca de pão com carne do espeto, beber vinho da tina e bailar de bordão na mão à volta das fogueiras. Quando o rei decidiu recolher, pediu à esposa para o acompanhar. A menina mostrou-se incomodada e timorata, mas não se atreveu a contrariar a vontade do rei seu senhor. Não esquecia as palavras que lhe vieram ao espírito quando Berengária lhe falara do fluxo menstrual e lhe dera indicações de protecção e higiene. Et sub viri potestate eris, et ipse dominabitur tui. Deitou um olhar aflito a Bataça, que lhe respondeu com a mesma aflição, e percebeu que o mercedário Pedro Serra se levantara para dar recado ao rei de Portugal. Aguardou, agradeceu depois com os olhos ao frade e seguiu o rei, de olhos baixos e face afogueada.

Recebeu-a o rei na tenda central do arraial, onde tinha uma câmara de repouso e uma sala decorada com atabales e arcos da altura dum homem, para o exercício da justiça e da administração. Aí a sentou num banco de braços, sem encosto, ao pé dum castiçal, onde ardiam dois grossos brandões de cera.

– Senhora, muito me praz ver vosso rosto tão branco como a neve à luz do Sol.

– Senhor, não sei o que dizeis…

– Prometo que vos canto um dia uma trova eterna. Desconheceis também?

– Não cuido de trovas, senhor.

– Que estranheza! Não vindes vós do berço do cantar de mesura?

– Cuido que sim.

– Sabei então que vos posso amar com um amor mais forte do que aquele que ligou Tristão a Isolda.

– Senhor!…

– Chorais agora?

– Perdoai! Perdoai… a ofensa

– Sois uma criança. Bem mo dizia o mercedário…

Acompanhou-a depois à tenda do arraial, sorriso guloso nos lábios roliços e sensuais, dando-lhe a mão enluvada. De vez em vez, apertava com os dedos na carneira da luva a carne da esposa, convencido que assim lhe dava um sinal de agrado. Isabel deixava fazer, sem saber muito bem o que aquela electricidade lhe transmitia.

Esta história é também um conto de amor. Dinis era um coração cheio e Isabel uma mancha branca, onde se semeavam as pétalas de rosa do seu rubor. Ele tinha vinte anos e ela treze ou quatorze. Que bela idade para uma paixão! Não nos admiremos pois do enlevo de Dinis e da hesitação mimosa de Isabel. Mas desde já se diz que a história de amor que aqui se partureja não é feliz. Se for comparada à de Isabel da Hungria, que correu na Turíngia atrás duma paixão carnal, faz figura atarracada. E histórias de amor sem paixão carnal não interessam de hábito, pois são falsas. Ainda assim esta história portuguesa se não tem a paixão da tudesca, ou a tem numa dose irrisória, mostra os mesmos prodígios. Isso lhe basta para merecer atenção. E por isso António Patrício a pintou tão trémula e intensa.

No dia seguinte mudou-se a corte para a alcáçova do castelo. À tarde, depois do jantar, no momento da sesta, apareceu o rei na câmara da rainha para tomar nota da instalação da esposa. Vinha descansado e aparatoso; nada de pedidos, nada de dissimulações, nada de ânsias. Tudo o queria era dizer umas facécias e mostrar a liberalidade.

Ficou a corte por Trancoso cerca dum mês. O rei decidira que depois de viagem tão demorada e custosa o préstito precisava de aliviar a alma e desempoeirar o corpo. Aproveitou a rainha para sondar com as camareiras as vielas da vila. Era lugar acanhado, que lhe lembrava os castelinhos no caminho que corria de Plobete a Lérida, com servos e colonos a revolver a pedra escalvada do granito, à espera de tirar uns bagos de centeio. Os mesteirais eram raros; tirando uma estreita quelha junto do adarve leste, onde abriam correeiros, ferreiros e alfaiates, nenhum outro ofício se via no novelo do povoado. Alguns almocreves batiam o arruado com pregões altos para mostrar a mercancia mesquinha. A gente era fouveira e arrediça; as mulheres tinham no rosto uma nuvem negra e as crianças, assustadiças e solitárias, quando se deixavam ver, corriam a quatro patas como cães famélicos e malhadiços.

Depois explorou a rainha em pequenas expedições os arrabaldes do povoado. Saía com o círculo logo depois da hora prima, quando o Sol se levantava e o primeiro zunido dos bichos de Verão se punha a retinir nos campos secos. Alguns casais em pedra e colmo ao pé de ferragiais cultivados desde os tempos do primeiro imperador de Roma era tudo o que se via. Mulheres de negro espadelavam na eira o linho ou tiravam o fio da madeixa da roca debaixo dalgum castanheiro. Cobriam-se de pano negro, passando o xaile pela cabeça e deixando à mostra dois olhinhos negros e vivos. Mal davam conta do cortejo da rainha largavam a espadela na eira ou metiam à cintura a roca e a estriga e debandavam para dentro de casa sem nada dizer. Mais raro era ver-se entre as sombras aveludadas dum souto uma moça nova, descalça e de cântaro à cabeça. Os homens, em brial de estopa, pedaços de burel atados nas canelas, chapelão esburacado de palha, andavam na ferrã a segar gramínea. Quando se apercebiam da presença do magote das meninas, ladeado pelos peões do rei, endireitavam por um momento o busto esquelético, passavam as costas da mão ossuda no suor da testa, miravam com curiosidade os trajes leves de seda que as visitantes vestiam, faziam uma ligeira saudação destapando a cabeça branca e retomavam o trabalho de lançar por terra as braçadas do centeio maduro.

No regresso, andrajosos pedintes, mais fedorentos que furões dos cerros, enxameavam os atalhos fronteiros à muralha; de tão medrosos nem se atreviam a estender a mão para a esmola. Punham-se em fuga desordenada, atropelando-se uns aos outros, com receio de serem maltratados pelos peões do rei. Em certos recantos da muralha, onde o Sol não penetrava, abrigavam-se cachos de cegos, catando as grenhas mais bastas que capim selvagem.

No fim dalguns dias daquele passeio às primeiras horas de luz, deu a rainha em entristecer. Inquiriu-a Vataça.

– Esta gente, além de muda, é a mais mesquinha que até aqui vi – respondeu ela.

Nunca vira de feito tanta miséria! A fome parecia ratar a magreza daquela gente. Tudo eram pedras e ossos. Um traço barbaresco cicatrizava aquela terra. Os lugares tinham bruteza rude e as pessoas uma cisma escura. Até as crianças fugiam a quatro patas. Por vezes uma carcassa humana ficava a apodrecer dias à beira dos caminhos sem que ninguém pensasse dar-lhe sepultura no adro duma igreja. Corvos negros vinham saltitar em cima do arcaboiço do defunto, dando-lhe bicadas de instante a instante. Quando a rainha perguntou ao alferes-mor que reino era aquele, em que os mortos ficavam a apodrecer à vista das muralhas duma povoação, este respondeu-lhe com os olhos abertos de pasmo:

– Senhora isto hoje é coisa mansa de viver. Havíeis de ver o que eram estes caminhos no tempo del-rei Sancho, tio del-rei nosso senhor… Nem um cristão armado de pique podia andar por eles.

E ficou-se por ali. Mas bastaram essas palavras para a rainha entender que o reino vivera há pouco convulsão atroz, de aparato grande e estragos infindáveis.

Aproveitou então Isabel as primeiras rendas que o tesoureiro da corte veio entregar para manutenção de sua casa, para escolher dez crianças e dez idosas para alimentar. Todos os dias, depois do ofício de vésperas, vinha a mole de gente à alcáçova com a escudela de madeira para se meter na cozinha e rapar o tacho. Ao mesmo tempo que isto assim ia, apalavrou a rainha três ou quatro couteiros para limparem as matas em redor da povoação, dando sepultura aos pobres que por lá apodreciam de corpo nu ao léu. Foi a primeira obra da rainha no seu novo reino e nada desprezível foi ela. Se tomarmos a civilização pela limpeza, ainda hoje, mais de setecentos anos depois, estamos à espera de aprender com o exemplo da rainha.

O rei manteve-se habilidoso e distante, fazendo o seu papel de senhor liberal. Vinha à hora noa, depois da sesta, passar pela câmara da rainha para se inteirar do seu estado. Por vezes falava apenas com as cuvilheiras, não estranhando sequer a ausência da rainha; outras pedia com insistência a sua presença. Quando ela chegava, genuflectia com ar teatral, levava a palma da mão direita ao peito e punha os olhos no chão em sinal de humildade. Isabel tremia ligeiramente diante daquele gesto tão cortês e afogueava de calores por se ver assim cortejada.

– Sois vós o rei, senhor! Levantai-vos! – pedia ela, voz sumida.

Ele, depois de se levantar, puxava do bolso do gibão um leço de seda, um fio de oiro, um broche de prata ou até uma pedra preciosa, mais vermelha que carbúnculo, que lhe punha nas mãos como presente. Logo depois retirava-se com um sorriso de graça como se nada mais fosse mister para andar de bem neste vale de dores. Era poeta e namorado e tanto bastava ao que figurava para se dar por feliz.

Chegou por fim o momento de deixarem a alcáçova de Trancoso. Desta vez em lugar duma caravana de azémolas e andas de jornada, capaz de atravessar com argúcia toda a vasta meseta da Península, centenas de léguas de pedra e escórias, seguia o préstito real português, preguiçoso e sonolento, pronto a deitar estendal em qualquer sombra do caminho. Só na Guarda, poucos palmos abaixo de Trancoso, o arraial estacou por mês e meio. O rei, fresco ainda no mester de reinar, à espera ainda de completar vinte aninhos, precisava de se fazer conhecer nos povoados e dar ao respeito dos alcaides dos castelos. A desordem em que o reino andara três ou quatro décadas antes era um espectro inda vivo, tanto mais ameaçador quanto o irmão do novo rei, Afonso, era revel e as dissensões em Castela, fracturando o reino entre pai e filho, criavam situações propícias à divisão civil.

No meado de Outubro avistaram a cerca do mosteiro de Celas, nos arrabaldes de Coimbra, a capital do reino, onde Dinis tinha o primeiro paço e onde dava por certos enlevos futuros, de muita excitação, com a menina que levava consigo. Celas era um emblema da história daquele tempo. Já Santa Cruz, na parte baixa da cidade, se mancomunara ao filho contumaz de Teresa para fundar o reino, quando uma menina da corte, filha do primeira Sancho, se afastou gravemente das muralhas de Coimbra e numa clareira da floresta decidiu fundar um mosteiro com a regra de Cister e nele tomar hábito. Assim nascera o mosteiro de Celas, que era agora, duas gerações depois, o galardão vistoso da Coimbra nova. Tornara-se até capricho as famílias dos foreiros e dos mesteirais virem jornadear de farnel, nos dias da vindima, até à cerca das religiosas.

Espantou-se a rainha com Coimbra. Para capital faltava-lhe a copa frondosa de Barcelona, com um labirinto tão grande de praças e de ruas que nem do mar – tão longe ele parecia ficar de Montjuich – se conseguia agora lembrar por mais voltas que desse ao pensamento; mas para aldeia, ou castelinho de torres albarrãs, como Guarda ou Viseu, onde estivera dias antes, tinha a menos a bruteza e a escuridão. Uma suavidade doce, uma luz de oiro e mel, parecia irradiar das pedras da cidade e tocar o céu, mais anil que a safira polida. Tudo ali era brando, fácil, agradável. Dava gosto respirar o ar apaladado e meigo O rio, visto do miradoiro da alcáçova, era um lago parado de serenidade, com a asa muito branca duma vela desfraldada, no meio das verduras de oiro de Outubro.

Até a gente, embora rocaz e muda, lhe pareceu menos bárbara do que aquela que vira por Bragança, Trancoso, Guarda ou Viseu. Não lhe foi difícil entender que o sangue quente e civilizado do árabe adoçara ali a gente, misturando ao granito escuro a verdura do jardim. A cidade, ao lado de Barcelona, era minúscula, apertada que estava pela correnteza das muralhas que desciam para o rio; ainda assim tinha um semblante merecedor de louvor, com a vetustez da Sé velha, as torres moçárabes da igreja de São Pedro, a porta de Almedina e os ofícios que ficavam na parte baixa da cidade, entre os terreiros areentos que envolviam a igreja de São Tiago e a cerca grande do mosteiro de Santa Cruz, onde a cidade tinha termo.

Não posso deixar de interromper para me congratular com a chegada de Isabel de Aragão a Coimbra. Viu-a pela primeira vez num glorioso dia de Outono, com um Sol esplêndido e uma brisa leve e salgada, levantada a poente. Logo simpatizou com a cidade sem saber que o seu destino se ia decidir no apertado rectângulo traçado pelas suas muralhas. Ou talvez não. O que realmente liga Isabel de Aragão a Coimbra não é uma cerca, mas a necessidade de a saltar. Logo verá o leitor o que quero dizer.

No dia seguinte, antes mesmo de desfazer as arcas que vinham de Barcelona, saltou Isabel com as meninas pelas ruas da cidade à procura de chegar ao rio. Em menos de nada estava na porta de Belcouce, com o rio por diante. Era a parte meridional da cidade, a mais abandonada de todas. Percebia-se que durante anos a chegada à cidade se fizera pelo norte e que o rio servira de fronteira ríspida a dois territórios desconhecidos. Agora, que o reino tinha um só senhor e os mouros andavam forros nos povoados, uma ponte estirava-se tímida entre as duas margens. Ainda assim, um único sinal de vida se via no lado esquerdo do Mondego, uma mole de pedra humilde, que parecia curral ou palheiro. De resto era a desolação total; não se via sinal de vivalma. Apenas a brenha verde doirada – incompreensível de tão espessa – e os cerros altos, azuis, alguns escalvados, que eram com certeza as faldas dalguma serrania que existia para além. E no meio, entre ela e a desolação da paisagem, o rio, mais assustador do que entrevira, a deslizar por dentro, fero e transparente, com peixes longos e revoluteantes como serpes. Duas ou três chatas de vela e remo descansavam no meio das águas, onde uma ilhota enigmática de terra barrenta, com uma construção escalavrada no cimo, parecia outrossim apontar que do outro lado do rio nada se queria para medrar e durar.

O contraste com a entrada por Celas, a norte, não podia ser maior, onde casais de pedra e colmo brotavam como tortulhos depois das chuvas. A porta de Belcouce, deitando para o rio, era tão estreita como buraco de agulha. Só por isso alguém lhe chamou porta da Desdoira. Além disso, fortificava-se como barbacã de castelo ameaçado. Ao invés, a porta do Sol, a leste, donde partia a picada para Celas, era larga e andava na luz do dia sempre aberta, com uma mole de gente em passeio ou em trabalho, ao lado de azémolas carregadas de mercancia ou de cabeças de gado que iam ratar erva vadia para os baldios.

O rei usou o mesmo modo que até aí tivera. Parecia nada querer, a não ser, à distância, namorar os olhos da esposa. A princípo vinha às manhãs, pressuroso e inquieto, inquirir como decorria a instalação do rancho. Por vezes as cuvilheiras davam falta dalgum cofrete e queixavam-se ao rei, que de imediato dava ordens que se passasse a limpo a balbúrdia das andas e das carretas que haviam chegado de Aragão. Depois, à medida que a roda se fez ao lugar e se deu o perdido por remediado, passou a vir às tardes, findo o intervalo que se seguia ao jantar, momento de zoeira quente e muita preguiça. Desta vez chegava porém mesureiro como menestrel, sempre pronto a genuflectir, piscando os olhos de forma triste e profunda. Tinha um ar entre o mesto e o mimalho e não havia menina na câmara da rainha que não se eternecesse com a sua figura.

Só Isabel se mantinha afogueada e tímida, balbuciando as palavras atabalhoadas que sempre dizia quando o via joelho em terra, palma destra no coração, beiços grossos a tremer, pronto a soletrar não se sabia que palavra magoada e apaixonada.

– Santa Maria vale! Le-van-tai-vos, se-nhor! Vós sois o rei.

Erguia-se o rei, puxava da oferenda, deixava-a nas mãos de Isabel e retirava-se com uma delicada vénia. Caprichava cada vez mais em regalos vistosos, que faziam a surpresa encantada das aias e o acanhamento de Isabel, que se sentia pouco afeita à sedução. Ainda assim, dentro de si, a sós ou em conversa com Vataça, dava graças a Deus por ter encontrado um Dinis mesureiro, reverencial, trovador, esmerando-se na cortesia e até na distância, e não um cavaleiro procaz e sedento, como alguns que assinalara por Aragão e Catalunha, que dela tivesse tomado posse à bruta na primeira ocasião.

Ganhara também o hábito o rei de vir depois da ceia até ao pátio interior que havia por baixo da janela da rainha. Sob as estrelas frias de Outubro ouviam-se então as notas plangentes dum alaúde, ao mesmo tempo que subia, como do pavio duma tocha, a voz ardente e trémula do rei a desfiar os versos duma trova enamorada.

Eu já disse que esta história é também um conto de amor. Isabel veio virgenzinha para Portugal, com treze ou catorze anos; tinha cá à espera os braços ansiosos dum jovem de dezanove. Estavam as peças dispostas para um conto de ardor e paixão e não sou eu que hei-de negar tal feição à nossa história. Só digo que no amor as penas e os desencontros podem ser mais que as rosas e os momentos felizes. E chega, por agora; mais adiante se verá o que quero significar.

Entretanto chegaram da corte de Aragão os primeiros emissários com as novas da guerra. Pedro III pusera a salvo pé em Palermo e coroara-se rei da Sicília no meio do delírio popular. Os Franceses estavam em fuga para o continente. Catalães e Aragoneses debatiam a expansão para Malta e para a Sardenha. Os exilados sicilianos, fortes do desforço, pediam o escalpe do Anju, que estava acantonado em Nápoles com o resto das tropas, à espera de reforços.

Isabel tirou da alma a inquietação que a picava desde a chegada a Coimbra. Portugal podia ser valhacouto de enfermos e sisudos, mas não seria com certeza refúgio de Catalães mofinos com a derrota. Tirou daí o sentido e respirou de alívio. Rasurava da lista dos horrores o seu pior temor, a necessidade de dar abrigo aos desbotados restos da família. Logo se interessou por estabelecer em bases firmes a sua prática quotidiana. Voltou-lhe o interesse pelo trabalho manual e a oração, as duas ocupações que mais a tocavam. Retomou as obras de caridade e meteu nas traseiras da alcáçova dois casais de cegos, ao modo do que fizera no paço de Barcelona. Todos as matinas pagava do seu bolso a refeição a uma dúzia de pedintes, que vinham com a escudela comer na cozinha dos servos.

Por fim lembrou-se que as brenhas do outro lado do rio deviam estar enxameadas de andrajos e que muitos deviam ser os cadáveres que apodreciam por lombas e caminhos. Mandou vir três mateiros à presença, disposta a pagar o mesmo serviço que mandara fazer nos arrabaldes de Trancoso.

– Descuidai, senhora. Os frades da ponte há muito que se ocupam do serviço – disse o cabeça dos três.

Ficou então a saber que a construção que dias antes lhe parecera um palheiro ou um curral de gado extraviado era um eremitério de frades franciscanos. Apesar de regulares e conventuais, sem mistura de heréticos e espirituais, cujo refinamento de teoria e visões ali não punha cheiro, os frades haviam-se visto em escarmentos e vitupérios para conseguirem deitar fateixa em Coimbra. Os fradinhos de Francisco Bernardone não tiveram a vida facilitada em Portugal, onde os Agostinhos e até os frades brancos de Cister os olharam de soslaio, com medo de retalhar o naco grosso que lhes calhara no prato com a fundação do reino. O clero regular, quando viu os beberrões de burel e pé descalço, acusou-os de embusteiros, ladrões, hereges e até de sodomitas, pois os buracos no burel do hábito eram tantos que até o cu branco se lhes via. Não tivessem eles acatado a ordem de se recolherem em casas conventuais, compondo a grenha e deixando a mendicância dos caminhos, para a qual haviam nascido, e nem sombra deles restaria no tempo de Isabel. Mesmo assim em muitos lugares as construções foram destruídas pelos concorrentes e os fradinhos corridos à pedra esquinada para longe.

Em Coimbra, depois de zaragatas várias no tempo da sublevação contra o tio de Dinis, só na margem esquerda, infestada de ladrões e mendigos, coberta de gafarias e moribundos, os haviam deixado erigir casa. Dizia-se que do lado da cidade já havia Santa Cruz, Celas, São Tiago, São Bartolomeu e todas as outras casas e igrejas que estavam dentro de muralhas.

– Se querem, desandem para os barrocais, a Sul. A ponte há-de servir para alguma coisa, que o Mondego não se atravessa apenas em Montemor  ou nas alpodras de jusante – ordenara severo o abade de Santa Cruz, que a cadeira episcopal da Sé andava nesse tempo vaga por causa da desordem civil.

Os incompreendidos fradinhos assim haviam feito. Viviam agora para ali esquecidos, retirados da vida da cidade, entregues à horta, à limpeza das matas, à recolha dos vadios moribundos que se arrastavam pelos barrocais. A pelagra, produzida pela fome, fazia uma multidão de vítimas e a malária, apanhada nos pauis do rio, dizimava famílias inteiras. A ponte lá estava, ligando as duas margens do rio, mas o movimento era sempre raro e desconfiado.

Uma tarde, em que veio deixar o regalo, Dinis convidou com um piscar cintilante de olhos a rainha a acompanhá-lo à câmara. Deitou Isabel um novo olhar de aflição a Vataça, retribuído mais de manso desta vez. O rei havia boa cotação no círculo da rainha e ninguém temia destemperos e violências. Não havia quem não julgasse Isabel em mãos de renda e compota. Demais, conheciam a frieza da rainha tão bem como o parque de Montjuich. Era incapaz, dizia-se, de chupar deliciada uma colher de mel de rosmaninho, quanto mais de repenicar um beijo. Assim sendo, sabiam que a iniciativa só podia vir do rei. O bloco de gelo havia de derreter às mãos abrasadas do trovador.

Recebeu-a o rei nos aposentos, cujas varandas abriam para o claustro da Sé, onde hoje repousa o velho conde moçárabe na sua arca de pedra clara. Aparadores com baixelas em prata e oiro, estrados com alaúdes e pífaros, bancos com relicários e cruzes, mesas com pedras, coifas e camafeus, escrínios com coroas, penas e tinteiros atulhavam o espaço da câmara, um vasto salão abobadado, de granito e taipa, onde o rei costumava  receber o mordomo-mor, Nuno Martins de Chacim. Este rei, além de linguaraz, mostrava a pecha das colecções e a sua casa tinha mais tralha que a sacristia da Sé de Braga. Contra a parede, em volumosos cilindros, arrumavam-se rolos de pergaminhos e nas paredes, além dos broquéis redondos e das panóplias de armas, colavam-se colgaduras bordadas a fio de oiro. Dois brandões, aferrados à parede, ardiam em permanência, noite e dia.

– As novas que nos chegaram de vosso pai são de modo a tranquilizar o vosso coração de filha.

– Praz a Deus que assim seja, senhor.

– Por que não me tratais por Dinis?

– Senhor!

– E não levantais os olhos do chão… Tende-los mais lindos que duas safiras do Cairo ou duas estrelas do céu.

– Deixai, senhor, essas palavras que me perturbam e fazem mal.

– Mal? Palavras de mesura e cortesia?

– Não me sinto aprontada para tão duro dever.

– Duro, senhora? Mostrar-vos-ei as delícias de que Salomão fala no seu Cântico maior… Dar-vos-ei a beber a água mais pura e fresca que ainda bebestes.

– Cuidai da minha idade, senhor!

– Outras mais novas já ardem por ser adoradas como as gazelas misteriosas do deserto que vêem beber no meio da verdura.

– Senhor, dai-me duas luas. Tende paciência.

Não quis Dinis insistir. Antes de acompanhar a rainha aos aposentos, levou-a a um dos escrínios do salão, tirou duma prateleira um rico e fino diadema, enfeitado no florão com preciosas jóias. Deixou-o por um instante bailar entre os dedos e depois ergeu-o, ajustando extremosamente o anel da  base à cabeça da menina.

– Sois a minha rainha, Isabel! – exclamou, com os olhos húmidos de lágrimas. – Amo-vos, senhora.

Começou para a rainha um tempo cortante. Nascera na hora errada para o amor, com um vento glacial a soprar dos altos picos dos Pirenéus. A cinza fria de Saturno esfriava a quente irradiação azul de Vénus. Se pudéssemos traçar o horóscopo da rainha lá encontraríamos com certeza a quadratura dos dois astros. Fosse como fosse toda a primeira fase da vida de Isabel de Aragão, tocada ainda assim por afectos profundos, foi furtiva e toda voltada para a consciência da dor da existência. Quando fugiu a este modelo, foi para abeberar como princesa de Aragão os princípios activos do gibelinismo do pai, integrando-se na sua esfera. Neste aspecto foi cumpridora e boa pupila; tinha inteligência estratégica, herança do pai, que a mãe só por força mor é que se deu depois de enviuvar ao estrupido da administração da Sicília, e mostrava propenção para a acção. Isto, em conjunto, lhe serviu para organizar com habilidade o ponto de sua casa, que lhe valeu o epíteto floral de Jaime I, e mais tarde para ordenar com júbilo círculos humanos mais largos. Mas não chegou para lhe tirar o medo da vida e da morte, esse grande pecado capital da rainha santa, que a aproxima dos abjeccionistas modernos.

Chovia. O mês de Novembro já entrara e o movimento no burgo era agora menor. Mesmo a saída para Celas tinha horas em que andava deserta. As famílias fechavam-se e manducavam o que haviam enceleirado nas arcas. Fora, na noite escura, Deus mandava água mas os vizinhos deixavam-se ficar à beira do borralho, petiscando castanha e beberricando vinho quente com aroma de alecrim. Um ou outro, nas abertas do tempo, saía de foicinho à cintura para roçar erva e logo regressava para o agasalho da chaminé ou para o penso dos animais. Só os mesteirais andavam na pressa dos ofícios e os almocreves erguiam tenda, para os lado do rio, nos terreiros que ficavam na cerca da igreja de São Tiago.

A rainha porfiava subir a um dos miradoiros da alcáçova para espreitar a parte baixa da cidade. Observava os tendeiros de São Tiago a apregoar a castanha, a noz, a passa da uva e do figo, e os do adro de São Bartolomeu a meterem faca nas peças de burel, estopa e lã. As nortadas geladas da invernia, sopradas a toda a força, de Viseu, da Guarda e da Covilhã, não tardavam a assolar os quatro cantos da cidade. Não havia quem naquela sazão não quisesse arcar à cautela a sua pele de borrego ou a sua manta de lã. Algumas manhãs, depois do ofício de terças, quando o tempo aliviava e um raio tímido de Sol espreitava por entre os cúmulos cinzentos, uma multidão enchia o terreiro e passeava-se livre de inquietação entre as tendas dos azeméis, à procura do pinhão ou do fuso para enrolar o fio da lã.

Mas logo Isabel desviava os olhos do bruá, à procura das águas do rio. Com as chuvas, o Mondego tomara proporções impensáveis para fio de água caseiro, nascido ao voltar da esquina, nas geleiras da serra ingente. Parecia um mar de cinza, revolto e ruidoso, pronto a arfar de cansaço ou de luta em cada instante. Espadanava bravo nas agonias da morte ou da orgia. Transbordara das margens e alagara boa parte dos campos de além. A ilhota fora quase submergida pela enchente e só se via ao rés da água o ápice da fieira escalavrada, sobra da construção que outrora por lá existira. Raro era agora qualquer embarcação ter o atrevimento de meter proa ao caudal do rio. Usavam os bancos da margem direita, que serviam de cais de encosto, para darem saltos e transportarem barricas de carne salgada ou de vinho novo; o Mondego portava-se como um mar e os arrais navegavam nele com tanto respeito como se descessem a costa de África, de Ceuta a Salé. Do outro lado, ainda mais isolado, com os arcos da ponte quase cobertos de água, o eremitério dos franciscanos fazia figura de resto esquecido. Nem maré ainda a rainha arranjara para atravessar a ponte e espreitar os conventuais que por lá se recolhiam.

O ar perdera parte da meiguice que em Outubro lhe encontrara. As névoas eram agora constantes, barrando a poalha de oiro que fizera o encanto da cidade no mês de Outubro. Um gosto salgado parecia infiltrar-se no ar  que se respirava. O mar estava agora ali muito perto com as marés vivas da estação fria. Bandos de gaivotas vinham do poente sobrevoar as águas e picar as ondas à procura do peixe. De vez em vez, uma delas levantava voo com uma grossa carpa no bico. Viam-se-lhe os olhos baços e medonhos a apagarem-se na prata do ar. Nem em Barcelona, grande porto de mar, ladeado por dois cursos líquidos, sentira a água tão junto de si. Um medo trémulo infiltrava-se-lhe na cisma de toda a hora, essa cisma que se chamava Dinis, dando-lhe ainda mais desassossego. Estavam de volta as horas inconstantes e mártires que vivera entre Bragança e Trancoso quando nem uma conta era capaz de deitar no fio.

O rei por sua vez não esmorecia a cortesia. Continuavam os presentes, prosseguiam as trovas e as mesuras, ainda mais convictas e tesas. Não havia momento em que o rei não lhe procurasse ser agradável, ocupando-se dos assuntos da sua casa e secundando os interesses das suas cuvilheiras, por mais custosos que fossem. Indagava por ora matrimónio de alto estado para todas elas. Deu ainda boa saída, em cargos de corte, aos cavaleiros que a rainha trazia de Aragão e que aqui deviam ficar para servir de elos à política de Pedro III. Para favorecer misturas deu-lhe por fim para casa uma meia irmã, casada com o alferes-mor, Gonçalo de Sousa, e um mordomo bom ecónomo que fosse capaz de lhe trazer limpas as contas do débito e do crédito.

Chegou a festa do nascimento do Salvador. Mantinha-se a corte por Coimbra e o rei cheio de esperanças nas palavras que havia de ter com a esposa. Começava a pensar a seu favor que houvera malícia estudada naquela parte das duas luas. Estava longe de perceber os sentidos frios da rainha, todos voltados para a transcendência da vida ou para a acção prática. Em vista disso intensificara as mesuras, de modo a dar a entender à esposa que a tensão do seu desejo crescia com a ausência dela. O amor subia de intensidade com a proibição dos amantes se tocarem ou verem; assim ensinava uma das leis do amor do tempo. E para entreter em fogo suado ideia tão polpuda, no acume da paixão e da espera, compunha versos. Saíam-lhe as cantigas por inteiro, mais correntes e cristalinas que as águas que corriam em Outubro.

Dinis fazia Isabel a sonhadora castelã dos provençais que só vivia para ser contemplada e em troca ceder, com estudada resistência, para melhor cimentar a vassalagem amorosa, seus favores. Mas Isabel não era dona esperta nas gentilezas do amor e o pai nas atrapalhações de partir em armas para Palermo nem trovadores de jeito lhe metera nas carretas. O que se conhecia por terras portucalenses do fin’amor ou do trobar clus era autóctone ou viera das quelhas da Córdova antiga onde os cantares de amigo haviam nascido em meio moçárabe.

Planeou por isso Dinis um encontro sensual, capaz de fazer explodir a tensão em que os dois andavam. Dera, atiçara, encantara; agora queria fruir. Era bem o filho de Afonso III, o rei que andara pelas terras do rei Artur à procura de Ginevra, e deixara em vida, perfilhados e dotados, para cima de dezassete filhos. Recebeu-a desta vez ao entardecer, quando a luz dos brandões adoçava as colgaduras e derretia pedras e camafeus numa lava coleante de oiro.

O seu único voto era que a alva fria, com veios vivos de sangue, os surpreendesse juntos. Guardara para essa ocasião os últimos bagos da uva doce que os dispenseiros haviam preservado com superior cuidado das humidades bolorentas das águas outoniças.

– Isabel todo o dia vos esperei com a ansiedade

– Senhor!

– Não foi só hoje. Há quase dois meses que espero por vós.

– Assustais-me com tanto anseio…

– Não sois mais uma criança…

– Que vos posso dizer, senhor?

– Amo-vos senhora! Não são palavras que espero de vós, mas amor como o meu.

– Esse amor parece-me loucura.

– Que dizeis? Não há amor digno que não seja louco.

E nisto avançou Dinis para Isabel, tomando-a nos braços, disposto a beijá-la com ardor. Mas a donzela tremeu mais assustiça que um animal à espera de ir para a mesa do açougue.

– Senhor, tende dó de mim – gemeu por fim.

E nisto começou a tremer, a revirar os olhos, a soluçar com virulência. O sofrimento da menina era tão óbvio que Dinis deixou cair os braços descoroçoado, libertando-lhe o corpo. Mesmo livre do aperto a menina não deu mostras de acalmar o pânico em que caíra. Fez-se muito branca, revirou os olhos, espumou da boca uma escuma branca e acabou por se desvanecer no pavimento do chão como um trapo murcho. O rosto oblongo, tábido de costume, estava congestionado e rígido.

O rei aflito ajoelhou de imediato ao pé do corpo sem sentidos, ajeitou-o no espaldar dos braços fortes e depositou-o no estrado que estava ao pé da chaminé, onde ardia um grosso cepo de azinho seco. Depois desandou pelo portão do salão à procura dum físico e da irmã, Leonor Afonso, a nova camareira da rainha, casada com o conde Gonçalo de Sousa. O primeiro abraço que dera à esposa fora um desastre; em vez duma haste viva a vibrar de desejo tivera nos braços um corpo sonâmbulo e sofredor, num transe de dor e bruxaria. –  Em lugar duma alva de beijos e mel aguardada com tanta expectação tenho pela frente uma noite de amarga apoquentação. –  E lá foi, a torcer os dedos, pelos corredores vazios da alcáçova, à cata do primeiro pagem que pudesse correr às casas da Sé onde vivia o físico da corte e o alferes-mor.

No dia seguinte, depois da rainha recuperar e mostrar apenas uma vaga lembrança daquilo que lhe sucedera no salão do rei, apareceu Leonor Afonso para falar com Dinis.

– Mano, esta senhora que nos veio de Aragão é mais quebradiça que aquilo que a sua altura deixa ver. As rosas de Aragão, fia-te, não são como as nossas; não só têm mais espinhos como qualquer sopro as desfolha. Poupa-a se a queres viva.

– Mana, a rainha estima-te e dá-te ouvidos. Vê se ela te ouve neste negócio que tão enredado anda.

– Mas o negócio que me pedes é o da sua vontade. Que queres que lhe diga?

– Que a amo e que não posso mais viver sem ela.

Riu Leonor Afonso da convicção, para de seguida aconselhar nova abada de versos. Logo marcou o rei ordem de partida à corte. As festas do nascimento e da epifania do Senhor estavam passadas e o rei desejava retomar nas mãos o trabalho de retempero do reino, aproveitando as pazes em que andava com o irmão Afonso. Há décadas que a coroa vivia mergulhada em testilhas várias com o clero e com os ricos-homens, dando ao reino uma impressão de instabilidade e desordem. Era tempo de acertar as contas e pôr ordem na casa. Enquanto não tivesse na mão os alcaides dos castelos e não levasse justiça às comarcas não se via rei. Demais queria novas inquirições aos bens do clero, onde muita trapaça acontecera à custa da guerra civil e dos enredos que levaram o pai ao trono. Não se ficava porém por aí; a par das inquirições, estava empenhado num acordo com os bispos que levantavasse o interdito que pesava sobre o reino. Tinha para si que o reino andava a precisar dum rei como o bisavô – o único que fora a Aragão buscar enlace – que alargasse agora até Silves e Faro, novos limites do reino, aquilo que aquele seu avô realizara para o território a norte do Tejo.

No dia antes da partida, já com as bruacas prontas para arrumar nas carretas do préstito real, a rainha subiu uma derradeira vez ao miradoiro da alcáçova para lançar os olhos à água do rio. Depois, ainda não batera o meio-dia, na companhia de Vataça e da sobrinha Isabel, desceu à porta de Belcouce e avançou na companhia das duas donzelas pela ponte que ligava a cidade à margem esquerda. Quem as visse naquele apagado dia de Janeiro, por entre as névoas do rio, com o cachão das águas quase a espadanar aos pés, muito encostadas umas às outras, embrulhadas em largos zorames escuros de lã, diria que ali iam as três Parcas.

Assim terão pensado os pobres conventuais da margem direita. Mal viram as três sombras rondando o adro da capelinha onde celebravam e depois as casas baixas onde se abrigavam, logo se aferrolharam por dentro sem mais darem de si sinal. Foi preciso ouvirem as pancadas fortes das Parcas na porta de carvalho para um deles, meio trémulo, se abeirar do postigo. Quando perceberam quem eram as visitantes, desfizeram-se em desculpas. Tratava-se duma pequena comunidade duma dúzia de reclusos, sem nada de original ou de doutrinário. Eram subordinados confessos dos crúzios de Coimbra, que lhes davam o sustento e os tinham ali, até mais ver, como eremitas dum Francisco Bernardone pouco mais que nuvem longínqua. Na verdade aos conventuais tanto dava o burel castanho do toscano como a casula branca dos agostinhos. Os fradinhos da margem esquerda tinham todos um ridentíssimo e sossegado carão de quem não tinha nem vesânias nem precisões.

De tarde, depois de jantar, num passeio de despedida, foram a Celas despedir-se das freiras. Por um momento afastou-se a rainha às traseiras da casa, a mirar o trabalho das courelas. Depois vinham as brenhas que metiam para a Guarda. Agora, com a invernia, pareceram-lhe mais negras e assustadoras, quase idênticas às da outra margem do rio.

Nisto uma figura esbelta saiu do emaranhado das silvas e dirigiu-se para as traseiras onde ela estava. Trazia roupa verde escorreita, bota de cano alto e boné de veludo. Tudo apontava para homem de posses, vizinho de Coimbra que por ali andaria à caça do laparoto. Bem lhe procurou Isabel a besta ou a sacola com os ganchos mas nada lhe encontrou. – Veio porventura medir o terreno, para batida futura – pensou. Entretanto o homem parara a uns metros, batendo com as mãos o pó da roupa. Foi então que olhou para Isabel, parecendo notar-lhe com surpresa a presença. Assinalou esta no rosto uma satisfação que lhe pareceu familiar, mas não mais. Não saberia dizer donde nem por quê. Num rufo, veio o homem ter com ela, batendo ainda o tacão da bota no chão, por causa da lama e do pó.

– Muito folgo em ver tão alta senhora

– Conheceis quem sou, senhor?

– Quem não conhece a Rosa de Aragão?

– Como sabeis?

– Mas até nos casais mais pobres de além Mondego se começa a falar da Rosa de Aragão como se ela ali estivesse. Todos falam da doçura dos vossos olhos de mel e da graça das vossas mãos. Seria possível conhecer-vos sem nunca vos haver visto.

– A que propósito senhor se fala da rainha de Portugal nessas florestas sem vivalma?

– Que é a mãe dos pobres; que todos os dias recebe uma dúzia de miseráveis nas cozinhas do paço de Coimbra e que tem meia dúzia de cegos de agasalho. E corre agora que até uma carreta de vianda e roscas de pão enviou para as gafarias das barrocas que ficam por detrás daqueles cerros e onde ninguém quer ir.

– Muito sabeis vós, senhor. Mas tão correntes são as vozes que assim falam?

– Tão correntes como as águas que ali vedes; não param nunca de murmurar. E mais se fala.

– Mais?

– Sim. Dize-se que o rei não vos pôs a mão e nem um beijo ainda vos deu. O pobre bem se cansa em trovas e mesuras, mas vós não o ouvis. Se assim continua, rebenta como um odre pôdre. É o que se diz, senhora.

– Quem sois vós, afinal?

– Um velho conhecido vosso, senhora. O dono de tudo isto. Não me conheceis?

Quando isto perguntou, o homem, que até aí tivera o boné puxado sobre a cara, destapou o olhar, que fuzilou cintilações felinas de chiste. Reconheceu de imediato naquele olhar as velhas labaredas que luziram no paço de Barcelona. Era o pagem do sarau estival e o falcoeiro da corte de Jaime I, quer dizer, o Roncador-mor. Logo a mão direita de Isabel fez no ar como outrora o sinal da cruz, repetindo ao mesmo tempo as palavras, vade satana, vade satana. Mas ao invés do que sucedera no passado, desta vez o homem continuava sorridente. O Carocho não dava mostras de incómodo com o sinal de Jesus. Nada de reacção, nada de penacho, nada de fumo sulfuroso.

– Senhora, ponde termo a tão leviana brincadeira!

– …

– Pasmais? Julgava eu que os doutores de Manfredo vos haviam ensinado algumas letras de valor na corte de vosso avô e depois na de vosso pai.

– Como assim?

– Nada me agrada tanto como o sinal da cruz. A Igreja hoje é a melhor aliada do Demo. O Inferno está cheio de bispos e de cardeais. E a colecção de papas que por lá há é adorável. Desde que Constantino fez um papa rico que os melhores pupilos do Revel são os bispos de Roma. Não há avareza como a deles; não ferocidade mais crua. Estão mortos por deitar o gadanho a oiro e prata. São capazes de pôr à venda o Espírito Santo por um maravedi de oiro. Ah-ah! Tudo isto é meu, tudo; nada fica de fora.

E ao mesmo que dizia estas palavras, chamava a si com um gesto do braço direito os campos cultivados, os edifícios das religiosas e até a Igreja onde as monjas iam assistir ao culto.

– E as palavras de Jesus? – perguntou Isabel.

– Inócuas, senhora, como tudo o resto. Vede o estado do mundo…

– Que pretendeis de mim?

– Mas que havia de ser? Ajudar-vos a ser boa cristã, pôr-vos nas boas graças da Igreja. Não é uma bela missão?

– Que sandice!

– Não, senhora. Atentai no vosso esposo. Arde por vos abraçar; morre por vos beijar. E vós? Queda e muda. Achais bem?

– Feris-me.

– Convenço-vos da virtude! Prometi-vos a eternidade e não desisti de cumprir. Não olvideis o vosso esposo, senhora. É ele a chave do assunto. A procriação é o sinal da eternidade. Nada requeiro, a não ser que recordeis as palavras sábias do Criador.

– Que palavras?

– Esqueceis toste o que vos ensinou o bom mercedário. Crescite et multiplicamini, et replete terram, et subiicite eam, et dominamini piscibus maris, et volatilibus caeli, et universis animantibus, quae moventur super terram. Eu também desejo uma terra assim, cheia de corpos e de almas. Crescei e multiplicai-vos. Não é, senhora?

Na manhã seguinte partiu a corte de Coimbra. Não sabia a rainha o que havia de pensar da conversa do dia anterior nas courelas de Celas. Por um lado, continuava dentro de si a soletrar as palavras de Jesus, enojada pelo Demo repelente, por outro dava-lhe sem querer uma ponta de razão, quando lhe pedia outra atitude com o rei. Na verdade o Bicho tocara-lhe no dilema crucial da vida. E tão grande era ele, entre a obrigação e a ínsita natureza com que aparecera neste mundo, que preferia suspirar e olvidar.

O rei por seu lado ajudou a aliviar a tensão. Andava numa azáfama de castelo em castelo a pedir letras aos alcaides e de vila em vila com os corregedores e os almoçatés para fazer justiça nos actos e nos preços. As gentes vinham aos caminhos esperar o rei, que era menino de barba tenra e modos galantes. Cuidava dos povos, não se esquecia de lhes dar pão cozido e peças de vianda, metia-se com eles em folias e jogos. Não havia lugar onde chegasse que não armasse tendas para dar de comer e beber a quem lho pedisse. Pelo entardecer, passado o ofício de vésperas, mandava vir charamelas e adufes e à volta do lume de azinho todos saltavam em danças e trebelhos. Já se dizia que como aquele nenhum outro rei houvera em Portugal. Os outros numa correnteza mediana, todos por igual, eram Sanchos e Afonsos; este era Dinis e por único valia.

– Se assim continua, eleva o reino bem alto – vaticinava-se por todo o lado onde surgia.

Com a rainha continuava mesureiro e engraçado de ditos, mas mais discreto e distante. Os regalos espaçavam-se e as visitas eram mais curtas, quase apressadas. Por via da irmã e das palavras que esta dizia à rainha, ainda tentou derreter o gelo em que Isabel andava, mas tudo o que obteve foram os mesmos trejeitos angustiados do passado. Deu de barato o caso e espaçou ainda mais as visitas. Via-se que o rei andava de espírito noutros negócios e que pouco se importava agora na rainha.

Não tardou que corresse no círculo da corte que o rei se deitava com outras mulheres. Afirmava-se que não havia moça solteira nos povoados por onde o préstito real passava que não viesse oferecer-se depois das folias do serão para se deitar com ele e ficar por sua manceba. Percebera-se há muito que a rainha era arisca e fugia de dormir com o rei. Por isso, confiados no sangue quente do filho de Afonso III, bígamo e regalão, até os pais, bons e honrados mesteirais, avental grosso de sola, chapelão de corda e tamanco de pau, vinham à tenda real com as filhas pela mão para lhas oferecer.

Com um rei assim vistoso e munífico não queriam senão vê-las no estrado, debaixo do rei, nem que fosse por uma hora. Tudo o que pediam à Santa Maria de Celas era que nove meses depois a pombinha soltasse das entranhas um rolinho de carne que fosse semente daquele real mancebo. Com tal façanha não iam decerto a condes nem a mordomos da casa real, mas esperavam ainda assim, no baptismo do crianço, uma courelinha de terra dos reguengos do rei para deitarem uma horta de couves e nabiças. Demais, dizia-se que mulher que passasse o pêlo pela mão doce do rei ficava tão embeiçada que não mais se deitava com outro homem.

– Antes com ele, que é rei, que com os outros, que são como nós – dizia-se.

Quando a atoarda chegou ao círculo íntimo da rainha, por via da irmã Leonor Afonso, escandalizaram-se as meninas. Não tardaram todavia a mitigar o erro do rei. Jaime I, que fora um grande senhor, desquitara um casamento e quase acabara outro por causa das sanhas de amor em que se metera. Até a grande cruzada à Palestina, que daria a Aragão a palma da glória do segundo Frederico, acabara por causa duma Berenguela. A coita que lhe ficara quando se vira só nas águas fora tanta, que o rei trocara a viagem pelos braços da dona. Mesmo Pedro, que desposara a filha de Manfredo, mimada por Dante, andara metido com outras donas. Na carta de Isabel a seu irmão Jaime II de Aragão em que a rainha portuguesa confessa a vida muyto amargosa fala-se num dos irmãos bastardos de ambos, Sancho, que foi comendador de Miravete na ordem de São João e fez missões de discrição a Portugal. E Isabel de Cardona, que veio para Portugal no préstito aragonês, era filha duma irmã esquerdina de Isabel.

Não foi possível por muito tempo esconder da rainha a vida que o rei dera em fazer. Dinis era reservado, dissimulado até, mas não havia serão de sossego na corte. Mal o rei recolhia, logo o enxame das moças se aboletava na entrada da tenda real à espera que ele visse caras e elegesse escolha.

Era o serralho islâmico ao serviço do jovem rei português, que era cristão mas trazia no seu círculo muito muçulmano. Por isso no seu reinado se traduziu do árabe a Crónica do Mouro Razis como na do avô, Afonso X, se verteram muitas outras de história, jurisprudência, ciência médica e astronomia. Procurou Vataça suavizar aquilo que pensava ser o sofrimento da rainha.

– Bom senhor foi teu avô e teve tantas donas como o olival de Coimbra tem oliveiras.

– Não te apoquentes comigo. Não me embargam as comborças do rei. Mais me empacham as palavras que tem comigo.

Na verdade a situação do rei convinha-lhe. O dilema em que andava, entre obrigação e temperamento, resolvia-se numa badalada. O rei havia o que era mister; ela ficava sem entrave para se devotar ao que lhe importava. Respirou pois de alívio com a nova vida amorosa do rei. Quanto mais entretido andasse, menos lhe aparecia. Tudo o que desejava era sossego para tratar dos panos e entoar os salmos.

A vida que levava agora não era muito diferente daquela que fizera nos longos dias de viagem entre Tortosa e Bragança, atravessando o plaino da meseta. Vivia dentro do churrião, indiferente ao exterior, ensartando pérola, broslando alcaz, talhando uma veste de linho ou um brial de saragoça para as invernias. Nas povoações dava o resultado do trabalho aos miseráveis que vinham de escudela pedir pitança à corte. Se o rei tinha dez mil virgens para se deitarem com ele no almadraque, ela tinha dez mil pedintes à volta, abrindo o taleigo vazio como uma boca esfomeada e suja. Ela os enchia com braceletes de vidrilho, colares de contas, zorames de lã ou tibornas tenras e perfumadas. E ficavam satisfeitas e cheias as bocas lodosas e pôdres.

À parte isto, Isabel espreitava de quando pelo cortinado do churrião para se inteirar do reino em que andava. Enquanto não atravessou o fio de água do Tejo em Santarém, a impressão não passou do mesmo. Brenhas incultas, montes achaparrados, vilórias de borco e esquecidas. Os homens eram charcos de sujidade, agarrados à rabiça de pau do arado; alguns nem uma palavra soletravam, faziam-se entender por gestos, monossílabos e grunhidos. Se não andavam nus, como no tempo dos primeiros pais, para lá se encostavam, o burel com que escondiam o tronco e as virilhas cheio de buracos. As mulheres pareciam megeras feias a estomentar o linho ou a bater com gestos ferozes o centeio; as crianças faziam a vez de espectros medonhos, sempre a gatinhar, sempre a fugir, como animais malhadiços ou espantalhos de palha podrida. No meio deste tremedal malcheiroso viam-se, com burgueses repimpados na tavolagem das tavernas, três alcáçovas ricas – Leiria, Santarém, Lisboa – e dois castelos monumentais – Tomar e Ourém.

Mas depois que passou o Tejo, a caminho do Lavre, tudo se alterou. Era a desolação do plaino, com azinhos e cabeços atarracados de pedra com milhafres sinistros poisados no coruto glabro. Não se via vivalma; parecia a desolação de quem ia a caminho do Inferno. Só aqueles milhafres, de fácies diabólica, saltitando nervosos e silvando de zanga. Mais se recolheu Isabel ao interior do churrião, salmodeando as rezas e lavrando panos. No meio deste deserto adusto lá deu com dois burgos estimáveis – Évora e Beja ­– e uma alcáçova altaneira, diante duma serrania escalçavada de dorso manso –  Estremoz. Esteve o rei vai-não-vai para bater jornada para o Algarve mas desistiu, que a província, depois das cordilheiras das serras, parecia tão mirífica e distante como Ceuta ou Tunes e as andas que levava eram ronceiras e de pouco préstimo, com os varais a precisar de conserto. Em serviço próximo por lá iria.

Por fim, já o Verão começava a escaldar, regressou a corte a Coimbra. Fora viagem de muito proveito, com correições várias em todo o reino, mas andava já o rei em ânsias por ver as águas do Mondego. Dizia-se que só na cidade de Sesnando, passeando no olival, descendo aos choupos da várzea, repousando na sombra da alcáçova, o rei encontrava o sossego necessário à composição das cantigas que lhe bailavam na alma. E desta vez trazia o alforge cheio de amores para cantar.

No tarde seguinte ao dia da chegada, batiam na Sé as badaladas da noa, passou o rei pelos aposentos da rainha. Trazia uma peça de seda para lhe oferecer e parecia inquieto por lhe falar. Foi mesureiro como dantes e à despedida segredou:

– Fazei-me mercê, senhora. Depois de vésperas, preparai-vos para me acompanhar. Preciso de vos falar.

Quando ficou sozinha, de coração a bater descompassado, mais forte que o tropel dos cavalos, Isabel subiu ao miradoiro. Com as bruacas cheias e a tralha para arrumar, nem ocasião surgira ainda de mirar as águas do Mondego. Lá estavam elas, serenas e baixas, desta vez mais cerúleas que safira brunida, como no momento da primeira chegada à cidade. Fustas e chatas, carregadas de homens e de barricas, subiam e desciam o caudal do rio. Outras estacionavam tranquilas, encostadas aos mouchões, de redes estendidas nas águas, enquanto por cima os gaivotões brancos grasnavam de fome ou de enigma. Nas bermas, com as pernas nuas mergulhadas na água, rapazolas andavam à cata do berbigão e da ostra. Dizia-se que com as correntes da invernia o rio se enchia de espécies marinhas; até os saveiros vinham ali pescar a sardinha nos meses quentes do solstício. O Mondego era um caldeirão a ferver de monstros diluvianos. Só o estendal do Tejo, vislumbrado dum parapeito do castelo de Lisboa, levava o bácaro àquela toalha líquida. – Nem Barcelona – pensava ela, ignorante do que por lá ia – tem água assim.

Batiam vésperas na Sé, passou o rei para levar a rainha de companhia. No salão, onde a recebeu, falou baixo e manso.

– Senhora, quanto folgo de vos ver.

– Honra-me a vossa estima, senhor.

– Coimbra despertou em mim recordações da vossa pessoa.

– É meu desejo que a cidade vos receba bem e vos dê o merecido repouso.

– Sem vós Coimbra é um desterro pior que antre Tejo-e-Odiana. Morro de nojo.

– Engano, senhor.

– Por que falais assim?

– Desculpai, senhor.

– Dizem que sois a mais caridosa das rainhas que a terra portuguesa ainda teve. Nem entre os mouros se viu uma senhora assim benfazeja. Sois uma criança e as vossas boas obras já correm a boca de todos os vilões.

– Pouco assisadas são vossas palavras! Sou a mais mesquinha que a roda do Sol ainda viu.

– Que desvairo, senhora! Sois já a mais louvada e prezada das rainhas de Portugal. Achais pouco?

– Que vos embarga entonce senhor?

– Que me há-de estorvar, Isabel, senão vós?

– Não vos percebo…

– Há um ano que entrastes em Trá-los-Montes. Pois continuais hoje como na altura. Nem uma alva vi a vosso lado.

– Atentai, senhor, na minha pouca idade…

– Escusas, escusas, Isabel…

– Perdoai, senhor…

– Tendes cegos a vosso cuidado em Coimbra. Cuidais das gafarias. Os velhos vêm comer ao paço das vossas rendas. É caso para vos dizer que sois tão boa para todos menos para mim. Não tendes piedade do vosso esposo?

– Que vos posso dar, senhor? Tendes tudo o que é mister…

– Um beijo… um beijo, Isabel… para matar esta sede de vós que me sufoca. Custa-vos assim tanto?

– Não vos chegam os beijos das vossas barregãs?

– Sois cruel, Isabel. Se as tenho, é porque me negais aquilo que há muito devia ser meu. Aqui vos prometo que se me derdes o que vos peço nenhuma outra mulher vereis nos meus braços.

– Perdoai… perdoai… sou a mais mesquinha…

E nisto foi Isabel ao chão sem sentidos. Voltou o rei a acomodá-la no estrado e quando estava pronto para desandar à procura dum pagem que fosse às casas da Sé chamar o físico ouviu o fio débil da voz da rainha a chamá-lo.

– Senhor… senhor… escutai

– Meu amor, calai-vos. Só o sossego por ora vos convém.

Veio a recuperação da rainha. De manhã, depois da hora prima, o rei aparecia nos aposentos de Isabel para saber como passara a noite. De tarde, ao bater da noa, regressava, desta vez para lhe deixar uma lembrança e lhe passar com um sorriso a mão pelos cabelos. Quando a viu de pé, a ensartar fio e a broslar seda, entregue à disciplina que lhe conhecia, pediu-lhe nova entrevista. Esperava tudo do encontro.

– Prometi-vos que se me derdes o vosso corpo como cabe àquela que desposou varão, nunca mais olharei para o corpo doutra dona. Tende piedade desta minha sede. Sois tão boa e piedosa para todos…

Mas Isabel vinha fria e determinada.

– Mais nos convém esta situação em que andamos. Os beijos que vos posso dar são flores murchas e sem olor quando comparados com aqueles que as outras donas vos dão…

– Que dizeis, Isabel?

– Que o meu corpo é sem préstimo e nenhum calor vos poderá chegar. Em caso assim é lídimo que vos ocupeis com outras donas. Tendes o meu perdão.

– Sois uma criança, Isabel. Deixai-me mostrar como o vosso corpo é um vaso de eleição. Quando lhe der o primeiro beijo, vereis o que é um incêndio. Até as oliveiras terão folhas de lume. Seremos um do outro, sem mais ninguém de permeio, até morrermos nos braços um do outro, como Tristão e Isolda.

– Descuidai de mim, senhor. Outras donas vos darão o necessário. São elas a lenha dessa paixão, não eu.

– E os filhos que houver nessas donas?

– Trazede-os para o paço. Aqui os criarei como meus.

– Santa Maria vale! O que vos vai na cabeça. Nem o Demo… se lembraria de tal.

– Sofro muito com o que vos digo… perdoai… perdoai…

Mas com dor ou sem dor assim se fez. Ficou Isabel para um lado com seus hábitos de anafrodita e Dinis para o outro com as labaredas das outras donas e chusma eram. Eu já disse que esta é uma história de amor e infelicidade. Em geral, a rainha é apresentada como a vítima da leviandade e das traições do rei; até a fizeram padroeira das mulheres traídas. Não é verdade! O rei é que foi sacrificado pela frieza e pela falta de paixão da rainha. Faça-se justiça duma vez por todas ao rei poeta e à alta temperatura do seu sentimento. Só Dinis se esforçou por alimentar o fogo da chaminé; Isabel fugiu, torcendo os dedos, e deixou o amante a falar só, ao pé da fogueira. É um quadro tenebroso, de muito desconsolo para os dois. Isabel, atenta aos outros, remorde-se, castigando a frieza com que azorraga o amante, e Dinis treme de frio no meio das labaredas da sua paixão.

Eis porventura aqui o pecado incontraditável de Isabel de Aragão. Desconheceu o incêndio do desejo e voltou costas ao amante. Mostrou-se fria e anafrodisíaca, ainda que inocente, pois não se vislumbra no seu comportamento qualquer cálculo; desconhecia, mais do que evitava, o puxão do instinto. Seja como for é pecado tão grave, que chega para a condenar em todas as barras, a da História, a de Roma e a da consciência íntima de cada humano. Mas sem pecados, pecados fundos, pecados capitais, que doem a sério, Isabel de Aragão não me interessava. Custa encarar de frente com uma mulher petrificada como uma árvore na neve mas é preciso ver o seu drama e respeitar a sua dor. E num caso como Isabel de Aragão é a forma como se vive esta dor que determina o prodígio ou não.

Vieram os bastardos de maior nomeada para Coimbra. Recebeu-os a rainha no paço de forma cordata, sem palavra de aspereza. O bom trato dos filhos do rei era o preço do sossego rotinário, que tão necessário lhe era ao avanço dos dias. Assim como assim a situação pertubou a rainha; razão havia ela para dizer ao rei que muito sofria com o escambo. Não podia ser doutro modo. Cedia a um traço de carácter, muito dela, o desgosto, o nojo pela vida, e punha de lado o dever para o qual fora formada como princesa e mulher. Não podia senão ter graves questões de consciência com a atitude que tomou. Assim foi.

Durante dias a rainha ensaiou concentrar-se no trabalho e na oração. Pensava nos miseráveis que todos os dias vinham às cozinhas comer e nos outros que abriam a boca lodosa dos alforges nas traseiras do paço à espera que um servo de dentro lhes trouxesse o resultado do trabalho de mãos da rainha e seu círculo. Eram agora muito apreciados e desejados os zorames de lã que a rainha tecia por suas mãos nos teares do paço e mandava depois distribuir nas traseiras. O rei aumentara-lhe as rendas e por isso em vez de dois casais de cegos, tinha ela na alcáçova uma fila deles. Alimentava-os e alojava-os a espensas suas e tudo o que lhes pedia era que às manhãs fiassem a estriga de lã entre o dedos ou que ensartassem contas no barracão em que os tinha. A capacidade que por ora mostrava era todavia diminuta. De novo o cogitar lhe saía a todo o instante em galope ininterrupto para os dilemas em que se via esquartejada.

Ensaiava então pequenos passeios pelas ruas da cidade na companhia de Isabel Cardona ou de Vataça. A porta de Belcouce, com o espectáculo das águas por diante e as prainhas de seixo rolado a montante, continuava a ser a preferida. De quando em quando, o grupo atravessava a ponte e ia bater aos casebres dos franciscanos da ponte, que lá continuavam isolados e esquecidos. Outras vezes as meninas insistiam em voltar a subir a encosta da cidade, para tomarem a porta do Sol e baterem para Celas. No mosteiro voltavam-lhe os medos do passado; a qualquer instante esperava que a Besta lhe saltasse ao caminho para a crivar de acusações. Nunca isso porém sucedeu.

Ainda assim o receio era tanto que chegou a imaginar uma tarde, num recesso de Celas, um diálogo com  o Maligno.

– Procurava-vos, senhora.

– Melhor seria desaparecerdes.

– Isso é porque o vosso pensar reconhece o vosso erro.

– Ide. Ide para sempre. Deixai de me empecer.

– Vosso marido espera de vós um beijo e vós negais-lho? Razão tem ele em vos ter por peçonhenta. Ah-ah!

Ficou em pânico, sem resposta, numa aflição tremenda. Nos ouvidos tinha colado o eco daquele riso de chiste. Cambaleou, tremeu, tartamudeou uns monossílabos, entrou em agonia. As convulsões eram tantas que foi preciso levá-la em braços de regresso à alcáçova, onde um físico lhe receitou dois dias de estrado, sem tear, sem contas, sem passeio. Começava a correr na corte portuguesa a ideia de que a rainha era sujeita a transes de desfalecimentos.

Fosse como fosse o rei evitou mais pressões sobre a rainha. Espaçou as visitas aos seus aposentos mas sempre que aparecia mostrava-se gentil e manso. Nenhum gesto de aproximação, nenhuma palavra de ressentimento. Vinha para se informar da saúde da rainha, satisfazer algum pedido da  casa, apurar contas com o ecónomo, fazer nova doacção, trocar direcções sobre as novas que lhe chegavam de Aragão e da Sicília. Via-se que andava satisfeito, que era um rei atilado, que amava a vida e era querido do povo. Assim sendo, a rainha acabou por acalmar os receios, entregando-se com alguma tranquilidade à rotina que lhe vinha do paço catalão, umas vezes no paço de Coimbra, outras no churrião, atrás das correições ambulantes da corte.

Correram meses neste sistema trocas; rodaram depois anos. Primeiro veio a nova da morte de Afonso X em Sevilha e de novas rebentinas contra Sancho IV. Castela não conhecia acalmia e a tormenta vinha girar na raia de Portugal. O irmão do rei, regatão e agiota, voltava à desobediência, para receber a espórtula dos revoltosos. Chegaram ao tempo as notícias da derrota do Anju nas águas de Nápoles por Roger de Lauria, o Aquiles que já havia destroçado os cruzados ao largo de Malta. A vitória aragonesa era tão estrondosa que até a irmã de Constança saía dos calabouços angevinos. Logo depois veio a fúria do dragão Martinho IV contra o reino de Aragão e tremeu em Portugal Isabel. O pai estava excomungado e o reino já não lhe pertencia; cabia por ordem do papa a Carlos de Valois, filho do rei de França. Estavam de regresso os temores do casamento, quando Isabel veio para o poente acomodar uma rectaguarda segura.

Começou então a cruzada francesa, que acabou na morte de Filipe III. Mas em Portugal, junto de Isabel, o alívio pouco durou. Logo chegou a notícia da morte do rei Aragão, cansado de tanta emoção, de tanto cruzar de armas, de tanto sonho, de tanta terra disputada. Decidiu o rei português fazer exéquias pelo sogro e houve lágrimas e dó em tudo o que recordava Barcelona e Saragoça. Até as velhas bruacas de couro choraram a morte do novo Alexandre! Semanas antes falecera o conde velho, cunhado do rei, Gonçalo de Sousa, deixando viúva Leonor Afonso; logo o fio das lágrimas portucalenses se juntou ao caudal aragonês. Vieram de seguida os embates entre Dinis e Afonso por causa das guerras em Castela. Por fim, no Levante, os mamelucos que se haviam levantado no Egipto contra Luís IX de França estavam a ponto de varrer os restos do poder cristão que por lá se arrastava. O ciclo das cruzadas aberto por Urbano II chegava ao fim, sem que ninguém ainda vislumbrasse o que lá vinha com o fechar do círculo. Um círculo que demorara dois séculos a traçar.

Já Afonso III de Aragão, o sénior dos filhos de Pedro III, fizera testamento a favor do irmão Jaime II e se via nos vómitos que o levariam deste mundo, quando Dinis deu os primeiros sinais de inquietação nas visitas que fazia aos aposentos da rainha. Estava ansioso e irritadiço, muito longe da satisfação semi-feliz, travessa e despreocupada, que durante uma fieira de anos mostrara. Percebia-se que calava mal-estar fundo e ingovernável ânsia. Um tarde, no paço de Coimbra, não se conteve e pediu que a rainha o acompanhasse ao salão.

– Senhora, há anos que vivemos apartados um do outro.

– Parece que é do vosso agrado que assim seja.

– Foi para satisfazer um pedido vosso que assim o determinei. Esquecei-lo, senhora?

– Não, senhor. Muito vos agradeço o serdes assim cortês.

– Não prestou para muito. Só eu e Deus sabemos o sofrimento que calei no coração.

– Não parece. Todos vos dizem satisfeito. Sois amado pelo povo; as donas avondam; os vossos filhos vivem no gasalho do paço, junto do meu cuidado.

– Pois enganam-se os que assim dizem. Tenho uma mágoa e um empacho.

– Que mágoa e empacho, senhor?

– A minha mágoa e o meu empacho sois vós, Isabel!

Pobre Dinis! Casar com uma santa não são favas contadas, não. Por isso não posso deixar de chamar a atenção para o teu sofrimento; ele passou tempo de mais despercebido para continuar escondido. Na história deste desencontro tu é que sofreste a sério; Isabel foi verdugo, não vítima. É mais um passo que anda muito mal contado na História, ao lado de tantos outros. Mas regressemos ao salão da alcáçova de Coimbra. Fala Isabel.

– …perdoai… perdoai…

Tanto perdão! A rainha passou os primeiros anos do matrimónio a pedir perdão ao esposo. Tinha consciência dos erros, ao menos. Tenhamos nós também a noção daquilo que se passou. Voltemos então ao paço de Coimbra; se assim não for, ainda me vem à boca o galimatias do nosso primeiro prosador moderno. Fala Dinis.

– Santa Maria val! Já tanto perdoei, senhora. Que mais posso perdoar? Agora preciso mais do que perdoar.

– Dizei, senhor.

– Conheceis as guerra que meu irmão me tem movido por amor da ambição. Chegou a receber Álvaro Nunes de Lara e João Afonso Telo em Riba Guadiana. Tive de acorrer com uma hoste a Arronches para o correr para Badajoz.

– Aí se assinaram as avenças entre vós e vosso irmão. Ao que julgo o infante assossegou.

– Temo as traições. Até um escambo tive de fazer, para o afastar de vez da raia fronteiriça. Sabeis qual a cura para estas guerras e cuidados?

– Dizei…

– A firmeza do trono de Sancho IV de Castela, abalada agora também pelas disputas de Aragão em Múrcia. A Península está em perigo.

– Sereis amanhã um árbitro respeitado.

– Como posso ser o que dizeis se me falta o essencial?

– Como assim, senhor?

– Isabel… Isabel… continuais a mesma criança que o mercedário me entregou. E tendes vós vinte anos… quase tantos quantos os de minha avó, rainha de Portugal, quando morreu. E houvera já quatro filhos.

– Que vos falta entonce?

– Pois o que me falta, Isabel, é filho vosso. Não posso fazer avenças nestes embates sem ter filhos com que entrar. E falo de filhos lídimos, não de bastardos. Estes não os consigo eu casar com reis. Se os enlaçar com condes ou com outros bastardos de rei já me satisfaço…

– Perdoai… perdoai…

– Ora preciso mais do perdoar; preciso dum filho vosso. Se não me ameis, como se prova que não, ao menos cumpri a vossa obrigação de rainha. Haja siso, senhora! Dai filhos ao reino.

E dasandou, lágrimas nos olhos e coração sufocado. Pobre rei poeta! Nunca a tua situação foi tão desesperada. Grandes pecados teve a tua esposa. Casar com uma santa é tão embaraçoso como andar num labirinto. A santidade chega a ser tão perversa como o deboche. A castidade duma mulher casada tem um efeito tão desnaturado como a devassidão.

Calou-se a rainha sobre o assunto. O rodar dos dias entrara há muito numa rotina que lhe era suportável. Sartava, broslava, punha-se às contas com o ecónomo e arejava em Celas ou nos areais do rio com a roda das meninas. Tirando isso, e para dilaceração sua, sabia-se má esposa. Agora, depois da conversa com o rei, via-se má rainha. Por dentro acentuou-se o esquartejamento. Sofria a dobrar, como dona e rainha. Dentro de pouco o rei voltou a insistir.

– Se não derdes filhos ao reino, ele morrerá. Se os derdes ele viverá e crescerá.

Ela viu-se tão desesperada, que se mostrou disposta ao divórcio. Era novo escambo a favor do seu sossego.

– Desquitai-vos de mim como meu avô fez com Leonor de Castela. Aragão está seguro e não mais precisa de mim em Coimbra. Regressarei ao reino de meu irmão. Outra vos dará os filhos que necessitais.

Mas Dinis era arteiro, além de apaixonado.

– Nunca! Amo-vos, senhora. E o povo também vos ama como a mais generosa das rainhas que ainda passou pela terra portuguesa. Já se grita o vosso nome – Valha-nos dona Isabel! Valha-nos dona Isabel! – em casos de aflição. Jamais me desquitaria de vós; o povo não me entenderia. Antes morrer. Cumpri pois a vossa obrigação para com o reino.

– Pedis-me o impossível.

– Não vos entendo, senhora. Sois cruel. Morreremos todos por vossa causa. O reino que por ora tão valentemente se porta será enterrado por vossas mãos. Nunca ele foi tão grande e nunca esteve em tanto perigo.

O estado de abatimento em que Isabel ficou depois desta conversa foi imenso. Voltaram-lhe os espotejamentos em que andara, quando Dinis lhe rondara a porta com insistência. Perdeu o sossego e de todos os lados sentia coacção. Os directores espirituais, fossem os do reino natal, fossem os portugueses, davam a razão do rei por boa. As cuvilheiras, mesmo as mais próximas, censuravam-na de forma velada mas firme. E até o povo de Coimbra, que a adorava já, vinha às tardes às quelhas das traseiras do paço para lhe rogar um filho. Incapaz de resistir mais, submeteu-se. Pediu uma entrevista ao rei.

– Senhor, estou pronta para cumprir os meus deveres para com o reino e para com o povo.

Ficou Dinis trémulo com as palavras que ouviu à rainha. Há anos que andava no esconde-esconde e já não dava um círio pelo fim do jogo. Os anos haviam rodado, os filhos haviam nascido noutros ninhos, e a rainha continuava sem broto nem folha. Era haste nua, vestida pelo sincelo duro. De repente, via-se senhor daquele corpinho virgem e branco, que lhe viera outrora de Aragão. Pareceu-lhe o sincelo gelado porcelana fina e acalentou-se na expectativa. Era ferreiro experiente e convencia-se que friccionada a primeira faísca logo o lume atearia no corpo da esposa que nem em palha estaladiça de Agosto. E para lhe pegar fogo, tanto lhe fazia a ele, bom arqueiro, que fosse por ardor ou pelo povo.

– Isabel, sou o mais feliz dos homens. Ao fim de tantos anos sois minha. Já o Sol me alumia com outro brilho…

– Tenho medo… tanto medo…

– Descuidai, descuidai. Hoje, depois do toque de completas na Sé, irei buscar-vos à vossa câmara.

E chegou por fim, mais de meia dúzia de anos depois do matrimónio, a primeira noite de amores da rainha. O rei pela sombra veio por ela e pela calada a levou. Bem tentou perder-se na luz iridescente dos seus olhos, mas Isabel estava rígida e incapaz de abrir as pálpebras. Quando Dinis a deitou no almadraque, despida por metade, parecia estar no rigor da morte, tal era a dureza que mostrava. Apenas, de quando em vez, uma tremura a abalava, acompanhada por um soluço represado. Quando regressou aos aposentos, cambaleante, doída, amparada pelo rei, de nada se lembrava, a não ser da coruja que piara três vezes nas janelas altas da Sé, lá longe, no meio do vento frio de Inverno.

Durante semanas o lance repetiu-se sempre do mesmo modo. O rei vinha depois de completas buscar a rainha. No salão beijava-a, despia-lhe o brial, tirava-lhe os panos de baixo, arrastava-a para a beira da chaminé, onde procurava reanimá-la ao calor do lume de azinho. Depois estendia-a no almadraque e ali se punha em contacto íntimo com ela. Pouco sinal dava ela de si; aqui um suspiro, ali um soluço, acolá um pestanejar incerto dos olhos. Trôpega, com o braço forte do rei passado na cintura, regressava aos aposentos, onde ficava prostrada no estrado durante muitas horas.

No dia seguinte não se levantava senão para almoçar, já as badaladas da hora sexta haviam soado. Durante a tarde a impressão que tinha é que lhe haviam descascado o corpo e que a terceira película que lhe protegia a carne tinha sido passada a raspadoira. Estava nua e ferida no desconforto do mundo. Foram com certeza as horas de maior aflição da sua vida, essas e as que dela decorreram. Lembram-nos mais uma vez as palavras que escreveu alguns anos mais tarde ao irmão Jaime, vivo vida muyto amargosa, onde se nota o cálamo cátaro. É o mais moderno mas também o mais triste da sua vida.

Lamenta o leitor e lamento eu que esta rainha não tenha mostrado uma verdadeira vocação para o amor da carne. Mais tarde porém superou este limite. Só nesse momento a sua vida foi um todo proporcionado, seguindo uma linha de beleza e de equilíbrio, como acontece com uma planta quando germina, floresce e frutifica. Não é ainda o que se passa neste momento; agora, na desfloração, quando Dinis lhe deitou para dentro a semente, a vida da rainha está a braços com tensões dramáticas, conflitos dilacerantes, que justificam a rigidez que lhe encontrámos no tálamo nupcial. Foi tão imperfeita a sua entrega a Dinis como a frieza em que logo recaiu depois da experiência. A palha que o rei pensava encontrar enxuta era incomburente e não pegava lume. A haste de tão verde só dava fumo, fumaceira acre e desagradável.

Não tardou a rainha a perder o fluxo menstrual e os físicos a falarem da sua prenhez. De todos os lados lhe chegaram os vivas e as manifestações de regozijo. O povo estava em festa; a rainha ia dar um herdeiro ao reino. Já se dizia que seria um verdadeiro salvador, ainda mais perfeito do que Dinis. Durante meses andou Isabel a criar dentro de si um novo ser. Sentiu-o dentro de si tomar forma, granjear corpo, ocupar espaço, ganhar madureza. Pejada, lenta de movimentos, fora já das agonias dos primeiros meses, viu o momento do parto chegar. Gritou e chorou para pôr no mundo o fruto que acomodava dentro de si. Lembrou então as palavras que dissera a Berengária e que se postavam na abertura das Escrituras como uma fatalidade escrita a fogo escaldante. Quando os físicos lhe puseram nos braços o rolinho de carne que de si saíra, percebeu que era uma menina. Dinis, que a mimara todo este tempo, cantou e bailou de alegria.

– Isabel, fazeis de mim um homem feliz.

– A vossa alegria é a minha.

– Há-de esta menina chamar-se como vossa mãe, Constança.

– Que seja boa como ela!

– Há-de casar com o herdeiro de Castela e firmar o trono de Sancho IV. Bom escambo há-de ela valer, dando a Portugal respeito e novas terras.

O povo veio ao terreiro fronteiro da alcáçova acender carqueja seca e alumiar as sacadas do paço. Meteu-se em danças, apesar da nortada fria de Janeiro que soprava das soidões da Guarda. De madrugada, o rei veio sorridente à varanda com a filha nos braços e mandou vir pão, vianda e vinho para todos. Rebentou o povo aos vivas e pôs-se a rogar do terreiro em altos brados um herdeiro varão ao casal.

Não se fez esquisito Dinis; mal Isabel se restabeleceu, retomou as visitas. Tudo correu como dantes. O rei chegava, levava a rainha, cumpria a função e regressava com ela ao cambaleio. É de dizer outra vez: pobre Dinis! Queria amor ardente, sazonado pela paixão, e tudo o que obtinha era aquele esforço frio por cumprir um dever. Não se entendeu ainda a dor deste homem. Quando se perceber, não mais se verá em Isabel a padroeira das mulheres atraiçoadas pelos maridos. Que engano! Aqui tem o leitor mais um enredo histórico que anda mal contado. A História é uma patranheira em que não se pode confiar. Na verdade, apesar de tudo, que muito foi, era Dinis que merecia o galardão do sacrifício. Não é necessário fazer de Isabel de Aragão uma vítima do casamento, para ela ser grande. Basta-lhe num caso assim o sofrimento em que se viu para ter grandeza e merecer compreensão.

Voltou a encher a rainha e voltou a vazar. Desta vez a maré amniana deixou no almadraque entre aparas de sangue um varão, que logo mostrou ar robusto e promissor. Alegrou-se o povo com a nova, bradando para que lhe pusessem no patim o herdeiro, e rejubilou o rei. Não era grande o júbilo, que a palha não chegara a pegar fogo, mas ainda assim dava para sossegar sobre o negócio do reino.

– Desta vez há-de chamar-se Afonso como meu pai.

E lá foi com o trapinho murcho de carne nos braços mostrar o herdeiro ao povo, que de novo comeu, bebeu e bailou em dia de nortada fria. O produto daquele ventre saía sempre em dia mais cortante que lâmina afiada de armeiro. Ainda assim o povo aclamou-o com tais brados e tais ânsias que se diria que lhe mostravam o Sol ou o messias e não o recém-nascido do paço de Coimbra.

Que não era  messias que estava ali sabemos nós; era tão-só o facínora que deu por nome Afonso IV. Foi o terror do pai, como se verá depois no evoluir da história; foi ele ainda a razão da mãe voltar às angústias do paço de Barcelona e da alcáçova de Coimbra quando de forma tão fria deu o virgo. Depois, quando os pais já não eram deste mundo, até a mulher do filho mandou trucidar em Coimbra, frio de todo ao rogo dos netos. E cá temos nós a história de Inês e Pedro.

Que bandido! Um filho assim chega e sobra para tornar pecadora uma mãe. Só por brincadeira se acredita que o monstro que mandou matar Inês é filho duma santa! O destino é uma anedota! Se mais pecados não tivesse, bastava a Isabel ter dado ao mundo o homem teratológico que se chamou Afonso IV para ser uma pecadora das piores. Mais santa do que Isabel de Aragão é a minha vizinha que não teve filhos. Mas  cheia de pecados, com filhos e cadilhos, é que Isabel me convém. Sem imperfeições e sem pecados um santo é falso, falta-lhe carne e osso; não se distingue duma personagem histórica de papelão, sem gritos nem emoções. Louvemos pois as faltas de Isabel de Aragão. Os pecados são um sinal de vida autêntica, de sangue ardente e vivo, e merecem por isso todo o respeito.

A imperfeição de resto neste mundo é tudo. Até Deus, se existe, só vale pelas suas imperfeições. O Deus omnipotente das religiões do Livro, livre de imperfeições, é um absurdo e uma abominação. Como é que um ser assim prodigioso, com infinitos poderes, criou uma obra tão vulnerável e tão imperfeita? É inimaginável conceber um Deus omnipotente diante dum mundo tão sofredor. Se isso acontecesse, quer dizer, se um Criador omnipotente contemplasse a sua obra sem lhe anular a dor e a morte, esse Deus seria cínico ou maldoso; das duas uma, ou se divertia com o nosso sofrimento ou lhe voltava costas. O livre-arbítrio não passa duma treta; pudesse eu dispensar a minha liberdade de escolha diante do destino para apenas praticar o Bem e há muito que teria prescindido dela como duma carga inútil que só me embaraça os movimentos. Essa liberdade não é liberdade nenhuma; é a minha primeira fatalidade de ser condenado à imperfeição. E esta constatação, mais do que me revoltar contra o Criador, torna-me compreensivo para com o seu fardo, instigando-me a colaborar com Ele na redenção da sua imperfeição.


V. A PORTA DA GAFARIA


Momentos há em que na várzea de Coimbra, à luz da tarde, os limos escorrem pelos troncos dos choupos. A cidade parece então estar submersa no salso argento como uma Atlântida em vias de desaparecer para sempre. Vêmo-la deslizar lentamente, com as torres da Sé, a cerca de Santa Cruz, a torre alta, o repuxo duma palmeira solitária, pela parede dum aquário em direcção do lodo e das lamas dos fundos marinhos. É um afundamento imperceptível, porque a velocidade dos corpos no interior da água é lenta; a resistência do líquido, mesmo leve, é muito superior à do ar. Uma mão de quando em quando aflora e acena do interior desse naufrágio, rugosa e branca, para logo desaparecer no turbilhão das águas revoltas. Nenhum cataclismo, apenas a refracção dos raios luminosos do céu na superfície de prata e oiro do rio acciona esse fenómeno entre o artístico e o fantástico que dura o tempo necessário da nossa estupefacção.

Depois do nascimento de Constança e de Afonso IV chegaram novos casos. Em Aragão reinava Jaime II, que viera à pressa da Sicília depois da morte do primogénito. A expansão catalã levava vento fagueiro; punha pé na costa da Tunísia, tomava conta da Sardenha e da Córsega, entrava na Calábria. Castela, fragilizada pelas testilhas em torno da herança de Afonso X, estava em risco de quebrar. Jaime II disputava por isso nos fundilhos da Península as cidades mouras do Andaluz como já antes o avô as disputara a Fernando III. Em Portugal Dinis punha por instantes de lado o alaúde para se entregar à paixão das correições com beleguins e almotacés, correndo em andas o reino de lés e lés. O reino andava em paz, corregido e festivo. Mesmo o clero, de hábito tão feroz com o rei, fiado nos poderes que o eximiam à sua justiça, parecia dobrar a cerviz; Roma levantara por fim a excomunhão em que o reino andava.

Demais, com um herdeiro varão, Afonso, e uma menina, Constança, para maridar em Castela, o povo punha Dinis no altar como se lá pusesse jóia sem jaça. O rei realizava de vez o delírio febril de Afonso Henriques, reinando em Portugal e no Algarve, e começava a tomar tanto ascendente no tabuleiro da Península que já por todo o lado corria que os negócios dela não podiam sair da desordem em que estavam sem a sua mão de diplomata. O vaticínio da rainha fazia-se certo e o rei de Portugal caminhava a passos largos para árbitro respeitado. Portugal fora até Dinis um cu de Judas no termo da Terra ou um valhacouto de pilantras, santarrões e vadios; com ele transformava-se num reino respeitável que distribuía jogo e ordenava o mundo. E andava ele no ofício do mando há pouco mais de dez anos, muito se esperando ainda dele.

Isabel por sua vez depois dos partos ficara exausta. Quando acordou da letargia em que andara dois anos, escusou-se ao rei de mais viagens, nos saltos do churrião e nos perigos dalgum desvão. Tinha agora dois engulhos no berço e ainda que o seu instinto maternal fosse parco pedia sossego. As crianças, sôfregas e roazes, tinham ama, não lhe bebiam dos peitos, que eram fontes secas, e passavam dia e noite vigiadas por aias. Ainda assim a rainha olhava pela casa; dispunha das conta, punha ou tirava pessoal, cuidava do enxoval, que era grande e quantioso. Tudo lhe serviu pois de escusa para deixar de andar no préstito do rei. Isabel, ao contrário de Dinis, era uma estática que só na imobilidade encontrava o eixo da vida. E mesmo  mais tarde, quando se tornou peregrina, foi como se o movimento perdesse a mobilidade e ela andasse parada. Há milagres que estão ao alcance de todos; este é um deles, andar sem sair do mesmo sítio. Não é sequer preciso ser santo; basta marcar passo. O inverso ainda é mais pândego e também é verdadeiro. E é por isso que eu já fui a Marte, ao anel de Saturno e até a Vega sem sair da minha cama.

Respirou fundo Isabel, olhos fechados, sorriso leve de satisfação, quando pela primeira vez viu o préstito real fazer-se à estrada sem ela. Ficava no casarão vazio da alcáçova com meia dúzia de cuvilheiras e o pessoal escolhido para tratar dos sarilhos que tinha no berço. Começou para Isabel um tempo intervalar. Por um lado retomava os hábitos velhos do paço catalão, garantias certas de sossego e recolhimento, e por outro farejava na vacuidade do paço uma novidade que não divisava qual. Foi época em que sem saber por quê lhe subiam ao espelho da recordação os primeiros momentos da sua consciência no beiral de Montjuich. Era devaneio que lhe vinha às tardes, na hora de solidão, quando na sombra e no silêncio as meninas encostavam a face ao cabeçal para curta calma. Sem objecção, estava entregue à melancolia da idade; nem Sancha nem Berengária, nem pai nem avô, andavam já neste mundo e lá dentro nas cestas forradas a linho dormiam os pequenos levitas. Não se conformava para bem dizer com destino assim mediano e monótono, ainda que no lance, com os corredores sem amparo, os brandões de piche a arder na solidão, não percebesse bem onde estava o percalço que havia de a roubar àquela mornidão.

Uma manhã, já a hora terça batera e voltara a bater, veio ao pátio das traseiras tirar o torpor dos membros e desenxofrar o olhar. Começava a ressentir na vista lustros de fio ensartado e linha cruzada no ponto da agulha. Em geral não havia por lá ninguém. Ela fechava os olhos, recitava para dentro um pater, ficava por um momento a escutar o rumor distante das vozes nas quelhas da igreja de São Pedro e recolhia de novo à câmara para continuar as rezas e as voltas de mão.

Naquele dia, quando concentrava o espírito nas primeiras linhas do pater, pater noster, qui es in caelis, sanctificetur nomen tuum, adveniat regnum tuum, sentiu um murmúrio confuso por perto. Abriu os olhos e viu uma sombra escura a marinhar no muro de taipa. Tinha os olhos  mareados de sombra e demorou a entender o que se passava defronte. Percebeu por fim que era uma das cegas que tinha a cargo. Contemplou-a com atenção. Era velha mais vetusta que os soutos que abriam as braçadas assustadoras nos cerros de Viseu. As gengivas estavam mais descarnadas que pedreira que tivesse sido limpa para erguer barbacã; as mãos tremiam como folhas em tormenta; as canelas eram duas varas finas e trémulas; os olhos então eram mortiços e baços como dois pedaços frios de cinza. A mulher não se atrevia a dar passo, temerosa que o pé trémulo, em corpo mirrado pela exaustão, lhe resvalasse para algum tropeço.

Teve Isabel um violento abalo. Por um momento ficou ali paralisada. Toda a tensão do mundo se concentrava naquela cega presa ao muro, como aranha tola complicando a teia, mãos presas à boca, olhos arregalados de aflição, pronta a soltar um grito de horror. Observara vezes sem conta, quer em Barcelona, quer em Coimbra, os cegos que tinha sob responsabilidade. Sempre se apiedara mas sempre se furtara a qualquer abanão. Aprendera desde os primeiros tempos de Montjuich a administrar o mal-estar. Orava, ensartava, salmodeava, abrigava com as dobras rendeiras uma linha de cegos, metia à sua conta nas cozinhas os vadios mais chaguentos; isso lhe bastava para se aguentar e ter da vida uma imagem sofrível. Era a angustiada por dentro que se sabe, mas ainda assim fabricara um equilíbrio aceitável.

Evitava por isso vir ao convívio com os pobres que recolhia. Também os cegos que tomavam agasalho debaixo do seu tecto não viviam na sua proximidade; tinha servos especiais para deles cuidarem. Só por caso fortuito os vislumbrava no pátio ou nas hortas da alcáçova, tomando o Sol nos dias limpos de Primavera ou brincando com a cachorrada nova. Nessas ocasiões deitava-lhes um olhar furtivo e distante, anuviado pela dor, e logo se recolhia aos aposentos para se confessar ao director espiritual que tinha por perto ou para se entreter com o trabalho de mãos, que era a forma mais acessível que conhecia de trocar a dúvida pela certeza.

Desta vez era diferente; não encontrava modo de voltar costas. A cega que tinha diante de si pregava-lhe o corpo ao solo. Pensou nas senhoras que ensartavam fio, esperando por ela, mas não foi capaz de desandar. Estava petrificada no lajedo do pátio, com os murmúrios de São Pedro por detrás e as últimas ondulações do Pater a evolarem-se para o azul do céu. Um sofrimento picou-lhe fundo a alma, arrancando-lhe do rosto um trejeito de dor. A velha continuava perdida no largo oceano do sofrimento. Avançara entretanto dois passos, mas imobilizara-se, exausta e desnorteada. Isabel via-lhe a boca perdida, a latejar no vazio, tentando arrancar de dentro um grito que não saía. – Demais de cega, não bota fala; é muda como as pedras que aqui piso – pensou Isabel com tristeza.

Tal como outrora, nos fundos da infância, se precipitara para a frente, tomando nas mãos os despojos de penas que se convulsionavam no chão, também desta vez o impulso foi avançar às cegas para o corpo que ali se contorcia. Amparou-o nos braços e deu-lhe caminho para o casão onde se abrigavam os cegos. Depois ela própria levou pela mão a pobre velha ao almadraque. Deitou-a, passou-lhe a mão pelo rosto carregado de carquilhas e esperou na sombra que o sossego descesse à comoção daquela Maria-Gomes.

Ao lado, na escuridão, gemiam outras almas, fazendo do depósito um povoado infernal de sombras e aflições. O mais aflitivo eram as crianças cegas de nascença, de pálpebras cozidas, que corriam ao desamparo, tropeçando umas nas outras, movidas pelo impulso de gracejar. Com a pureza da inocência, viviam desde sempre imersas no pó da caligem negra; nunca haviam gozado um raio de luz e tudo o que conheciam do mundo eram ruídos, trevas, gemidos. Nelas qualquer diversão acabava em dor e desgraça. Em momentos assim voltava à alma de Isabel uma perturbação sem fundo. Que Deus cru e feroz cosera os olhos daqueles seres inofensivos? Apetecia invectivar o Criador, pedindo-lhe contas dum tal desconchavo.

Nisto, sem que Isabel pudesse sequer retomar o equilíbrio das suas razões, que pesavam na balança do anjo aquilo que fora o primeiro tirocínio na corte do avô, uma serva assomou à porta do edifício, decerto com a tarefa de vigiar a espaços o convívio dos cegos. Depois de espreitar para o interior, habituando os olhos à escuridão que ali governava, levou os dedos das mãos à boca e soltou um grito de surpresa.

– A rainha! A rainha! Todos de pé! – exclamou como se desse ordem de formatura a soldados.

Logo a mole dos cegos se agitou confusa e perdida. Uns apalpavam o ar à espera de sentir uma novidade, outros levantavam-se compondo com atabalhoação o brial ou o zorame, outros ainda abriam ao céu a boca vazia de pasmo, braços caídos ao longo do corpo, como se o som alígero que ali voara fosse intolerável. Nunca a rainha portuguesa, a primorosa senhora que viera dos Pirenéus, a rosa de Aragão, a neta de Manfredo, desceria até à estrebaria da casa.

– É a rainha! É a rainha! – começaram entretanto as crianças a gritar com espavento.

E sem demora o grito, verdadeiro ou falso, repercutiu em todas as bocas como um alarme de fogo. Isabel pelo seu lado, constrangida por toda a agitação, tudo o que deu em fazer foi pegar na mão da pobre velha que continuava estendida no coxim pobre, arfando no vazio, insciente de tudo o que corria em seu redor. Assim ficou por um largo momento, até que à porta assomaram as camareiras de sua casa, inquietas com tão larga ausência. Não tardou que a levassem de volta, no meio da gritaria desatada dos cegos.

A experiência foi um momento de ruptura na vida da rainha. Fora até aí uma reclusa, um pássaro na gaiola doirada dos paços reais; passou a ser a partir dessa manhã um pássaro de céu aberto. Nessa noite, no recato do leito, recordou as impressões do que vivera. A agitação, o ruído, os repelões, as visagens cruas, a inocência martirizada. Mas sobretudo o que se lhe entranhava na memória era o momento em que tomara na sua a esburgada mão da velha. Voltavam-lhe as impressões de Montjuich; só que agora ao desgosto fundo, à amargura moral desse tempo inicial, somava-se uma desconhecida corrente de calor, um influxo quente de vida. O que sentia não era de todo novo e prolongava os requebros em que ficara quando tomara, ainda no paço do avô, os primeiros mesquinhos a cargo. Por excepção, por graça, por fantasia, fosse pelo que fosse, o júbilo desta mulher não residia no instinto da procriação, nem mesmo na conservação, mas apenas por inteiro na compaixão diante da dor. Para além das suas faltas, que a fazem igual a todos nós, ela teve o dom – infelizmente excepcional – de mitigar a dor dos outros. Aí residiu o seu prodígio, que fez e faz dela um modelo intemporal.

E na manhã seguinte, sem perceber por quê, quando precisou de desentorpecer os membros e de aliviar a concentração da vista, deu com ela a caminho do barracão onde no dia anterior entrara pela primeira vez. Mal se mostrou na entrada, os cegos, por uma entranhada intuição da condição em que viviam, perceberam de imediato quem ali se postava. E logo se levantaram aos gritos, no tumulto ruidoso anterior, erguendo para ela os braços suplicantes.

– Senhora! Senhora! – exclamavam reverentes e implorantes.

Ela, vendo aquele mar de varas trémulas, avançou de olhos vidrados no vazio e foi apertando as mãos que se debruçavam sôfregas para si. Rebentou então uma explosão de alegria na mole dos cegos.

Nessa noite mais se acentuou dentro de si a impressão de calor que sentira na noite anterior. Era o requebro de antanho a crescer, a enflorar em perfume dentro de si. Sentia uma torrente de lava a correr no sangue e uma essência olorosa a espalhar-se no ar. Esta sensação de bem-estar não parou de se multiplicar ao longo da vida da rainha e foi com certeza a forma que um ser sem instinto de procriação, centrado apenas no desejo de mitigar a dor de tudo o que vive, teve de experimentar as volutas lúbricas da volúpia carnal.

Ainda assim o episódio do dispensário pôs a descoberto um azedume. Olhou para o passado e a si mesmo se recriminou de ter vivido longe dos mesquinhos. A caridade que praticara, acomodando em dispensários os cegos e recebendo nas cozinhas os miseráveis, enquanto ela broslava fio de oiro em seda de Chipre ao pé dos escrínios, pareceu-lhe uma ofensa. Desgostou-se de si e das suas atitudes. O amor da Boa Nova não se confundi ao ofício em que ela andara. Por um momento o frágil equilíbrio que a aguentara ao de cima da vida tremeu. – Melhor andou minha tia Sancha, quando abalou do paço com um pano de burel e um alforge roto para as esmolas – pensou ela, com a cara molhada de lágrimas. Mas a acrimónia do momento era irrisória ao pé do bem-estar que recebia. Tocar nos mesquinhos, andar próxima deles, sentir-lhe o cheiro, procurá-los para deles cuidar, era curiosidade para ela mais palpitante que a do amor novo, faiscante, é para o homem comum, que vive para procriar e comer.

E nos dias seguintes voltou ao pavilhão dos cegos, recebendo no colo as crianças e acarinhando com os dedos as sujas farripas dos velhos. Mas não se contentou com isto e avançou para as cozinhas à procura dos pobres que tantos anos alimentara e nunca se dignara ver. Recriminava-se agora com inusitada virulência da atitude de indiferença de que dera provas. Foi com comoção que uma manhã se sentou no meio dos mesquinhos que os guardas traziam às cozinhas da alcáçova; com eles rezou o Pater, abençoou e partiu o pão que ela mesma comeu à mesa da cozinha para espanto dos servos e das camareiras. Nas quelhas da cidade depressa a nova correu para espanto de todos.

As novas da rainha espalhavam-se como pólen imponderável levado pelo pé-de-vento da Primavera; de todos os lugares chegavam filas de gente às margens do Mondego para a ver. Uns entravam pelo caminho de Celas, outros desciam a margem direita, dos povoados a montante, à procura da igreja de São Tiago e da porta de Almedina. Até a ponte da margem esquerda tinha filas de miseráveis à busca de entrarem pela porta de Belcouce ou de se juntarem aos que enxameavam o terreiro de São Tiago. Todos vinham à cerca da Alcáçova gritar pela rainha. Os soldados, a princípio, remordidos pela cheia, mostraram-se violentos, empurrando até aos seixos do rio, na ponta dos piques, a chusma de gente ardente, mas logo a rainha deu ordens para os deixarem estancear pelas quelhas da cidade. Ela mesma veio às escadas da Sé mostrar-se, rosto velado pelo véu, os olhos bailando ao de cima da névoa de tule como dois astros brilhantes na aurora da manhã, os panos brancos e cheios, compostos no comprido do rosto. Continuava a mesma de Montjuich, quando na latrina defecava e urinava sem sequer olhar para a cor dos pés, quanto mais para os cabelos, sempre encoifados. No paço tinha os dois ratinhos pendurados aos peitos das amas, com uns tantos colaços de mistura. Ainda assim era como se aquilo fosse tanto com ela como com os penedos das brenhas que ficavam ao pé dos franciscanos da ponte. O corpo andava-lhe sempre enrolado em voltas e voltas de sarja.

Deu o pano do manto a tocar às mulheres e recebeu no colo as crianças de peito que as mães lhe estendiam. Depois ordenou aos servos que na cerca do claustro pusessem tinas de vinho e armassem uma tenda aberta com travessas de roscas de pão dentro e trutas do rio passadas nas brasas, que ela abençoou e distribuiu aos que com ela quiseram comer.

Quando o churrião do rei chegou uma manhã a Coimbra, estavam as coisas neste pé. Mal Dinis deu conta da multidão a correr nas vielas da cidade, uns dormindo nos beirais com ressono de fazer levantar um surdo, outros bailando e trauteando, outros ainda comendo e bebendo de covilhete, ficou de carranca dura. Disseram-lhe os besteiros que fora a rainha que armara tal arraial e que não houvera modo de a demover. Há dias que se andava naquilo e a toda a hora chegava gente dos povoados e dos lugares ao redor, atraídos pela folia e pelo bodo. Coimbra fizera-se colmeia de mel e atrevimento; até tamancos de pau a rainha andava a distribuir no andurrial das ruas.

Não hesitou o rei em mandar limpar os piornos que por ali brotavam. Em menos de nada a brotoeja desapareceu e as quelhas da cidade voltaram a fazer-se o deserto estéril de antanho. Batiam os mesteirais para os ofícios, pregoavam os azeméis uma peça de brocado ou uma almotolia de azeite, vinham as mulheres em silêncio das hortas embrulhadas na capa escura cotiada, não mais. A ordem descera outra vez sobre a Nínive portuguesa; as águas do Tigre andavam de novo apertadas nas condutas domésticas.

Ainda nem as bruacas haviam pulado dos carros e já o rei mandava chamar a rainha ao salão. Descalçava as luvas poeirentas, quando a rainha se postou a medo no arco de entrada. Mal o rei vislumbrou o desenho alto da rainha, logo os ardores mudaram a direcção. Vinha para reprimenda, mas acabava na espera dum beijo.

– Senhora, Coimbra levantou-se num tumulto e houve queixas dos ricos-homens à minha chegada. Diziam eles – nunca se viu na nossa terra despeito assim; parece que estão de regresso os dias de vosso tio. – Todos me pediam mão dura contra a jolda dos mendicantes que aí bailavam e foliavam. Sabei que até Santa Cruz, a quem tanto o reino deve, me veio fazer queixas da rainha.

– Santa Cruz? Como assim, senhor?

– Que nunca se viu em Portugal, à cabeça de távola, entre o povo ou os ricos-homens, uma rainha benzer o pão. Isso é obra de clérigos, não de leigos e menos ainda de mulheres.

– Assim vi fazer no reino de Aragão e Catalunha a minha mãe. E o mesmo se dizia de minha avó que veio da terra dos magiares.

– Sossegai, senhora. As queixas dos crúzios não me apoquentam; discretas e caladas são elas. Em maior perigo andou a coroa de meu pai com a Igreja e dela se salvou. Mais me molesta o que aventaram os ricos-homens dos beberrões que dormiam nas quelhas com o papo cheio de vinho. Mesmo os vizinhos de São Pedro e São Miguel expuseram agravos e pediram reparações.

– O povo é bom, senhor. E precisa de quem o gasalhe.

– Eu e o povo também nos entendemos. Mas só à noite, depois dos corregimentos, quando avonda a escuridão e as comarcas caem no sossego.

E como lá fora, em todas as igrejas de Coimbra, se pusessem a tocar as badaladas pomposas do ofício de véperas, desceu o rei ao pátio para curar das bagagens. Nessa noite, arrumado no cabeçal, voltou-lhe o desejo da rainha. Ela tinha pouco mais de vinte anos e a caruma havia de secar ao jeito do fogo. A esperança era uma pedra que não desmoronava. No dia seguinte voltou Dinis a procurar a rainha, desta vez para, ao modo sabido, fazer a corte à rainha. Não se emendara ainda nem da arteirice nem da paixão.

– Senhora, o povo adora-vos e não vê chegada a hora de vos ver. Como eu os compreendo. Também o rei só desejava regressar a Coimbra para vos ver. Vinde… vinde… aproximai-vos de mim.

Chegou-se a timidez de Isabel a Dinis, que a levou num abraço terno para o coxim de seda que tinha ao lado do escrínio maior. Por cima ardia uma colgadura vermelha.

– Santa Maria val! Morria de apertar vossas mãos nas minhas. Se hoje não as visse estoirava. Encurtei a volta para chegar mais cedo a Coimbra. Góis ficará para a próxima.

– Senhor, pouca coisa retardou a vossa ida a Góis.

– Que dizeis?

– Que valho menos que vossos corregimentos! Sois um rei mimado, que se engrandeceu pelos bons actos e pelo cuidado em que tem as gentes. O povo aclama-vos como um pai justo e sage.

– Melhor me ia o vosso amor. Anseio mais por vós, senhora, do que pelos vivas do povo. Minha mãe deu sete filhos a meu pai, três por dever para com o reino, quando ainda era tão gaiata que mais lhe doía que prazia o que fazia, e os restantes por amor e gosto. Sois muito nova, senhora; o mesmo vos há-de suceder. Venham toste mais dois. Que digo eu? Dois? Não. Hão-de ser pelo menos cinco.

E com esta esperança não demorou o rei por Coimbra, senão o tempo de fazer duas momices aos filhos. – Hão-de dar bons enlaces – satisfez-se. E bateu para Góis e para as terras do Leste a tomar letras dos alcaides. Logo deixou a mulher para mais tarde, voltando às gualdranas. Sentia-se viril e capaz de abraçar um harém; se a mulher não lhe matava a sede, outras lhe trariam da fonte o cântaro cheio de linfa fresca. E havia muita rolinha a arrolar na pedra dos castelos. Sem perceber como viu-se de regresso ao passado próximo, quando os vilões lhe metiam na cama as filhas por desflorar e ainda lhe davam um maravedi. Desta vez, porém, não sabia porquê, tinha na alma a esperança de que a próxima volta lhe trouxesse de vez, e por vontade dela, Isabel aos braços. Pensava Dinis como qualquer um de nós: – é petisco de vinte três ou vinte e quatro anos, que ainda há-de espremer pingo e pingo grosso.

Na ausência do rei, recebeu Isabel na alcáçova de Coimbra um pedido de visita duma senhora da cidade. Até aí haviam sido espaçados e frios os contactos da rainha com a nobreza do burgo do Mondego; apenas nos momentos em que o rei se encontrava a residir na alcáçova a rainha se preocupava em receber as famílias nobres, ainda assim ao lado do rei, nas recepções e saraus de menestréis em que este era vezeiro. De resto só para procurar amas para os filhos se misturou na nobreza do burgo. No restante, que era ainda muito, a rainha portuguesa vivia recolhida nos restos da sua comitiva, tecendo o retiro sóbrio a que desde cedo se habituara na casa do avô. Nem a presença de Leonor Afonso, a viúva do conde Gonçalo de Sousa, conseguiu mudar a fortaleza ameada em que a rainha portuguesa se defendia. Salvante isso, havia a correria do povo para ver a rainha, que desde a partida do rei para as cordilheiras de Leste começara de novo a engrossar.

Desta vez porém o encontro não tinha escusa. Tratava-se de senhora viúva da velha nobreza coimbrã, chamada Mor Dias, que vivia recolhida sem votos no convento das Donas, na cerca de Santa Cruz e na dependência dos crúzios. Recebeu-a a rainha na sala do trono, pensando tratar-se de assunto de corregedoria, relativo a bens de herança ou marcos de propriedade, casos muito comuns na cidade.

– Deus vos salve, senhora. Boas graças vos dê o alto Deus por todo o bem que de vós corre. Há muito que em São João das Donas se fala da piedosa rainha de Portugal.

– Deus vos salve também, senhora Mor Dias. E que se diz por São João das Donas da rainha?

– Que herdou a gentileza de sua tia Isabel da Hungria, que deixou nesta Terra as melhores lembranças. Nem o mau talante dos parentes a embargou nas suas boas obras.

– Sou a mais mesquinha que a roda do Sol viu, boa dona. Minha tia, a landegravina, teve outras mercês. Mas a que vindes vós?

– Ouvi dizer que el-rei rei pôs empacho à vossa última obra em Coimbra. Os besteiros ameaçaram o povo.

– Correram queixas dos ricos-homens e os mesteirais das traseiras da Sé pediram desagravos.

– Ao que se diz, com a partida do rei para Góis, a caminho da Guarda e de Pinhel, o povo regressou dos lugares e não hesita mais em vir à cerca da alcáçova aclamar-vos, desafiando as ordens del-rei.

– Assim é.

– No regresso del-rei as exposições de agravos da parte dos ricos-homens e dos mesteirais da Sé serão muitas. Até os frades de Santa Cruz, retirados na ponta da cidade, começam a murmurar contra certas atitudes vossas.

– Ora os reparos de Santa Cruz… El-rei não se põe em cuidados por tão pouco.

– Melhor é não dar ensejo a vozes, mesmo quando as vozes são sinal de direitura. Julgo ter boa solução para vós, senhora.

– Confio na brandura del-rei, meu esposo e nosso senhor. Mas que propondes?

– Possuo um terreno na outra margem do rio. Estou na disposição de o ceder para se fazer uma casa de religiosas. Nela se devem recolher religiosas devotadas a receber pobres doentes, debaixo do exemplo de vossa tia.

– Quereis então fazer uma casa de religiosas?

– Sim, mas aberta ao mundo. Em vez duma prisão, como aquela em que vivo, um hospício de caridade.

– Parece-me ideia assisada. Quando quereis começar?

– Quando vós o ordenardes, senhora.

– Vinde então às manhãs para falarmos em tudo de espaço e combinarmos o momento azado.

Juntou-se Mor Dias ao círculo da rainha e começou a vir depois das badaladas da hora prima salmodear e ensartar com as damas que viviam em seu redor.

Era senhora idosa, muito mais cediça que as donzelas arribadas da Catalunha, que se recolhera dentro da cerca do mosteiro dos crúzios, na dependência de senhoras que por lá havia, ainda no tempo do rei Sancho ou nos primeiros de seu irmão, pai de Dinis. Era pois quase tão vetusta como os olivais das traseiras da Sé de Coimbra. Assistira à fundação do conventinho dos franciscanos da ponte e com eles lhe chegara o tirocínio da vida do santo de Assis, isto ao tempo em que eles vinham ao postigo de Santa Cruz mendigar as avenças da instalação. Deles ouvira ainda a história de Clara Offreduccio de Favarone, que dera toda a fortuna e fora recebida em Porciúncula por Francisco, e a de Isabel da Hungria que inspirada pelo exemplo de Francisco e Clara batera feita mendiga as florestas da Turíngia. Não entrara em Celas, fundada pela infanta Sancha duas gerações antes, e que era a casa das senhoras ricas de Coimbra, porque não queria tomar ordens. Santa Cruz recebera-a sem profissão e por lá ficara então nesse regime, que melhor lhe assentava, como viúva de providos bens, com muito assunto jurídico para acautelar, que a clausura dos votos.

Andou a rainha a cogitar na oferta de Mor Dias. Todos os dias, antes das badaladas da hora terça, ia ter com os cegos; estes deitavam-lhe a mão como se tivessem ali a luz que não conheciam. Depois dava ordem que se abrissem as portas da alcáçova e recebia os miseráveis para o jantar do meio-dia. Ela mesma presidia à távola, benzia e partia o pão. Os besteiros do rei espiavam-lhe os movimentos, mas não se atreviam a ir contra os actos. A princípio tentaram impedir a turbamulta de se juntar na cerca da Sé ou nas traseiras da alcáçova mas em breve, com a intervenção da rainha, baixaram os braços e deixaram fazer. Limitavam-se a impedir os ajuntamentos à hora nona na cerca da Sé, empurrando a multidão para a margem do Mondego, fora de portas, que ali campeava até à manhã seguinte num arraial sujo e ruidoso, que se estendia até aos primeiros lugares, já depois das ínsuas de regadio, a nascente. À hora terça os soldados voltavam costas e deixavam os míseros subir à alcáçova, onde a rainha os recebia. Os ricos-homens, os clérigos, os homens-bons da cidade e alguns mesteirais mais ricos rosnavam baixo contra a turba-multa dos adstritos que por ali vadiavam debaixo da capa da rainha; aguardavam a chegada do rei para lhe encherem o alforge de agravos e rogos.

Bem percebia a rainha a tranquibérnia que andava a tomar forma no céu ou no inferno das cabeças. Por esse motivo não se esquecia, depois de vésperas, quando o céu tinha aquela claridade dilacular em que tudo transparecia num livor de luz, de subir ao revelim da alcáçova para espreitar as brenhas da margem esquerda e namorar o solitário terreno da senhora Mor Dias. Era propriedade muito extensa, de aluvião, em terreno solto e sem pedra, protegido das invernias frias pelas altas fragas que lhe ficavam à ilharga. Estavam ali, com largueza certa, trezentos ou quatrocentos ares de terra, o suficiente para abrir os caboucos duma cidade nova.

Não havia dia em que Mor Dias não falasse à rainha no gosto que punha na nova fábrica. Já falara com os mesteirais da cidade e tinha um batalhão de pedreiros e carpinteiros prontos a virar obra. A rainha recebia-lhe bem as palavras, mas ia adiando o toque de partida, ou porque se sentisse bem, com a alcova dos filhos por perto, ou porque receasse a novidade da circunstância. Certa vez, na hora nona, quando a chusma dos vadios já regressara de saco cheio ao ripanço da margem do rio, apressou-se a velha senhora a interpelar a rainha, semblante inquieto.

– Senhora, diz-se que el-rei está de regresso do Douro.

– Já mo disse Leonor Afonso. Está tudo disposto no paço para receber el-rei.

– Não tardará que aviste Celas ao que corre. Ontem pousou nas soidões do Buçaco, a poucas léguas de Penacova, e amanhã poisará no Lorvão. Muitos vizinhos estão já a sair a porta do Sol para esperar el-rei nos caminhos e fazer rogos de desagravo ao lado do churrião real.

– Não vos apoquentais, senhora. De tudo estou a par. El-rei é manso e põe cuidado no seu povo.

– Embora.

E na manhã seguinte, quando Dinis se punha a caminho de Celas para entrar em Coimbra, saiu a rainha da alcáçova vestida até à alma com as saiotas de pano escuro em que sempre escondia o corpo, até de si mesmo. Da cara, bem apertada pela sarja branca das várias roupilhas que se lhe apertavam por debaixo do queixo, só se lhe via o palmo que ia da linha dos olhos à linha da boca, desta vez sem véu de viúva ou de donzela. Na mão levava um bordão alto, como se em lugar do Mondego fosse fazer a travessia das ondas do Atlântico. Ladeavam-na, cada uma de seu braço, Vataça e Mor Dias. Por trás a chusma dos cegos, mão na mão, ajudados pelos servos, revirando os olhos baços e dando brados.

– A rainha! A rainha! Senhora e mãe…! – exclamava-se.

Desceu o grupo a encosta da Sé, à procura do largo de Belcouce. Saíram a porta e dirigiram-se para as areias do rio, onde se amontoavam os vadios que iam comer ao paço com Isabel. Apresentou-se a rainha à frente da chusma que tinha consigo e ergueu ao céu azul o braço direito, fazendo depois com ele um amplo movimento de convite. Logo um burburinho se levantou no arraial dos adstritos; corpos e corpos, envoltos no burel roto e sebento dos zuraques pobres, ergueram-se num pulo e patas encardidas no caminho, sorriso tolo na boca desdentada, grenha azeda, foram ao encontro da rainha. Em pouco tempo, tomava esta a cabeça duma enorme multidão que se pôs em movimento em direcção da ponte.

Que emoção ver Isabel de Aragão neste transe! É o primeiro momento fulgurante da sua vida, o primeiro em que ela superou colectivamente a mediania da casta em que nasceu. Mediania e não grosseria, pelo influxo das teorias gibelinas no Aragão de Jaime I e Pedro III. É belo perceber a badalada sentimental que dentro dela bateu no paço de Barcelona, quando abeberou na consciência a morte e a doença, mas é sublime segui-la em Coimbra, quando despertou para a vida colectiva e se ligou de corpo e alma à existência dos miseráveis. Aquele bordão que usou na primeira marcha em direcção dos terrenos futuros de Santa Clara é um estandarte de rebelião. O resultado final deste processo serão as festas do Espírito Santo. Mas por ora estamos ainda muito longe desse momento final; situamo-nos apenas no grão de origem. Ainda assim, que emoção! Sigamos a rainha e os seus.

Abeirou-se a multidão da ponte do Mondego. Diante seguia a rainha, que dava a mão à pobre velha das carquilhas que fora a causa da volta-face recente da rainha. Alguns homens-bons da parte baixa da cidade, alertados pelo tumulto, concentravam-se na porta de Belcouce de mistura com os besteiros e os peões de pique que por lá faziam o serviço do dia. Também dos terreiros das duas igrejas baixas, São Tiago e São Bartolomeu, haviam acorrido alguns tendeiros e mercadores. O pasmo passava por aquelas caras grossas como a sombra duma nuvem esgarça corre nos campos quando o Sol lhe bate de chapa. Tão invulgar era a cena que ninguém se lembrava de dizer palavra. Os mais ousados ou curiosos avançaram alguns passos para observar ao pormenor aquilo que nunca se imaginara na terra portuguesa, uma rainha à frente dum batalhão de farroupilhas. E eis porque Isabel de Aragão é uma figura da actualidade, que bem merece o nosso interesse, apesar de ter vivido há sete séculos; ela vale muito mais que uma parte do nosso presente, distraído e perfunctório, sem pinga de proveito. Por isso um poeta como Mário Cesariny a homenageou e eu a comparei lá para trás a Simone Weil. Mas voltemos à cena.

A mole de gente avançou pelo lajedo com a rainha de bordão e a velha das carquilhas na dianteira. Por baixo cachoavam as águas do Mondego misturadas às do mar, que entravam de roldão na Foz, submergiam os campos da Ereira, beijavam os pés de Montemor e chegavam, ainda vigorosas e salsas, às terras arenosas de Coimbra. Piavam as gaivotas, andavam umas tantas faluas a descer e a subir o rio com barricas de sal e toros de castanho, ascendia ao céu uma linha de fumo azul nas traseiras da ponte, viam-se fora de água as ruínas do mouchão grande. Um vento fresco e seco chegava de poente, levantando carneirinhos brancos na extensão da água. As gentes avançavam a custo, de braços abertos, suspensos quase nas linhas do vento. Voavam, guiados pelo voo a pique do peneireiro; aquilo parecia a travessia do Mar Vermelho com Moisés à frente, na busca da Terra da Promissão.

Quando chegaram ao outro lado rio, deram com os franciscanos a espreitarem assustadiços ao postigo. Nem a figura da rainha, que bem conheciam, os tirou do susto; nenhum veio a terreiro beijar a mão de sua senhora e saudar a chusma dos desamparados. Viviam uma vida mediana e satisfeita; não lhe faltavam as couves tronchudas nem o borrego taludo, menos ainda o palhete claro que vinha todos os anos nas faluas do rio de jusante. Para quê meadas e sarilhos? – Passem, pois, e adeus. – Não tardou que o postigo se fechasse discretamente e o silêncio governasse a casa.

Daí pouco chegava a gente ao terreno de Mor Dias, sobre o lado esquerdo da ponte. Logo a rainha chamou com os braços a multidão.

– Sentai-vos – falou com voz forte –. Doravante esta é a vossa casa. Em breve virão braçadas de rosca de pão e vinho. Comei e bebei.

Um murmúrio de pasmo correu pelo rancho de gente. Acomodaram-se na terra para gozar agora os favores da margem esquerda. Logo na boca da ponte se viu chegar um carro da rainha puxado por duas mulas e governado por dois servos. No porão vinha um carrego de pão e vinho. Reboou na abóbada artesoada do céu um grito de satisfação.

Nessa tarde, depois de vésperas, entrou o rei na estrada de Celas. Vinha das terras do leste e trazia a cabeça cheia de fantasias. Visitara as terras do Côa e metera-se nos devaneios de as trazer à coroa portuguesa. O tempo das avenças com Castela havia de chegar com vento a seu favor; a precisão em que Sancho IV andava de ganhar gente por ele na guerra que tomava com os primos era tanta, que em troca do seu favor lhe daria não só o Côa como o Algarve e ainda, se lhos pedisse, os anéis do bispo de Valadolide, mais gordos que cachalotes. Para maior embaraço o casamento com Maria de Molina demorava a ser reconhecido.

– Quem lhe há-de querer os filhos, senão a troco de boas avenças? – perguntava o rei com satisfação aos privados, gozando já o vantajoso cairel que havia de tomar em Castela.

Para estragar os sonhos doces em que embalava o cogitar, tinha uma mão cheia de vizinhos à sua espera nas curvas enoveladas que antecediam Celas. Um deles, mais avantajado, de garnacha talar, desbarbado e glabro, seu conhecido da vereação, adiantou-se e tomou a palavra.

– Senhor, voltaram os desconchavos a Coimbra. Tresanda a bodum naquelas quelhas que é de fugir para Mafoma. Melhor se anda nos braços do Demo do que naquelas infortunadas ruas. Que deu à rainha para se rodear agora de malvados e de ladrões?

Ficou sisudo o rei com a pergunta do vilão. Não gostou, mas calou. Havia de ver primeiro o que se passava, antes de dar palavra ou mandar escarmento. Pediu ao pagem um cavalo fresco, montou e bateu na frente do préstito para Coimbra, onde entrou daí a pouco. Anoitecia e ia um reboliço no paço nunca visto. Num sopetão lhe relataram os acontecimentos do dia. Num rufo galgou a escadaria do miradoiro para tomar notícia da margem esquerda. Arregalou os olhos de pasmo, mal os pôs além rio. Era um tal estendal de luzes, que mais parecia uma cidade nova que ali tivesse nascido no espaço da sua ausência; das brenhas caliginosas e selvagens de que há semanas se despedira nem rasto. No espanto, sem saber de quê, pôs-se a contar as luzes que por lá via a bruxulear no silêncio da noite que caía. Ao fim eram tantas que desistiu; ainda assim, estava para garantir, para teima sua, que eram mais que as de Coimbra. Estava sem saber se as luzes eram hoste de inimigos, como no tempo em que as águas tumultuosas do Mondego traçavam a linha do reino, ou se bando de vadios, idênticos aos que havia pouco mandara correr de Coimbra.

Desceu pensativo ao salão. Entretanto haviam chegado os churriões do préstito e estalava nova algazarra no pátio. Apurou o ouvido e percebeu que os pagens em vez de darem trato aos cofres da viagem comentavam com exaltação os eventos do dia. Mandou de imediato dois cavaleiros com uma linha de besteiros à margem esquerda.

– A rainha que venha – ordenou.

Estava sem saber o que se passava e só a esposa o podia esclarecer. Pouco faltava para completas, quando percebeu que Isabel estava de regresso no churrião dos víveres, ladeada pelos cavaleiros. Desceu ao pátio para a receber e logo ali a interpelou.

– Parece que alguém pegou em Coimbra e a deixou sem trato. Que se passa, senhora?

– Nada, senhor… nada que vos possa apoquentar. Sossegai.

– Nada? Que me dizeis então ao que vai pelas barrancas da outra margem? Mais se diria que a cidade mudou de lugar…

– Uma senhora de São João das Donas doou um terreno, para que se erga uma casa de religiosas e um hospício. Hoje se procedeu à ocupação da terra.

– E donde chegarão as religiosas?

– De São João das Donas. Mas a regra será a que minha tia da Hungria seguiu, a das Senhoras Pobres. Para tal pedimos o vosso consentimento de rei e pai.

Fez-se o rei desentendido, a um tempo magoado e galante.

– Senhora, antes de chegar a Lorvão mandei um esculca à alcáçova de Coimbra dar-vos notícia da minha chegada.

– Perdoai, senhor. Tudo estava preparado no paço para vos receber.

– Menos vós, Isabel. Andáveis longe e foi preciso ir por vós para aqui vos ter.

– Senhor…

– Calai-vos asinha. Deixais-me doído de tanto descuido.

Ficou Dinis de pensar no assunto da nova casa da margem esquerda e de lhe dar seguimento no dia seguinte. Ponderou o rei no almadraque o caso e não lhe pareceu que viesse cisco de discórdia ao reino por causa de mais um hospício, para mais numa vinha abandonada dos andurriais de além ponte, que nenhum falava ou cobiçava. Nada ali beliscava os interesses firmados das velhas casas de intramuros. Santa Cruz continuava segura à testa da cidade; na Sé palpitava o coração forte da Coimbra velha e moçárabe e a Celas, na saída para o Lorvão, ninguém disputava os lindos olhos de donzela requestada. – A rainha que faça a seu talante nas barrocas de além ponte – pensou. – Ninguém vai ligar mais ao lugar por isso. – E adormeceu por fim com o pensamento nas soidões do Buçaco por onde andara dois dias antes a pensar nas vantagens de ter cairel no Côa.

Com o aval do rei, chegaram os favores do bispo de Coimbra, Aimérico Ebrard, e do vigário-geral da diocese, João de Soalhães; por um largo momento ninguém se pareceu incomodar mais com o assunto dos vadios da rainha. Coimbra voltava a ser a Nínive limpa dos reis de antanho, com a boa fazenda dos almocreves de Bristol e da Flandres nas bancas do terreiro de São Bartolomeu.

Do outro lado do rio, onde há pouco até as zorras pareciam fugir dos silveirais, começavam a trepar as paredes de largos edifícios. Falava-se num dormitório, num hospital, num orfanato, numa cozinha mais larga que a de Celas, num refeitório comum e até numa igreja nova, em estilo sem fausto, num gótico simples e nu, como se a natureza irrompesse na pedra, que seria a síntese das ideias franciscanas da rainha. Até uma horta e um pomar por lá se abrira já. Tanta pedra nova criava pasmo em Belcouce, onde os vizinhos aos magotes vinham espreitar a obra, mas todos acordavam que o bulíçio era longe, fora da cidade, sem incómodo para ninguém, a nada tirando préstimo. Se mau cheiro havia, não chegava ali ponta dele.

– Melhor assim, nas matas das barrocas, longe da vista, que a arraia suja a correr nas valas de Coimbra, para cima e para baixo, à nossa porta, muleta na mão e ranhola no beiço – dizia-se.

Ainda assim nem todos estavam satisfeitos com a solução encontrada. Dentro da rica cerca de Santa Cruz, na saída para Montemor, punha estaca o descontentamento. O abade cá fora, junto do povo e dos outros clérigos, bem se esforçava por esconder o azedume mas lá dentro o mal-estar andava à solta. Nenhum dos frades entre si se coibia de deixar cair um dito de reprovação ou mesmo de rancor. Desonra, vergonha e escândalo, eram as palavras que mais se ouviam. Não havia mosteiro tão soberbo como o deles; nada se fazia sem o seu assentimento e a própria coroa, tantas vezes destemida para com os bispos das cidades, não queria senão ter as graças de Santa Cruz. Uma das mãos do reino era o mosteiro dos crúzios de Coimbra; a outra era a coroa. Para o corpo funcionar na perfeição haviam as mãos de andar de bem uma com a outra, puxando no mesmo sentido. No cível dispunha o rei; nas ordens regulares determinavam eles.

Assim haviam varrido os primeiros franciscanos de muitos lugares. –Cortamos as ervas peçonhentas pela raiz – diziam sem contemplações. Com as ricas vinhas que tinham, os celeiros e as tulhas sempre de cogulo, a salgadeira a abarrotar de carne, davam-se mal com o tirocínio da pobreza. Demais, há pouco, a profecia anti-romana do frei Gerardo de San Donino, aguçara-lhes a desconfiança, embalando de vez o epíteto escarmentador de hereges contra os franciscanos. Abriram todavia uma excepção para os que andavam debaixo do sobrolho grosso e vigilante dos Agostinhos, como acontecia com o eremitério da ponte, que não se atrevia a dar ponto sem consultar a portaria de Santa Cruz.

Agora, depois de tantas bravatas, davam com uma mulher de roupeta escura à frente dum bando de farroupilhas a falar de Francisco Bernardone. Só que essa mulher era a rainha. E para tornar a questão mais gravosa havia por lá essa dona, Mor Dias, que saía da casa deles e lhes parecia pior que ovelha sarnosa. Não fosse a rainha e a lampreia de dentro de portas nunca havia de ter levantado muro na margem esquerda. Assim, com a rainha, deixavam fazer, incomodados e odientos, tentando divisar como aquilo ia acabar e sempre na esperança dum transtorno que estragasse de vez o que por lá se fazia.

Quando do outro lado do Mondego se abriu o refeitório comum, a preocupação dos crúzios subiu. O abade mandou os frades reunir na sala do capítulo e falou-lhes rijo.

– Senhores, aquilo que se passa do outro lado da ponte é intolerável. Qualquer dia chegam a Coimbra. O mal está no vezo.

– Há muito que vos disse, senhor, que aquilo é um escândalo nunca visto no reino – afirmou um frade com ar de ter passado muito mundo.

– Que bando de malfeitores – acrescentou outro, mais novo e cru.

– Tendes razão, senhores. Pero não esqueceis que por lá está a rainha.

– A rainha? – perguntou o primeiro crúzio.

– Sim, a rainha – respondeu o abade afirmativo.

– É uma herética – gritaram vozes. – Melhor fazia em acompanhar o rei do que andar à frente de bargantes e ladravazes.

E a conversa naquele dia por ali se ficou. Todos os dias afluía gente nova ao acampamento de além rio; chegavam do litoral próximo, chamados por ditos que corriam de boca em boca. Dizia-se que junto da rainha tinham comida e dormida. – Na dobra daquele manto não há peão de pique nem mesmo cavaleiro que ouse deitar gadanho – acrescentava-se com emoção. Em troca só lhes pediam que salmodeassem matinas, vésperas e outros ofícios, amanhassem a horta comum e assentassem pedra na fábrica que ali se levantava. E muitos punham-se a caminho, sós ou com a família, dispostos a ver com os olhos da cara a maravilha que se dizia campear a montante das águas. E lá iam, na esperança de se abrigarem debaixo do real manto. Em geral eram adstritos forros que viviam de jornas sazonais; sofriam a espaços de fome, sem soldo nem víveres, e só na época quente do Solstício, quando a terra toma a decisão de ser generosa, experimentavam algum desafogo com o grão nutrido das searas e os frutos lampos dos pomares.

Não tardou a levantar-se novo burburinho por Santa Cruz. A mancha de refugiados alastrava e a capacidade de organização, em vez de baixar, subia. O tacto prático da rainha, treinado junto de homens de acção como Roger de Flor, filho do falconeiro de Frederico II e cabeça dos almogáveres catalães, era viração de favor. Também os morabitinos velhos que a rainha forrara na alcáçova de Coimbra,  provenientes das rendas das povoações e dos castelos que o rei lhe doara, eram decorosos credores da obra; nunca faltava pão e vinho e a jorna dos mestres, que os havia para capitanear a construção, andava sempre em dia. O entusiasmo pela fábrica que ali se levantava era tanto que até as donas de São João, ligadas a Santa Cruz, se começavam a mudar para junto de Mor Dias e da rainha. Parecia sangria por estancar e ainda ia no limiar. Quando isso perceberam, o mal estar dos crúzios transbordou. O abade mandou de novo reunir os frades na sala do capítulo. A ira, a reprovação, o ódio liam-se no pergaminho velho dos rostos. Falou o abade.

– Senhores, é tempo de agir. O que está feito na outra margem do rio não pode por lá continuar. Dentro de dias não teremos uma dona para mostrar em São João.

– Avisámo-vos para esse e outros perigos – interpelou-o um frade. – Os beguinos desatam por ali peçonha maior que a dos pagãos no tempo do Senhor. Tal obra anoja a nossa consciência. Há muito que o terreno houvera de ser limpo.

– Esqueceis a rainha? Não fosse ela e já os silveirais cresceriam no lugar. Esperámos o que era devido. Agora agimos – replicou o abade.

– Que pensais fazer? – perguntou outro.

– Nada que dê nas vistas. Quem por lá anda, tirando a rainha, são uns pobres diabos arrancados às tabernas de Coimbra e de Celas e aos palheiros das terras.

– Entonce? – voltou a perguntar.

– Basta uma badalada forte e debanda tudo. Vinte noviços amanhã depois do ofício de laudes, a coberto da escuridão, irão de alforge cheio de boa e lascada pedra até à boca da ponte. Dali se vê no centro a tenda da rainha e de suas donas. À volta dorme a arraia das ruas. É despejar neles os alforges como se chovesse granizo do alto. Vereis que à hora prima não restará por lá ninguém; debanda tudo.

– E se não resultar?

– Iremos ter com  el-rei rei. Santa Cruz vencerá a disputa. Nunca el-rei de Portugal nos recusou tomar posse de mosteiro que andasse fora de ordem.

Não se admire o leitor de ver a rainha portuguesa metida numa tremideira tamanha com Santa Cruz. A obra da margem esquerda do Mondego, que mais tarde tomou o nome de Santa Clara, foi no seu tempo uma obra revolucionária, cujas raízes se prendem com o ideário gibelino e espiritual que a rainha trouxe do reino natal. Já se disse que Isabel de Aragão é uma figura desconhecida, muito distinta e muito mais ilustre do que nos fazem crer as hagiografias oficiais. É por isso que sobre ela escrevo, convidando o leitor à sua história; se nela não houvesse heresia e liberdade, surpresa e novidade, a sua figura não me interessava. O conflito de Isabel de Aragão com Santa Cruz representou na Idade Média portuguesa o que outros rasgões significaram noutras paragens da Europa, onde os herdeiros de San Donino, agitando o paracletianismo de Joaquim de Flora, tentaram forçar a Igreja a mudar de pele, dando lugar a uma assembleia de pobres.

No momento em que a tormenta se formava entre os dois lados do Mondego os conflitos de ideário em toda a cristandade estavam ao rubro. O contraste era entre uma Igreja velha que tivera em Inocêncio III a sua polpa de sangue e um culto livre que se  dizia fiel ao espírito comunista dos Evangelhos. O pano de fundo era o desconforto interno que vinha das cruzadas sangrentas contra cátaros e valdenses, de mistura com as ferocidades sangrentas da nova Inquisição na Provença, na Occitânia e nos Estados papais. Demais existiam as heranças gibelinas que o brilhantismo laico do segundo Frederico deixara dispersas ao Deus-dará por toda a Europa e que levaram às aspirações maduras da confederação aragonesa-catalã. As dissensões eram tantas que o próprio círculo do papa acabou por reflectir as fracturas do ideário cristão da época. Por fim a derrota dos cruzados franceses na Sicília, a retracção dos angevinos numa parte importante do Mediterrâneo, e ainda o regresso dos Templários à Europa, mais baralharam as contas dentro da Igreja, reforçando o poder dos espirituais e dos que viam na instituição romana uma folha caduca da árvore cristã.

E no momento em que Santa Cruz decide afrontar Isabel de Aragão, tentando opor em Portugal um penedo maciço à penetração das ideias do cristianismo revolucionário e anti-romano, a força dos espirituais é tão grande que chega para abalar por um segundo o poder temporal da Igreja. É o instante sublime em que alguém se lembra de ir a um eremitério buscar um emparedado, que vivia a pão e água, coberto de farrapos, para lhe dar a tiara de Pedro. Uma comoção profunda correu por todos os que viviam pobremente; pela primeira vez viam na sede do papado alguém que não era um grande senhor, não usava os apelidos aristocráticos das grandes famílias feudais, não tinha interesses no mundo, não dava voz de comando a um exército sanguinário; tratava-se apenas de alguém que vivia na mais absoluta pobreza, retirado do mundo, orando e lavrando uma horta, donde tirava todo o sustento.

Por um momento todos os que haviam criticado o luxo, a simonia e as varas militares de Roma, todos os que haviam militado no gibelinismo de Frederico II ou de Pedro III, se aproximaram de Latrão para contemplarem extasiados o papa mendigo, Celestino V. – Roma leva rumo – dizia-se. Porém a reacção dos herdeiros de Inocêncio III e de Gregório X foi funda e sangrenta. Os responsáveis foram riscados e o papa mendigo obrigado a reclusão perpétua. A loucura divina que tocou a cadeira de São Pedro não chegara a durar cinco meses. Quem afastou o pobre eremita foi um grande senhor, Bento Caetano, que pôs a tiara e tomou o nome de Bonifácio VIII. Dante não se esquecerá de o colocar no oitavo círculo do inferno, dentro dum buraco, de cabeça para baixo, pernas para cima e pés lambidos pelo fogo, ao lado de Nicolau III e Clemente V. É um destino à medida da cobiça do cargo.

Regressemos a Santa Cruz de Coimbra. Depois das palavras duras do abade, o mosteiro mergulhou em recolhimento. Tudo se preparou de forma tácita, em voz baixa, sem ostentação. Na madrugada seguinte, quando as estrelas ainda lucilavam na escuridão do céu, um homem embrulhado numa larga capa preta, de rosto escondido na aba do capuz passado pela cabeça, saiu pelo portalete norte da horta de Santa Cruz. Atrás dele, um a um, surgiram outros dezanove embuçados no mesmo preparo. Reuniram-se em silêncio na esquina da cerca e encaminharam-se em grupo, sem trocarem palavra, para o terreiro de São Tiago. As sandálias batiam o solo sem fazer fricção ou ruído. Caminharam um bom pedaço pois a cerca de Santa Cruz, que protegia os ferragiais e as vinhas do mosteiro, era a mais extensa de todas as que se levantavam em terras do reino. Passaram de seguida a São Bartolomeu, onde nem um cão vadio farejava o lixo dos tendeiros, viraram à torre de Belcouce, no alto da qual lucilava uma chama de resina que servia de fanal às embarcações que navegavam de noite no rio, e em vez de meterem para a porta da portagem, que levava em estrada de laje polida à Sé e à Alcáçova, seguiram para a ponte, à boca da qual se certificaram que não havia barca a manobrar no rio.

Logo o grupo meteu à ponte, em passo lesto, olho posto no arraial das barrocas. Não se via sinal de vida. Divisava-se, no meio da cidade apalancada, a tenda empavesada da rainha e das cuvilheiras próximas. O restante era uma matéria espessa e confusa; às vezes percebia-se um toldo, outras um corpo estendido por terra, outras ainda uma pirâmide de pedras, que servia à construção. De qualquer modo, tudo se sumia na escuridão e no silêncio da noite. Apenas do lado do eremitério franciscano uma coruja silvava a espaços um sopro agudo e trémulo, porventura metida numa das janelas altas da capela de pedra.

Chegados ao fim do arruado da ponte, meteram os homens aos campos e avançaram com cuidado por entre a erva alta do mês de Abril. Um deles, a dado passo, levantou o indicador direito e todo o grupo estacou. Afastaram-se uns dos outros, distribuíram-se pelo campo, espaçando entre si folga regular e evitando a zona onde se erguia a tenda da rainha. De seguida, no maior silêncio, abriram as capas negras e meteram mãos aos alforges espaçosos de pano. De lá saiu calhau esquinado, que logo foi projectado em uníssono em direcção da seara de gente que dormia. Sem atenderem a sinal, repetiram o gesto, ao mesmo tempo que se ouviam as primeiras interjeições de surpresa do lado do arraial. Nova saraivada de pedra cruzou os ares, indo abater-se nos homens que dormiam por perto. Desta vez ouviram-se gritos de aflição, ao mesmo tempo que estrelejou em todas as direcções um ladrido furioso de muitos cães. As pedras continuavam a cruzar os ares, abatendo-se impiedosas sobre o arraial. Depois de esvaziarem os alforges, o grupo saltou as gramíneas selvagens e sempre em corrida, apertados na larga capa, rosto encapuçado, regressaram ao portalete norte de Santa Cruz, que se abriu para lhes dar passagem e logo se fechou.

Na manhã seguinte não se falava noutro assunto em Coimbra. O ataque ao arraial era a matéria de todas as conversas. Os estragos haviam sido muitos nos víveres, com tulhas de azeite quebradas e talhas de vinho vazadas. Demais havia dois mortos e uma vintena de feridos graves, dos quais três moribundos, que deviam render a vida dentro de horas. Quando a manhã entrou, depois da hora prima, alguns adstritos e colonos, que haviam chegado do litoral atraídos pela rainha, debandaram pelos campos do rio, descendo para jusante. Sobrou ainda assim mole de gente a perder de vista, que decidiu firmar pé.

Quando bateu o ofício da hora sexta, o arraial reorganizava-se a fogo lento. O almoço encontrava-se pronto a ser distribuído, os feridos estavam a ser tratados, os mortos haviam sido sepultados no adro dos franciscanos. De tarde, depois de noa, os mestres da obra reuniram-se com a rainha e decidiram dar continuidade à fábrica que por lá se levantava. Na manhã seguinte o trabalho retomava. A situação era tremida mas a avaliação apontava para uma malvadez de ocasião, porventura uma tentativa de roubo que se lograra com o estrondo dos cães. Nada que pudesse pôr em causa a continuação da obra. Bastava na noite seguinte pôr esculcas atentas, com fogos a arder, nos quatro pontos do arraial, para dissuadir outro caso semelhante.

Ao entardecer, depois de vésperas, dois cavaleiros saíram de Coimbra, atravessaram a ponte e foram ao arraial da margem esquerda. Logo os novos esculcas os interpelaram.

– Vimos pela rainha, nossa senhora. El-rei asinha a quer.

Largou Isabel o fio de ensartar, onde continuava a gastar grande parte das horas, para se aprontar e subir à cidade. O esposo continuava a espaços fora da cidade, desta vez por Lisboa, onde pensava instalar o Estudo Geral. Não demorou a ser recebida por Dinis no salão da alcáçova.

– Senhora, tive hoje a visita do abade de Santa Cruz. Gastou comigo um quarto do dia e nem ao ofício de vespéras foi.

– O abade de Santa Cruz, senhor? Assunto grave era com certeza esse para assim se demorar convosco.

– Veio por vós, senhora.

– Por mim?

– É inimigo feroz dos trabalhos na outra margem do rio. Quer tudo parado de imediato.

– Santa Maria val! Porquê?

– Diz ele que cerca de mosteiro assim se levanta por obra do Demo e não de Deus. Já fala em pedir ao papa que envie uma bula para se organizar no reino a Inquisição regular. Quer começar a queimar heréticos.

– Ensandeceu?

– Parece que sim.

– …

– E atentai, senhora… Santa Cruz de Coimbra quando ensandece é pior que tormenta no mar em dia de onda subida. Se ouvísseis as recriminações do abade, não ficaríeis na dúvida. Santa Cruz não quer nova cerca de mosteiro em Coimbra. E bem se vê pelos mortos, pelos feridos e pelos estragos que ontem andaram na boca do povo. Não duvido que a desordem da madrugada de ontem foi ordenada de dentro do mosteiro. Tirai o sentido de ladrões ou de outros vadios que por ali quisessem deitar mão a víveres e bebida. O caso de ontem é igual a tantos outros pregressos.

– Ó Deus, mui alto Deus, como é possível tal desgraça… Que pensais fazer, senhor?

– O único que me parece assisado neste quadro. Pedir-vos que parais com a lavra que vai pelo outro lado do rio

Ficou a rainha a pensar no caso. Quando regressou ao arraial, levava a alma dilacerada entre o receio de afrontar a vontade do rei e a necessidade de se bater pela justiça e pelos valores que trazia do reino natal. Era previsível que numa idiossincrasia marcada pelo atavismo gibelino da casa de Aragão e Catalunha acabasse por dominar o confronto, não a submissão. Tanto mais que a fractura de ideário que ali se desenhava entre as duas margens do Mondego era aquela que separava os angevinos franceses e os fiéis da casa de Pedro III. As violentas testilhas que se travaram em Coimbra no final do século XIII entre Santa Cruz e a rainha Isabel de Aragão não foram mais que um episódio da luta mais geral que naquele momento se travava entre o franciscanismo espiritual e o restante clero regular e secular. Essa luta, que actualizou a fractura anterior entre o papado e o império, teve dois picos, a eleição do papa hortelão Celestino V e a contestação sem mercê vinte ou trinta anos depois do papa João XXII, com a eleição dum duplo papa que nunca chegou a ser reconhecido.

A História do papado não é tão linear como se pensa; também ela está atravessada por uma fissura entre os que viveram ao serviço dos pobres e os que só se preocuparam em preservar e continuar um mundo de privilégios bárbaros. Os primeiros derivam dos Evangelhos, enquanto os segundo datam do acordo de Constantino; são dois irmãos inimigos, que tiraram da Idade Média o espaço ideal do seu confronto. Regressemos a Coimbra.

No dia seguinte reuniu a rainha com Mor Dias e as restantes senhoras do seu séquito. A notícia da intromissão de Santa Cruz causou pasmo… e medo. Na memória de Mor Dias estavam vivas as cenas violentas dos crúzios contra os fransciscanos. A comissão mostrou-se pois cautelosa, devendo a rainha comunicar ao rei de Aragão e Catalunha os conflitos com Santa Cruz. Gastaram-se alguns semanas no ir e vir dos esculcas. Por fim o físico da corte levantina, Arnaldo Vilanova, de passagem para Compostela, veio a Portugal debater com a rainha portuguesa a situação da margem esquerda. Concluíram que a talante dos dois não era um chanfalho do outro lado do rio que punha fim a uma obra que estava já a meio da lavragem. Firmou-se a vontade da rainha em prosseguir. Logo as restantes senhoras aceitaram que isso bastava para broquel. Em sossego e sem desídia, assim criam, a lavra podia prosseguir.

Apresentou-se Isabel para assinalar ao rei a decisão. Depois de tomar nota do desiderato da rainha, tomou o rei catadura severa.

– Confiava no vosso siso. Tolo era eu. E agora como ides afrontar o capítulo de Santa Cruz?

– El-rei de Portugal não negará protecção a sua esposa.

– Isabel… Isabel… El-rei de Portugal não tem esposa. Não o sabei vós?

Na época começava Dinis a dar-se por mofino e desenganado. Nunca a palha molhada que tinha em casa havia de pegar mais do que fumo. E fumaceira acre e sufocante, não a queria para nada. Mais valia o restolho de fora, seco, estaladiço, sempre pronto a atear à primeira faísca.

– Perdoai… senhor… – gemeu a medo a rainha.

Bem sincera era a compunção. Se pecado próprio martirizou Isabel este foi. Nunca pôde amar como devia o esposo. Quando Dinis e Isabel se encontraram em Trancoso, ele com dezanove ou vinte anos e ela com treze ou catorze, eu disse que estava aí uma história de amor infeliz. Não me desdigo, que aquilo em que tropeçamos são os escolhos do infortúnio, os passos do desencontro de ambos. Retomemos o diálogo no paço de Coimbra. Depois da compunção, Isabel dá a palavra a Dinis.

– Melhor me ia o vosso amor que a vós o meu perdão. El-rei de Portugal não afronta o mosteiro de Santa Cruz. Decidirão os frades conforme a jurisdição eclesiástica.

Mal tomou nota da decisão da rainha em não parar o avanço das obras, Santa Cruz reuniu de novo o capítulo. Os edifícios da margem esquerda não tardariam em tomar tecto e abóbada. Dizia-se que a casa de religiosas fora já baptizada, levando o nome da tia da rainha. A história de Isabel de Hungria andava de boca em boca e todos a tomavam agora como modelo; parecia que o mundo à volta de Coimbra ia tomar a configuração das florestas da Turíngia, onde um prodígio duas gerações antes sucedera. E até uma abadessa, saída de São João das Donas, fora já nomeada para intender a comunidade. Não passaria uma sazão e do outro lado do rio uma nova termiteira humana estaria a respirar.

– Senhores – disse o abade ­– a rainha não desiste de lavrar a cerca que tem na margem esquerda do rio.

– Já sabemos – cortou um dos frades. – Basta olhar do mirante da igreja para ver como todos os dias a obra cresce. De nada serviu o ataque depois de laudes.

– Serviu para confrontar el-rei com o nosso desagrado. El-rei não se intromete no negócio

– Que pensais fazer? – perguntou outro.

– Excomungar a senhora Mor Dias. Alguns mestres debandarão mal seja anunciada a sentença.

– E a rainha?

–  Fica de fora. É escusado abrir uma guerra com o rei.

E logo depois destas palavras o abade despediu para a Sé de Coimbra para tratar da excomunhão de Mor Dias. Dois dias depois, Santa Cruz anunciava a excomunhão pelo abade de Mor Dias. Correu um burburinho pela cidade. Uma das donas mais piedosas do reino estava afastada da comunhão e proibida de entrar numa igreja. Os mesteirais e os homens-bons puseram-se a murmurar contra os agostinhos de Coimbra.

– São uns aleivosos! – exclamava-se em voz baixa.

Embora. Quinze dias depois, no dia de Santa Maria, o bispo de Coimbra, via-se obrigado a confirmar a excomunhão de Mor Dias. Desceu do púlpito no momento do sermão, de olhos fulminantes e dedo acusador, e declarou o afastamento da dona de todas as igrejas do país, aconselhando os paroquianos a não mais terem faladura com ela.

Pôs-se o mosteiro de Santa Cruz à espera das reacções. Não foram de molde a entusiasmar. Houve uns tantos que abandonaram o local mas nada que pusesse em risco a conclusão da obra. Para cúmulo por um que se afastava apareciam dois ou três. Com o fim das chuvas e o tempo bom, a migração para a margem esquerda recomeçara. Os eventos de Abril, com cinco mortos por lapidação, que tantos medos haviam causado, começavam a esquecer. Só os franciscanos da ponte se retraíram mais, proibindo fosse quem fosse do arraial de se aproximar do postigo da casa. Não contassem com eles; nem missa, nem exéquias, nem água, nem empréstimo de sal ou de tira de toucinho como tantas vezes sucedera.

Reuniu-se o abade com o seu conselheiro. Desta vez era escusado o capítulo.

– Senhor, a obra não desarma – disse o secretário.

– É bem verdade. Não fosse a rainha… e tudo seria diferente. A dobra daquele manto protege mais que cem arqueiros.

– Pois assim é. Mas Santa Cruz tem outros caminhos para demandar o fim da obra.

E avançaram com queixa aos bispos de Coimbra e Lisboa contra Mor Dias. Acusavam-na de ter disposto dum bem que não lhe pertencia, pois segundo eles a dama entrara em São João das Donas como freira professa, cabendo a Santa Cruz a gestão da sua fortuna. Forjaram-se com escrivães capazes de imitarem letra delida documentos comprovativos deste acto que dava aos crúzios prerrogativas decisivas. Entraram os documentos nas secretarias e por um momento a luta entre as duas margens do Mondego ficou suspensa do litígio.

Nesse interim, enquanto se decidiam os pleitos judiciais, morosos sempre, mesmo com Santa Cruz a pedir acordão, firmava-se a Universidade em Portugal. Lá longe, no Oriente, os últimos Templários abandonavam de vez as últimas praças dos Estados latinos do Oriente. Duzentos anos depois o movimento lançado por Urbano II chegava ao fim, sem estrondo, com pés de lã, como se de repente ninguém se lembrasse que existia Jerusalém. A Europa desinteressava-se da Palestina com um encolher de ombros, depois de ter jogado na mesa com furor desusado os dados do seu destino. Há momentos assim, em que a amnésia volta a página do livro da civilização, abrindo um capítulo novo; ninguém se lembra mais das linhas anteriores. O mesmo sucede na vida de cada um de nós; adormecemos com um peso e levantamo-nos no dia seguinte, desopilados e pressurosos, a pensar no almoço. Mas o esquecimento só dura um instante, pois qualquer viração nos traz ao pensamento o peso do dia anterior. O passado nunca morre; mesmo quando os acontecimentos do presente parecem ser só do presente, o passado vive escondido neles e do mesmo modo que nas flores e nos frutos duma árvore se actualizam as raízes.

Pouco depois morria em Castela o rei Sancho IV. Dinis que se indispusera com o avô Afonso X e lutara contra Lopo de Haro, conde de Viscaia e grande inimigo de Sancho IV, entrou agora em choque com o jovem herdeiro, Fernando IV; fez causa comum com a federação aragonesa-catalã, também interessada na debilidade de Castela, devido à disputa de Múrcia, que se arrastava desde Jaime I. Chegou Dinis a entrar em escaramuças de fronteira mas depressa deu mostras de fazer tratos. No fundo nada tinha contra o jovem filho de Maria de Molina; queria apenas apanhar vantagem no negócio. Isso percebeu a rainha portuguesa que logo tratou de pôr a agilidade estratégica ao serviço da coroa, entrosando os fios dum acordo de paz entre Portugal e Castela. Isabel mostrava-se assim nas secretarias a parelha acertada que não era capaz de ser na intimidade. Mesmo que me pese o desacerto amoroso, não está na minha mão emendá-lo. Este casal não foi um exemplo no amor, demasiado retraído e intermitente para ser feliz, mas soube compensar a frustração íntima com uma inventividade social, que teve muito de harmonia.

Veio o tratado de Alcanizes, pelo qual Portugal reconhecia Fernando IV e Castela permitia a incorporação em Portugal de largos territórios até aí avençados a Castela. Foi o caso de Riba Côa, do Sabugal ao Douro, e duma vasta zona de além Guadiana, de Nódar até Mourão e Olivença, passando por Moura e Serpa. Demais reconhecia definitivamente a incorporação do Algarve na coroa de Portugal. Para selar as avenças casavam-se os dois infantes portugueses com dois infantes castelhanos; Fernando IV, o monarca de Castela, casava com Constança de Portugal, filha de Dinis e Isabel, e Afonso IV de Portugal casava com Beatriz, irmã de Fernando IV e filha de Maria de Molina e Sancho IV.

Depois de Alcanizes, meteu-se Dinis a pensar na arbitragem peninsular, sanando os conflitos entre Castela e Aragão. Tinha corpo para isso. Não era mais o rapazinho fino e modesto que recebera do pai uma coroa ameaçada. Embarrilara, ganhara peso e pêlo, escorara o reino e era agora um homem salaz a caminho dos quarenta anos. Com as barbas aneladas, descendo mansamente pelo peito, o cabelo puxado às costas ou descaindo pelos ombros, o peito largo, as mãos taludas, o rosto cheio que nem Lua gorda de azeite, metia respeito. Tinha momentos de satisfação larga, a sós, quando passeava no salão do paço de Coimbra ou no da alcáçova de Lisboa, onde estava agora muito por causa do Estudo Geral. Enfiava os dedos no cinto de coiro que passava por cima do brial, e dava passadas largas, olhando os tinteiros, as penas de pato e os rolos de pele onde raspava os versos. Era assim, em passeio, devaneador e sem acinte, que compunha as cantigas. Mas era também desse modo que se ensobercia da sua obra: tinha o reino na mão, o irmão andava de orelha caída, a mãe morrera, alargara as fronteiras do reino a leste, dando-lhe uma folga impensável no tempo do pai. Ao mesmo tempo que isto consigo pensava, espreitava no metal polido a bela figura que mostrava e julgava que aquilo que lhe faltava era agora ser o árbitro do jogo peninsular.

A rainha, mulher de acção, percebendo a pecha, puxava por ele. A correspondência com o irmão Jaime era regular; não havia acontecimento por mais pequeno que sucedesse em Aragão, na Catalunha, em Valência, nas Baleares ou na Sicília que lhe passasse despercebido. O mesmo em Castela, por onde corriam alguns dos seus emissários, tanto mais que foi neste momento que enviou para lá a filha Constança, uma menina de dez anos, na companhia de Vataça, a princesa grega, sua íntima desde a primeira infância e que passou a ser para ela esculca de muita valia. Deste modo tinha um entendimento muito largo da situação peninsular; podia com facilidade encaixar os sucessos  do leste nos do centro e esperar a boa ocasião para lhes acrescentar os do ocidente. Não lhe custou assim perceber o momento de juntar os dois reis em litígio, Jaime II da confederação do levante e Fernando IV de Castela e Leão, sob a arbitragem de Dinis. Foi o momento em que regressou de churrião, na companhia de Dinis, ao reino natal e por lá andou até acertar o acordo entre o irmão e o genro. Pela decisão arbitral de Torrelas o reino de Múrcia ficou dividido entre Aragão e Castela e os descendentes do infante Fernando de Lacerda, primogénito de Afonso X, desistiram das pretensões à coroa, reconhecendo de vez a linhagem de Sancho IV.

Dinis, se não via modo de receber de Isabel um amor apaixonado, tinha dela pelo menos estas mercês, a que era muito sensível. E isso lhe chegava para avaliar por cima a mulher e até para dela se afeiçoar. Não sei se de todo desistiu de esperar dela um arroubo de paixão; sei que nela expiou o talento. Se era salaz e licencioso, Dinis era também um espírito engenhoso e imaginativo como só um poeta pode ser. E por isso cantou Isabel como de Deus obra sem par/ no bem sentir, no bem falar/  que nem outra igual se pode achar. Ora um poeta que assim diz é porque admira à luz do Sol e admirando ama, mesmo que apartado pelo infortúnio.

Com a filha em Castela e a nora em Portugal, com a paz na Península e o reino firme, a rainha portuguesa estava desejosa de regressar de vez à cidade do Mondego. A obra que por lá deixara, na margem esquerda, com as andaduras dela pelas sete partidas da Península, nas avenças com Castela e na arbitragem em Aragão, não mais vira fim. Para engrolar mais, acresciam os processos judiciais que corriam por Coimbra e por Lisboa.

O arraial fora-se aos poucos esvaziando. Muitas aragonesas haviam viajado com a rainha ao reino natal e outras haviam tomado parte no séquito de Constança que fora casar a Castela, por lá ficando, como aconteceu com Vataça. Entretanto Mor Dias morrera no intervalo, o que carreara abandono acrescido e descrença no fecho do processo que corria nos tribunais eclesiásticos. E com ela partira também aquela cega das carquilhas que estava na origem das primeiras misturas da rainha com o povo e que desandara na primeira marcha, de mão dada com ela, para a margem esquerda. Muitos adstritos, vendo a ausência da rainha e das principais donas, esmoreceram e debandaram à procura doutro sustento. O mesmo sucedera aos pedreiros da obra. No momento do regresso de Isabel, tudo se resumia a uma pequena comunidade de donas, que cuidava dos cegos que por lá haviam ficado e que viviam dos donativos que Isabel lhes fazia chegar a espaços.

Entretanto em Santa Cruz, o regresso da rainha a Coimbra criou nova agitação. Já se falava do seu inconformismo com a letargia em que a obra caíra. Ainda assim, não encontrou o abade motivo forte para reunir o capítulo. Era assembleia morosa que só se justificava por motivos não ordinários. Limitou-se a uma conversa com o secretário.

– Já se diz que em breve a rainha se muda para a margem esquerda do rio. Que pensais vós?

– Não me parece que haja razão de preocupação. A obra morre por si. Não será a rainha que agora a ressuscita. Mor Dias morreu, a princesa grega está para Castela, muitas donas ficaram dispersas com estas andanças del-rei durante anos por Castela e Aragão. Nada voltará a ser como dantes. Não demorará a existir um acordão a favor de Santa Cruz.

Assentiu o abade com o rosto. Por um momento instalou-se o silêncio. Logo po secretário acrescentou.

– E caso não, senhor, depois da morte de Mor Dias as terras da obra pertencem a Santa Cruz. A dona não deixou filhos e o testamento que fez não tem valor jurídico.

Ficou a conversa por ali. Bateram de seguida as badaladas do ofício de vespéras. Puseram os crúzios a casula, apertaram a fivela dos sapatos e encaminharam-se para a igreja. À frente seguia o abade com ar confiante e tranquilo.

Não tardou porém a rainha a mudar-se para a margem esquerda. Bastou que o rei desandasse para o Tejo, à procura de novas corregedorias, para ela encher o churrião de bruacas e bater por sua vez para o outro lado do Mondego. A alcáçova parecia-lhe uma prisão, quando comparada com a liberdade das brenhas da margem esquerda. Quando lá chegou, teve porém dificuldade em reconhecer o arraial de outrora, tal a pobreza de gente que lá havia. Antes era uma cidade de profissões; agora uma comunidade de meia-dúzia de hábitos, que não chegava para encher o coro duma capela pequena. – Melhor assim – pensou ela depois dalgum desalento.

A princípio foi preciso meter mão às dobras e morabitinos que o  ecónomo de Isabel guardava na alcáçova de Coimbra e que eram o produto das rendas anuais que auferia, além dos regalos que recebera em Castela e Aragão pelos serviços que prestara a ambos os reinos. No longo período de ausência, com a morte de Mor Dias, os edifícios haviam-se degradado e andavam necessitados de muito conserto. Regressaram os mestres para remendarem o que estava em falta; faltava ainda projectar os novos edifícios, na raia do mosteiro, para serviço de habitação futura a colonos e foreiros. A ideia agora era entregar leivas aos vilões, para serem arroteadas, de modo a mudar as barrocas maninhas que se estendiam para montante em terras de cultivo. O mesmo se dizia que o rei andava fazendo para o Ribatejo e para o litoral, interessado que estava em drenar pauis e arrotear antigos brejos. A rainha seguia-lhe a inclinação e já antecipava uma nova povoação, feita de homens livres, entre enfiteutas e mesteirais, nos matagais de além rio.

As despesas depressa subiram com os arranjos e as novas edificações. Demais, com a presença da rainha, muitos adstritos forros que vadiavam nas margens do rio, subindo para as serranias com os calores da estiagem e descendo para as praias do litoral na invernia, alguns escabujavam maleitas bravas, acabaram por se fixar nos arredores da comunidade sobrevivente da margem esquerda. Também os vilões dos viveiros próximos acorreram ao perceberem o entusiasmo com que a rainha abria aquele recomeço. Em menos de pouco estava reconstituído o arraial, com muitas centenas de pessoas a comerem, a dormirem, a vestirem, a estenderem mão aos cuidados de assistência. Todos os dias a rainha tinha de meter o braço nas dobras e maravedis para vencer os gastos. Antes, no tempo de Vataça e de Mor Dias, várias eram as fortunas que corriam ao serviço da obra; agora, só se via correr um único caudal, cuja fonte era Isabel. Forrara a rainha muita moeda no último lustro, mas nada lhe custou gastá-las. Não demorou o ecónomo a procurá-la com aflitivas gelhas na carranca suada de pedra glabra.

– Senhora, nem mais uma mealha haveis nos vossos cofres.

Não se apoquentou a rainha com a triste novidade. Antes de se haver por pobre, ainda tinha muito metro de seda para gastar. Isto sem falar no crédito gordo que os prestamistas da cidade estariam na disposição de lhe passar, contra as rendas do porvir. Passou pelos aposentos da alcáçova e com um sorriso infantil abriu os escrínios que por lá tinha. Contemplou as braceletes, os anéis, os diademas, as pedras preciosas, os cálices, as cruzes em oiro, cravejadas de jóias, que se acumulavam ao acaso, em monte, nas prateleiras. Só uma pedra daquelas valia num penhorista de São Salvador, na cerca norte, ou num cambista da porta de Almedina, na parte baixa, paredes meias com a igreja de Santa Cruz, muitas dobras de ouro. Só ela era fortuna maior que aquela que um azemel podia sonhar depois de quarenta anos de trabalho a roubar na mercancia aos paroquianos das comarcas ricas.

Meteu a mão nos cordões e nas pedras e tudo revolveu com o mesmo sorriso inocente. Ficou por um momento absorta. Veio-lhe ao pensamento a origem do tesouro. Parte havia sido oferta do avô no tempo de Barcelona; outra viera-lhe da mãe e do pai no momento em que se despedira do reino para vir governar nas estranhas terras do poente lusitano; a maior parte era porém o resultado do galanteio de Dinis que nos primeiros tempos não passava dia em que não lhe entrasse pelos aposentos, à hora nona, para lhe oferecer uma pedra talhada ou um fio de oiro. Ainda agora, no tempo das viagens para Castela e Aragão, mal o trovador se dera conta da valia da esposa nos tratos de paz, não resistira em regressar aos regalos. Logo lhe oferecera um diadema de esmeraldas, uma coroa de pedras perfuradas, um relicário de cristal e não sei quantos anéis de oiro com safiras ou rubis incrustados, que ali jaziam no meio do restante.

Fechou Isabel por fim os olhos e arrebatou com a mão direita, numa das prateleiras, uma porção de riqueza. Sem sequer reparar no que levava, depositou tudo na bolsa da cintura e despediu à ligeira no encalço do tesoureiro. Quando o encontrou, abriu-se num sorriso e chilreou uns sons inocentes.

– Ide, ide aos cambistas de Almedina e trocai este oiro por dobras e maravedis. Vereis que não nos hão-de faltar moedas com que pagar o trabalho de canteiros e de marcheteiros.

E durante largo tempo o arraial viveu com folga daquele gesto da rainha. E quando as moedas findaram, novas se obtiveram pelo mesmo modo. Abundavam nas prateleiras da rainha raios puros de Sol de mistura com chispas de luar e não faltava na praça de Coimbra quem desse por essas preciosidades boas moedas.

Quando o rei regressou das correições e tomou notícia no paço dos sucessos ocorridos durante a ausência, despediu de imediato para a margem esquerda do rio, tanta era a preocupação que tinha no pensamento. Mal viu a rainha, antes mesmo de lhe tomar as mãos nas suas, como de hábito fazia, dirigiu-lhe espavorido a palavra.

– Senhora, o tesoureiro de vossa casa contou-me as novas. Bem anojado me deixaram elas.

– Senhor, por tão pouco vos apoquentais…

– Por tão pouco, dizeis vós?

– Que valem anéis e cordões, senhor? Mais falta nos faz o pão, o vinho e o tecto para dormir.

– Até pedras talhadas que vos dei, hão corrido para os judeus do arco de Almedina! E vós achais pouco?

– Assim me parece, senhor. São pedras, não mais.

– Não, senhora. Pedras dessas só no tesouro do bispo de Roma se encontram e mesmo assim. São por lá mais raras que a virtude. Já vedes quão preciosas são…

– Zangai-vos por tão pouco, senhor…

– Não posso crer na forma perdulária como vos desfazeis do vosso tesouro. Disse-me o escrivão que até empréstimos estais disposta a fazer nos prestamistas da cerca norte. É verdade, senhora? Cuidai… senão ficam-vos com as rendas até à hora de vossa morte.

– Não vos anojeis mais, senhor. Prometo-vos que tal não acontecerá.

– E mais me deveis prometer, senhora. Não mais haveis de empenhar as vossas jóias por tão pouco.

– Assossegai. Assim prometo, senhor.

Mas não só a rainha não se corrigiu, como deu em pensar de torto no assunto, não porque deliberasse contrariar o rei mas porque lhe veio ao sentir um frémito antigo. Lembrou-se ela do vendaval de sensações em que andara quando dera com a pobre cega das carquilhas a marinhar pela parede de taipa do pátio como uma aranha tonta apanhada por fumo tóxico. Sentia agora um formigueiro idêntico ao desse tempo, em que a agonia se cruzava ao prazer. E, sonâmbula e branda, não resistiu em voltar aos escrínios onde guardava as jóias, para de novo de lá arrancar uma mão cheia delas. Só que desta vez em vez de as entregar ao ecónomo para as trocar por moeda, levou-as ela na escarcela sem dar palavra.

Quando chegou ao arraial, haviam batido as badaladas de completas. Era um daqueles dias de Verão em que o rasto púrpura do dia não parecia querer descolar do céu. Uma secura abafava o ar, a par da zanguizarra das cigarras. Os que não haviam ido ao ofício que se celebrava na capela, à revelia dos crúzios e da excomunhão do bispo de Coimbra, estendiam-se pelo restolho seco, quase nus, de olhos semicerrados, debaixo do céu artesoado, arfando no hálito morno do fim do dia. A rainha, protegida sempre nas várias camadas de panos e lãs em que escondia o corpo, suava e parecia procurar com os olhos alguém conhecido. Por fim deu com um homúnculo repelente, sem pernas, boca esverdeada como fossa suja de despejos, que chegara havia dias ao arraial acompanhado duma jovem, que se afirmava filha de filha. Ao que correra, vinham os dois dos viveiros de Ceira, a menos de duas léguas da obra, onde os filhos não tinham já forma de o aguentar. Desde que a rainha o vira tentando arrastar-se nas lajes do portal da igreja, que se lembrara da barbacã de Barcelona e do seu primeiro contacto com o mundo.

Agora tinha o homem diante de si. Contemplou-o. Era um velho sem história e sem voz. Balbuciava uns monossílabos, sem nexo, não mais. Ao que a neta dizia fora mutilado por um penedo nas ameias de Ourém, nos tempos das guerras que haviam oposto o pai e o tio do rei actual. Dormitava ou descansava de olhos fechados, acomodado numa padiola de pano, com dois varais de pau, que logo se improvisara à chegada. Baixou-se a rainha, para lhe pegar na mão direita, que repousava no peito nu, e lhe sussurrar ao ouvido.

– Senhor… senhor…nada de inquietações. É a rainha que está a vosso lado.

E ali ficou, sentindo nas suas a mão inerte do homem. De quando em quando deitava este um olhar de gratidão à protectora, ou tão-só de inquirição e dúvida. – Que faz a rainha ao pé dum trapo? Quem é esta rainha? Mais vale comborça que rainha…– pensava.

Passado pouco chegou a jovem que lhe fazia companhia. Tirou Isabel da bolsa os anéis e os fios que arrebanhara do escrínio, pedindo a mão da moça. Quando lhe viu a palma aberta, depositou nela os valores.

– Guardai esta oferta. Comprai roupas de linho novo a vosso avô e mandai o resto aos parentes.

No outro dia espalhou-se pelo arraial o sucesso da noite anterior. Uma multidão de aleijados rodeou a rainha aos gritos, de mãos estendidas e cabeça baixa.

– Senhora, apiedai-vos de nós! Apiedai-vos de nós como ontem fizestes com o aleijado de Ceira.

E nas tardes seguintes repetiu a rainha por diversas vezes o gesto do dia anterior. Arrebatava de olhos fechados e sorriso infantil uma porção de oiro e prata, enchia com ela a escarcela do cinturão e batia leve pela congosta que levava a Belcouce. O rio diante dela era uma lágrima azul, mais pura que safira do Egipto. Baixara muito desde as últimas chuvas de Abril e Maio; via-se-lhe nos juncos da margem a marca seca do lodo. Agora, com o olho magro, as ondas quase quietas, as gaivotas a bicarem o ar, os moços sem medo da pelagra metiam-se, pernas nuas, às águas à procura do mexilhão e das ostras que vinham de mistura com algas e seixos nas correntes frias do mar; até os saveiros vinham por ali à sardinha, estendendo dos esteiros de jusante, a caminho de São João do Campo, até à ponte de Belcouce a malha fina das redes.

Demorava-se um instante a rainha a considerar o quadro. Nesses instantes havia sempre um recanto para julgar em silêncio: – Nem em Montjuich o mar me entrou assim pela porta – pensava. Seguia depois pé ante pé pela ponte, julgando que voava, e ia escolher o seu aleijado no restolho seco da charneca.  Sentava-se a seu lado, tomava-lhe as mãos excruciadas, passava-lhe os dedos pelo acervo da grenha esfarrapada, dava-lhe a beber uma pinga de água fresca da moringa de barro cozido, sussurrava-lhe ao ouvido palavras de acalmação. Por fim despejava nele com um riso cristalino o tesoiro que trazia à cinta.

Não tardou o rei a ter notícia destes sucessos. Ficou estupefacto e inquieto. Acabara de regressar do castelo de Leiria e logo despediu para a margem esquerda em busca da rainha. Mal a viu, falou-lhe aterrado, olhos arregalados e mãos ao alto, num gesto de assolação.

– Haveis esquecido todos os prometimentos. Agora andais a distribuir aos vadios e outros corrécios, alguns fugidos a seus senhorios, o ouro do vosso tesouro. Os vossos cofres estão quase nus. Nem pedras, nem cordões, nem medalhas, nem cruzes. Que se passa?

– Não vos zangueis, por favor.

– Senhora, não posso consentir em tal sandice. Sou obrigado a pôr um peão de pique à entrada dos vossos aposentos com ordem de nada deixar sair do vosso tesoiro. Ainda por lá estão as coroas, os diademas e os relicários.

Retraiu-se um tanto a rainha depois desta conversa. Sabendo o rei em Coimbra, passou a evitar ir ao escrínio meter a mão. Ainda assim, sentia-lhe a falta. A caridade, ou lá o que fosse, não era nela uma dedução mental, menos ainda um ponto de adorno, era uma acção de amor, talvez o único que lhe foi dado viver nesta vida. Por isso o acto se fez apaixonado e viciante, luminoso e intenso. Em pouco mais de nada dera ou desbaratara quase por inteiro uma fortuna avaliada em cofres e cofres de dobras de oiro. Estava quase pobre, a viver do crédito que o rei ordenava por via das rendas do porvir.

Mas essa situação, que noutra teria sido desespero e remorso, foi nela gâudio e inocência. Pode afirmar-se que quando se viu a caminho de ser pobre os seus sentidos, em geral tão retraídos e insulsos, vibraram e rejubilaram como se estivessem diante dum banquete festivo de sabores, cores, sensações e outras volúpias. Nunca fora tão feliz e sensitiva como no momento em que se desfizera da tralha valiosa que tinha nas tábuas dos escrínios. Ansiava por isso voltar à prática em que andara com tão bons resultados.

E como nada tinha para dar, andou uns dias desalentada consigo. Pusera-se a fazer jejuns prolongados de pão e água e quase perdera o hábito de comer. O arcaboiço, antes largo e taludo como o do pai, que Dante chamou carinhosamente membruto, enxugara numa carcassa de pau. Ela, sempre ligada por panos e lãs, saudosa daquele invólucro com que nascera e que por três vezes à força lhe fora arrancado, nem conta dava como a carne se lhe esburgava nos ossos. Por fim, numa madrugada, em que escutava os pios nocturnos que vinham das brenhas de sul, lembrou-se dos gafos que viviam para além dos barrocais. Por um momento esquecera-se dos pobres. Durante muitos anos enviara regularmente a sua parte de víveres para as luras onde viviam apartados. Depois, com as viagens em que retraçara não sei quantos pedaços de Castela e Aragão, deixara cair os envios, por via do desaparecimento do manajeiro que lhe tratava do recado. Nem tempo houvera de o substituir. Agora o assunto voltava-lhe ao pensamento. E triste consigo, sem medir os resultados do que acordava, decidiu ela própria partir em busca dos tugúrios onde os miseráveis escondiam do mundo as escrófulas da lepra. – Não têm os meus anéis, mas terão os meus dedos – pensou com júbilo.

E mal sentiu o primeiro alvor da aurora, com os esticões sonoros dos andorinhões, levantou-se, pediu às aias que esperassem por ela e saiu para o exterior. Viam-se no céu as estrelas a apagarem-se na luz mortiça da noite que desfalecia. Um ar morno, sem brisa de poente, acusava um dia quente de Estio. O arraial ainda não acordara; apenas os esculcas, nos quatro cantos da cidade empavesada, mantinham o fogo aceso. Acenou ao esculca que lhe ficava à direita e recebeu em troca, no momento em que deixava para trás o campo, o mesmo sinal de reconhecimento. Olhou as brenhas do lado esquerdo e pareceram-lhe grossas paredes sem transposição. Divisou depois, à medida que delas se aproximou, um trilho por onde transitar. Subiu durante algumas horas por entre urzes e silveirais, até que atingiu um planalto arborizado com carvalho e azinho. Ao fundo viam-se duas hastes com um lábaro branco, marca distintiva que assinalava a cidade dos gafos.

Meteu pela floresta e não tardou a dar de frente com o campo dos soldados que montavam guarda aos fojos onde se encarceravam as feras. Teve a princípio dificuldade em se identificar mas por fim um dos peões, surgido duma das tendas por via do tumulto que se gerara com a chegada da desconhecida, reconheceu-a.

– Acreditai! Esta é a senhora rainha, que lavra a obra na margem esquerda do rio. Eu mesmo a fui buscar ao lugar, por ordem del-rei, uma hora em que ele regressava das terras do leste.

Não tardaram outros aditos a reconhecê-la. Disse a rainha ao que vinha e as exclamações de incredulidade não podiam ser maiores.

– Ver os gafos, senhora! Mas é perigo muito grande… – alertavam uns.

– Defeso é tal acto. El-rei nos há-de castigar se a tal acedermos – afirmavam outros.

Por fim, depois de muito insistir, conseguiu que a deixassem passar. Quando se deu conta que pouco separava a sua pessoa dos buracos onde se encafurnavam os mais mesquinhos dos seres, sentiu um estremecimento de gosto. Voltava a ser feliz como nos momentos em que despedia para a alcáçova de Coimbra a encher as escarcelas de anéis, pedras e cordões. Andou um bom pedaço, sentindo na cara a viração quente do leste e vendo por entre as pálpebras o tremular verde e seco das folhas espinhosas. De súbito ouviu um murmúrio indistinto entre penedos, que tanto podia ser o grunhido duma vara de porcos como o gemido convergente e ondulante dum hospício de moribundos.

Quando se aproximou, deu de caras com um cercado de sebes e estacas, onde  no meio se acumulavam dezenas de seres, uns deitados no restolho seco, outros sentados, outros ainda em pé, vagueando absortos. Havia recém-nascidos agarrados aos peitos das mães, mulheres espojadas no pasto queimado, homens defecando ao ar livre, velhos encostados ao cercado, rabo em terra e testa apoiada nos joelhos, intentando beneficiar dalguma sombra numa manhã inclemente de canícula, crianças entretendo-se com pedras e paus ou bebendo o fio argênteo e fresco duma bica de água que escorregava da penedia. Todos eram disformes, inchados, lerdos, alguns com o rosto de todo desfigurado, como se tivesse sido amassado e abolado durante dias por poderosos punhos de pedra, outros com membros podres, a desfazerem-se, às vezes suspensos por uns fios de carne mole e corrompida. Muitos deles estavam nus, mostrando o púbis e o sexo, outros passavam pelos ombros uma serguilha delida e rota, que era todo o seu vestuário na sazão fria ou na quente. Até as mães embalavam nuas as crianças de peito, nascidas já com a moléstia.

Por um momento ficou a rainha interdita diante da mole de gente. Não sabia o que havia de fazer. Vinham-lhe em borbotão as recordações de Barcelona, único momento em que vira um bando de gafos. Tocava-se com azorrague na consciência por ter esquecido os miseráveis durante a sua ausência. – Nem ao meu mano perguntei se continua a mandar os alforges cheios a Collserola. A nada presto – recriminou-se com desgosto. E logo pensou escrever nesse dia, no regresso a Coimbra, ao mano de Aragão e Catalunha, a inquirir dos antigos pedidos e se tudo se continuava a fazer como ela pedira há tanto, no momento da partida para a fronteira do ocidente.

De repente uma criança levantou-se, deixou cair das mãos os seixos rolados com que se divertia, para cima e para baixo, deu com os olhos na mulher de escuro que ali se postava, de rosto oblongo e seco, recortado em madeira polida, e gritou com o pasmo todo desenhado nos olhos miúdos.

– Anh-Anh… Anh-Anh… ali… ali… Anh-Anh…

E todo o grupo sub-humano e grotesco, até ali abstraído numa palha ou num cisco, submisso à roda eléctrica do Sol que lhes despejava fogo em cima, pôs os olhos na mulher alta e membruda, toda coberta de pano, roupilha branca em torno da cabeça, sem pêlo que se visse, que os contemplava estática a menos de dez passos, parecendo não acreditar no que via.

E por um momento ali ficou a mulher suspensa e o grupo pregado de espanto. Havia seres que tudo o que conheciam do mundo eram os dois peões que duas vezes por semana se aproximavam aos insultos soezes para atirarem para dentro da cerca dois balaios de comida, pagos com as rendas de Celas, prescrição que vinha ainda do tempo da infanta Sancha, filha de Afonso II, e reforçada no tempo recente com as dádivas intermitentes de Isabel de Aragão. Outros não viam dona limpa de pústulas desde o tempo do dilúvio de Noé. Haviam nascido sãos mas ar pestilento de leste ou ferrada inadvertida de rato pegara-lhes a doença da pele dura e para ali os atirara há muitas sazões. Desde aí só viam os peões ordinários da comida e os vilões daquele vilarejo maldito de animais podres. Comiam, fornicavam, defecavam, bazofiavam, urinavam, gritavam impropérios e blasfémias, dormiam nas luras de pedra, esqueciam ou barateavam a linguagem dos homens, e ali morriam no meio dos iguais sem uma blandícia de conforto, as mais das vezes nus.

Não tardou a rainha em retirar-se, incapaz de fazer mais um gesto. Os moscardos, gordos como bagos de uva pérola, zuniam à volta, à procura de lhe poisar no aveludado da pele. Regressou ao campo das duas hastes que assinalavam o burgo gafoso, reverenciando os soldados pela passagem e prometendo ser alvissareira pelo serviço.

No dia seguinte repetiu a rainha a visita. Fez-se acompanhar de dois bagajeiros. Desta vez ia disposta a dar os dedos e a tratar da gente. Trazia mais leveza dentro dela que nos dias em que atravessava a ponte com os cordões da escarcela a tocarem o oiro das dádivas. Deixou as prometidas alvíssaras no posto da guarda e seguiu sozinha com um cesto de panos de linho e outro de frutas e tibornas. Antes de chegar ao cercado, deu com o mesmo ruído surdo de gemidos ou grunhidos, a par do zunido eléctrico dos moscardos. De seguida, antes mesma de ser vista, pôs-se a contemplar a agitação pacífica dos gafos. Ao pensamento vinha-lhe agora a granizada dura que chovera na praça de Barcelona. – Que bátega! Como se esta carne podrida não bastasse… – apiedava-se ela.

E depois disto entrou no cercado com a determinação da estirpe. Pedro II morrera em Muret, como um touro na arena, enfrentando com bravura destemida os cruzados do papa Inocêncio III; o avô, Jaime I tomara as Baleares e Valência; o pai, Pedro III, fizera o levantamento da Sicília contra o papado e a casa de França; a mãe, Constança, a filha de Manfredo, depois da queda do esposo, governara sem tergiversar a Sicília, até há bem pouco tempo, altura em que rendera alma e corpo. E por aí fora.

A princípio os gafos, habituados que andavam às exprobrações vis dos peões, agruparam-se e recuaram medrosos, agarrados uns aos outros, para a penedia. Depressa desapareceram nos buracos onde estendiam o corpo nas noites frias, ficando apenas um ou outro, nos acessos, de sentinela, a medo, espiando a intrusa estranha. A rainha poisou então os açafates de arco que levava e avançou expedita para a penedia. Nem receio, nem perigo, nem cautela; apenas na alma a zamborrada de pedra que outrora vira cair sobre aquela mesma gente. Isso bastava para a aproximação se fazer desiderando.

– Vinde! Vinde a mim! – chamou ela então carinhosamente, acercando-se das luras.

Como resposta obteve um murmúrio grotesco e animal, amálgama convergente dos vários monossílabos que se ergueram. Repetiu a rainha a chamada e avançou mais, postando-se quase na entrada dum dos buracos. Saiu-lhe então ao caminho um homem rombo e boto, de pés largos, que tinha ar de mando. Falava esse; tinha porém a boca tão desfigurada, que a língua se lhe entaramelava. Não foi sem assombro que atirou à queima-roupa.

– Quem és tu, que vens assim, mão nua, boca sem pano, onde nem os cães se atrevem a entrar?

Hesitou a rainha na resposta.

– Uma irmã! Uma irmã que veio cuidar de vós. Vinde! Vinde comigo, para vos lavar as feridas e pensar as pústulas – disse por fim. – E trazei as crianças, que serão as primeiras. Estou aqui por bem.

Era de feito Isabel de Aragão uma irmã, ou nesta época, depois da morte de Mor Dias, uma madre, mas uma madre laica, inspirada pela mensagem do Evangelho mas sem ligações à Igreja institucional e em conflito grave mesmo com ela. Estava mais próxima de Gerardo de San Donino que de qualquer bispo de Roma. Quem se sentava agora na sédia luxuosa de Pedro era outro casquilho vestido a veludo broslado de oiro, cachuchos grossos nos dedos, um bonifrate francês, Clemente V, cujos arames estavam nas mãos do rei de França, Filipe IV, esse que Dante crismou o mal de França. E a maridança entre ambos foi tão cerrada que até para Avinhão mudou o papado. Depois dos cátaros, dos valdenses, e dos franciscanos espirituais, capetos e papado faziam dos templários serôdios a nova besta herética. Corriam nesse momento por toda a Europa as primeiras notícias da prisão dos templários franceses e da sequestração dos seus bens. Os homens do capeirão negro, seguidores de Domingos de Gusmão, gadanha nas unhas, voltavam a ter os celeiros cheios. Era o tempo em que os dominicanos refinavam na tortura com Bernard Gui.

Regressemos à penedia dos arrabaldes de Coimbra. Depois da cordata resposta da rainha, fez-se por um instante silêncio. Ainda assim o homem não demoveu. Sempre desconfiado, voltou a interrogar.

– Que queres tu, não me dizes? Não há irmã que venha por aqui. Nem a vontade puxa, nem el-rei permite. Não sabes o que são gafos? Sabes com certeza. Tu hás-de esconder outro zelo… e mau há-de ele ser… que para nós nunca nada se viu de bom.

Mas nisto, antes mesmo que a rainha regulasse resposta, assomaram cabeças por detrás do homem. Olhavam curiosas, escudadas no corpanzil. Ela, percebendo a atenção, insistiu.

– Vinde, vinde a mim. Deixai-me cuidar dos vossos aleijões… Só vos quero bem.

E umas tantas mulheres gatinharam pelo chão, afastando-se com grandes rodeios dos buracos. Titubearam um instante, hesitando entre avançar ou recuar. De seguida, certificando-se do sorriso da estranha que ali estava, abeiraram-se dos açafates, farejaram à distância e foram às tibornas. Logo as crianças se precipitaram atrás delas, picadas pela fome. Por fim, a mole de gente distribuiu-se à volta do cesto como térmites, em nuvem, a chupar pingo de mel.

– Comei, sim. Mas não vos esqueceis que vos quero tratar – afirmava entretanto a rainha com um sorriso benévolo.

Ainda assim depois de terem comido, debandaram todos para os buracos. Ficou apenas uma velha no meio do terreiro, porventura exausta, sem forças para o regresso. Abeirou-se então a rainha da pobre, tomou-a nos braços e levou-a para a fonte que jorrava da penedia onde a sentou. De seguida foi buscar o açafate dos linhos e ali, a seus pés, ajoelhada, lhe lavou e pensou os membros ulcerados. E durante dias, repetiu a rainha o trajecto entre a obra da margem esquerda e o castro gafento. Aos poucos toda aquela gente lhe tomou o gosto e já não havia manhã em que não viessem à cerca, ansiosos, à espera de divisarem o seu vulto.

– É a irmã! É a irmã! ­– gritavam mal a avistavam com os açafates de arco passados nos braços, no meio das sombras dos carvalhos.

Os mais novos, menos malhadiços, atreviam-se mesmo a saltar a cerca, vindo esperá-la ao caminho. Nunca isso acontecera até esse tempo. Mesmo em tempos da infanta Sancha de Celas, que muito se apiedara dos gafos em virtude de ter visto morrer o pai aos trinta e seis anos com a maleita, gordo como um tortulho cheio de água, nunca tal se vira. O apartamento era por inteiro e qualquer contacto directo previa punição severa, com sequestro de bens e reclusão total.

Não tardou que em Coimbra se soubesse das surtidas da rainha à gafaria dos Fetais, no caminho para Cernache e Condeixa. De entrada a notícia foi tomada por atoarda.

– Pode lá ser tal coisa, home. Isso é intriga. Qualquer dia até se há-de dizer que a rainha é bruxa – desfazia-se.

Mas depois, quando os ganha-dinheiros que acompanhavam a rainha até ao campo da guarda começaram nas tabernas da cidade baixa a avançar apostas em oiro sobre o assunto, sobreveio uma onda de desconfiança. – Será verdade? A rainha visita aos gafos…? – interrogavam-se os mesteirais hesitantes. E para tudo tirarem a limpo organizou-se num domingo uma batida aos carvalhos do planalto cimeiro, na margem esquerda, para espiar o que por lá se passava depois de alba.

As notícias que vieram nessa tarde para a cidade não podiam ser mais pasmosas. A rainha atravessara a mata com dois jornaleiros, fora recebida pelos peões da guarda no posto do sinal branco, tivera de seguida carta de livre-trânsito para avançar para a gafaria, levando em cada braço largo açafate. Por lá ficara esquecida umas horas, regressando já à hora nona, nada se demorando com os soldados, pressurosa que parecia estar de regressar à lavra da margem esquerda.

– O que fez na gafaria não se sabe, mas que lá esteve não sobra dúvida – afirmavam os esculcas como se falassem dum prodígio.

Cresceu a curiosidade em Coimbra sobre as acções da rainha. Arranjou-se alguém para na manhã seguinte descer o rio pela margem esquerda, de modo a contornar a penedia dos Fetais pelas traseiras. Nesse ponto havia que grimpar as escarpas do granito e acomodar na mesa do pico um ponto de observação para daí espiar a gafaria e o que por lá ocorria durante as horas do dia. As novas que nessa tarde chegaram foram ainda mais assombrosas que as do dia anterior.

– Senhores, não ides crer… A rainha trata os gafos como eu vos trato a vós. Entra no cercado, vai aos buracos, senta no colo os velhos, lava as podridões com pensos de linho por suas mãos, penteia as mulheres, corta o pêlo dos homens, diverte-se com as crianças, ri com delícia, parte o pão e come com todos. Nunca tal se viu ou ouviu dizer, senhores.

No dia seguinte duas ou três centenas de pessoas reuniram-se nos terreiros da parte baixa da cidade. Vinham incrédulas e receosas. Meteram à ponte, sobrevoaram as águas turvas do Mondego, bateram para os antigos terrenos de Mor Dias e apresentaram-se diante do esculca que a poente vigiava o arraial.

– Vimos pela rainha – adiantou um mesteiral corcunda, de nome Hermigo, que se postara na frente da multidão.

Não estava; só regressava das brenhas depois de noa. Esperaram os homens na entrada do arraial a chegada da rainha. Quando a avistaram, a descer na viração leve de oiro o trilho da brenha, ajoelharam, puseram à altura do peito mão contra mão e ali ficaram a contemplar a silhueta escura, que evoluía num halo de poalha luminosa.

– É a rainha santa! É a rainha santa! – gritou o mesteiral corcunda, logo seguido por todos.

Foi a primeira vez que se ouviu estrondear a expressão a propósito de Isabel de Aragão. As águas do Mondego corriam ali ao lado e as gaivotas piavam no céu azul, ao cheiro do caldo sargacento e do peixe que secava nos estendais de jusante. O povo lhe chamou santa e santa ficou ela para o povo na margem do Mondego. Foi esse o dia da sua canonização, que o outro, o oficial, teve mais de farsa que de comoção.

A gente que ali se postava era a arraia das congostas e dos terreiros, os patuleias que subiam e desciam o rio com mercancia nas azémolas ou nos saveiros, a plebe de pata ao léu e grossas imprecações na boca desdentada e malcheirosa. Vituperavam os beleguins do rei e os porteiros do abade que lhes saltavam ao caminho, mão estendida, azorrague cominatório à cinta, a pedir o dízimo e a anata, o relengo e a siza, a jugada e a contagem, o mordomado e os sondos, um nunca mais acabar de mealhas e soldos que os trazia sempre em sobressalto e de mal com a vida. Para os desalinhados da época, antes os fedorentos braços do Tinhoso que as voltas infindáveis da exacção.

Conheciam porém de outiva a vida de Francisco Bernardone e a de Isabel da Hungria e isso lhes chegava para crismarem a rainha de Portugal. Desde que houvera mendicantes a bater às portas das quelhas de Coimbra, que davam por certo o molde donde se tirava um santo.

– É a rainha santa! É a rainha santa! – repetiam os populares numa litania sem fim, mais sonora, mais vibrante, mais cristalina que cascata de água em dia tormentoso de invernia.

– Só um santo, senhores, se chega a um gafo! – exclamavam alguns, tentando explicar aos do arraial o motivo de tal crisol.

E as vozes dos que estavam engrossavam as dos que chegavam e todas juntas numa só formavam um coro desmedido, que nem os bombos e os adufes em festa de São João. Todos os montes em redor de Coimbra deram então testemunho da elevação da rainha no coração do povo. Avançou a multidão ao encontro da sua santa e correu esta para os braços da sua assembleia. E ali, nas barrocas da margem do Mondego, no restolho queimado e sujo dos silveirais de Verão, quando a amora sangra e o coração grita pelo anil do céu, povo e rainha se confundiram um no outro e riram e choraram de comoção até a frescura da madrugada abrandar aquele incêndio do sangue e da alma, atirando com eles para o amparo fôfo da restolhada.

A rainha, que fora menina infeliz em Montjuich, consciente em demasia das fragilidades da criação, quiçá do Criador, e donzela  mofina nos braços do marido, dando-lhe por dever e à custa de forte estipêndio dois herdeiros, parecia agora, na idade da madureza, fazer-se mulher de raça, capaz de se inflamar pelos sentidos diante da pancada forte do atabale ou do frenesim do pífaro. Chegava enfim ao sabor do fruto sazonado, depois dum pedúnculo frágil e duma flor desmaiada e quase murcha. Entrava a dançar com o povo, à luz das fogueiras, saltando e bailando, para se dar a ver e passar por ser igual aos mais. Custou-lhe? Custou, que o molde em que viera ao mundo em Saragoça era frio e áspero como uma fraga coberta de neve, mas mais a desarranjava tomarem-na por um anjo descarnado, insensível, como esses querubins do princípio do mundo que não haviam tido pejo nem piedade em expulsarem homem e mulher do Paraíso.

Corria o fim de Agosto. Não tardou a entrar Setembro. O rei, que andara pelo Tejo e pela Estremadura, e estava mudar o Estudo Geral para a cidade do Mondego, deu aviso que estava em Montemor por uns dias e não tardaria a entrar no burgo amado em que o reino tivera o seu primeiro desenvolvimento. Antes mesmo de avistar a cerca das terras de Santa Cruz, que quase chegavam à Barreira de Cantanhede, já tinha na estrada um grupo de infanções que lhe vinha dar as boas-vindas e agradecer a diligência de trazer para o Mondego escolares e clérigos da universidade. Por fim o fidalgo escudeiro que ali falava em nome de todos acrescentou com receio.

– Senhor, e mais há que dizer-vos… Sabeis porventura o que se passa com a rainha?

Na verdade, tudo o que sabia era que Isabel andava contida e não mais se metera pela alcáçova a malbaratar com vadios e ganha-dinheiros a riqueza. Ele, Dinis, andara vigilante, receoso da dissipação sem governo da rainha, mas as novas que sempre houvera do paço sossegaram-no. Isabel aparecia pouco e apenas para tomar notícias do filho, da nora e da chusma dos enteados que por lá se faziam, nunca para marchar com aquele sorriso gentil e estulto ao tesoiro. Não era tudo, mas isso bastara para o deixar tranquilo. O resto era o seu amor incompreendido de troveiro e bailador, pior, de mal maridado, mas desse já não se queixava, tanto anos havia que o sofria. Ia a caminho do meio-século de vida mas não lhe faltava força no pissalho, que batia na pedra, caso lhe pedissem, mais que maço de ferro. Por fortuna, não lhe faltavam nos caminhos, nos povoados, nos castelos, nas igrejas, por onde passava e por onde ficava, os mais variados e macios veludos sempre a gritar por ele. E assim se mantinha o equilíbrio daquele estranho casal real. Ele sempre a comer por fora, guloso e salaz, e ela a abrir uma porta, a da gafaria, não menos incendiária e apaixonada. Dois assim haviam ainda de andar à compita na devassidão. Continuou o fidalgo.

– Pois, senhor, grandes novas há da rainha. Deu agora em subir as barrocas do outro lado do Mondego e meter pelos caminhos que levam aos gafos. Nunca se viu nada assim. Até as crianças amodorram no seu regaço nas estiagens da tarde. Se não estorvais, qualquer dia Coimbra vê uma procissão de gafos de Belcouce à Sé.

Assombrou-se o rei. Os gafos viviam mais esquecidos nos buracos das penedias que os láparos nas luras dos silvados. Estavam arredados de todo o convívio humano e cercados por maciços de pedra e peões de besta que os impediam de dar dois passos. Nenhum se lembrava deles e nem mesmo as ordens religiosas ligavam ao caso. Apenas uns tantos lhes mandavam de tempos a tempos uns balaios de carne podrida.

– E os soldados? – inquiriu surpreso o rei.

– Os soldados? Que quereis vós, senhor? Caíram aos pés da rainha como os mesteirais da parte baixa, que agora clamam em todas as portas que a rainha que lhes veio da Catalunha é santa.

– Santa?

– Mais santa que os apóstolos, dizem eles. E não demovem. Alguns até dizem que o culto dela vale mais do que o de Santa Maria. Já lhe prometem círios, senhor…

– Círios…círios…– reguingou o rei, desconfiado e esquisito.

E por um momento ficou ali confundido. – Santa Maria val, só a mim me dão novidades destas… agora estou maridado a uma santa… – pensou ele incrédulo. – Melhor me ia se fosse barregã de folgar, com fressuras boas de se tocarem e que nisso pusesse também seu gosto – juntou com tristeza e fúria.

Depressa se desquitou destas sombras e tomou decisões. O caso havia figura de tão excepcional que só lhe restava bater em alazão folgado para os terrenos da obra na mira de se avistar de imediato com senhora de tão severo desacerto. Chegado à ponte, com as águas minguadas do Mondego a joeirarem por baixo, logo vislumbrou a mole dos mesteirais do outro lado do rio. Era depois de vésperas, hora preferida pelo rei para entrar na sua capital, sentindo refractar na alma a doce cisma que subia das margens chorosas do rio. A rainha chegara havia pouco da gafaria dos Fetais e como sempre sucedera a multidão de Coimbra viera pela ponte para espera. Começava a faltar vinho e pão, mas como os lavores se haviam suspendido não havia soldos a pagar e os dinheiros corriam para víveres. E assim, na plangência do entardecer, o povo ajoelhara-se para adorar a sua santa e depois bailar e comer com ela. Carros de razão tinha esse povo. Um santo só interessa se serve para bailar e comer connosco. Se não, que fique nos missais, a fazer figura de calendário, enquanto os vivos lhe armam às escondidas um manguito bem armado.

Quando o rei se chegou à entrada do arraial, logo o esculca deu sinal de se apavorar.

– El-rei! El-rei! Deixai passar! Deixai passar – gritou de seguida, com  espavento.

Admirou-se o rei de ver tanta gente junta por causa da rainha. Vinha avisado para os gafos dos Fetais mas nada sabia daquelas concentrações vespertinas de gente na margem esquerda, joelho em terra e cara torta, com um corcunda de São Tiago por cabeça. Mal teve a rainha cerca de si, mordeu.

– Sois santa agora e o povo vem adorar-vos. Não é assim senhora?

– Não, senhor. Este bom povo que vos adora vem apenas ao arraial por via do muito calor que tem feito na outra margem do rio. Apanha um pouco de fresco, canta as suas cantigas, come para entreter a fome e depois desanda para a cidade.

– Não mo disse assim um fidalgo de Tentúgal que ao caminho me foi esperar para as boas-vindas. Afirmou-me que vós agora sois santa e que povo tem mais fé no vosso culto que no da Santa Mãe de Jesus.

– Par Deus! Deixai esses ditos. São calúnias…

– Pois deixemos entonce esses ditos. Mas que me dizeis, senhora, de vossas idas à gafaria dos Fetais? São também ditos e calúnias…? Calais?

– Estais bem informado, senhor.

– Admitis pois. Sabeis que é vedado a qualquer a proximidade com os gafos?

– São cruéis tais leis. Jesus andou no meio deles.

– Sempre é verdade entonce que andais a chegar-vos a santa? Quereis que também eu vos acenda um círio… E quanto às leis, cruéis ou não, a mim me cumpre zelar por elas.

E retirou, indiferente aos acenos de Hermigo, que rodeado de gente, rosto afogueado, ali queria dar algum motivo ignoto ao rei. Depressa o esqueceu, se o tinha, e os outros com ele, pois daí a pouco estavam de mão dada a comer fêvera e a cantar à porfia as endechas do rapto da moura Artiga.

O mesmo caso fez a rainha do regougo do rei. Estava por de mais embriagada com o perfume das flores para voltar costas ao jardim da vida. Na verdade nunca fora tão feliz. Começara falena murcha em Montjuich e continuara orelha caída em Coimbra; viver era para ela um esforço tão solavancado como menina que tivesse nascido sem saber respirar. Agora, quem a olhasse, via fruta sazonada e apaladada; nenhum a reconhecia. O círculo de damas dispersara; tirando, Leonor Afonso, as outras haviam acompanhado Constança a Castela ou tinham casa própria e todas andavam longe dos enredos do Mondego. Ela ficara, como de resto lhe competia, e estava feliz; tinha ganas de viver e não queria por nada perder a hora que lá vinha. Para maior surpresa não se lembrava de tal apetite numa fieira de quase quarenta anos a pisar terra. A porta da gafaria estava aberta e nenhum a podia fechar, nem o rei. Em vez de podridão, encontrara lá um eflúvio de rosas que a fazia ditosa e leve.

No dia seguinte, esquecida das ordens do rei, subiu a sós a barroca, bateu os carvalhos, conferenciou com os soldados e fez-se ao cercado dos Fetais. Na copa das derradeiras árvores uma nuvem de pardais de mistura com beija-flores saltitava e chilreava na luz de oiro. Era Setembro e por entre a restolhada seca duma estação árida brilhava um grão rubi. Ficou por momentos com os sentidos presos no quadro; um ponto de alegria sublime subia ao céu sem asperezas. As narinas fremiam-lhe na viração fresca da manhã; uma exalação de rosas, um olor inebriante, um fluido de essências, descia não se sabia donde em cascatas torrenciais. Que enigma! Prouve-lhe puxar fundo o ar. Que embriaguez! Que gozo!

Bombeou vezes sem conta peito e sangue, olhos fechados, sentidos despertos e felizes. Por fim atentou melhor nos pardais. Estavam desta vez vivas e venturosas as aves. E, para mais se deliciar, o glorioso momento que ali estava não tinha duração, era eterno; ficava assim puro, para sempre, na sua mão.

Quando os gafos saltaram o cercado de braços estendidos, prontos à pompa ruidosa, é que se lembrou que nesse dia os açafates que de hábito transportava haviam quedado esquecidos. Entrou em recriminar-se, aflita e agitada. Já os gafos lhe perguntavam pelas compressas e pelas tibornas macias e gulosas; já lhe puxavam pela aba do brial e ela taciturna, sem saber que dizer ou fazer. Quando dentro do cercado pegou na primeira criança, um enfezado em estado adiantado de decomposição, a quem chamavam Fuão, deixou escapar um gemido rouco de inquietação.

– Que tenho eu para te dar?

E então, para não desmorecer, para não contagiar de desalento os que em redor de si sofriam os horrores da corrupção, lembrou-se dum gesto louco, mas que logo ali lhe arregalou os olhos de entusiasmo. Queria beijar os gafos! Nunca até aí se atrevera, por natural repugnância, a pôr os lábios na carne podrida. Agora, além de festas e boas palavras, era o que havia para dar. – É novidade e com certeza que agrada – pensou ela.

Poisou então de leve, quase a medo, quase com veneração, os lábios finos no antebraço grosso da criança a quem chamavam Fuão. Logo sentiu a pele crua e coriácea. Um rumor de pasmo correu pela comunidade.

– Beijar é contágio certo – gritou um.

– É a perdição – reforçou outro.

Isabel, por seu lado, insensível a receios de contágio, sentia o choque da epiderme nos sentidos. Os centros nervosos electrizavam e a volúpia fremia-lhe nas narinas. Era a primeira vez que dava um beijo. Nem ao avô! Nem ao esposo! Nem mesmo aos filhos! Aquele era o seu primeiro beijo! Correu os lábios pela carne quente e cada vez mais esponjosa. Podia sentir o hálito a passar pelos póros. As pústulas começavam na omoplata. Não tardou a tacteá-las com os lábios e depois com a língua. Osculou-as, ensalivou-as, acarinhou-as. Nenhum nojo! Apenas um imenso deleite, uma tontura funda, uma espiral sem terra. No ar, nas regiões etéreas onde vogava, entre balões de cores e poeira luminosa de astros, voltava a correr uma cascata de perfume intensos e vibrantes. As rosas aí estavam, de todas as cores e tamanhos, desfolhando bulcões de pétalas aveludadas e libertando nas correntes invisíveis do ar um odor inebriante e divino que de tudo tomava conta. Também as flores desse roseiral estavam para sempre vivas, eternas, como os colibris multicolores do zambujal.

E durante dias não fez a rainha outra coisa. Depois de pensar e dar de comer, voltava à volúpia dos beijos nos gafos. Os gafosos eram já dela! Queria-lhes mais que aos filhos da carne, de quem fora sempre muito desapegada. Tratara os gafos por suas mãos, vestira-os, humanizara-lhes as condições de vida nos buracos, abrira fossas para as fezes, dera-lhes pano para broslar e fio para ensartar. Por sua vez, os pobres, de tão mimados, já não viviam sem o prodígio matinal de verem levitar na mata a protectora, que brilhava aos olhos deles mais que Sol luminoso de Verão. O preferido era Fuão, uma criança acanhada, nascida nos Fetais e que perdera mãe, desconhecia pai e falava por monossílabos. Pouco se desenvolvera devido ao bacilo que o roía, apresentando um corpo disforme e grotesco. Fora ele porém que lhe dera a descobrir a volúpia dum beijo. – Para mim és mais que o meu filho, Afonso, arrancado à força de leis, em meio de horríveis dores, às entranhas do meu corpo – pensava a rainha, sempre que o embalava nos braços.

Uma manhã em que se despachava para chegar ao cercado, ouviu tumulto na mata. Assustou-se. Um grupo de gafos atrevia-se a gatinhar ao seu encontro, deitando olhares temerosos às ramadas das árvores. Mal a viram, puseram ar de pasmo. Torceram a boca e ficaram por um instante de olhos presos nela. Desta vez em lugar do Sol era como se vissem a própria luz de Deus. Por fim sentaram-se, agitaram os braços, apontaram o cercado, ao mesmo tempo que gritavam:

– Mi…la…gre! Mi…la…gre!

Uma das mulheres que vinha no grupo pegou no braço da rainha e puxou-a pela aba dos panos. Aos solavancos, guinchando monossílabos de espanto e satisfação, revirando os olhos ao céu, levou-a à cerca e apontou para um canto. A rainha olhou. Sentado numa pedra, com o corpo enxuto e esbelto, as pústulas da cara cicatrizadas, os membros sãos, a pele fina, estava Fuão.

Não queria crer a rainha no que via. Largou os cestos e correu para o interior da vedação. Dentro a multidão dos gafos esperava-a. Genuflectiram todos, para logo de seguida se arrastarem para ela, à procura de lhe beijarem o manto. Ela, que nada via, precipitou-se para Fuão; este levantara-se já para vir ao seu encontro. Abraçaram-se os dois a chorar e por um demorado momento assim ficaram, nos braços um do outro, abstraídos dos gafos que em seu redor saltitavam de alegria, batendo palmas e guinchando.

Nessa tarde a rainha apareceu no posto da mata acompanhada dum menino. Os besteiros, que conheciam já as atoardas que corriam por Coimbra sobre a santidade da rainha, quando viram um pequeno dos gafos escorreito e são, crianço que eles bem haviam visto com a maleita, depuseram as armas e deitaram a correr, braços no ar, para o arraial da barroca e para a ponte de Santa Clara aos gritos inflamados.

– Milagre! Milagre!

Em pouco mais de nada toda a Coimbra conhecia a história da criança que a rainha salvara da doença. Clamava-se por todas as portas – milagre! Acendiam-se círios, faziam-se préstitos para vir beijar o manto da rainha e olhar a criança que viera dos Fetais e estava com ela. Comentavam-se os beijos que a rainha dera nas partes putrefactas da carne; atribuía-se a cura ao contacto dos seus lábios. E não havia cego do arraial que não viesse dar os olhos baços à rainha para neles receber a cera dos beijos miraculosos que curavam. E não precisavam de rogar, que a rainha logo os tomava nos braços e beijava. E quanto mais beijos dava, mais os eflúvios de rosa cresciam em seu redor.

Em Santa Cruz este novo tumulto fez transbordar a cólera que por lá retundira durante largo espaço, com as viagens da rainha e a espera dos acordãos, como maré a retirar da praia. Deu ordem imediata o abade de reunião do capítulo. Estava desnorteado e sem saber por onde meter. Por um lado, confiava nas peitas com que pressionava a justiça, até porque Mor Dias falecera sem herdeiros directos; por outro, sentia-se tripudiado pelos acontecimentos invulgares que os esculcas lhe transmitiam dia a dia.

– Senhores, a situação com a rainha é de grande perigo. Vós o sabeis. Toda a cidade lhe chama “santa”. Agora é um “milagre” feito na gafaria dos Fetais. Não há miserável que não apareça na alcáçova ou na tenda da ponte para lhe pedir um beijo. Nunca se viu desordem assim no reino de Portugal.

– Nem pecado maior! – exclamou um dos frades com escândalo.

– Nem bruxaria tão descarada! – juntou outro.

– A obra parou – retomou o abade, fazendo um gesto de calma com a mão direita – mas não chega ver os edifícios parados. Ao que parece falta soldo à rainha; o rei, bom administrador, apertou-lhe a bolsa, escandalizado com os roubos que a rainha lhe fazia no tesouro do paço. Mas com o perigo em que estamos, os mestres irão em breve trabalhar sem soldo.

– Que pensais entonce?

– Hesito entre esperar o acordão e arranjar modo de embargar de imediato esta desordenada onda em volta da rainha. Na verdade pode não bastar o acordão para tirar a rainha daquelas terras. O caso é de muito perigo. Mas… dizei-me vós o que pensais?

– Precisamos, senhor, de medidas fortes. Aquilo que uma vez se tentou, devia vir de novo ao de cima. Há modo de pôr empacho definitivo naquilo que ali se passa – disse um dos irmãos, de rosto meio coberto pelo capuz.

– Insista-se em pedir ao papa a Inquisição, que no-la dará – alvitrou outro.

– Queimar a rainha? – perguntou alguém incrédulo.

– Um avô dela por bem menos acabou na ponta da espada dum bom cruzado do papa – respondeu o da Inquisição.

– El-rei que fale com a senhora rainha. Ele saberá apertar com ela como lhe apertou com a bolsa – voltou o incrédulo.

– A rainha é, além de mão-furado, bicho de muito desassossego. El-rei não lhe põe mão no bridão – comentou baixo, a rir, com malícia, o que lhe estava ao lado.

– Sossegai, senhores. Tendes valimento em tudo o que dissestes. Mas o mais avisado parece-me a mim é falar para já a el-rei. Depois, se preciso for, voltaremos a esta sala para de novo conversarmos.

Foi o abade avistar-se com o rei. Encontrou-o no refeitório do paço de Coimbra, a sós, de olhos vazios no horizonte.

– Que se passa com el-rei de Portugal – perguntou inquieto o abade.

– Não sabeis o que se diz por Coimbra?

– Que a rainha é santa… e acabou de fazer um milagre, curando nos Fetais um gafo?

– Pois que havia de ser, senhor?! Não se fala doutra coisa. E del-rei nem uma palavra. O povo só tem olhos para Isabel. Se me vêem na rua é como se vissem um gaulês que cá tivesse vindo para fazer um escambo. Até as costas me voltam. Correm para as fraldas da rainha que nem alãos açodados pelo bocado da fêvera.

– Compreendo a vossa dor, senhor. Também Santa Cruz tem muitas razões de lástima da senhora rainha. Há anos que vos avisei para os perigos duma dona que se permitia vir à mesa benzer o pão como se fosse o vigário de Cristo. Liberalidades dessas não se podem permitir, senhor. Agora ninguém lhe tem mão no freio. Os frades querem o tribunal da fé para julgar a rainha. É grande pecadora.

– Vindes acrescentar apoquentação à minha dor?

– Não, senhor! Vim lembrar-vos que os primeiros cinquenta e quatro frades da Ordem do Templo foram queimados esta Primavera em Paris e que o papa há muito deu ordem de prisão aos frades do Templo em toda a cristandade.

– Bem vos digo, abade. Vindes com a pecha de me aborrecerdes.

– Ouvi-me, senhor! O tribunal faz muita falta para dar segurança à Igreja. Na Toscânia, na Borgonha, na Provença não há força maior. Já se diz que o próximo papa há-de sair do Tribunal… tal é a sua força e importância para o prosseguimento da obra da Igreja. No condado de Toulouse voltou a aparecer um foco albigense. Pois os serviços do Tribunal logo o perceberam e já foram queimados os primeiros heréticos. Nenhum há-de escapar. Mesmo o que fugiram para a Catalunha, berço da rainha e refúgio de heréticos, hão-se de ser pescados. Que bela rede! São Pedro era pescador…

– E que quereis vós com todas essas novas?

– Que trateis da rainha. É vossa esposa e a vós vos compete o correctivo. Sois poeta e trovador, mas não tanto que vos vá passar na boca dos outros por torto… Não é assim, senhor? Pois tratai de tirar a rainha das barrocas do Mondego e de a trazer para casa. Nós queremos tomar conta do prédio que foi de Mor Dias e ora é nosso. E mais queremos a rainha longe de ruidosas multidões, corda e assisada, fechada em sua casa, perto de seu marido, como convém ao reino e a rainha sisuda.

– Não tendes pejo de vir assim afrontar a dor del-rei de Portugal?

– Santa Cruz, senhor, está sempre ao lado da coroa. E pode el-rei descansar quanto aos frades da Ordem do Templo… Caso a rainha ponha fim a tão desordenada vida, deixando o boliço em que anda, nenhuma queixa seguirá contra eles para Avinhão… El-rei terá na mão a chave do destino desses frades. Fará com eles o que entender. Crede, senhor, é escambo de valor para vós!

Nessa tarde o rei bateu para a tenda das barrocas. Ia desabalado e furioso. Mal viu a rainha falou-lhe alto e rouco.

– Não basta a minha tristeza de esposo…

– … tristeza de esposo?

– Sim, tristeza de esposo! Eu, que nunca recebi um beijo vosso, que vos toquei como se toca num penedo, eu que senti a neve que vos gela por dentro, tenho agora de ouvir todos dizer que os vossos beijos são os mais ardentes que ainda se viram nas margens macias do Mondego. Derretem as pústulas dos gafos e acendem as pupilas apagadas dos cegos melhor que o fel do peixe que o filho de Tobias apanhou no Tigre.

– Que exagerações, senhor!

– Exagerações? Dizem-me até que tremeis toda, num arrepio de prazer, sempre que dais os lábios. E um pagem que andou a servir de esculca no alto das pedras dos Fetais até veio contar que lambeis com infinita delícia os licores pesporrentos dos gafos… Exagerações, senhora? Que mágoa sem fim a minha.

– Também vos quero beijar, senhor… também vos quero beijar muito… tanto…com os mesmos beijos ardentes…

– Vinde… vinde… entonce beijar o vosso esposo… que é o único a merecer os vossos beijos… E que arde cheio de sede por eles! Há tantos e tantos anos que sonho com os vossos lábios em chamas, pingando leite e mel. Deixais-me morrer de sede, vós que beijais à destra e à sestra todos os que vos pedem os lábios? Calais-vos, senhora? Nem um passo dais? Preferis pôr os lábios nos vadios e maleitosos que vos roubam as pedras e o oiro que vos dei? Razão tem Santa Cruz de vos acusar de fazer vida desordenada de barregã!

–… senhor…

– Pois deveis recolher hoje mesmo aos vossos aposentos na alcáçova de Coimbra e não mais os abandonar até nova ordem minha.

Obedeceu a rainha e nessa noite deixou o arraial da margem esquerda para recolher à alcáçova. Hermigo, o alfaiate corcunda dos telheiros de São Tiago, ficou de levar no dia seguinte estas novas aos Fetais. O rei por sua vez, incapaz de continuar por Coimbra, planeou de imediato partir para o Tejo, onde passaria as festas da natividade. Estava ansioso por meter uma folga na dor em que a vizinhança da rainha se tornara. Há muito que se desenganara de meter agulha e linha naquele pano mais empedernido que garaveto em dia de geleira. E o desengano à medida que o carro dos dias enchia fazia-se azedume. Vezes havia em que sem querer Dinis lembrava com tristeza infinita as expectações da cerca de Trancoso, quando recebera Isabel de Aragão – nem vinte anos cumprira – cheio de sonho e paixão, mostrando-lhe na mão um alaúde manso e nos lábios um sorriso de encanto. Sabia que nessa época dedilhara nas cordas da alma sentidos tão fundos como os que David tirara da sua lira e que ela, a dona, não os soubera entender ou não os quisera tomar para si. Revoltava-se; amofinava; estalava os dedos; insultava o destino. Rodeara-se de mulheres e de filhos, mas no fundo fazia um trejeito de amargura a tudo. ­– Sou um homem só e sem cura – pensava muitas vezes a sós.

Esperou o fim da vindima e logo de seguida regulou a casa para bater para Leiria, onde tinha castelo faustoso e bom gasalho. Mais tarde, quando o frio soprasse das serras, iria por Alcobaça, Óbidos e Lisboa, mais mansas de rigores.

– No dia de descanso dos judeus, semana a semana, esperai no paço um esculca meu, que virá por novas da rainha. – ordenou no momento da partida. – Por ele saberei depois se a rainha anda obediente ao que com ela regulei e asissada como cabe a dona sisuda.

A princípio a rainha fez um vida recolhida na companhia da irmã do rei. Vivia quase só de água e pão, a que juntava alguma passa de uva ou uma baga de oliveira, ocupando os dias com os trabalhos que sabemos. Todas as manhãs e todas as tardes subia ao mirante do paço para espreitar a outra margem da água, certificando-se que por lá se estendia a mole dos seus seguidores, agora com Hermigo e Fuão no meio. Ao paço haviam recolhido os cegos e viviam agora com a rainha a vida de outrora. Mas depois, quando começaram a bufar dos cumes as securas do frio, ela inquietou-se. As notícias que Hermigo lhe trazia eram de desânimo. O frio estava a despovoar o arraial e atirar as famílias para as terras do litoral, mais macias. A invernia mostrava-se esse ano tão rigorosa que os cumes do Lorvão, da Lousã, do Caramulo e da Estrela ficaram cobertos de neve antes mesmo de entrar Novembro.

– Este ano neva em Coimbra – vaticinou Leonor Afonso.

E dias antes da natividade, um nevão começou a cair sobre a encosta de Coimbra. Nunca Isabel vira semelhante auto de gelo na doçura cálida de Coimbra.  Todo o dia o céu moeu farinha espessa, deixando casas, campos e quelhas vestidas por grossa roupagem branca; só ao princípio da noite o céu aligeirou a carga e mesmo assim despejando a espaços uma poeira fina e leve, que voava aos abanões nos ventos ásperos.

Na manhã seguinte Hermigo apareceu no paço, com cara aterrada. Vinha embrulhado numa pele de borrego

– Senhora, passei pelo arraial. Só lá estão as donas que vieram de São João e mais duas ou três famílias a tremer de frio. O resto dispersou tudo, por causa do frio e da fome. Como sabeis os franciscanos da ponte nem o postigo abrem e faltam víveres em toda a cidade.

Nesse dia ficou Isabel aflita com a situação que se vivia na cidade e no arraial. Mas pior do que isso eram os pensamentos que tinha com a gafaria dos Fetais. – Que se passa por lá? Que faz o Roi da perna cortada? E a Senhorinha das Malhadas? Como dormem? Como comem? Com que se cobrem? A Brigueira pariu? E a Mor? Os cabeçudos já se levantam? – E por aí fora… até ao martírio. E nesse dia não resistiu mais à meia prisão em que o rei a deixara. Foi às tábuas do escrínio maior, tirou pedras e oiro, desceu aos penhoristas do arco, forrou-se de boas dobras, mandou os padeiros comprar farinha e cozer pão para toda a cidade e os taverneiros trazer duas tinas de vinho novo à porta de Belcouce. Aí se juntou a cidade para trincar e beberricar. De seguida, já envolvida por uma nuvem de povo que a aclamava como mãe e santa, saltou a ponte, chegou às barrocas vestidas de farpela branca, deixou o povo no arraial e bateu para a meseta dos Fetais.

Rebentou de júbilo, quando se apanhou na mata, sozinha, rodeada de árvores enfeitadas de cristais de neve, a caminho dos gafos. – Os meus gafos! – dizia ela. Que desejo e que saudades! E nisto, sem perceber como, na asa dos ventos ríspidos do norte chegou em catadupa torrencial um aroma de essência de rosa que fez ali a sua dita e lhe deu renovadas forças para avançar.

Encontrou desta vez o posto da guarda abandonado. As hastes com o lábaro branco, indicando a gafaria, estavam no mesmo sítio, gemendo no vento, mas a cabana de madeira e telhado de colmo que servia de resguardo aos peões de besta estava vazia, porta a desandar. Dentro havia porém cinzas vivas, irradiando um resto de calor, sinal de vida próxima. Presumiu que nos dias mais frios os soldados desbancavam, nem que fosse por um instante. Ao aproximar-se do cercado procurou escutar o murmúrio grotesco de lástima que tão familiar lhe fora no Verão. O mais absoluto silêncio espalhava-se porém na brancura da neve. Nem um pio de lástima! Entrou e só a solidão da neve a rodeou. Não se via vivalma. Abeirou-se então das luras onde os gafos tinham o seu sono e percebeu o burburinho do queixume. Espreitou. Um cheiro pestilento chegou-lhe às narinas; urina, fezes e pus misturavam-se no ar espesso e nauseento. No meio da sombra divisou, quase nus, cobertos com as túnicas esburacadas da estação quente, encostados uns aos outros, tentando entre eles conservar um resto de calor, os seus gafos. Como o Inverno ali era cortante! Nem um braço de vides aqueles desgraçados tinham para se aquecer.

Entrou de rompante, aos gritos, repetindo os nomes de cada um e estendendo os braços. Foi de imediato reconhecida e todos se levantaram de olhos arregalados, batendo palmas. Gritou-se, chorou-se, bailou-se. Também desta vez nem um pano de lã ou uma rosca quente ela levava. Reprovou-se. E todo o dia distribuiu beijos sedentos, carícias vibrantes, risos de fortuna. Se uma santa serve para beijar os infelizes, sem dizer um doesto, sem mostrar uma unha de repulsa, então que fique santa e não saia do meio de nós. Ouves, Isabel?

Nessa noite, já de regresso ao arraial, que se reanimara com os eventos da manhã, fez planos para atenuar a rispidez das condições dos Fetais. Bastava arranjar um caudal de dobras, cambiando pedras e anéis – e não havendo estes iam as coroas e os diademas – e arranjando uma linha de homens corajosos, que lhe levassem tábuas, mantas, trajes, almadraques de penas, lãs, estofos e por aí fora. Ela mesma calafetaria paredes, regularia buracos, repartiria capas e ceroulas, instalaria coxins e almadraques. Eu tenho razão, leitor; uma santa que troca a coroa por uma cepa, à espera de aquecer um miserável, vale tudo e é eterna. Há-de ser sempre para nós um modelo.

E na madrugada seguinte, logo depois das badaladas de prima, já ela estava à porta dos prestamistas de Coimbra com uma abada de jóias para entregar. Luziam os primeiros raios de Sol e andava Hermigo arranjando o lastro para humanar a forma de vida da comunidade dos Fetais. E ao fim da hora nona, quando a noite se começava a espalhar, tudo estava acabado e a rainha de regresso. Ao passar pela cabana deu com um novo ponto de soldados. Nenhum vira nas andanças anteriores. Um levantou a voz com preocupação.

– Por São João de Acre! El-rei deu ordens estreitas para cortar as voltas da rainha pelos Fetais.

– Guai de ti e de mim! Antes me davas inteiro ao Demo, que tocavas naquela santa – retorquiu outro, cuspindo no chão.

E assim se ficou, com a rainha a regressar sem incómodo ao arraial, de novo apinhado de gente. E para confortar o campo e apalancar a alma não teve outro remédio senão voltar a meter a mão nas pedras e nos anéis. E na frialdade de Janeiro, quando até as árvores pareciam de metal insensível, incapazes de espremer um broto, uma nuvem de essências primaveris corria pelo ar e a todos fazia sorrir.

Não tardou o rei a ter notícias do que se passava por Coimbra e do modo rápido como derretiam os derradeiros réditos da rainha. Calculava Dinis, e bem, que acabados os adornos, até as coroas se iriam para os botequineiros do arco de Almedina. Passara a natividade por Lisboa, que era refrigério manso porque longínquo do centro onde desenvolvera o sofrer, e subira a Santarém, que os antigos reis muito haviam prezado. Dali saltaria para Ourém e Tomar, onde haviam morada os frades do Templo, com os quais era mister acertar os destinos internos da Ordem; depois, nos alvores de Março, quando o rio sacolejasse mais que mar em dia de procela, entraria ao entardecer em Coimbra para cantar a merencoria da sua vida e lembrar nas cordas plangentes das margens do rio o amor mofino.

Deu de imediato os planos de barato e tratou de reunir os cofres para partir na hora para a cidade do Mondego. A pressa era tanta que só uma parte da comitiva o acompanhava; o restante ficava para trás, em marcha lenta, como devia ser em caravana de andas e muito animal, desde os alãos aos muares. Ansiava apanhar a rainha em flagrante, escarcela empanzinada de jóias, e para isso montou plano minucioso e sem falha. Dentro do paço, no momento em que a rainha fosse pelos lavores, um esculca içava no mastro da torre, que se via de Celas, um pano verdeal. Nesse momento o rei, que estivera escondido sem nenhum o saber nos juncais do rio, onde havia cabana sua, tomaria a porta do Sol, na entrada da cidade, onde o esperava um alazão soberbo e um conto de cavaleiros prontos. Dali batiam todos num bulcão de pó a cercar a rainha, que quando desse por ela estava mais presa que o sargo nas redes dos saveiros. Bem havia de escoicinhar, mas antes de se livrar havia de soltar no chão tudo o que levava.

Não era a irada cólera que o movia, nem mesmo o prazer malsão de se vingar das frialdades e das indiferenças da esposa, nem até o probo sentido da administração dos homens e das terras; na verdade o que fazia correr assim ardiloso o rei era tão-só o gosto de castigar os costumes. Gostava de prestar boas contas, mas muito mais lhe prazia apanhar alguém num passo falso, para lhe poder atirar, que fosse!, uma palavra em chamas. Mais do que o lavrador, era o poeta desejoso de alvejar um coração, fosse de chiste, fosse de paixão, com um vocábulo certeiro e fulminante. Nem sempre a lira se lhe enovelava nos limos magoados do rio; dias havia em que subia ao Sol e ria, ria para escarmentar o que de pouco se via pelo mundo.

E tudo sucedeu como o rei previra. Estava a rainha pronta, para descer a escadaria do paço, com o regaço cheio de preciosidades, quando uma galopada estrénua se ouviu do outro lado da cerca e um grupo de cavaleiros surgiu com o rei na dianteira a tapar numa nuvem de poeira o portal do paço. Deixaram-se os cavaleiros ficar na rectaguarda, protegendo o recorte, e avançou o rei com o cavalo a passo até meio do pátio, onde desmontou, entregando com aspecto contrito a montada a um pagem que acorrera à chamada dos peões da guarda. A rainha, logo que se apercebera da figura do rei, ainda no bulcão da entrada, ficou siderada e vazia, incapaz de se mexer. – Ó Deus, que faço às jóias? – perguntou-se. Estava pregada na escadaria e nem mais passo deu, com as abas do manto presas nas mãos, à altura da cinta.

Entretanto o rei fizera um sinal de descanso aos cavaleiros que tapavam o portal, avançara em direcção da escadaria e encontrava-se agora parado, mãos enfiadas no largo cinturão de cabedal. Em vez do modo contrito, compusera um ar aliviado de surpresa.

– Senhora, muito folgo de vos encontrar no paço.

– … Senhor…

– Sois corda, senhora, permaneceis por casa como vos pedi. Gosto do vosso acerto. Mas, dizei-me, senhora, vejo que o vosso manto está pejado. Que regaçada cheia! Que levais vós aí… assim tão pesado?

Neste momento sentiu a rainha fremir nas narinas o inebriante e doce perfume das flores que tantas vezes sentira desde que se metera a caminhar para os Fetais. Desta vez vinha mais intenso, mais penetrante, mais doido. O próprio rei pareceu senti-lo porque um momento houve em que levantou a cabeça e aspirou com força o ar como se nele percebesse uma essência invulgar e doce. Mas logo se esqueceu, para se absorver no interrogatório. Insistiu.

– Não ouvides o que vos pedi, senhora…. Quero saber o que aí levais. É o vosso esposo e o vosso rei que convosco fala…

Mais forte, mais inebriante, uma nova onda de perfume correu. Todos a notavam, pois mesmo os cavaleiros sorviam discretamente o ar, com as narinas a palpitar e um sorriso de encanto. Até dentro do paço a nuvem olorosa se sentia, já que damas e pagens se abeiravam das varandas, indagando o ar ao mesmo tempo que saudavam o rei com vénias e acenos. E nisto, aproveitando a sugestão do que por ali se sentia, a rainha exclamou com voz convicta:

– São rosas… São rosas, senhor, o que levo na minha abada…

– Rosas, senhora? Na vossa abada? Como rosas?

– Rosas… rosas… rosas infinitas… Não conheceis as rosas, senhor?

– Rosas… rosas infinitas… ah-ah… De guisa que dizeis rosas, no mês de Janeiro mais gelado de sempre? Mostrai, senhora, essas rosas. Curiosas e diversas devem ser elas das que eu assinalo…

E aproximou-se da rainha disposto a dar esticão valente no pano do manto, fazendo derramar no chão todo o estendal das preciosidades que a rainha ali escondia. Havia por engraçada a ingenuidade da rainha ao dar-lhe tal resposta mas ao mesmo tempo enfurecia-se com o descaro atrevido da mentira.

Nesse instante a rainha deixou cair das mãos as abas do manto. Logo aos seus pés começaram a cair pétalas brancas de mistura com outras cor de sangue e outras ainda amarelas como labaredas de lume vivo. Um vento frio soprava do Lorvão e vinha assobiar nos quatro cantos do pátio. O rei, ao ver o caudal ininterrupto de pétalas a movimentar-se no regaço da rainha, imobilizou-se num calafrio de horror. Só conseguia pestanejar de pasmo diante do correr das rosas. As pétalas soltavam-se do manto, pairavam por um momento no ar e subiam nas volutas do vento, num bailado fantástico e arrepiante.

– Isa…bel… Isa…bel… – acabou por murmurar no meio da maior perturbação.

As pétalas continuavam a cair, misturando o branco, o vermelho, o amarelo mais raro, indo logo bailar nos dedos do vento. Dentro em pouco, milhares de pétalas esvoaçavam por todo o pátio; um perfume, que parecia vir de nenhures, entranhava-se na atmosfera, derramando êxtase e doçura. A multidão, que entretanto assomara às varandas, gritava a chorar, deitando as mãos à boca.

– Milagre! Milagre!

A rainha continuava imóvel, no meio das escadas, sem se dar conta das reacções que a envolviam. Os olhos pareciam baços e vazios; as mãos sem reacção, caídas ao longo da delida capa de lã; o rosto quieto e branco, esculpido em duro e brunido marfim. E do seu ventre continuavam a cair rosas, rosas do infinito, que logo se punham a dançar alegres no vira do vento. Não tardou que a cidade inteira se visse envolvida numa nuvem de pétalas e numa onda de perfume tão oloroso que nem as essências de nardo e cânfora que vinham do Cairo e de Damasco e que de quando em quando se vendiam nos perfumistas de São Pedro.


VI. AS SERPENTES DE FOGO


Os crúzios, na outra ponta da cidade, foram os derradeiros a perceber o que se passava pelo paço. Um dos noviços, que fora pela chave da igreja de São Tiago, onde os cónegos regrantes davam missa à hora terça, dera com o desatino da gente a correr em alvoroço para a cerca da cidade. Depois de indagar a uns quantos que desassossego era aquele, alguém o avisara para novo milagre da rainha, desta vez no paço, diante do rei e dos cortesãos. Disparara o noviço para o convento a contar o que sabia. Pediu-lhe o abade que fosse indagar com discrição o que sucedia. Nessa altura já as pétalas flutuavam sobre a cidade e passavam por cima de Santa Cruz, dirigindo-se para sul. À hora nona todo o mosteiro sabia dos sucessos da manhã. Esperavam-se notícias da rainha, que ficara, como o noviço pudera comprovar, paralisada nas escadas do pátio. Mas de seguida, quando a noite caía, chegaram outras novas da rainha. Retirara afinal para os Fetais, seguida do próprio rei.

No dia seguinte, depois do ofício de vésperas, o abade de Santa Cruz aguardava a reunião capitular. Titubeara no dia anterior, quando soubera que a rainha abandonara a cidade, seguida pelo rei. Pensara então que havia de ter esculcas nas penedias dos Fetais e esperar o regresso dos soberanos. – Nada de precipitar acontecimentos com o caso longe do termo – pensara, fiado no que aprendera. De seguida, à medida que a noite caía, dera-se conta que muito povo estava a chegar dos lugarejos próximos ao Mondego. Viam-se lucilar os brandões acesos no escuro do anoitecer e o burburinho da gente a passar com as récuas carregadas. Mandara saber de que se tratava. Disseram-lhe que era a arraia avulsa que andava doida por causa das rosas da rainha. Apesar dos rigores da atmosfera, esperava-se uma preia-mar em Coimbra, pois havia gente que fora enviada para os quatro cantos da comarca a anunciar o que se passara. Dizia-se mesmo que desta vez até gente de Leiria, de Viseu, de Aveiro ou do Porto havia de chegar à cidade do arco de Almedina.

E de feito no dia seguinte, de manhã, a enchente transbordava por todas as quelhas. Não tardara que toda aquela gente rumasse para a margem esquerda, juntando-se ao arraial que por lá estava. Quando o abade se assomara à torre de Santa Cruz e pusera os olhos na multidão do arraial, apanhara um valente susto. Nem mesmo nos tempos das discórdias em Castela entre pai e filho vira hoste assim tão grossa.

– Sus! A erva cresceu! Se não limpamos a terra, nunca mais dali a tiramos – comentou inquieto, para quem o acompanhava.

E logo ali pensara reunir nesse fim de dia o capítulo, disposto a tomar sem demora medidas fortes. Agora esperava na sala capitular a chegada dos últimos retardatários. Quando todos se anichavam nos lugares, falou.

– É mister voltarmos a esta sala por via do assunto da rainha. Depois do “milagre” dos Fetais, temos este das “rosas”. Não há já peão que não grite por “santa”. E não há nenhum de Coimbra que não desande pelos campos em busca das pétalas que por lá se dispersaram.

– El-rei não tem mão na esposa, senhor – acrescentou com reprovação um dos frades.

– Como havia de ter se aquilo é bruxa herética – juntou outro.

– Pois, senhores, se el-rei não põe ordem em sua casa, poremos nós. Não seria a primeira vez. Para já pomos mão no que é nosso. O terreno de Mor Dias não mais irá servir para desacatos de heréticos.

– Que ides fazer?

– Limpar o que por lá está e plantar vide. Os franciscanos da ponte ficarão com o carrego de tratar da poda e da vindima.

E nessa noite planearam o que fazer. Acumular primeiro no pátio carqueja seca, juntar barrotes e dois ou três barris de resina inflamável. Depois levar tudo para a margem esquerda e deitar um tição de fogo ao conjunto no meio do arraial.

– Em algumas horas a lavra ficará em cinzas, consumida para sempre pelo fogo – rematou o abade.

E na madrugada seguinte, ainda noite, em silêncio, protegidos pelo broquel da cerca alta do mosteiro, os frades foram esvaziando os armazéns e acumulando molhes e traves no pátio. O tempo estava frio mas seco; por isso nem uma pinga de água inquietava os que laboravam. Ao anoitecer, antes do ofício, vieram os carros cobertos, para encher de lastro. Até ao toque de matinas afadigaram-se os frades a cobrir o interior dos carros; por fim, quando todos os buracos estavam calafetados, o abade pôs os olhos no conjunto. Envaideceu-se. Eram dez carros apinhados que nem celeiros.

– Nem um percebe o que aqui se esconde – exclamou com satisfação o abade. – Para o mesteiral vulgar o que aqui segue é um comboio de carros, igual a tantos outros, que o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra envia para Leiria e outros lugares.

Um esculca deu sinal: no arraial continuava movimento. Esperaram. Depois do toque de laudes chegou a nova aguardada; o arraial silenciara e mesmo os vigias cabeceavam de sono. Até o faroleiro da torre de Belcouce descera para estender o corpo no catre, já que as águas cristalisavam; o movimento dos barcos parava, para só retomar ao fim da manhã com o quebrar do gelo.

Saíram os carros do pátio e puseram-se em movimento. No termo da ponte, acolheram-se à entrada do mosteiro de São Francisco, como carrego que andasse dum mosteiro a outro, como tantas vezes sucedia. Vieram dois frades recolher as bestas nos estábulos e dar guarida ao postilhão de cada carro. Depois tudo caiu em silêncio. Passado pouco oito noviços desceram dos carros, protegidos no capeirão negro, rosto comido pelo capuz, pés acomodados nas sandálias alígeras. Dividiram-se em quatro grupos e cada grupo se dirigiu a coberto da noite, sem o menor ruído, aos quatro cantos do arraial para dar conta de cada entrada. Cabeceavam os esculcas de sono na noite fria, deixando pender a cabeça para o braseiro quase extinto; em menos de nada, estavam estendidos no chão, olhos revirados, com um bulhão espetado nas costas. Soou um silvo oco, que se confundia ao da coruja da ponte. Surgiram então novos vultos carregados com o lastro dos carros. Os barrotes foram pincelados de resina e os barris atirados para o meio da carqueja, arrumada esta às tendas e aos edifícios em construção.

Nisto alguém se levantou e se chegou à portada duma janela. Depois de tentar divisar na sombra da noite qualquer movimento, acabou por atirar umas palavras cegas ao Deus-dará.

– Anda por aí alguém? Se anda, que diga.

Neste instante já os noviços que haviam dado conta dos esculcas do arraial sopravam num cadinho de ferro três ou quatro tições prontos a serem despejados na carqueja seca. Estava tudo prestes para o fogo de vistas.

– Não te incomodes, irmão – respondeu-lhe uma voz confiante da rua. – Recolhe ao sossego, que somos dois que ficaram de guarda e por aqui passamos para ver se está tudo conforme. E ao que vemos nenhum perigo soa por perto. Foi apenas a coruja de São Francisco que mais uma vez nos assustou.

Retirou-se o homem para dentro. Deixaram os de fora correr o tempo, sem mexer um dedo, de modo que o homem caísse nos braços do torpor hibernal. As noites estavam grandes e a madrugada ainda andava longe; nem os Pirenéus cheiravam ainda a sua sombra. E para o toque de prima faltava uma hora bem medida na areia das ampulhetas. De qualquer modo, não havia tempo para desperdiçar desse ou doutro modo; não tardariam os primeiros almocreves a sair de Coimbra com as azémolas carregadas de mercancia pelas portas de leste, as primeiras a receber movimento.

Quando se viram por um longo momento no silêncio, sem qualquer sinal do homem que assomara à sacada, os noviços despejaram os tições na carqueja e chegaram-lhe ao de leve sopro miúdo. Não tardaram a crepitar as labaredas, primeiro, baixas e delgadas, depois, fortes e altas. Num pulo, os vultos dispararam para o átrio do mosteiro de São Francisco, onde outros os esperavam. Abriu-se a três quartos a porta da casa e todos aqueles vultos se esgueiraram ordenadamente para dentro. De fora só os carros sem os animais, poisados nas rodas, e as labaredas no meio do escuro cada vez mais altas e luminosas.

No dia seguinte o balanço do incêndio foi atroz. Dezenas e dezenas de mortos, apanhados no sono e sufocados pelo fumo; igual número de feridos, alguns em estado tão grave que os vivos lhes desejavam aos gritos por piedade a morte; uns poucos ilesos, ou quase incólumes, que haviam logrado escapar, pela agilidade ou pela posição, mas que não haviam bastado para socorrer os outros e menos ainda para minorar as chamas. O fogo devorara tudo e nada restava nos campos a não ser pedra e carvão. Onde ontem houvera uma cidade em construção, havia hoje um campo estéril e chamuscado, de hálito crestado e sujo.

Veio o rei de imediato do posto da guarda dos Fetais mal lhe deram nota do incêndio. Ainda chegou a tempo de ver a força do lume e a luta desesperada dos de Coimbra passando baldes de água que o fogo deglutia sem dar mostras de abrandar.

– Fogo assim teve de ser posto – exclamou o rei ao medir a altura e a energia viva das labaredas.

Reparou então nos carros de Santa Cruz, arrumados discretamente na alameda da portaria dos franciscanos da ponte, e percebeu tudo. Fez porém que não. – Santa Cruz é forte e não anda de bem com a rainha. A mim o que me serve é o acordo com a Ordem de Tomar, que da rainha nem sei. Tanto é o bem como o mal, Deus meu. Nunca tive dela um beijo. Que venham os crúzios tomar conta do terreno, que a mim tanto se me dá  – descarregou ele. E, dando aos ombros, que nele era sinal de determinação, tocou com tristeza o cavalo para a ponte e lá se desvaneceu na cinza e na fuligem que esvoaçava no vento. Nessa noite, depois de vésperas, quando o fogo já tudo consumira na outra margem do rio, ainda se atreveu a ir à porta de Santa Cruz para inquirir o abade. – Não há-de este ao menos tomar-me por tolo – pensou enquanto batia no postigo.

– Não vos pesam os mortos no pensamento? – perguntou.

– Vadios não pesam na consciência. Que o diga el-rei quando manda os beleguins escarmentar na forca assassinos e ladrões por destemperanças bem menores que estas. Assim se evitam males piores. Dentro de dois dias tomaremos conta do terreno e ninguém mais recordará este desastre. Sossegai, senhor, que Santa Cruz sabe cuidar do que é seu.

– E eu bato para Tomar que é onde devia estar a esta hora. Também eu tenho por lá que cuidar do que ainda é meu.

Quanto à rainha, mal soube do incêndio na obra, deixou os Fetais e atravessou a pé a meseta até às encostas do barrocal, onde se acomodou exausta e alheada. Desde que lhe sucedera largar a regaçada das jóias e ver as rosas em caudal que caíra num torpor de transe, não distinguindo certo o que sucedia em redor. Já se conhecia que a dona era dada a transes de desfalecimento e por isso nenhum estranhava o que ali via. Não falava; não respondia; não observava; sorria apenas. Ali ficou sentada, enquanto os seus se misturavam nas filas que desde o rio faziam correr, mão em mão, baldes de água para debelar o fogo. O rei acabava nesse instante de tocar a montada, para se afastar com tristeza para a ponte, voltando costas ao terrível espectáculo. Tanto dava de barato os que ali ficavam como os outros que deixara nos Fetais. Havia com certeza outra vida, para além daquele arco tenso.

Depois, ao entardecer, quando o fogo já nada tinha para consumir, e só se viam pelo chão os restos enegrecidos da pedra e o carvão duro dos grossos barrotes, a rainha desceu a terreiro e ajudou a consolar os feridos e a levar os torresmos dos mortos para o adro do vizinho mosteiro, onde começaram a ser soterrados.

Nessa noite retirou-se Isabel para um cabano de pescadores que havia a montante do rio. No dia seguinte via-se por perto a multidão a murmurar de manso. Até os gafos, à situação excepcional do fogo, haviam tripudiado a cerca e corrido o barrocal, misturando-se aos outros quase sem estranheza. Nenhum dava sinal do caso e todos andavam unidos. De qualquer modo a rainha continuava abstraída do que sucedia em redor. Tinha os olhos perdidos num ponto vazio do horizonte e não tomava conta do que lhe diziam. Perdera todos os cegos no incêndio da véspera mas não dera palavra sobre o assunto. Nem palavra, nem lágrima, nem soluço, nem nada; parecia alheada ou tão-só desinteressada. Trouxeram-lhe comida farta mas ela apenas aceitou beber água e roer um côdeo relho de pão. À volta juntava-se cada vez mais gente. Era como se o antigo arraial de Mor Dias, nascido sob a estrela maravilhosa da tia da rainha, Isabel da Hungria, se refizesse agora, depois das terríveis calcinações do incêndio, em torno dum grão modesto e encardido de terra, num arrabalde das margens do rio.

– Aqui cheira a rosas – murmurava-se com enlevo nas imediações do buraco.

E o odor melífluo tanto bastava a que a gente acorresse e ali se acoitasse. – Da sombra daquele manto continuam a fluir pétalas e milagres – dizia-se. – Quem, com um manto assim por perto, tem medo do contágio dum gafo? Nenhum!

Coimbra estava naquele instante dividido em dois campos. Dum lado o abrigo da rainha, aberto nos fojos do rio; do outro, numa linha direita que ia do nascente ao poente, a majestatosa e vetusta construção de Santa Cruz. Sob o primeiro ondulava um bálsamo místico, uma essência celeste de rosas, que chegava para sarar os gafos e abrir o coração dos mesteirais empedernidos da parte baixa da cidade; sob o segundo pairava a negra e nojosa nuvem de fuligem. Dum lado, a rosa simples e pura, abrindo na haste delgada e humilde dos campos anónimos; do outro, a carne humana carbonizada, o carvão escuro e imundo como escória do oiro cunhado que corria nos dobrões e nas libras.

E o conflito que no tempo de Isabel de Aragão se viveu na linha do Mondego entre a rosa e o carvão, entre a haste e o oiro, entre Santa Cruz e a ralé, é o embate capital que ainda hoje vivemos no mundo entre uma modesta folha verde e uma nuvem de gasolina. Quem não sente no ar envenenado de hoje o cheiro da carne esturricada dos autos-de-fé? Eu sinto e por isso estou do lado de Isabel de Aragão. Possa ela sempre dar rosas ao mundo, é o meu voto!

Foram os crúzios tomar conta do terreno onde dias antes ainda estava o arraial que viera do tempo da dona antiga de São João. Levaram carros descobertos, jungidos a bois, e limparam neles a pedra preta das antigas construções e os pedaços grossos do carvão. Ficou apenas a cinza fina e o cascalho miúdo, que alguns noviços se encarregaram de mesclar na terra. O terreno foi cercado e logo começaram os franciscanos de espetar os brotos da vide. Em poucos dias estava formada uma vinha de centenas e centenas de pés.

– Nenhum diria que uma torva obra que tanto dano e vergonha nos trazia, ainda havia de dar esperanças assim radiosas – exclamou o abade de Santa Cruz com satisfação, quando por fim visitou a propriedade. – O primeiro vinho que daqui se tirar há-de ir para a celebração da santa missa no dia do Senhor. Todas as igrejas de Coimbra o consagrarão no mesmo momento.

A rainha mostrava-se indiferente às transformações que a obra sofria. Bem insistia Hermigo em lhe trazer as novidades, à espera duma revindicta, que ela não dava sinal. Parecia de todo estranha ao destino daquilo que até há pouco tão caro lhe fora. Contemplava as águas, sorria, punha os olhos vazios num ponto do horizonte, bebia água da moringa, roía a côdea velha, embalava nos braços os gafos pitorros e parecia ela mesma ondular no movimento das marés que lhe vinham quase tocar os pés. O resto, se resto havia, não era para ela.

Em Coimbra por essa época nascia a lenda da rainha santa. Em qualquer ofício, em qualquer tenda de mercancia, em qualquer casa ou balcão se contavam histórias e casos. Ela era capaz de tudo: levantava edifícios com uma palavra que só ela conhecia; semeava centenas de ares de centeio só com o poder do olhar; amansava lobos e ursos com um gesto das mãos; curava paralíticos com a saliva; desviava o curso dos rios; parava as ondas no mar; paralisava uma hoste de soldados; sarava a lepra; limpava a cegueira; punha fogo na ponta dos dedos; transformava as pedras em pão e a água em vinho. Ainda estava para se descobrir maravilha que ela não operasse.

– Não é santa, é bruxa. Tudo o que contais são artes de bruxaria. Essa mulher tem pacto com o Demo – replicavam os de Santa Cruz às histórias que corriam.

E também eles se punham pelas esquinas e pelos estancos a contar os casos todos que conheciam da família da rainha. O bisavô paterno, rei de Aragão e Catalunha, fora morto por um cruzado do papa; andava feito com o Mafarrico e com os heréticos. Quando o heróico cruzado lhe enterrara o montante até tinta preta, pútrida como fezes, lhe espirrara do coração. O bisavô materno, imperador da Germânia e rei da Sicília, esse era o animal disforme que o Apocalipse de João anunciara. Tinha os dez chifres e as sete cabeças da profecia; sobre os chifres havia dez diademas e sobre as cabeças o insulto blasfemo que não se podia sequer ler. Era a pantera com pés de urso e boca de leão de que falava o Livro. Mas o bom papa, inspirado por Jesus Cristo, auxiliado por dois anjos com forma humana, conseguira vencer o Animal, matando-o nas fragas da Apúlia. Porém a Besta deixara a peçonha espalhada na Terra sob a forma de sementes. Tivera o destemido e magnânimo papa um breve período para recolher todos os germes da reprodução. Todos eles o papa arrancara com intrépido heroísmo, menos um, o de Manfredo, por cuja descendência se continuara a luta entre as hostes de Deus e as do Anti-Cristo. Ora o repugnante Manfredo, que fora morto pelos bravos cruzados de Clemente IV, era o avô da actual rainha portuguesa

– Por isso esta Isabel de Aragão é na verdade a Isabel do Dragão, da qual haveis a todo o custo de vos afastar – repetiam os cónegos regrantes de Santa Cruz, de olhos esbugalhados e fazendo o sinal da cruz.

E logo desfiavam os males que podiam vir às gentes do contacto com semelhante Fedor. Os perigos corriam até à sétima geração e metiam cegueira, pintas vermelhas na pele, corrupção das unhas, surdez, inchaço fatal da língua, obstrução do ânus, paralisia dos dedos, gaguez, coito com ursos e lobos na fêmea, aparecimentos de cornadura cervídea e tourina no macho, apetite de sangue menstrual, canibalismo, licantropia, sodomia, impossibilidade de cortar o pêlo e muitas outras deformidades grotescas.

Também estes ditos que Hermigo lhe fazia chegar deixavam a rainha fria. Tanto lhe interessavam as transformações da antiga obra, volvida em vinha pela mão pressurosa dos crúzios, como as histórias que dum lado e do outro se contavam sobre ela e sua família. Na aparência só o movimento do rio lhe convinha.

Que se passava afinal com a rainha? Além do transe em que ficara com a aparição das rosas, como se o miolo do mundo fosse afinal irreal, havia a lenta consciência da vida que descia sobre ela. Infinitas perguntas baralhavam-se, chocavam-se, fundiam-se no seu espírito. – Quem sou? Que me sucedeu? Que posso fazer mais? – E assim por aí fora até se perguntar que fazia ali, perdida numa cidade do poente luso, ao pé do fim da Terra, longe do reino natal e dos lugares populosos. Deitava o ouvido para jusante e lá estava o eco do oceano, tal como o vira e ouvira nos arrabaldes de Lisboa e de Montemor. Por isso pés de vide e histórias perversas de crúzios lhe pareciam incongruências irrisórias, sem significado. Mais sentido tinha a história da tia Sancha, deixando pé leve e braço roto o paço de Barcelona e para sempre desaparecendo, sem deixar rasto, na irrealidade suprema do mundo.

E um dia também ela desandou. Foi buscar o bordão de pau ao paço da alcáçova – o bordão que outrora lhe servira para abrir as águas do rio – e abraçar os que por lá conhecia. Cego, dos antigos, nem um; haviam sido todos devorados pelo grande e recente incêndio. Quando lhe perguntaram para onde se dirigia, ela abriu os olhos, sinal nela de vontade certa, e respondeu:

– Vou cumprir promessa a Compostela. Deixai-me pois a sós nos caminhos de Deus e dos homens.

Na verdade Compostela era só o primeiro ponto do roteiro. Cogitara muito nos últimos dias e desaguara na certeza de que só o vasto espaço do mundo era seu reino. – Não fez assim minha tia Sancha? E a landegravina da Turíngia, minha outra tia, não foi assim que se buscou e encontrou? – perguntara-se cheia de arroubo. Por esse motivo, de pau na mão, tomava Compostela, a norte do Douro; seria esse o ponto de partida da nova vida. Do terreiro da grande igreja havia de partir a abraçar o mundo; primeiro os Pirenéus e depois os fartos e frios bosques da Gália e da Germânia, onde se internaria à procura dos gafos e dos cegos. Queria prodigalizar os dons que oferecera na linha do Mondego. Fora menina; fora princesa e rainha; seria agora peregrina, entre fada e madrinha.

Durante dias a rainha teve na peugada o povo de Coimbra. Não havia passo que desse, que também eles, à distância, não repetissem; nenhum aceitava que a rainha partisse sozinha para o norte. Tanto lhes fazia que ela fosse Isabel de Aragão ou Isabel Dragão, como cuspiam os crúzios; desde que se chegasse a eles, estavam por tudo, fosse draco ou fosse serpe. Por fim a rainha confundiu-os, trocando-lhes os passos e deixando-os para trás. Ela sumiu-se no buraco escuro duma floresta de carvalhos que lhe apareceu sobre a esquerda e eles enfiaram por um trilho de terra batida, à destra, a céu aberto. Caminhou durante muitas horas, sempre à espera de ver surgir o corcunda Hermigo à testa dos mesteirais e vadios do Mondego, mas nada. Só ouvia o pio dos pássaros e algum uivo distante de lobo. No dia seguinte avançou com as mesmas precauções, temerosa de ver por detrás de cada árvore a cara disforme do corcunda de São Tiago, pronto a uma surpresa, mas foi sempre o vazio que encontrou. Ao anoitecer deu-se em definitivo por só e tratou de anotar as estrelas, que recamavam como diamantes de quilate grosso o céu limpo de Inverno, de modo a tomar no dia seguinte a direcção certa, a das fragas do Douro.

Fixou os pontos e de madrugada seguiu para norte, à espera de atravessar as serranias que a levariam ao grande rio. Todo o dia caminhou na alfombra da floresta, alimentando-se apenas das bagas secas que ainda se agarravam às ramadas dos carvalhos e da água fresca que a cada passo encontrava a brotar dos fetos e das rochas. Começava a estar desejosa de encontrar um fio de fumo que indiciasse uma aldeia ou uma simples choupana que tivesse dentro um par de humanos com quem pudesse botar duas palavras e rilhar uma côdea de pão seco. – Pago-a, curando os doentes do lugar – pensava. E mais ansiava pelo momento em que se visse na companhia dos humanos.

Mas nos dias seguintes, sempre a caminhar, nem bichos viu. Ouvia o uivo famélico dos lobos e o chilrear da passarada selvagem e era tudo. A única companhia que tinha eram os fetos gigantescos que rebentavam do chão como radiolários aquáticos no meio do mar e as penedias de calcário claro ou de xisto negro. O resto era o labirinto das árvores centenárias e mudas, petrificadas no frio do Inverno e que nem o assobio da nortada fazia bulir. Ela bem procurava divisar com os olhos atentos um delgado fio de fumo que sinalizasse uma presença humana mas nada se precisava além da pedra e do embaçiado clarão verde da floresta.

Por fim, ao longe, numa clareira, pareceu-lhe arrancar uma apagada forma humana. Caminhou com energia em direcção do ponto pardacento que tinha algumas hipóteses de ser um corpo de plantígrado. Há muito que não rilhava pão e não badalava duas palavras em língua de homem. Pouco a pouco, o ponto ganhou proporção e volume, mostrando-se um cabreiro, chapeirão largo de coiro no cabelo, mãos e queixo pelado apoiado ao cajado. Chamou Isabel mas nenhum som lhe respondeu. Ao avançar uns passos, tropeçando numas raízes escondidas, ainda chegou a pensar que se tratava de alucinação dos sentidos martirizados por tantos dias de marcha a água e baga de carvalho. Mas não. Passado pouco o homem lá voltou a aparecer, na mesma posição, desta vez fazendo mesmo um ligeiro aceno com a ponta dos dedos da mão direita. Ao aproximar-se da clareira, Isabel não mais retundiu a alegria que lhe saltava no sangue.

– Senhor, muito folgo em vos ver. Há muito que não via vivalma. Santa Maria val!, desertos e despovoados são estes lugares de Deus.

O homem, puxando então a aba do largo chapeirão sobre o rosto, ajeitou com os ombros a capa colorida em que se envolvia e convidou-a a aperoximar-se.

– Vinde, vinde, sentar-vos aqui nesta pedra. Estais decerto exausta de tão morosa jornada.

Chegou-se Isabel à pedra larga que o cabreiro lhe indicava e deixou-se cair com um suspiro de alívio. Quando a viu sentada, aproveitou o homem para se acomodar por perto.

– Donde vindes senhora?

– Das margens do Mondego. Será que me podeis dizer se o rio que chamam Douro corre longe deste lugar?

– Estais cerca. Vedes aquele cabeço de forma romba? Pois logo de seguida encontrareis a cava onde correm as águas fundas do rio que buscais.

– Ditoso fado!

– Mas dizeis-me que vindes da margem do Mondego… Tumulto grande e de muito perigo ao que corre houve por lá.

– Correm assim tão depressa as novidades do Mondego?

– Até em Braga as conhecem, senhora. E ao que se diz a arraia das cidades do reino está a caminho de Coimbra para saudar a rainha. Aventam que faz milagres. Até as jóias do rei tranformou em rosas. Era um perfume tão doce… dizem… que mesmo a gafaria dos Fetais, a maior do reino, se livrou dos hálitos pútridos.

E com malícia juntou estas palavras:

– E de gafos parece que a rainha sabe mais que todos… E mais, muito mais, ela sabe.

– E o que sabe a rainha? Dizei-mo… por mercê.

– Sabeis vós, senhora, melhor que eu.

Nisto o homem voltou a ajeitar com a ponta dos dedos a aba do chapeirão, descobrindo grande parte do rosto. Viu Isabel lucilar uns olhos tigrinos que lhe eram familiares desde um sarau de estio no paço do avô, em Barcelona. Ali estava de novo o pagem das cabriolas que lhe prometera pôr termo à morte nas primeiras angústias que sentira.

– O Demo! – exclamou ela com um arrepio.

– Se assim quereis, mas para vos ofertar mais uma vez tudo o que busqueis.

Ainda fez Isabel o sinal da cruz, na esperança que o Porco-sujo se desfizesse numa nuvem fedorenta, soltando um uivo de dor, mas tudo o que aconteceu foi ouvir um riso trocista de descaro.

– Senhora, guardai o sinal para outra ocasião. Quereis que eu o repita? É dos meus preferidos… Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo! Vedes?… Já vos disse noutra ocasião que a minha seara mais grada é em Avinhão, no séquito do papa, que a guardo. Atentai antes na proposta que tenho para vós. Vós quereis curar cegos, gafos e paralíticos, não é assim? Pois desta vez eu ofereço-vos tal dom em troca de nada.

– Como assim?

– Praz-me ver-vos andar em brincadeiras de criança.

– Não vos entendo.

– Transformar pedras em rosas? Abrir os olhos dum cego? Sarar uma pústula? Arrancar um paralítico dos varais duma liteira? Transformar chumbo em oiro? Há lá divertimento mais pueril… Mas, vós, os humanos, não passais de crianças aborridas com a vida! Para vos entreterdes sois capazes de tudo… Por este caminho ainda a Terra se tornará uma bela paródia

– Que quereis dizer?

– Descuidai por ora desse caso. Preciso de ser sincero convosco… ainda não vos disse tudo…

– Que quereis…?

– Pois tenho que vos confessar que muito me praz serdes queimada por via de tais divertimentos.

– Queimada?

– Fazeis as florestas da Gália e da Germânia como no tempo de vossa tia da Hungria? Pois descuidai… Onde isso já vai. Nem eu sei. Agora andam por lá uns frades de capeirão negro que não gostam de diversões. Mal haja um que se atreva a mudar a água em vinho logo o metem num calabouço para lhe armarem processo de bruxo e o queimarem de seguida atado a um poste.

E nisto, sem ruído, o homem desapareceu no ar, deixando apenas um sulco azulado de fumo.

Depois deste diálogo refez Isabel os passos. Em lugar de gente, ansiou pela solidão. Não alterou o destino que levava mas para lá se dirigiu como retirante e não como taumaturga. Precisava de estar só e fugir da forma humana. Reviu a vida e percebeu que a sua fuga de Coimbra fora providência. Agradeceu aos que velavam por ela. Meteu pé no Douro e evitou várias aldeias. Acabou por passar o rio, a jusante, numa brenha de silvas e fragas. Viu-se numa ponte desconjuntada, bailando isolada sobre o abismo, sem saber se chegaria às fráguas fronteiras. De nada se importou. – Se aqui deixo a carcaça, o último pensar irá para o meu primeiro gafo – pensou sem saber porquê. Mas não. Acabou por pôr o pé a salvo no outro lado do rio e seguiu. Atingiu uma comarca populosa, por onde nunca andara, mas que devia ser o caminho de Guimarães e Braga, em que tantos lhe haviam falado. Os dias cresciam, a luz somava força, as árvores perdiam a rigidez metálica, tornando-se flexíveis e sensuais. Brotos verdes despontavam nos braços dos arbustos; por todo o lado sorriam florinhas brancas e lilases. Os caminhos entre penhas pareciam trilhos num jardim de leite e mel.

Caminhou muito, evitando sempre os ajuntamentos,  e por fim avistou as torres grandes da igreja de Compostela. Estava lá gente de meio mundo, chegada de todas as comarcas da Europa. Recolheu-se numa barroca e por lá ficou, alimentando-se das bagas acres do bosque e da água gelada que pingava do fraguedo nos fetos. Outros eremitas cumpriam votos por perto mas não davam sinal. Correram os dias, passaram as estações, cresceu-lhe o cabelo até ao chão, caíram-lhe as unhas. Ela continuava imóvel, suspensa entre os torrões e os vagalumes do infinito. Por detrás estava o templo de pedra, que badalava os sinos e depejava fumo das goelas como um grande dragão postado nas arribas do termo do mundo.

Um dia decidiu partir para o levante. Esquecera a ponte suspensa no infinito, as comarcas apinhadas de gente, as fragas solitárias e os fetos de radiolários. O transe em que entrara no Mondego fazia-se incontrastável; vivia mergulhada num torpor, que a abstraía de considerações imediatas. Antes de partir, ao abandonar o homizio onde passara as últimas sazões, veio um préstito do terreiro da igreja, com gonfalão e tudo, ofertar-lhe uma obra lavrada em metal, representando dois antropófagos marinhos. Era graça para encimar o bastão de peregrina, testo e consolo de caminho. A circunstância da ascese fizera-se notada e o cenóbio engalanava assim a constância dos anacoretas.

– O oceano da morte – espaventou o frei que vinha à cabeça do préstito, indicando com um gesto da mão as névoas que ficavam para poente.

Ela lembrou as águas revoltas do Mondego, na Primavera mais letais que os rios fatais do Inferno. Quando puseram em terra o bastão de obra lavrada, todo o préstito salmodeou. Aos compassos cavos, acorreram das luras escuras, como bodes desgrenhados, alguns cenobitas, que logo recolheram. O frade capitão, grossa e atarracada armação de barro, tresandando a mosto e estrume, olhos baços de peixe, bons para penetrarem a névoa, ainda lhe garantiu à despedida:

– Nenhum monstro tem mão em vós.

Voltou a peregrina a cair nas lembranças de Coimbra. Quantas vezes assomara ao revelim do paço e à luz crua e nítida da manhã deparara sob o silêncio das águas com a astuta dança dum polvo medonho. – É mais medonho que a hidra de Lerna! – pensara tantas e tantas vezes, amedrontada e retraída. Lá em baixo, na transparência do vidro líquido, mexiam-se os tentáculos gigantescos, bailando de manso, por entre limos e pólipos fibrosos. Os braços tentaculares pareciam apenas aguardar uma qualquer ocasião para estrangular a cerca da cidade e varrerem num trema casas e homens E quantas vezes os barcos que subiam pelo rio acima, vindos da Foz, à espera de lhe devassarem as entranhas, acabavam estrangulados nos rijos músculos dos apêndices tentaculares. – Eu bem os vejo, eu bem os vejo… mesmo que nenhum mais os note – pensara.

Partiu por fim. Esquecera a cautela em que viera, escondendo um pé do outro, e voltava a castigar a soidão. Dava a alcaidaria de Trancoso para ter  gente à volta, mas não qualquer um. Desejava os gafos, os gafos de que há tanto andava arredada. Não se importava de voltar a ser taumaturga. A taumaturgia é a necessidade que os seres têm de cordialidade; por isso se esforçam de se surprenderem de forma benévola uns aos outros.

– Ai Deus! Que soidades hei dos meus gafos! – exclamava a espaços, aos soluços.

Mas gafos por ali não havia. Disseram-lhe que saltasse de novo o fio do rio Minho e fosse por Braga que o arcebispo havia por lá, nas encostas dos arrabaldes, uma grande gafaria a seu cargo. Desandou e não tardou a ter Braga por perto. Nenhum a conhecia com os trapos com que se cobria; passava por pedinte de cabacinha e bastão de andarilha adornado com a medalha de anacoreta. E tantos corriam por ali idênticos que nenhum a estranhava. Mal se apanhou dentro da cerca da cidade, anunciou que tinha preparos médicos; se queriam, trouxessem-lhe uma criança doente que ela a curava.

Admiraram-se as gentes de tal domínio numa pedinte mas fizeram a experiência. Veio uma criança, que se estava a amorrinhar numa febre sem acordo por via duma gangrena que lhe comia a perna direita. O físico do lugar dava-lhe dois dias de vida. Mandou Isabel que lhe aplicassem clara de ovo e assim a deixassem um quarto, entre dois ofícios. Depois lha trariam. Quando a recebeu nos braços, a criança continuava sem dar nota de si ou do exterior. Observou-a, acalentou-a ao peito, passeou com ela. Depois sorriu e aliviou.

– Daqui a dois dias levanta-se e anda – vaticinou.

E passados dois dias os pais vieram para a praça de Braga mostrar a criança sã pela mão. Depois deste caso foi Isabel recebida em casa dos mesteirais de Braga como electuário de maleitas. Não tardou a confessar o propósito que a trazia de Compostela.

– Gafos! Gafos é que hei-de curar.

– Ensandeceis! Perdestes o siso! Gafos nem um santo lhes toca! – responderam-lhe.

– Pois, garanto-vos que lhes toco com os dedos e até com os lábios, sem nenhuma moléstia me acontecer.

Por fim, depois de muita insistência, arranjaram-lhe modo dela atingir a gafaria do Freixial, que ficava para o nascente, no caminho para Lanhoso. Voltaram costas os soldados à passagem da mulher, simulando que a não viam, adestrados que estavam pelos donativos de Braga, e atingiu ela sem incómodo a cerca da teratológica cividade. Ficava no sopé duma fraga, em tudo lembrando aquilo que conhecera nos Fetais. E tudo se repetiu no Freixial como já ela antes o vivera nos arredores de Coimbra. A princípio, o receio era tanto que até calhaus lhe atiravam com fúria; faziam acompanhar as pedras de monossílabos furiosos e desconexos, no propósito de a apartarem para bem longe. Nunca haviam visto semelhante traste de pano escuro por perto; nem ela nem outro. Tudo o que conheciam eram os brigões do arcebispo que lhe vinham atirar com doestos ordinários de exorcismo uns ossos de cabrito e um miolinho duro de pão de quando em quando. E tiravam todos por esses, que só bem longe, baldeados nos oleados da carne, queriam. Mas depois, com a insistência, as boas palavras, as promessas de alívio, os sorrisos, os açafates de linho e de roscas de pão, as momices, acabaram por transigir e receber a medo no cercado o traste de pano escuro. Não demorou a que de novo crepitassem os beijos de lume que outrora haviam pegado fogo à margem esquerda do Mondego.

Revolveu-se aos poucos Braga com aquele braseiro de ousadias. Mas uma tarde que regressava do Freixial, quando os da cidade se dividiam entre arregimentados e melindrados, e a tensão se aguçava, tinha ela à espera numa curva retirada do caminho o corcunda de São Tiago, Hermigo. Açodado estava por alguma impaciência.

– Hermigo? Mas… como chegaste até mim?

– Quem neste ou noutro reino entra nos cercados das gafarias como se passasse por porta de cidade ou arquinho de vila? Só vós, senhora. Andei por isso perguntando pelos arrabaldes das gafarias se algum andava por lá com açafates de linho e pão de azeite. E cheirando a rosas…

– Hermigo…mofas comigo…

– Como assim, senhora? Sabeis que é verdade. Até os do lugar se começavam a mostrar suspeitosos por via do perfume das rosas… Quereis melhor para vos encontrar? Desta vegada nem vianda pus no uchote, tal era a pressa de vos demandar. Tenho de vos falar com aperto de Coimbra e do paço.

– Não! Antes me dirás de Fuão…

– Ora, senhora… Fuão lá está por Coimbra, cuidando da oficina… Mas não é de Fuão que vos venho falar. Assunto bem mais nojoso me trouxe. Em vez de andardes a tratar de gafos por Braga bem podeis ir para Coimbra cuidar de feridos. Cedo há-de por lá haver muitos. Nem as lorigas de aço cru lhes hão-de servir…

– Feridos? Lorigas de aço?

– Sim… quereis que vos traga alguns, retraçados a montante ou abolados pela maça? Ou preferis os furados pelo pique?

– Não te entendo.

– Pois, senhora, ouvide tudo e pensai asinha em remédio para tão grande mal. O vosso filho, o príncipe dom Afonso, está em guerra aberta com seu pai, el-rei vosso esposo.

A notícia rolou como pedra pesada pela arriba. Ganhou velocidade e espatifou-se no solo com estrondo e vertigem. – Por menos se esmagam pés e mãos – pensou. Ela, a dona dos trapos sujos que andava metida com os gafos da comarca do Minho, em beijos e alívios, levantava-se ilesa mas mareada. Saltava-lhe, aos rufos, o coração do esqueleto, mais desabalado que atabale grosseiro. Na volta, ainda conseguiu um fio de voz para tactear num uivo.

– Que se passa?

– O príncipe anda refece. Tornou-se malsim e desconfiado. Levantou-se contra os irmãos e foi ao paço para matar o mais velho deles, o senhor Afonso Sanches. Por sorte, este saíra. Assim o príncipe ficou-se por meter o bulhão num velho servo que se atreveu a sair-lhe ao caminho com voz de razão – que desacato é este, senhor, entrardes assim armado nos aposentos de vosso irmão? – e partir os escrínios que por lá encontrou. Quando el-rei lhe perguntou por tão nojoso acto, o príncipe acusou o pai de lhe querer tirar a varonia, dando ordem de expulsão do irmão do paço. Como o pai lhe exigisse escusas por palavras tão duras e fora de propósito, ele voltou-lhe costas, depois de cuspir feio no chão.

Ficou Isabel por um momento a olhar boquiaberta o passado. Viu o enlace de horror com Dinis e os partos no paço do Mondego. Guinchavam os novilhos enquanto ela sartava fio e vidrilho. – Sartar! Há quanto tempo… – meteu pelo meio. Depois viu os dois gerifaltes, já na companhia dos irmãos por metade que ela metera no paço para se livrar do marido e o entreter por fora com gualdranas. Logo depois vieram os tratos de terras em Alcanizes e as avenças de pazes. Casou Constança com Fernando e Afonso com Beatriz. Logo o menino passara a ter casa própria, esperando o enlace que lhe vinha de Castela. Ganhara fama de minaz e quezilento, monteiro feroz que nem vitelo de cervo poupava, frio a versos e a galanteios; para ela continuava porém a ser o bezerrito contumaz, mindinho empertigado, que ela levava e convencia, depois das aias se darem por vencidas, à força de manha e palavras doces. Agora chegava uma intriga de astroso vilão. – Desfecho mofino – tornou para si.

Lá encontrou um fio de voz para perguntar:

– E então em que pára o alvoroço?

– Levanta mão o filho contra o pai. Se Afonso Sanches não deixar o paço, o príncipe mete hoste contra el-rei, movido pela sanha  e o ciúme… Juntou em torno de si uma facção de desgostosos. Parte dela vem inda do tempo das lutas del-rei com seu irmão, o infante dom Afonso; a outra vem da casa do príncipe e anda  cobiçosa de alcaidarias e mandos. Vai correr muito sangue no reino de Portugal, senhora.

Percebeu Isabel que havia que bater sem demora para as margens do Mondego. Guerra entre pai e filho era execrável auto que tinha de evitar. Não pelo reino, não pelos outros, antes por si e pelas entranhas em que havia gerado o filho precito. Palpou-se. – Não posso ser Sancha, a tia sem cairel, mas ao menos que seja sem pavor de mim – pensou. Nesse intante julgou ter acordado do transe das rosas do Mondego; voltava a ter uma direcção e uma vontade. E até uma revindicta, pois nesse mesmo instante se lembrou que no Mondego estava uma vinha iníqua. Regressava-lhe uma necessidade de se pôr à testa da mole de gente. Nessa mesma tarde deixou Braga na companhia de Hermigo, aflita por chegar à capital do reino e divisar melhor na carujeira daquelas razões.

Não tinham andado sequer um palmo de terra e já os soldados do rei os rodeavam com carros e muares para os recolher e levar. Teve a rainha o caso por mau indício. Esperava um passeio demorado com Hermigo pelas florestas e aparecia-lhe aquele comboio galgaz, aflito por disparar para o Mondego. – Grande aperto deve correr neste negócio – pensou. E na verdade nem de noite tiveram descanso tanta era a pressa que haviam de chegar a Coimbra. E ao que Hermigo disse o próprio rei estava escondido nos carros. Em Coimbra, antes mesmo de se encontrar com Dinis, teve ocasião a rainha de saber que a filha lhe morrera entretanto por Castela e que o filho e a nora haviam começado a gerar. – Mais uma razão para ser cordato – pensou esperançada. Havia agora uma menina no paço do filho, chamada Maria, que se pensava já entregar, por via da regente Maria de Molina, ao primo de Castela, Afonso XI, pouco mais que menino de colo. Com a morte de Constança, muitas senhoras haviam regressado de Castela; era o caso de Vataça, a quem a rainha correu a abraçar. Havia anos que não se apertavam nos braços.

Mas a consumpção em que definhava desde o momento em que Hermigo a chamara ao Mondego era o destino dos gafos que libertara dos Fetais e deixara sem cibinho na margem esquerda no momento da partida. Nem uma palavra se atrevera a dar a Hermigo sobre o caso, mas quando subiu ao revelim e viu os franciscanos da ponte a provarem dos bagos da vide, mais aflita ficou com os sucessos posteriores à sua saída de Coimbra. Logo alguém no paço lhe contou com aflição o desenvolvimento.

– Os gafos, senhora, foram todos presos à ordem de Santa Cruz e do bispo de Coimbra. Estiveram dois dias isolados na barroca, diz-se que para desanojar. O mesmo povo que dias antes se misturara com eles em festa, sem de nada dar nota, correu ao lugar com os alforges cheios de seixos rolados e não tomou descanso enquanto não os despejou no corpo esponjoso dos miseráveis. Depois foram arrastados por um pelotão de soldados para os Fetais, onde estão.

Não tardou um pagem a anunciar que o rei estava pronto para receber a rainha. Apresentou-se no salão do rei para com ele trocar o seguinte diálogo, de resto muito próximo de outros anteriores.

– Senhora, há semanas que ando por vós. Todos pensávamos que havíeis morrido. O bispo de Coimbra já vos queria fazer as exéquias. Só Hermigo dizia à porfia que não e que vos havia de encontrar. Uma rainha de Portugal não pode fugir pelos caminhos dos cabreiros como qualquer vadio.

– Minha tia desapareceu do paço de Barcelona, descalça e rota, e não mais nenhum a viu.

– Para ir beijar gafos como vós? E deixou marido para trás sem mais dela saber?

– Perdoai, senhor…

– Sabeis o que mais me custa em tudo?

– …

– Sabeis? Não ter os vossos lábios por perto. Não ter um beijo vosso. Andar nesta sede há anos, à espera do vosso desejo. Que zelos tenho eu dos gafos. Já me lembrei de gafar. Às vezes penso: quem me dera ser gafo. Se tivesses, Dinis, os dedos em gancho, a pele rugosa e dura, gangrenas na cara e nos lábios talvez ela te beijasse cheia de paixão. Gafa, Dinis, gafa! Ela te amará assim.

– Que sandice a vossa!

– Amor… Isabel! Amor… Isabel! O Amor é louco e desespera se não tem um beijo.

– Pensei que a vossa preocupação de momento eram os erros do príncipe…

– O meu grande sofrer, sois vós… Não vos enganeis, senhora. Quanto à desordem do príncipe…com certeza que já sabeis o que corre entre mim e ele. Livro-me de falar em assunto tão nojoso.

– Sossegai, senhor. Estou ao corrente de tudo.

– O que vos peço é que intercedeis junto do príncipe de modo a que ele abrande a ira em que anda e se mostre cordo e assisado com el-rei seu pai. Quem foi como vós a Torrelas fazer tratos tão delicados entre Castela e Aragão, dando ao reino momento de tanta glória, não encontrará empacho em trazer ao bom caminho o príncipe revel.

Ficou a rainha de rogar junto do filho pelo respeito deste a el-rei. Logo no dia seguinte mandou chamar o filho com o propósito declarado de conhecer a neta. Veio Afonso com Beatriz e Maria ao paço de Coimbra. Depois das mesuras e dos mimos, Isabel puxou o príncipe para uma varanda e a sós lhe falou.

– Filho, feia coisa é um filho desrespeitar seu pai.

– Mais feia é um pai tirar a seu filho o que lhe cabe.

Lembrou-se a rainha vagamente de palavras iguais ouvidas no paço de Barcelona. – Desde o princípio do mundo que assim estamos. Já Absalão disse o mesmo de David – pensou.

E pensamos nós, ainda que o senhor de Jerusalém tenha tido mais sorte que o senhor de Coimbra. Ai, não ter havido um honesto carvalho nas matas portuguesas para levar de vencida a cabeleira de monteiro feroz de Afonso IV… Que lástima! E aqui estou eu a ser mais bravo que o próprio bravo. Ele que se fique nesta vida e nesta história, para invejar o fogo ao pai. E se mais for preciso, ainda haverá o homicídio dum irmão, João Afonso, e o homizio doutro, Afonso Sanches, com sanha e peçonha. E depois, se mais quiserem, ainda virá noutro lugar o episódio macabro de Inês. Não se limitou a invejar o fogo ao pai; roubou-o ao filho! Funesto destino o deste homem! Não há outro tão trágico, tão escuro, tão espesso em toda a portuguesa História. O momento da sua morte é tão sinistro que nem o Demo o quis nos Infernos! Ficou cinza e alma penada até hoje, sem redil nem companhia. Basta um caso assim para tornar pecadora sem resgate uma pobre mãe.

Mas que se podia esperar dum ser que foi concebido por razão de Estado, de olhos fechados, dentes arreganhados, sem gemido de amor e desejo? Era uma máquina; não era um homem. Já disse mas repito: mais santa que Isabel de Aragão é a minha vizinha de baixo que foi casada e não teve filhos. Uma santa com um filho tão facínora como Afonso IV fica logo desconsiderada. Regressemos ao paço de Coimbra. Fala a mãe.

– Filho, el-rei nada te quer roubar.

– Então por que fez mordomo-mor a meu irmão Afonso Sanches? Afonso Sanches é já dono das terras mais ricas do Douro. Admirai-vos se meu pai lhe deixar a coroa? Eu não. Julgo até natural.

Ressentiu a rainha as palavras do filho. – Fui eu que o meti no paço – castigou-se. Nunca pensara na sequência do gesto; fora tão-só uma forma de se tornar prestável e de se proteger, sumida que era de sensualidade e de apetites.

– E sabeis por quê, senhora? Pois eu vos digo, senhora, a causa de tão nojosos tratos para com vosso filho. Eu não faço versos e ele sim. Nisto consiste a razão grande da sua preferência. Nenhum rico-homem no seu juízo pode aceitar tal sandice. A revolta lavra no reino.

– Filho, el-rei pede apenas a vossa cordura. Não cura de versos, sossegai. Ouvir-vos-á!

– Meu pai reina há mais de trinta e cinco anos. Nunca rei antes dele reinou em Portugal tantos anos. El-rei está caduco.

– Que dizes?

– É tempo de meu pai largar o ceptro. Todos os ricos-homens o dizem. Reinou bem até aos tratos de Alcanizes, em que alcançou grandes vantagens para o reino, e às avenças sobre Múrcia. Depois disso perdeu rumo. Hoje é um velho poltrão, que nem o príncipe esguarda.

– Tanto custa ouvir palavras de ódio.

– Não é ódio; é justiça e monarquia. Um príncipe não faz versos nem joga as cartas nem se apaixona por barregãs. Um príncipe é uma pedra dura capaz de edificar um reino sólido. Assim como Pedro levantou a Igreja!

–  Vejo-te, oiço-te e não te entendo. Que queres tu?

– Meu pai está velho e sem chama. Hei-de ser eu a reger a justiça no reino. O seu derradeiro gesto deve ser afastar para Castela Afonso Sanches. Deve retirar-se da corte e do reino para sempre. Só assim meu pai mostra que não porfia em me roubar o reino.

– Um filho não exige o que não é seu; de contrário erra por soberbia e desobediência. E esta é o caminho para a guerra, o mesmo é dizer, para a perdição.

– Santa Maria val! Sois inocente, senhora. A guerra é a prova dos fortes.

No seguimento desta conversa enviou o rei uma queixa ao papa, pedindo uma admoestação contra o filho e a regularização da Ordem de Cristo com os bens dos templários. Juntava o salsifré das dobras de oiro e esperava assim incutir receio no filho e nos ricos-homens que por ele metiam armas e homens. Afonso, por sua vez, atento aos movimentos do pai, engordou a facção dos insofridos, prometendo farófias e quinxosos. Estava a criar um  partido feroz, disposto a levar de assalto o trono. Era minaz e duro, além de presunçoso e jagodes. Arregimentava os macanjos e os energúmenos que encontrava pelos caminhos e planeava cruezas com eles a troco dalguns soldos. Tinha-os de reserva para roubos e homicídios. E ria, ria sem alma, truculento e procaz, de sociedade com a farandolagem dos bosques, como quem trincava a carne de cervo ou de servo salpicada de sal que monteava nas serras do centro. Era um predador por destino e um moinante por condição.

Para a rainha começou um novo período intervalar. Enquanto esperava o desenlace da tensão entre pai e filho, pôs-se a pensar nos gafos e na obra que fizera na margem esquerda. Cada manhã, depois das primeiras rezas, subia ao revelim e alongava os olhos no espaço e no tempo. Vinham-lhe os recordos do tempo em que havia consigo os cegos e em que a obra crescera e quase que se fizera cidade. Descia depois à câmara, onde o círculo das donas com a morte de Constança se refizera. Sartava e broslava a seda, a carneira e o alcaz. E fazia planos com as donas de regresso à margem esquerda. Mal a hora sexta tocava nos sinos da Sé a arraia das congostas e dos casais das ruas do Mondego, os ganha-dinheiros sem terra nem casa, as mulheres de negro, os velhos que já não podiam ir ao rio apanhar o sargaço e a concha, roídos pelas febres, vinham às traseiras do paço.

– A rainha das rosas! A rainha das rosa! – imploravam.

Ela aparecia com um sorriso, vestida nos trapos velhos mas elegantes, para montar a mesa, trazer o pão e o vinho, dispor os bancos e os lugares. Depois abençoava o repasto e comia com eles, a todos dando um dedal de conversa. Hermigo cabriolava no pátio, feliz por ter de volta a festa da criação. De tarde a rainha voltava à solidão da câmara, a broslar de agulha na mão e a sartar contas no fio. As donas ficavam de fora, repousando nos almadraques ou deitando números com os ecónomos. Ela sonhava, sonhava muito, com a volta à margem esquerda e não tomava quietação enquanto não subia de novo a espreitar o espaço da vinha. Voltavam-lhe ganas de enfrentar de novo, cajado na mão, os cónegos de Santa Cruz.

Desta vez porém a rainha estava disposta a terçar outros sedeiros com Santa Cruz. Já não lhe bastava o brunido bordão de pau, mesmo com cimalha de domadora de monstros.

O gibelinismo tardio de Pedro III esvaía-se nas energias catalãs; a epopeia dos almogáveres enfunava na Grécia mas as vitórias no levante adusto eram o resultado das derrotas a ocidente. Os templários, os últimos que tiveram um escorço laico e universalista para a Europa da época, haviam derretido no fogo; ao que corria, nem um sobrara vivo em França ou nos Estados do papa. Até o grão-mestre, o digno Molay, fora fazer torresmo, em calçanito de linho, aos setenta anos, numa ilhota do Sena, em Paris. E os outros, se vivos ficaram, calados estavam;  ratos medrosos, não se atreviam a dar ruído, quanto mais a elevar a voz, pedindo Europa nova, sem papa e sem Igreja. Os herdeiros de Pedro III perdiam assim os aliados mais próximos e fortes. Demais, os derradeiros descendentes dos foragidos de Montségur e de Qéribus, alguns deles pescados com manha inexcedível no emaranhado catalão, estavam a perecer nas chamas das fogueiras ou nos cárceres da Inquisição. O bispo inquisidor que rematara os processos era Tiago Founier, que viria a ser dentro de poucos anos o papa Bento XII. A Igreja, instalada em Avinhão, e a casa de França tornavam-se a ocidente incontraditáveis; Aragão era uma excepção, uma ilha isolada, fora de toda a regra comum.

Longe iam pois os tempos em que Jaime II de Aragão era capaz de enviar a Portugal um Arnaldo de Vilanova para orientar a luta dos espirituais contra os intransigentes do papa. Boa estratega, capaz de adaptar as finalidades às condições mais adversas, a rainha granjeou outros meios para se instalar na margem esquerda. Além de contestar junto do bispo de Lisboa a tomada dos terrenos de Mor Dias, acautelou-se a comprar com os réditos que entretanto lhe chegaram das alcaidarias todos terrenos em volta. Ademais requeria na embaixada do rei ao papa a permissão de fundar mosteiro devotado a Clara Offreduccio de Favarone. O préstito ia bem besuntado de dobras e de libras, para o requesito se perder no caminho ou ficar esquecido num escrínio do palácio papal.

– Hei-de ver a cara dos crúzios, quando vier de Avinhão a permissão – declarava ela satisfeita com o ardil que montava.

Escusava-se a Isabel da Hungria, sua tia e santa gibelina, cíclame levantado no coração do império de Frederico II e cujo nome bastava para fazer fremir de raiva os lábios dos pobres crúzios. Preferia desta penada a tutela de Francisco Bernardone, tanto mais que outras clarissas estavam já instaladas em Portugal e para isso havia ordenação geral. Mostrava a rainha saber do negócio; não havia picoto que não lhe viesse à mão em ela querendo. A mesma verve de habilidade mostrara já nos tratos e nas avenças com Castela e Aragão. A corte de Pedro III, onde Isabel fizera formação, fora uma ilha de excepção na Europa do tempo mas fora também um ponto activo de consensos, um centro de energias e de convergências, e só isso justificava, além da força, que tivesse sobrevivido à ordem de excídio que o papa Martinho IV lhe dera.

Veio a autorização de João XXII e viu a ponte de Belcouce a nova marcha da rainha para a margem esquerda. Tudo recomeçou, primeiro com discrição, depois com entusiasmo. Não tardou que a vinha dos crúzios fosse um talhão perdido no meio duma cidade em construção, Pediram-se monjas a Leão, porque as casas religiosas de Coimbra vedavam a qualquer dona atravessar a ponte. O núcleo primitivo pouco passava da meia-dúzia, mas à volta havia círculos concêntricos, cada vez mais largos, de cegos, de vadios, de doidos, de pedintes, de estropiados, de prostitutas, chegados dos casais e das povoações em redor.

Eis o momento do nascimento de Santa Clara! Paga o esforço cortar o fio da narração para atentar mais de perto neste parto, demorando nele os olhos. Santa Clara de Coimbra é o espaço do imaginário português primitivo que mais embebido está de espiritualidade e transcendência; mas ao mesmo tempo, o lugar está ensopado do espírito comunista e libertário das heresias medievais. E daí o seu fascínio. A proto-história do lugar foi uma rebelião comum: um bando de miseráveis, capitaneados por uma senhora de formação gibelina, bateu o pé, afrontou o clero, viveu entre iguais com os nobres, tomou-se como assembleia de culto paralela e acabou derrotado pelo bispo e pelo abade rico da cidade. A história foi depois um compromisso entre este primeiro impulso escatológico e a formalidade das instituições. Assim como assim, o lugar nasceu como um rancho de súcias que se tomavam de liberdades por terem diante, à cabeça, uma visionária poderosa. Ainda hoje na cerca do mosteiro, nas ruas das traseiras, por todas as imediações do convento velho, se sente este cheiro único em Portugal que mescla o altar e a tasca, a essência da rosa e o mênstruo cru, a côdea mística e a pescada frita em azeite de segunda.

Em Santa Cruz as novidades levantaram uma onda de receios e de protestos. Planeava-se às escondidas um novo ataque ao arraial com carqueja e pez. O abade pedia tempo para perceber melhor os desenvolvimentos da nova obra. Desta vez a rainha protegera-se. A obra crescia em terrenos que eram seus e havia a licença do papa para se criar em Coimbra uma casa da Ordem de Santa Clara. A esta juntava-se ainda autorização de requisitar fora freiras. Para carregar a situação, os bens de Mor Dias voltavam aos estrados da demanda judicial, sendo incerto o desfecho, ou pelo menos demorado. Por fim o abade deu ordem de reunião do capítulo.

– Senhores, como sabeis a rainha volta a lavrar cerca na outra margem do Mondego.

– Já lavrou uma vez e depressa acabou – comentou com desagrado um dos cónegos.

– Assim é! Faça-se o que se sabe e mais vinhas ficarão ao cuidado dos freires da ponte – acrescentou outro.

– E mais vinho se consagrará nas celebrações do dia do Senhor nas igrejas de Coimbra – juntou ainda outro solerte.

– Siso, senhores! Sabeis que desta vez tudo nos é mais adverso. Os terrenos comprou-os a rainha e as freiras estão ali com licença pedida em Avinhão. Desta vez não se trata de fazer regressar às casas de origem umas tantas irmãs desobedientes.

– Somos então obrigados a viver com a obra dos heréticos?

– É adarve sem porta. O que não quer dizer que a nova casa tenha baptismo fácil. Os franciscanos da ponte têm os postigos cerrados e as casas religiosas de Coimbra não recebem no seu seio gente vinda da margem esquerda.

E a situação de Santa Clara de Coimbra ficou assim definida naquela reunião de Santa Cruz. Os crúzios e as autoridades eclesiásticas obrigavam-se a aceitar a expansão das casas religiosas para a margem esquerda. Nenhum se atrevia a levantar mão contra a obra da rainha. De entrada, a ponte serviu de exclusão; pretendia-se isolar num descampado o novo mosteiro, vedando qualquer contacto com a cidade. A cidade era a porta de Celas e a a cerca de Santa Cruz; tudo o resto eram lazeira e horrores. Mas depois, à medida que o tempo correu, a ponte acabou por servir de ligação e Santa Clara integrou a cidade como espaço reconhecidamente seu.

De seguida vieram os primeiros actos de desobediência declarada do príncipe. Tinha uma hoste de sacandilhas em permanência e uma rede de cúmplices espalhada pelas cidades do reino. Nas florestas, prontos para surdirem a qualquer ordem sua, andavam os facínoras que ele libertara da servidão ou arrancara das prisões. Tudo junto somava uma força de pressão e conquista temível. Estava pronto para se aventurar a tomar nas mãos o reino. Era um fedelho de vinte e tal anos, que nem herdeiro para o trono ainda havia, mas estava sedento de experimentar o mando. Nada o inquietava tanto como ver os irmãos à volta do pai, gozando de pequenas partes do governo. Então Afonso Sanches, muito servil, imitando em tudo os gostos do pai, compondo trovas que a corte se deliciava a declamar nos saraus, dava-lhe fúria ingente e só lamentava ainda não lhe ter apertado com dedos de ferro o gasganete.

– No incêndio que aí vem, hei de pôr nele a mão. Então se verá de quem é o mando e a força… – ameaçava ele.

A primeira medida que tomou como senhor forte de seu exército foi escrever à  sogra, Maria de Molina, para com ela se avistar na fronteira, em Fonte Guinaldo, do outro lado da Guarda. Tudo se acertara com a esposa, a roaz e apagada Beatriz, que nunca se aproximara da rainha por medo de tanto descaro. Maria de Molina, que procurava um desforço de Dinis, a quem ficara devendo um abanão por causa dos favores de Alcanizes, deu corpo ao auto e recebeu o genro com as formalidades que se devem a rei. Depois do encontro, a rir, num gesto de farsa, escreveu ao rei de Portugal pedindo nada menos que a deposição do ceptro a favor do filho.

Dinis, quando tomou nota da missiva, não queria acreditar nas letras que lá viu. Deu voltas e voltas à caligrafia à procura doutro sopro. Mas não, o sentido era bem esse: o rei que transmitisse o mando ao filho. Ficou tão irado com a comadre de Castela que até a respiração se lhe parou no peito; borbulhava, borbulhava de tanto ferver, e não saía. Estava em Ourém, ainda por razão dos freires do Templo, e logo tratou de regressar a Coimbra, sem mesmo passar por Leiria, onde o esperavam. Mal se apanhou no Mondego, chamou de imediato a rainha ao salão.

– Senhora, a rainha-velha de Castela, pede a minha abdicação. Nunca se viu tal coisa no reino de Portugal. Uma senhora de Castela pedindo o fim do rei de Portugal. Não sei se hei lágrimas ou risos para tanto disparate… Se não morrer de ira, morro de vergonha por tanto escárnio. Uma mulher… a pedir o meu fim…

– Mas que razões levam uma mulher cordata e de tanta experiência a dispensar uma tal atoarda?

– Mas que há-de ser? As sandices de vosso filho Afonso. Queixa-se dos irmãos e foi-se encontrar com a sogra a Fonte Guinaldo. Por menos o posso eu mandar matar. Tredo é ele a el-rei.

– Santa Maria val! Cuidai nas palavras.

– Sossegai! Não esguardo mandar matar o príncipe. Isso era dar razão às vozes que dizem que o pretendi empeçonhar para pôr a coroa na cabeça do mordomo-mor. Não quero julgar com injustiça a iniquidade dele.

– Sois cordo e sábio, senhor! O reino vos agradece! Falarei com ele. Confiai, senhor!

– De pouco vos irá, senhora. Os esculcas contam e recontam que o príncipe tem com ele uma hoste cheia pronta a alçar-se contra mim. A sua palavra postumeira já todos a conhecem: guerra! É ele que a grita nas comarcas do reino mais desabalado que um truão em dia de bufarinha.

Ficou a rainha em grande agitação com a conversa. Deixara Braga para acudir ao embate entre pai e filho e chegara a pensar que bastaria fazer-se à corte para aliviar a tesura entre ambos. Via agora que a sua presença era areia rala e que tudo caminhava para a calamidade crua. Pediu ao filho um encontro que andou em delongas. Insistiu a rainha. Por fim ele veio a Coimbra. Vinha sem outras demoras, só para não agastar de todo a mãe.

– El-rei vosso pai muito se dói desta situação. Está disposto a dar-vos carta de perdão e a deixar cair o crime de traição. Em escambo apenas pede que acatais, como vos compete como filho e vassalo, o governo dele.

– Meu pai não tem que se doer. Basta entregar a regência e tudo se fina. Os gardingos regressam a casa e não se dispara um arco nem se espeta um pique.

– Um filho não pode fazer tal exigência, menos ainda alçado na força.

– Como não, senhora, se é esse o sentido da vida? Vede o lobo e o carneiro e logo percebereis como é a força que orienta a vida. O mais forte é que triunfa. E o monarca há-de ser  o mais forte. Quem senão ele pode ter todos por súbditos? Veremos pois nesta disputa quem é el-rei.

– Filho outros casos há. O mais forte é o mais manso. Atentai na palavra que diz que os últimos são os primeiros.

– Descuidai de exemplos assim. No reino nada se resolve agora sem esta guerra.

E houve o primeiro estreloiçar de ferros a norte, entre Douro e Minho, numa província onde os sectários do infante faziam chusma por razão das benesses prometidas. Veio o nascimento dum herdeiro ao príncipe, que ele cuidou de baptizar Pedro, o Pedro das mortais feridas como lhe chamou depois Camões, e esperou a rainha por uma acalmia. Mas o príncipe em vez de amansar, enfureceu. Aquela pedra nascia esquinada; urso de arremesso havia de ficar até ao fim, conquanto a brunisse mais tarde a acídia brumosa. Saíram as primeiras hordas das florestas; trocavam raízes por razias. Dois ou três postos da guarda acabaram queimados e os pagens do rei passados à espada. Vários reguengos foram pilhados e dizimados; broeiros e colonos do rei apareceram pendurados, atadura ao pescoço, nos primeiros sobros da floresta.

Em resposta, Dinis leu no paço de Santarém o rol das queixas contra o príncipe, acusando-o de sedição, mentira e desordenada cobiça pelo poder. No momento em que declamava o manifesto voltou a comoção a tolher-lhe a voz; respirava a custo, mostrava cansaço extremo, mastigava as palavras; tudo como no momento em que tomara nota da carta da rainha-avó de Castela. Bastava lembrar-se dos reguengueiros que apareceram a baloiçar, pés no ar, nos braços rijos dos carvalhos para o ar lhe voltar a ferver no peito, borbulhando muito, sem encontrar canal de saída.

– El-rei não é o mesmo – dizia-se com espanto na corte. – Basta ver como a fala se lhe engrola na boca. Quem viu a sua antiga eloquência, tão limpa, e quem lhe vê agora o confuso emaranhado da fala… São dois homens distintos…

Na verdade o conflito com o filho, que se arrastava há muitas sazões, quebrara forte a espinha do rei. Estava com sessenta anos mas até há pouco todos lhe gabavam a pinta. O cabelo escuro; as carnes rijas; o coração forte; os braços torneados; o porte garboso; o desejo e o apetite intactos. Ora, com a agitação do filho, baixara a cerviz e a mostrara uma mortal tristeza. Melancolizara muitas vezes para escrever versos nos junqueirais do Mondego ou do Lis, mas era merencoria postiça que ele punha e tirava quando lhe convinha; não passava de fingimento de troveiro planturoso. Tinha uma única mágoa que lhe enodoava de verdade o pano da carne, a rainha. E como não, se aquela história de amor de dois adolescentes tomara rumo azedo? Mas habituara-se desde os anos tenros a espremer do acre um suco doce ou pelo menos aceitável. E acabara a viver uma vida boa, com sucessos largos na política e no amor. ­– Não me queixo – pensara algumas vezes, passando em revista os actos da vida e esquecendo por momentos o caso mais gravoso da rainha.

Agora, o desconchavo do filho, além de brutal, era mais real que os supedâneos que tinha na câmara. De papelão ou de máscara nada tinha. Chegava para quebrar o galarim ao mais forte. – Nem apetite para ir buscar dona sinto e as palavras, outrora tão claras, entaramelam-se-me na boca. Boto figura de tátaro, ó Deus. Dinis, Dinis: estás um farrapo, fizeste-te um destroço – pensava amiúde.

Entretanto, aflita com o estridor dos ferros, a rainha insistia com o filho que viessa a Coimbra. Ele, capitão de tropas sem hábitos de ordem, andava à sorrelfa pelo reino com o estado-maior a estudar os golpes e as audácias. A mãe, que mal topava, pouco lhe dizia; as andanças na margem esquerda em que gastara os anos pareciam-lhe a ele redanho escarninho. Dava pois por mal empregue o esforço posto em se ausentar para o Mondego. Mas os pretorianos que com ele andavam viram o assunto de outro modo e instaram.

– Uma parte da vitória, senhor, está na divisão que se há-de criar entre o rei e a rainha. Ide, senhor, a Coimbra e tentai por tudo puxar a rainha para as andadas em que estamos. E se o não conseguirdes, dai a entender que sim. É quanto basta.

E ele, o príncipe, lá foi ao Mondego apresentar-se à mãe com aparência de submissão. Logo a mãe lhe foi à cardenha.

– Filho que mofinas novidades me chegaram de desacatos vossos. Campos talados, bons vassalos enforcados, arraiais queimados e vilas devassadas pelas correrias dos vossos homens. Até de mulheres violadas em sua casa se conta.

– É a guerra, senhora!

– Não devia. Que queres tu, filho, com um flagelo de dor e sangue? Acabar com o reino?

– Não, senhora! Trazer meu pai ao bom trilho. A guerra há-de resolver este novelo! O reino se dividiu em duas partes e vós haveis de tomar parte no partido de vosso filho. El-rei passou a vida a rir-se de vós. Tomareis agora desforço comigo das barregãs em que el-rei andou no chafurdo…

– As barregãs del-rei, dizes tu… pois, filho, menos culpa dele são que minha… Nunca poderia tomar del-rei desforço por causa tão falsa; antes o tomaria de mim…

– Pois assim haveis de tomar desforço del-rei, senhora, por tudo quanto ele me fez.

E assim se despediu do Mondego para regressar à hoste, que andava em manobras no centro. Preparavam à socapa o bagulho da Primavera. O rei por sua vez aguardava incerto na linha do Tejo. Parecia-lhe a tira de terra mais segura do reino; quem a tivesse dava ordens para cima e para baixo. Sabia que as tropas do filho andavam no centro e no norte e que o montado do Alentejo corria infestado de guerrilhas prontos às razias. Esperava novos doestos do papa, a serem lidos em Évora pelo bispo Geraldo Domingues. O coração batia-lhe fraco e sem compasso; andava-lhe no peito como um cavalo doente e estropiado, que trotasse aos tombos numa eira de corrida, debaixo dum Sol escaldante.

Ainda assim restava-lhe um migalho de esperança, porquanto sabia que peitara o papa e que a rainha andava atrás do filho. Demais, Afonso era carne da sua carne, o filho que tanto desejara em Isabel, aquela Isabelinha em flor que lhe surgira do levante quando nem vinte anos tinha. – Afinal o bardino era um monstro, pensava agora perplexo, sem se lembrar sequer das friezas forçadas em que o concebera trinta anos antes. E como havia ele de as ter na memória se dele não foram? Tudo o que juntava é que a rainha fora a nódoa do pano branco e que aquele filho lhe alastrava a mancha. A filha, Constança, já lá ia, a bailar nas prados do Outro Mundo, morta aos vinte anos, e nem dela dava notícia. O que lhe ficara era um neto, esse Afonso XI de Castela, menino e rei que nunca vira.

Mas se esperança tinha, depressa a gastou nos espinhos do caminho. Mal o bispo de Évora leu nas escadarias da Sé as admoestações do papa ao infante e seus partidários, cominando-os de excomunhão, logo um bando saiu do montado próximo para lhe espetar um bulhão, deixando-o depois na praça da cidade a apodrecer na fralda fria do brial. Corria o mês de Março e até as árvores  para São Bento se encolhiam de medo. O príncipe, a rir do triunfo, enviou a Santarém um emissário com palavras grossas.

– Se el-rei não vem aos tratos que lhe requeiro, pode acontecer-lhe o mesmo – mandava dizer.

Mostrava-se facínora e celerado havia de ficar pela vida fora. Mas que se podia esperar dum homenzinho que aos vinte anos metera na cabeça que havia de tirar o mando ao pai e que aos trinta fazia desse roubo a escola de governo? Nada, a não ser as bravatas da guerra e as ferezas contra as mulheres. Quando encontrou uma que teve o senão de se crismar Castro, não hesitou em degolá-la. Se fosse Correia ou Benevides salvava o lindo pescoço de cisne; assim, com o Castro a badalar, caiu-lhe a cabeça aos pés, em sangue, por ordem do beleguim.

O rei ficou dois dias fechado sem aparecer. Punha o rosto entre mãos e sentia o choque da desordem; parecia pedra a ferver no meio dum vulcão. Não queria acreditar que o gordo bispo de Évora fora arrumado com um bulhão no peito e que o seu cadáver lhe fora atirado à cara. – Não é filho; é fraldilha cruel – dissera-se. Nunca curtira amargueza tamanha. – Nem meu tio há-de ter galgado com meu pai transe tão doído – repetia, sem saber se vivia ou não. O coração tinha momentos de se lhe apagar no peito; outras, rugia que nem vendaval, obstruindo-lhe os gorgomilos. Reagiu depois, apresentando-se à corte com compostura falsa e dando ordens de se reunir uma hoste para entrar em combate. Junto dos homens mostrava firmeza, mas a sós chorava que nem vitelinho arrancado à mãe. – Estou um farrapo velho – martelava-se desgostoso.

Logo depois veio o assédio a Leiria e a traição dalguns. O rei ressentiu como lâmina de bulhão na carne a queda de castelo e burgo nas mãos do filho. Leiria fora o seu poiso de jovem águia. Aí fora oiro e Sol; renovara o castelo, fizera filhos, secara águas, embevecera-se com as mulheres brancas e olhos de pérola, mandara plantar um grande pinhal para varar os ventos e ter tábuas de sobra para as fustas. Sonhava uma armada que fosse de Lisboa a Chipre como a do cunhado ia de Barcelona a Atenas. Demais, ter Leiria significava pôr em perigo o Tejo. – Tenho o revelde às portas de Lisboa, a forçar-me os dedos. Hei-de querer dar passo e não poder – torturava-se ele.

Mas o infante voltou-se para Coimbra e deixou o Tejo. Amarrava o pai a uma tira de terra em volta de Lisboa e de Santarém e ele espraiava-se até Guimarães. E começou a apregoar que havia de ter Coimbra e logo mandar castigar os crúzios pelo fogo que haviam posto na obra da margem esquerda.

– E comigo – exclamava impante – a vinha volta a Santa Clara!

Afrontava os crúzios, pois bem sabia que o mosteiro velho da cerca de Coimbra nunca havia de dar passo contra o rei e muito menos em negócio onde as libras do pai corrompiam vontades na cidade nova do papa. Não era audácia de valente mas jactância de fanfarrão; se não era isto, era cálculo de interesseiro. Afrontando Santa Cruz, batendo-se pelas donas, fazia vir a ele muitos dos antigos sectários da margem esquerda e dava ao reino a ideia de que a rainha lhe era comparsa nas portas de Coimbra.

– A corte com a nova enfoga– diziam-lhe os generais a rir. – E o rei, esse, perde o fôlego que lhe resta.

A rainha, mal percebeu os ademanes do filho, não esperou sequer a reacção do rei. Formou uma guarda de pagens e de cavaleiros, embruacou os trastes e bateu para Santarém. Antecipava-se à chamada do rei, que não deixaria em silêncio atoarda tão grave. Ia na disposição de tudo, até dar a vida, se preciso fosse. Quando entrou nos aposentos do rei, parou de sopetão. Não fosse ela quem era, quer dizer, a menina que há quatro décadas ladeava Dinis, e não o reconheceria. Estava branco e trémulo; respirava a custo e tinha sons de fala-só. Ou estava tartamudo ou tinha pieira de peito, se não maleita de sangue bem mais gravosa. Andava arrelampado no lume do infortúnio.

– Senhor, venho ajudar-vos em tão vexatório passo.

– Mais vos fazia agora com o arrebenta Diabos do vosso filho. Até a vinha da ponte do Mondego vos promete em brados altos. Sabei, senhora, que pior não se pode dizer da rainha na corte del-rei de Portugal.

– São coisas que se dizem. Não quero eu vinha nem outro que venha desta guerra. Não creiais em palavras inventadas por manha falsa. Estou  aqui por vós.

– Passaste a vida a pedir tempo e o tempo correu e agora já não há tempo para o tempo. Nem um beijo teu… num matrimónio de quarenta anos. E tantos, tantos beijos que tu desperdiçaste… pelas ruas… com os gafados… a fazer cera aos cegos… a limpar pústulas a crianças… a lambuzar velhos de lostras… até a puxar a ti as comborças das quelhas… É tarde, senhora. Vivi amargurado por vós e vivo agora por vosso filho. Até nele o nosso matrimónio foi desafortunado!

– Não digas isso… Dinis… Quero-te beijar… o beijo mais ardente da minha vida… o verdadeiro milagre do meu amor…

– A corte desconfia de vós, senhora. Há quem me garanta que os vossos réditos estão a correr para a bolsa do revel. – Como pode o príncipe pagar tantos homens de armas? – perguntam-me. – Para logo responderem – É a ajuda da rainha, senhor, que alimenta esta guerra.

– Quem isso vos diz, mente-vos.

– A corte não vos quer, senhora. Sabeis o que acrescentam?

– … que sei eu… peçonha…

– E que sei eu… também? Mas juntam que estando a rainha com o tredo-mor e esperando benefícios desta guerra deve ser presa e afastada de todas as suas rendas.

– Prendei-me, então, se só assim vós e os vossos se convencem do meu afastamento desta guerra.

– É a atitude assisada, senhora. Em guerra todo estamos em perigo e até um rei pode perder a cabeça no estrado.

E deu voz de prisão naquele momento à rainha. De seguida convocou a corte e determinou diante dela, na alcáçova de Santarém, que a rainha sua esposa perdesse todas as rendas e fosse desterrada para Alenquer, uma vila do Tejo, nas proximidades, onde ficava sob vigilância das tropas fiéis ao rei e sem contactos com o príncipe.

– Pior lhe era  – rematou o rei  – caso não tivesse vindo a Santarém entregar-se.

No dia seguinte, depois do toque da hora prima, uma escolta do rei formou-se no pátio da alcáçova e a e a rainha apareceu de mãos livres, sem nenhum dos seus, pronta a montar a mulinha que o rei lhe punha à disposição para a viagem. Nem a bruaca com os vestidos e os escarpins quis levar.

– Se vou ser pobre, nada quero comigo. Tudo o que houver, lá estará à minha espera. Posso bem ir pelo meu pé – declarou, quando lhe falaram num churrião pequeno para a levarem com os pertences.

E insistiu em ir de longada apenas com os panos surrados que usara para a viagem e que nem tempo tivera de mudar. O trajes novos, que enfiara no cofre para usar na corte ao lado do rei, podiam ficar para quem os quisesse. – De bom grado os dou – declarou com simplicidade, dirigindo-se às senhoras da corte. Estava disposta a partir para os páramos adustos do homizio de mãos vazias, sem uma seda e sem um anel.

No caminho para Alenquer, flanqueando o fio do Tejo, que naquela sazão com as primeiras chuvas de Outono engrossara muito, com os velhos a acenarem na porta dos barracos e as jovens descalças de cântaro aos ombros, sentiu-se bem. Quis aliviar a mulinha do peso que levava e desmontou para fazer o resto da jornada a pé. Abriu um sorriso tão feliz que até os homens de armas se espantaram.

Numa esquina do caminho, a escolta parou. Estavam diante do reguengo da Azambuja, com o paço de Valada à beira do rio, onde o rei os mandara descansar depois das vespéras. Desafogaram as montadas, recolheram-se para comer e descansar. Por fim o cabeça da escolta veio ter com a rainha, cabisbaixo e contrito.

– Senhora, nesta guerra em que estamos preferimos desertar das ordens del-rei e passar às do príncipe a prender uma santa como vós. Tudo menos o Inferno.

Ela recusou com uma reprimenda suave. Nunca desobedeceria às ordens do rei. Que a levassem pois de imediato ao seu destino e voltassem de corrida a Santarém a darem o bom recado do serviço feito.

– Imaginai – rematou ela – o meu sofrer se soubesse da angústia del-rei por conhecer a deserção dos seus  e ver a ordem dada à esposa desobedecida? Poupai-me, senhores, a tão grande amargura.

E na manhã seguinte partiu de novo o grupo. O fio do Tejo seguia sempre ao lado e as gentes sorridentes vinham à porta dos casais acenar à escolta e à senhora. Numa encruzilhada do caminho, perto dum grande canavial, bifurcaram a norte. De repente, a luz da manhã, sem perceberem como, a serra de Montejunto, até aí apagada, postou-se diante do grupo como topázio intransponível. Não tardaria a escalada do calhau que reverberava ao Sol de Outubro mais que as entranhas do mármore numa manhã de estio. O cabeça fez sinal com a mão à rainha e disse como a querer apaziguar o esforço da caminhada.

– Vedes a serra? Estamos perto, senhora.

– Alenquer… – divagou a rainha. Numa das primeiras viagens com o rei, por lugar das correições em que este sempre andava pelos lugares e alcaidarias, passara no povoado. Havia quarenta anos que tal sucedera e tudo se lhe apagara do cogitar. Não tinha, a bem dizer, uma imagem. Pensando bem, e olhando para a mole clara de pedra que havia diante, exumava dos anos pedras e velhos enrolados em trapos negros, com crostas bolorentas na testa, estendendo as mãos de esterco para o cortejo real, à espera do óbulo. Por todo o lado, existia o mesmo espectáculo, os ricos montados a cavalo, trajando seda broslada a fio de oiro, ou veludo lionês mais macio ao palpar que polpa de céu azul, e os mesquinhos, cobertos de andrajos e de escarros, como se levassem penedos agarrados ao corpo e este mundo fosse a mais penosa mansarda do Inferno. Jesus viera para corrigir esta maldade dos homens e a sua Igreja se fundara em Jerusalém na estrita comunhão de bens e na severa pobreza.

Recordava ainda as palavras fortes e eternas da Escritura, referentes ao nascimento da Igreja. Neque enim quisquam egens erat inter illos. Quotquot enim possessores agrorum aut domorum erant, vendentes afferebant pretia eorum quae vendebant, et ponebant ante pedes Apostolurum. Dividebatur autem singulis prout cuique opus erat. Uma pedra que nascera da comunhão de todos os bens singulares, tirando cada um livremente da caixa de todos aquilo que precisava, não podia ficar inumada no pedregulhal da História; era ideia limpa para a regeneração do mundo que convinha ter na bambinela da alma.

Avistaram Alenquer por fim. A primeira impressão que a rainha teve entrou-lhe na alma como um sorriso de criança. As casinhas brancas agarravam-se à encosta, num encaixe brincão, à espera de escalarem o céu. Apetecia genuflectir aos pés do povoado como se aquilo fosse a creche onde houvesse de nascer um Deus menino. E mesmo que fosse só menino, sem Deus, chegava para ela levar o joelho ao chão, que a vida ali, vista da posição oblíqua em que a topava, era bela e sem horror. Foi a primeira vez que passou do sorriso pilho que abrira na chegada à Azambuja ao eflúvio descarado: – bendita prisão! Pensou ela e penso eu, que prezo Alenquer como poucas outras terras. Foi em Alenquer que Constança Manuel se apaixonou por Pedro e este caiu fulminado por Inês, o que teve como consequência que a primeira se agarrasse a Inês como se esta fosse Pedro. E tanto a tocou que dela se tomou também de amores verdadeiros e fundos. E foi ainda em Alenquer que Leonor Teles, a leoa de juba em fogo, decidiu enfrentar o sogro e perder a coroa. Em Alenquer todos estes têm a sua glória, que é a de serem grandes na solidão e na renúncia.

O infante, mal deu notícia do desterro da mãe, guinou de triunfo. Tinha em mão uma taleigada de trunfos. Alargou as acções no centro do país e não foi ao cabeçal enquanto não obrigou o rei a resguardar-se em Santarém e em Lisboa, com medo dos guerrilhas que se escondiam nos baixios do Tejo e lhe frechavam com pontas ervadas os cavaleiros das escoltas e os missivas que andavam entre Valada e Santarém. Ao mesmo tempo que isto fazia, mandava o príncipe cartas a todos os alcaides das terras da mãe, as das arras e as que depois vieram, na recompensa da rainha pelo esforço de Alcanizes e Torrelas, reclamando  piques e besteiros para livrar a mãe da prisão infame. E que não lhe faltassem – ordenava – com as rendas, desobedecendo com firmeza ao rei, para a miseranda não morrer de fome.

Quando os guerrilhas abriram largas clareiras soltas no vale do Tejo, dificultando ou mesmo impedindo o movimento das tropas leais entre Santarém e Lisboa, não se atreveu o infante a descer de Leiria, onde havia a base de operações, mas mandou a Alenquer um emissário na companhia dos que vinham dos alcaides das terras. Quando a rainha ouviu dizer ao missiva do filho que vinha livrá-la da prisão e levá-la para Leiria, onde ficaria segura até poder regressar a Coimbra, seu poiso habitual, teve resposta ríspida.

– Que venha ele para o meu pé se a minha falta sente. Estou segura e certa onde o rei me pôs.

Levantaram-se os outros emissários em lástimas iradas contra o rei por tão nefasta situação e logo lhe disseram que não a haviam de deixar sem réditos. Todas as rendas lhe chegariam às mãos e sem demora.

– E como prova disso aqui tendes uma bolsa de dobras de oiro para atalhar às vossas precisões – concluiram.

Pois também eles levaram a ripada da rainha.

– Senhores, as minhas precisões somem-se numa côdea de pão e num gole de água. Tenho uma laranja por oiro e um tecto por um luxo. Bem vedes quem assim se trata, não precisa de lástimas nem de rendas. Ide pois dizer aos alcaides das minhas terras para obedecerem a el-rei.

E recusou-se a mais, a não ser às despedidas.

– Boa viagem e toca a andar, ouvide bem, sem danos nem guerras!

Regressaram os missivas a Leiria. Não esperava o príncipe desfecho muito distinto, que quem andara metida nas convulsões da margem esquerda e batera para Compostela a pé descalço e a pedir pelas portas não era de fiar em negócios de terras e rendas. Ainda assim aquilo de Alenquer ia menos pela verdade que pelas aparências. De verdade, tanto lhe importava que a mãe acabasse como a tia Sancha a pedir pelas congostas ou que ficasse retida num açude de águas como presa em calaboiço do rei. Mais que a mãe lhe importava o mando. O que lhe desse ceptro e coroa era bem vindo; o resto que fosse para a esterqueira.

– Se vive de pão e água e tem uma laranja por oiro do melhor quilate pois que fique onde está – exclamou com um encolher de ombros, sisudo mas bem-humorado.

E decidiu bater com as tropas para Coimbra, dando costas à mãe. A rainha por sua vez vivia a primeira cava de Alenquer. Adaptara-se bem no momento da chegada. Exultara mesmo com os franciscanos do lugar, um pequeno cenóbio que mais parecia um redil de cabras e que vivia de si e para si. Não havia ali crúzios a dar ordens e a pôr mão cobiçosa nas mesas e nas mentes. Ao que parece Alenquer fora dos raros lugares que escapara às lapidações que os mendicantes haviam sofrido no reino; no momento da entrada estava por lá a fundadora de Celas, a infanta Sancha, que recebera por suas mãos o pobrezinho que viera dos apeninos a tocar pífaro de cabreiro e a fazer milagres, enviado pelo próprio Bernardone. Por isto ou por outro, Isabel tanto gostara do lugar, que pedira aos irmãos que lhe cedessem o casebre do alto, onde algum ia de ripanço nos dias da canícula, o que logo se fizera. E mais dizia a rainha, fechada agora no cárcere de serrana, com o fuminho azulado e odoroso do azinho a evolar-se dos casais por baixo: – benditas, duas vezes benditas, as paredes de tal aflição!

Mas depois vieram os missivas do filho. E depois dos missivas, que ela despachou sem dó, avaliando para dentro como facinoroso o filho, veio o assédio de Coimbra, que muito a torturou. Hermigo e muitos outros refugiaram-se junto dela. As terras de dentro estavam cobertas de geada e soprava a nortada seca da neve capaz de cortar pêlo e rilhar ossos. Os lobos uivavam no flanco dos caminhos, dispostos a saltarem à estrada, se lhes cheirasse a trapo de sovaco ou de virilha de humano, que outra coisa não saltava por lá em hora tão fria. Os homens do filho, a bardinagem das florestas que ele arregimentara a troco duns soldos e duns torrões centeeiros, deitara mão dos edifícios da ponte e tinham por lá o arraial de guerra. Até máquinas de mandar calhau a muitas braçadas de distância, construções diabólicas com ar de ciclopes antropófagos, os famigerados engenhos da cáfila sanguinária que havia roubado o condado de Toulouse à coroa do avô, estavam por lá instalados, prontos a vomitar pedra pesada sobre a torre de Belcouce e o seu fanal de pez vermelho aceso na noite escura.

– Ó Deus, dizia-me aquele pagem do Demo que as vides de Santa Cruz haviam de ir para Santa Clara… – queixava-se a rainha à fratelagem de Alenquer.

Foi o momento em que ela escreveu a desesperada carta ao irmão Jaime, confessando-lhe que cada dia ia para pior e que vivia vida muito amargosa. Estava aqui um estado de ânimo estrutural duma personalidade depressiva cuja madrinha era a tramontana glacial dos Pirenéus e cujos sentidos estavam embotados pelo frio metálico de Fevereiro. Dir-se-á que estava sobretudo a circunstância duma guerra. Na verdade não era tecto, nem côdea, nem prisão, nem magreza, nem trapos, que lhe pesavam; o que doía e fazia jus a tanta dor era o arraial de guerra em Santa Clara. E como se o estendal não chegasse ao martírio, o chefe do preparo era o filho arrancado das entranhas. E para ufanar o desespero o tempo que corria naquele momento era aquele em que uma mulher da Galileia tirara dentro de si um menino tão bondoso que na hora da morte prometera as horas felizes do céu aos algozes carniceiros. Como não havia aquela pobre mulher de escrever palavras negras de tanta descrença e angústia? E como não haviam elas de parecerem escritas por um abjeccionista português do meado do século XX? Não se admire pois o leitor de eu as associar a Pedro Oom. Não havia bomba atómica, mas havia Afonso IV de Portugal. Era o suficiente para pôr muita cinza e muita lágrima sobre a Terra.

– E eu que tenho por filho um cortesão dos Infernos – chorava ela, amargurada. – Devo ter entranhas mais sujas que o buraco de pedra onde a loba sacia o cio e deita ao mundo as bestas.

Coimbra caiu quatro ou cinco dias depois do Natal. O riso de escárnio dos farroupilhas ecoou por todo o reino. O rei estava perdido e nas mãos do filho.

– Até os crúzios lhe abriram a porta para lhe beijarem a mão – dizia-se com espanto nos primeiros dias de Janeiro.

Logo o caçapo se assenhoreou da linha do Mondego, subindo para o Douro. No caminho pôs mão no castelo da Feira. De seguida caiu Gaia e logo se seguiu o Porto, onde o conde de Barcelos se lhe juntou. Parecia um passeata de corregedores escoltados por uma guarda de armas; em breve a hoste do príncipe estaria em Braga, sem gastar mais que bilhão de cobre. No espaço de dois meses entrara nas mais importantes cidades do reino para ser recebido por rei. Muitos pensavam que Dinis já pastava feito bode no Outro Mundo. Outros avaliavam que o verdadeiro rei era ele; o de antanho estava confinado ao Tejo e a braços ainda com os guerrilhas que vinham de entre Tejo e Odiana e lhe punham nos caminhos emboscadas mortíferas. O laparoto até um diadema real usava para se fazer passar por rei. Foi montar cerco a Guimarães, mas encontrou resistência brava do meirinho-mor do rei, Mem Rodrigues de Vasconcelos. Pensava chegar ao Minho antes da Primavera explodir, mas percebeu que em Guimarães o divertimento acabara e que se queria passar a barbacã do castelo havia de lá deixar muitos dos facínoras estentidos.

Entretanto o rei, que estava confinado ao Tejo, ao saber das entradas sobre o Mondego decidiu raspar segundo manifesto contra o filho, dando-o por desnaturado do reino. Punha pela primeira vez o propósito de levar o filho à justiça, acusando-o de traição, o suficiente para ele perder a coroa. Não lhe bastava porém perorar diante dos camafeus da corte; era mister ter braço longo e forte para caçar o bicho. De indisciplinado o filho passava a criminoso. Partiu por isso no encalço do príncipe, à espera de lhe retomar as terras empalmadas e de nelas se mostrar vivo e revesso. Estava irado e disposto a fazer justiça severa nos revoltosos e nos tredos. Desgostoso, doente, maltratado, só no desforço encontrava agora refrigério. Tomou Leiria à custa de muito esforço e isso foi-lhe consolo melhor que qualquer expediente que os físicos lhe houvessem encontrado para as horrorosas dores de peito que então o infernalizavam.

– Se Leiria não me tem vindo parar às mãos, morria na eira daquele cercado! – exclamou para os seus homens quando se viu com a porta aberta da cidade.

Foi então que soube que o olharapo tomara Montemor, Feira, Gaia e Porto e se preparava para sonegar todo o Minho sem ter mais que bilhão furado. Fez-se de novo agastadiço e descarregou a irritação nos moradores de Leiria. Acusou uns tantos de felonia e mandou-lhes cortar mãos e pés. Os desgraçados imploravam-lhe a morte e o rei concedeu em queimá-los mas só depois de decepados que nem coiro de cabra. De seguida tirou-lhes casas e bens, deixando as famílias na rua, ao cuidado dos parentes. Era por todo o lado um choro de lástima mais cru que aquele que se vira por Évora depois da morte do bispo. A guerra estava para dar e durar e quando se lavassem os cestos muitos rios de sangue se haviam de ver.

Bateu a hoste do rei para Coimbra. Nisto por um daqueles acasos sem explicação lembrou-se o rei da rainha desterrada em Alenquer. Mandou saber dela; disseram-lhe que estava retirada numa cabana de pedra dos altos da vila, vivendo na mais extrema pobreza e sem pinga de contacto com os correios do filho.

Apiedou-se o rei da sorte da esposa e enquanto a hoste seguia para o Mondego ele escolheu escolta e inverteu marcha, passou a Ourém e Porto de Mós e foi apanhar Alenquer pelos Casais da Serra e Merceana. No patamar da vila, passou o rio Triana, subiu ao convento dos franciscanos e atingiu por fim o cabano de pedra onde a rainha se recolhia. Mal a viu, caiu-lhe aos pés. Mas a rainha não se comoveu.

– Não me lastimo por mim. Mais me custa saber o escarmento de vossos vassalos em Leiria. É preciso sanha sem freio para se acabar decepado como o aguazil da cidade. Lastimo-lhes a sorte, não a minha.

O rei, que se via subir ao céu de Alenquer como astro generoso e paternal, não gostou.

– Não vim aqui para ouvir a vossa reprimenda, mas para vos libertar do desterro.

– Este viver por mim está bem. O mal que continua é esta guerra. Nunca eu soube doutra mais sanhosa A andar assim tenho de ver o pai morrer às mãos do filho ou este nas daquele. Como pode isto ser, senhor?

– O infante desnaturou-se do reino e del-rei seu pai. Meteu bandidos nos caminhos e nos povoados; toma para si o que não é seu. E pior do que isso mata sem piedade os soldados do rei. Não hesitou sequer em meter o bulhão num bom vassalo como o bispo de Évora. Ao que me disseram até a canzoada sem dono afocinhou no corpo.

– … Será então levado à justiça e condenado a perder o reino, se não a vida.

– Isso merece, senhora. Está contra el-rei.

– Senhor, assim só teremos sangue. É mister pôr um termo assisado a esta guerra. De outro modo todos nela perdemos a vida. Eu por nojo; vós por maleita e o infante por justiça. Foi para este fim mofino que vosso pai vos deixou o reino? E que vós me requerestes a meu pai? Senhor, cuidai, no que vos digo e ponde termo a este andaço, se não quereis ver perder-se para sempre o reino que tanto trabalho vos deu ordenar.

Ficou Dinis calado diante destas palavras. Não podia assentir, que não lho deixava a soberba de grande rei, mas por dentro, como homem de cogito desanuviado, reconhecia a verdade dos motivos. Pela primeira vez lhe pesavam no pensar aqueles membros em sangue mandados decepar a cru no termo de Leiria. – É bem verdade que a andar por este trilho só veremos sangue e mais sangue… Ó Deus mui alto para onde vamos todos nós… – pensou.

– E sabeis quem herdará depois desta guerra o reino?… – insistiu a rainha. Nada de dúvidas, senhor. Vosso neto de Castela! O meu e o vosso esforço se baldam na sandice desta guerra.

Mostrou por fim o rei abertura a um entendimento com o filho. Acertou-se um plano. Ela acompanharia o rei a Coimbra e garantiria a paz entre pai e filho. Ao filho poupava-se-lhe a vida e o futuro; ao pai deixava-se-lhe a coroa na cabeça e dava-se-lhe o respeito do filho, que se retractava do que fizera e deixava os caminhos livres aos soldados do rei. Enquanto a paz não se visse por actos ela, Isabel, ficaria no retiro de Alenquer sem direito às rendas. Punha-se como refém entre os dois e dava os réditos em penhor.

Fez-se o acordo às portas de Coimbra. Cada um retirava para seu lado, reconhecendo o filho a coroa do pai e poupando este o filho à justiça. Os únicos justiçados eram os foragidos que se acoutaram nos braços do infante e haviam feito as campanhas contra os reguengueiros do rei. Demais pelos tratos ficava claro que Afonso Sanches não podia herdar o reino e que o único herdeiro era o príncipe. As terras deste continuavam na sua posse, mas delas prestando vassalagem ao rei. Deram-se as partes por satisfeitas e retirou o infante para Pombal e o rei para Lisboa.

Regressou a rainha cheia de alívio a Alenquer. Só por não ter apanhado lugar no préstimo que a levou posso dizer que nasci com mais de seis séculos de atraso. Foi o momento apoteótico da sua vida de rainha de rosas e gafos. A lenda da sua santidade espalhava-se agora por quase todo o reino, do Minho ao Tejo e do Douro ao Odiana. Andara pelo norte encoberta, imitando a cardina da tia Sancha, mas há muito que se tirara a verdade da viagem. Todos a tinham na comarca como uma mercê que chegou sem ser esperada. O mesmo para Alenquer e para as terras do centro, que viviam na vizinhança do retiro da rainha.

Assim, quando ela largou Coimbra depois de ter feito as avenças de paz, o povo passava palavra de milagre nas povoações do centro e acorria aos cachos a pôr-se atrás do seu manto que era ainda o mesmo com que andara nas primeiras reedificações de Santa Clara. O rei deu-lhe mulinha igual à que a levara de Santarém a Alenquer, equipada de freio e de guizos de prata, mas ela de novo caminhava pelo seu pé, descalça, com a mulinha pela arreata.

– Pois se a mulinha me há-de levar, é justo que também eu a possa puxar – respondia ela, trastejando o nariz, a quem lhe perguntava porque razão uma rainha não ia no seu trono de pano.

O povo seguia-a a tocar adufe e pífaro, saltando nas pedras e batendo palmas. Em cada lugar ou povoado se lhes juntava mais gente, todos à espera das mercês da rainha. Era o corso dos foliões, a que nem faltava, além do vinho e do pão, uma coroa de tomilho e alecrim. O rei dera-lhe à despedida uma bolsa de maravedis e o filho pusera-lhe à disposição dois carros de farinha. Ela atirava as moedas às gentes, de modo a que houvesse fartura, e não havia lugar com forno de pão onde não mandasse cozer duas ou três fornadas. Acarinhava em especial os cegos e os estropiados. Nas voltas que deram acabaram por ir buscar os gafados de Leiria e Ourém a uma encosta da serra de Aire. Andava desejosa de pôr os lábios na carne corrupta; o olfacto andava-lhe outra vez a fugir para as rosas e até as pústulas lhe sabiam a mel. Os guardas, sabedores dos arranjos de Coimbra, quando viram a rainha na dianteira do povo, com a mulinha pela mão, juntaram-se ao cortejo e foram eles também livrar os gafos do lapedo em que viviam lacrados. E de seguida todos juntos partiram pelos prados floridos da Primavera à busca de Alenquer.

Em Alenquer recolheu-se ela ao seu tecto mas o povo não demoveu do lugar. Acampou aquém rio, no patamar baixo da povoação, e deixou-se ficar. De manso, sem se perceber como nem donde, começaram uns poucos a sentir correr na aragem branda um odor de essências perfumadas. Não tardou que alguns gritassem.

– São as rosas da rainha! São as rosas da rainha!

Aos poucos o odor fez-se mais intenso, espalhando-se por todo o lado. Já não havia nenhum que o não sentisse. O pasmo estava em que mesmo junto das fossas da urina e das fezes continuava o odor de rosas. Até um de Minde, que perdera com a Invernia o olfacto, dizia que sentia o odor bom das flores. E tirando este nada mais lhe distinguia o faro, nem budum de cabra nem tripa de peixe estragado. O povo, vendo isto, gritava:

– Vem aí milagre! Vem aí milagre!

Mas milagre, se desta o houve, foi sem aparato. A rainha continuava fechada no tugúrio e recolhida continuou. Orava as rezas que lhe vinham de Barcelona e outras que lhe foi juntando ao longo da vida, sobretudo no tempo em que se recolheu nos baixos de Compostela. Demais fiava fio de lã e seda que depois entregava aos franciscanos. Havia pelos arrabaldes muita ovelha e muito pasto e todos os anos a povoação dava para Santarém e Lisboa muitos novelos de lã para se fazerem mantas e zuraques. Vezes havia em que algumas mulheres do povoado, anteriores aos tratos de Coimbra, vinham fiar com ela. Mas era tudo. No resto estava sozinha. As senhoras do tempo do avô, que haviam regressado de Castela depois da morte da filha Constança, ou haviam casado e tomado casa própria, como Vataça que andava para além Tejo, experimentando ter pela primeira vez vida própria, ou haviam ficado em Coimbra de guarda aos trastes de Santa Clara. Tudo mudara, até sangue flexuoso que um dia lhe aparecera no paço de Barcelona com Berengária a fazer-se anjo obsequioso, desnevara e desaparecera. Não era nenhuma lazeira, mas mostrava melhor que axioma, a senectude em que entrara.

Uma manhã, em que havia mentalmente passado em revista a vida, retendo-se naqueles sucessos que tanto a haviam horrorizado na infância, espreitou na seteira da pedra da casa e viu uma luz esplendorosa sobre os campos. Aproximou-se da porta e recebeu o embate do lume. O que mais a impressionou foram os torrões de terra, de hábito tão sólidos e escuros, irradiarem luz como se fossem besoiros de oiro, vivos e sonoros. Recolheu-se, para abrigar o corpo na frescura. Pensou em si e nos seus; deu voltas a sentimentos e sensações. Uivou de dor quando se lembrou de Dinis. – Nunca um ósculo… – lacerou-se.

Depois esqueceu tudo e voltou à luz, à mordedura da luz esplêndida e munífica, que metamorfoseava a terra estulta em insectos de oiro. Agora a mesma luz entrava-lhe pela casa como topázio líquido, como salamandras de fogo que se tivessem libertado duma fogueira invisível, e punha-se às voltas pelos quatro cantos do recinto, num movimento giratório imparável e veloz, à procura duma síncope. Os sentidos fremiam, embriagados pelas fragrâncias que corriam na aragem. Aspirou fundo na voragem e de repente teve vontade de desnudar o corpo, mergulhando naquela luz que lhe tocava os dedos e glorificava a carne. Era como se as pétalas das rosas de Coimbra se houvessem transformado agora em moscardos de fogo e as asas serpeassem a luz e o calor na escuridão fria do mundo. Suma magnitude! Tinha de recuar ao limiar da infância, aos quase esquecidos desvelos anteriores à dor moral, com o canto glorioso do azul a banhar a vida, para encontrar a mesma atmosfera esplêndida e luminosa.

Desenlaçou pressurosa os panos que lhe escondiam os cabelos e parte do rosto. Estava ansiosa por ver os cabelos à luz estupenda. – Deus meu, nunca me lembro de os ver com atenção segura – pensou. Caíram-lhe aos pés os panos e soltou-se-lhe o cabelo sobre os ombros, correndo depois para a cintura. Pouco o cortara, pouco o penteara, pouco dele cuidara ao longo de mais de cinquenta de vida; enquanto as outras meninas na corte do avô passavam a manhã a desprender o cabelo e a domá-lo com pente de dentes de marfim, ela sartava e orava. Agora, queria mirá-lo na corrente da luz, tecê-lo entre os dedos, sentindo-lhe a seda e o calor; tomou a correnteza nas mãos e viu os fios de oiro branco brilharem na luz da manhã. De repente, sem ela perceber por quê, enquanto entrevia a explosão do oiro, o cabelo esvoaçou-lhe solto numa viração que parecia soprar da viridência jubilosa dos prados. E nela, como em quadra de adufes e gaitas, o cabelo lhe bailou sem jeito, num ademane suave, da direita para esquerda, e desta para aquela, menos cabelo de gente que brial delgado e fino, sem corpo dentro, no vento puro da alba mais fresca e primigénia. Ela, bailarina suspensa das suas asas de renda, fechava os olhos e extática voava pelo canto glorioso do azul que outrora percebera como a essência eterna da vida.

De seguida, abrindo os olhos, libertou a capa, desceu o brial e os saiotes, volteou os panos que se lhe enrolavam desde tenra idade à carne e ficou nua no aposento, estendendo as mãos para a luz. Olhou-se; era uma fusta de ossos esburgados enterrada nas lamas do Mondego. Mas pouco durou a impressão. Depressa a carne lhe explodiu em luz à imagem dos torrões que se desfaziam em bronze sonoro. E por um momento ela correu nas vagas astrais daquele leite celeste; era a primeira vez que via a nudez do corpo e uma serenidade sem tempo tomava-a como se desmaiasse nos braços invisíveis duma força prodigiosa.

Passara então a época da Ascensão e não tardava aí o domingo de Pentecostes. Vieram-lhe ao pensar as conversas do paço de Barcelona e as expectações de Joaquim de Flora e Gerardo de San Donino. – A luz, a serenidade que me toma é a da Vida.  Bendita a Vida que a dá e de nós a todo o instante se lembra – pensou, reconciliada por um momento com a existência.

Vestiu-se e avançou até à ombreira da casa, arrimada ao bordão de caminhante. A mesma luz, a mesma tranquilidade, o mesmo lume, o mesmo desmaio alagava céu e terra. Em baixo, a mole dos homens mexia-se de lento. Reviu vida e feitos. Viera casar às terras do poente lusitano há quase meio século; viera para preparar a retirada à corte do pai, caso a Sicília desandasse em desastre inteiro e os cruzados do papa se adiantassem a tomar casa e bens. Viera para reinar e viera ainda, conforme o conselho de tantos e em primeiro do físico Arnaldo de Vilanova, para espalhar na seara do reino as sementes dos begardos e dos espirituais, que haviam actualizado o joaquimismo anterior da terceira idade. Os alicerces de Santa Clara, ainda sob inspiração exclusiva de Isabel da Hungria, e no momento mesmo em que se levantava em Roma papa seu, o beguino Celestino V, haviam nascido como expressão desse desidério. A obra andara depois tremida com os vitupérios de Santa Cruz, ao mesmo tempo que a Europa vivia a derrota do projecto ecuménico templário, herdeiro ou parente do gibelino. Mas a confederação pirenaica resistia, a Sardenha integrava-se na coroa do irmão Jaime, as ideias de Arnaldo de Vilanova ganhavam muitos seguidores, Santa Clara na margem do Mondego progredia e estava a ponto de se tornar um centro espiritual do novo mundo. A luz forçava entrada por qualquer fresta; ela o testemunhava na manhã esplêndida que subia. –Bendita é a vida em todas as suas moradas – pensou.

Veio-lhe a ideia de criar no reino uma nova festividade que fosse capaz de exarar a força das sementes de que fora portadora. Queria uma festa que celebrasse a dádiva da vida; queria uma festa que significasse para todos aquilo que alguns haviam vivido na assembleia fundadora de Jerusalém; queria uma festa que desse ao reino a promessa com que viera investida de Aragão e Catalunha; queria uma festa que fosse o sinal da reconciliação da Natureza com a Vida; queria uma festa que fosse porta de entrada na idade jucunda do santo Espírito; queria uma festa rescendente e que mostrasse a todos os homens a glória do azul. Depois da partida de Jesus todos se haviam comportado como irmãos, sem nada haverem de pessoal, e todos haviam vivido a graça do Paracleto, a ponto de figurarem de bêbedos. A posteridade de Jesus não era pois Jesus mas o Espírito Santo. –  Eis então a força sob a qual os homens hão de viver no porvir – pensou. A festa que ela ali desejava era um sinal vivo da concretização deste desígnio.

Chamou a rainha o povo a reunir-se e industriou-o sobre o sentido da festa que aí vinha. O Pentecostes era a mais importante festa cristã e aquela que daria sentido ao futuro, um futuro em que o leão se fazia pomba e o lobo se tornava cordeiro, conforme estava prometido no sonho de muitos. Nessa festa havia o rei de comer ao lado do pobre e nenhum havia de levar o pão à boca sem que as prisões ficassem vazias. Nenhuma razão havia para um homem louvar o Espírito e comungar com os irmãos se algum na sombra permanecesse mudo, encarcerado e com fome. Mal as línguas de fogo tocassem os homens, um preso seria um homem regenerado. Num mundo assim tocado pela mercê e pela liberdade, o mando havia de pertencer ao mais pequeno, ao mais frágil, ao mais inocente, ao mais inofensivo, a criança.

– Esta festa a fareis fora da Igreja; esta festa a fareis na vida, que é a vida que deve ser doravante um templo. Não há um templo dentro da vida; há vida toda ela feita templo. Esta é pois a festa do bodo, a festa da comunhão, em que a carne aparece como mercê sem par. E esta festa fareis não só no domingo de Pentecostes, cinquenta dias depois da Ressurreição, mas em qualquer dia, em qualquer momento e em qualquer lugar em que haja uma confraria e um mordomo. E um dia estas festas se farão sem mordomo e sem preparação, para tanto bastando estar vivo porque viver será por si uma festa e uma comunhão.

E rematou, sempre arrimada ao bordão de peregrina, obra de pau nodoso, adornada no cimo pelos dois antropófagos marinhos:

– Eis então a idade nova do Espírito Santo. Que a festa seja o seu sinal entre nós!

Correu o povo a libertar os presos da cadeia; correu a bater massa de pão e a acender os fornos; correu a trazer as crianças de todos os lugares em volta. Uma frenesim de júbilo tomou conta do lugar. Arrastaram-se tinas de vinho, acenderam-se fogueiras, espetaram-se colgaduras vermelhas em altas hastes por todo o lugar. Dissera a rainha no dia glorioso em que anunciara a festa:

– Com esse sinal se lembrarão as línguas de fogo que hão descido em Jerusalém depois da Ascensão.

Por fim, na tarde de sábado, na sebe baixa da povoação montou-se uma grande mesa onde se celebraria na presença de todos o bródio do Pentecostes. E no dia seguinte teve lugar a primeira festa do Espírito Santo em Portugal. Antes da confraternização, quando os adufes e os pífaros dos cabreiros se calaram, ela exclamou, abrindo os braços

– Estou presa e sou livre; estou pobre, sem rendas, e tenho tudo o que preciso. Sou porque não sou. Comei, bebei e consolai-vos nestes dons da vida.

Estavam criadas as festas do divino Espírito tal como se popularizaram depois em muitos outros lugares do reino. A primeira delas, havida em Alenquer, celebrava a paz entre pai e filho e louvava a grandeza do desterro. Foi a forma elaborada que o espírito da rainha encontrou para dar continuidade aos tratos de Coimbra e sobretudo ao préstito encantatório que a trouxe do Mondego ao Tejo. Tais festas de celebração foram a obra mais larga da esposa de Dinis e aquela em que mais fielmente encontramos traduzida a formação inicial do seu carácter; são os frutos maduros da haste frágil da sua infância e primeira juventude. Há nelas, a par duma cultura cristã epocal, cujas fontes são singulares a toda a Península, um impulso social libertador, que só o laicismo gibelino justifica. Demais por elas corre um fio doirado de reconciliação da rainha com a existência que, a não existir, poria sempre uma sombria marca de azedume na sua experiência vital.

Nesse domingo a rainha recolheu tarde. Assim como assim, a festa continuava à luz dos lumes; comia-se, bebia-se, cantava-se e bailava-se à porfia. De madrugada, à medida que as estrelas pestanejavam de sono, perdendo brilho na lividez que antecede a luz, as vozes apagaram-se, os adufes adormeceram e por fim tudo se calou. A rainha desceu então às ruas do povoado. Nenhum fechara postigo ou porta. – Entenderam bem o que lhes disse – sorriu ela. Baixou à portagem do rio; na curta várzea lá estavam, na luz incolor da primeira alva, as colgaduras vermelhas, as tinas vazias, e espalhados na vasta mesa, abandonados e vazios, as escudelas e os canecos de pau. Pelo chão havia gente de borco, roncando. A um canto crepitavam ainda uns restos de lume. Cheirava a vinho azedo, a urina, a vomitado. Embora! – Todos estes são felizes! Importa mais do que isso? – perguntou-se. E foi para cima deitar o corpo aliviado no catre, ditosa também ela. Antes de fechar as pálpebras sentiu a essência mística das rosas ondular na encosta e embalar o sono dos mesquinhos que ali havia consigo. – Rosas ou línguas… ou serpes de fogo… ou moscas de lume…­– ainda inquiriu, lembrando por um instante os restos do lume que há pouco vira, não sabia se na Terra ou nos páramos do Céu. Mas de seguida entrou no sono profundo.

Pouco depois chegou a notícia do mal-estar do rei. Dinis regressara a Lisboa de mente aliviada mas sem concerto de corpo. Estava incapaz de dar um passo sem ver no peito o coração a saltar. Insistira porém no labor, porque era mister convocar cortes para lavrar os tratos havidos com o filho em Coimbra. Aproveitava ainda o ensejo para fazer testamento e ficar em Odivelas, no mosteiro que mandara levantar. Desistira de dormir o sono indelével no leito de pedra com a rainha. – Quem tão mal andou em vida, não vai andar de bem depois de morto… – justitificava para si funesto e mofino. Demais, sabia lá ele o que sucederia à rainha.  De momento era a arraia das ruas de Alenquer; amanhã podia ser uma barroca labregueira sem ninguém saber dela. Tinha no sangue o desvairo da tia Sancha e da pobre santa da Hungria que tranformara rosas em pão e andara no Deus-dará das florestas infestadas de foragidos. A mulher, a rainha de Portugal, tinha a mesma pecha rabosana; da tia magiar herdara até na ponta dos dedos o doidejar das rosas.

Veio a rainha a Lisboa, mal soube da moléstia do rei e do esforço sem medida em que ele andava. Desta vez era ela que corria para os braços dele e, para estranhez maior, ansiosa por beijá-lo. Convencia-se que a maleita havia de ceder aos seus beijos. – E quanto mais ardentes, mais forças recobrará – pensava, resguardada no churrião que a trouxe de Alenquer a Lisboa. Estava ansiosa por se ver ao lado do esposo.

Dinis e Isabel! Este par também é uma história de amor, disse eu lá para trás, quando os dois adolescentes se encontraram pela vez primeira na cerca velha de Trancoso. E que história de amor, digo agora, na hora da velhice de ambos; nenhuma outra se lhe parece em Portugal, tantas são as atracções e tantos os desencontros. Agora, no declinar do astro, esfriar de vésperas, este desejo anacrónico de beijos, fruto da compaixão mais que do instinto, faz ainda assim a vez dum clarão de luz no meio da noite escura. É belo, sem ser cego.

Encontraram-se no salão da alcáçova de Lisboa, onde o rei passara os derradeiros tempos a planear as cortes e a sondar a morte; dum lado tinha os livros de correições e do outro a lágrima azul do Tejo. A rainha, mal o viu, atirou-se a ele num arroubo ardente.

– Dinis, Dinis, hoje trago-te de vontade os meus beijos. Não podia demorar mais…

– Isabel… Isabel… que fazes…

– Ardo por te beijar… Venho curar-te. Os meus beijos te hão-de livrar de qualquer moléstia. Sentes…? Tu hoje és o meu gafo, Dinis!

Depois do invulgar idílio regressou a rainha a Alenquer e reuniu Dinis cortes em Lisboa. Remoçara com a presença da rainha e parecia viver um clarão de luz. Lavraram-se por escrito os tratos de paz de Coimbra mas o príncipe não se deu por satisfeito. Mal se apanhara a sós, longe do alcance da mãe, recriminara-se de ter levantado o cerco a Guimarães.

– Foi sandice meter o joelho em terra aos pés de meu pai – afirmava ele irado aos correligionários.

Nada ganhara com a paz e andava em ânsias por voltar à guerra. O mesmo acontecia com os energúmenos, alguns obrigados a entregarem-se à justiça por razão do acordo das partes. Assim, mal se lavraram os tratos das cortes, disse o filho ao pai que os dava ao Demo, por neles faltar muito do rebotalho acordado em Coimbra. Enumerou e insistiu.

– Há-de o senhor Afonso Sanches sair do reino e para todo o sempre. Sem isso nada se fará entre nós, a não ser a guerra. No reino só há lugar para um de nós; nanja para os dois.

Veio de novo o mal-estar ao rei. O coração doía-lhe como sufoco, não sabia se da doença, se da tristura em que andara de ver os filhos assim alterosos. O desaire de Afonso Sanches não fora acordado em Coimbra; aquela birra não passava de habilidade de trapaceiro. A princípio ainda tentou deslindar pela fala o novelo; depois, quando percebeu a mofa troçosa do filho, desistiu e voltou costas com a dor amarrada ao peito e o borboto das lágrimas a rebentarem-lhe nos olhos.

O príncipe avaliou a situação e percebeu que dos dois o que se adiantasse era o que colhia mais saídas de vencer o lance. E montado num raio preto, capeirão chapeado a prata, foi tomar Santarém de surpresa, disposto a cortar as entradas ao pai pela linha do Tejo. Depois, cada vez mais ousado e sequioso, chamou o exército que ficara em Pombal, reforçou-o com os afluentes que ainda andavam dispersos pelos campos transtaganos e saiu de Santarém com hoste grossa, disposto a cercar Lisboa ou a bater-se com o pai em campo aberto.

– Agora não haverá rodeios – dizia ele, com ar de ribaldo sabido.

Desta vez não ia em passeio; trocava a diversão por uma dobadoira de mortos. Se fosse preciso baixar o pai com uma seta ervada também o fazia.

– Importa é a coroa rolar e sermos nós a apanhá-la – juntava ele a rir, a ver se abatia o temor sisudo em que os homens iam.

Entretanto em Alenquer a rainha pusera-se à espera. Regressara há muito ao retiro de pedra, absorvida pela vida do lugar. Não deixara porém de espiar o que se passava por Lisboa. De dois em dois dias mandava agente da vila saber novas e todos os dias recebia algum que lhe falava da evolução das cortes e dos tratos. Quando percebeu, que o filho não aceitava a letra das cortes, inquietou-se. Não contou todavia com o raio que levou o filho num repente a tomar Santarém, ordenando o exército no sopé da cidade e avançando depois com ele para Lisboa para dar guerra ao pai. Ficou estupefacta.

– Que crueldade tamanha! Com o pai prestes a render a alma… Que Satanás!

Ainda saiu ao encontro do filho na mulinha que o rei lhe dera em Coimbra. Ia convicta e determinada; cria que o filho não lhe recusaria o pedido para retroceder, deixando-lhe a ela o campo livre para parlamentar como um ano antes acontecera no cerco do Mondego. Mas o príncipe, quando percebeu a mãe postada na volta do Carregado, escusou-se sequer a parar. Pôs-se de lado, mandou avançar as tropas e flanqueou ele depois a última companhia. Assim nem a mãe o via, nem ele entendia o que ela lhe queria. Quando a rainha deu por ela, já as tropas desciam num bulcão de fumo para Xira.

– Nem preciso de a ouvir… Sei bem ao que veio… – afirmou ele depois, quando lhe perguntaram se não havia visto a rainha na curva do Carregado.

Regressou a rainha ao alto de Alenquer descoroçoada. Pediu a um esculca que acompanhasse o movimento das tropas e lhe mandasse todos os dias recados do que acontecia. Avançou a hoste até Loures, nas traseiras das hortas da cidade, onde aguardou a reacção do rei. Estimou a rainha que o acordo se faria com o filho em Loures e o pai em Odivelas, seu poiso usual. Mas não. Depressa chegou notícia de que o rei ordenava hoste e saía com ela para os arroios da cidade, pronto a investir contra o filho.

Saiu a rainha à pressa de Alenquer na molinha e com dois carros atrás. Depressa se apanhou na linha do Tejo, comendo os lugares e os casais, que por ali abundavam mais que em qualquer outra parte, uns pegados aos outros. Nem em Ceira, no Mondego, se via tanta gente. Estava o Inverno a bater à porta mas o ano trazia ainda pouca água; as terras estavam enxutas e nada custava a evitar as lamas e os charcos que se iam formando no nateiro seco do Tejo. Não tardou a chegar ao rio Trancão, para lá do qual estavam as hostes. Aí lhe chegou nova do rei, de manhã, depois de noite de sobressalto, dizendo que iniciara a marcha para o norte para defrontar o filho. Este continuava em Loures, mas ao saber da avançada do pai começara também a deslocar-se para sul, à procura dum declive favorável à investida dos cavalos. O que não queria era topar com a bonecragem do pai em situação de desfavor. Os movimentos apontavam para que os exércitos fossem ambos desaguar na charneca do Lumiar, um pouco acima das matas cerradas de Alvalade. Ao tomar nota do torcilhão desonerou-se de homens e bagagens.

– Aqui na borda do rio me hão de aguardar os carros e só um de vós me há de levar.

Estrebucharam os acompanhantes. Que iam; que nunca deixariam a rainha em situação assim arriscada; que ela era mãe e protectora e nenhum perigo lhes vinha do caminho. Ela foi rigorosa. Os carros e os homens a haviam de esperar ali e só um deles, Hermigo, o corcovado, a havia de acompanhar para lhe farejar o trilho.

E enquanto pai e filho avançavam às cautelas para toparem com a charneca onde os cavalos se pudessem espraiar em troteadas de guerra, a rainha deixava no lugar de Sacavém, junto a uns almocreves que por lá estavam, carros e homens e entrava a custo nas matas da Encarnação e de Alvalade, à procura de fazer caminho para a charneca do Lumiar. Ia sentada no arção da mulinha, com Hermigo tangendo ao de leve os arreios da montada. À medida que a mata se cerrava, veio-lhe vontade de desmontar e avançar por seu pé. Assim fez. Festou-a com carinho e deixou-lhe espaço para ela alijar algum cansaço e traçar um pouco de erva. Entretanto Hermigo encostou o ouvido ao solo e sentiu a tropeada dos cavalos para poente. Avançaram os três; Hermigo na frente, de chapelão de coiro na mão, farejando os ares, mais astuto que alão de monte, e a rainha na traseira, com a bicha pela arreata, muito sossegada e orando mentalmente as rezas da tradição.

Em pouco deram consigo em campo aberto. Viam-se as herdades do Lumiar dum lado, com as cercas de pedra clara a toda a volta, e os bordos cerrados da floresta de Alvalade do outro. Depois, para norte, descaía com macieza o declive que levava ao outeiro grado de Odivelas. Hermigo voltou a perscrutar o solo.

– Não tardam aí! – exclamou.

E de feito passado pouco surgiu a norte uma linha de cavaleiros que avançava a passo cauteloso, tentando divisar a linha do horizonte. Percebia-se que tentavam a todo custo evitar ser apanhados de surpresa. Quando divisaram ao longe o retábulo bíblico duma dona, duma pileca lazeirenta e dum mesteiral de chapelão de coiro duro, sentiu-se algum ligeiro tumulto. Um adiantado deu mesmo ordem de paragem à fila dos cavaleiros, para que se pudesse perceber se a chuchadeira do quadro escondia tartaranha; numa situação daquelas as cautelas eram mandantes.

Quando isto assim sucedeu, do outro lado da charneca, vinda dos areeiros dos braços do rio, surgiu a passo outra fila de cavaleiros. Também eles reagiram do mesmo modo, mal perceberam a presença dos rabadanos. Um adiantado deu ordem de paragem.

Depois, como vissem que os três haviam parado e ali pareciam acampar, frios aos cavaleiros que se viam dum lado e do outro, os homens do rei avançaram, logo seguidos pelos dos príncipe. Nisto o corcunda de chapelão, depois de ajudar a mulher a subir para a mulinha, deu aos pés e, sem olhar para as linhas da bonecragem mal encarada, desapareceu na escuridão das matas próximas. Avançou a montada e foi parar com a desconhecida no meio da charneca.

Começaram então a ouvir-se gritos no meio da hoste do rei, que avançava com mais ímpeto que a do príncipe.

– É a rainha, senhores! É a rainha!

Ouviram-se negações tímidas, logo desmentidas por outros gritos mais fortes de convicção pasmada. Também na hoste do príncipe se começaram a ouvir as mesmas exclamações de pasmo.

– É a rainha! Cuidai que é a rainha!

A mulher entretanto descera da montada e esperava tranquilamente no meio da charneca, com os arreios na mão, indiferente ao se dizia. Esperava não se percebia bem o quê, entre duas hostes armadas, prontas ao bufúrdio, debaixo dum céu veloz, que fazia e desfazia o acervo das nuvens.

Quando o rei teve a certeza de que a rainha se postava a poucos metros, percebeu tudo. Só chegaria a pôr a mão no filho, passando sobre o seu cadáver. Apiedou-se do gesto da esposa. Lembrou o estranho idílio que ela havia pouco viera exalçar em Lisboa. Parecia tomar-se de ardores sensuais numa altura em que ele, o campeão dos sentidos, andava já seco e casto. – Que dona esta! Ó mui alto Deus que me espera mais? – pensou.

Desmontou, deu o alazão ao pajem, tirou os guantes de ferro, a loriga incómoda e a cervilheira apertada. Olhou depois o céu largo, onde as nuvens de cinza se moviam velozes, e avançou humildemente, cabeça baixa, em direcção da esposa. Quando isto viu, o príncipe adiantou-se e sem mesmo despir guantes e loriga, entregando apenas a lança ao pajem, avançou para a mãe. Os homens começaram então a desmontar e a despir as pesadas armaduras. Alguns encostavam-se aos piques e outros, mais desanuaviados, sentavam-se no chão, roendo algum trevo, sumamente interessados na cena que ali se desenrolava entre uma mulher, uma pileca e dois homens que se odiavam. Ao chegar ao pé da mãe, o príncipe descalçou os guantes, atirou com eles para longe, dobrou a cerviz e foi com o joelho ao chão.

– Senhora, perigoso é virdes a campo onde bons cavaleiros vêm tomar forças uns com os outros.

– Mor perigo está em haver guerra assim sanhuda entre filho e pai.

O príncipe desapertou então o grosso cinturão, cuja fivela apertava por cima da cota de ferro. Nele se guardava o montante bem embrulhado na bainha. Tomou nas mãos o conjunto, olhou o chão e entregou-o nos braços da mãe, que o recebeu com um sorriso. Depois de o prender na albarda da mulinha, tomou as mãos do filho nas suas e assim ficou um longo momento. Ouviu-se então, de ambas as linhas, uma vozearia alta de apoio e muitas palmas.

Bastava esta cena na vida de Isabel de Aragão para fazer dela um ser de excepção. Não houvesse nada mais do que isto e a grandeza da figura estava garantida. Não sei se a cena de Alvalade te assegura a santidade, Isabel, mas sei de fonte segura que é por ela que aqui me tens neste tentame sobre a tua vida e obras. É o momento que mais me comove, como a formação de Santa Clara, nas lutas com Santa Cruz e o clero quinhoeiro de Coimbra e Lisboa, é o momento que mais admiro na tua vida. Acrescento neste domínio a instituição das festas do Espírito Santo no desterro de Alenquer, celebrando a vida com os ideais comunistas e libertários dos primeiros cristãos. Mas as festas deviam hoje ser mais nossas que tuas e não deviam ter morrido às mãos da Inquisição e do desleixo. Era tempo de estarem mais vivas que nunca, sendo de todos e não pertencendo a ninguém. Assim continuam a ser tuas, sem serem nossas.

Nesse momento surgiu o rei, ladeando a rainha e o príncipe. Estivera recuado, observando atentamente o lance do filho. Quando ouviu o clamor que se seguiu à entrega da arma, avançou resolutamente, levando a mão ao cinturão. Também ele o desprendeu e entregou à rainha. Desta vez foi a rainha que se ajoelhou e lhe beijou os pés. A vozearia dos homens subiu, mostrando assim o júbilo em que todos estavam naquele instante. Muitos homens, sobretudo da primeira fila, levaram os joelhos a terra, mãos postas e olhos extáticos no céu. Nunca se vira uma guerra parar desse modo, pela mera intromissão duma mulher de escuro, sentada no arção duma burrinha pascácia.

O rei tomou-a nos braços e levou-a consigo para a linha dos seus homens. Um pajem veio buscar a mulinha ao meio da charneca e as duas hostes desfizeram então a linha de guerra, deram de costas e cada um regressou à origem. O príncipe foi para Santarém e o rei para a alcáçova de Lisboa. Nessa noite, Isabel tremia de frio ao pé do fogo e Dinis reclinava-se num coxim de olhos fechados.

– Isabel… Isabel… Foi preciso beijares muito gafo para fazeres o que hoje fizeste. Só a mim não me salvas já… Vou morrer… Isabel. É tão terrível, alto Deus!

– Não acreditas nos meus beijos… Dinis?

– Sim… sim… Os teus beijos valem oiro e jóias. São beijos de rosa e perfume celeste. Dá-mos… Isabel.

E novo delíquio de assombramento e perfume correu pelos paços da alcáçova de Lisboa. Bem dele havia mister o rei por via das avenças com o príncipe herdeiro. O caçapo fazia-se esquivo e ardiloso. O rei, sentindo-se desfalecer, queria ir ver Santarém e o filho calava, mantendo as exigências e as distâncias. Não se atrevia a sair a campo, para dar rixa ao pai, mas secava-lhe os termos. Queria isto e mais aquilo e mais aqueloutro e ainda, se mais não houvesse ou lembrasse, o cordão de oiro que o pai passava sobre a alvura do manto de arminho. O rei desgostava-se com a atitude e chegou a ir a Santarém para forçar as portas mas tudo o que conseguiu foi passear no bairro da Ribeira. Da cidade murada, espraiada no planalto do esporão, deitando vistas sobranceiras sobre o Tejo e a planície transtagana, com as casinhas baixas de Almeirim mesmo por diante, nem a porta de Atarmarma viu. Só lhe ficaram as saudades de mistura na lembrança com um refrão antigo que por lá fizera no tempo das barregãs, ai madre moiro de amor. Mal se encaminhou da fonte mãe para os cimos começou a chover pingo de azeite a ferver de acrescento com penedo tão grosso que até dois homens arrastou pelas arribas do rio.

A rainha quando soube das cruezas do filho já não pasmou. Mas ainda assim, com o entojo, vituperou-o com os nomes do costume. Nunca pensara que o fabordão que pusera neste mundo para dar um herdeiro ao reino de Portugal, fosse capaz de semelhantes passagens. Esteve vai-não-vai para se meter ao caminho e ir bater à porta de Santarém para ver se o filho lhe atirava outrossim penedo grosso ou azeite a ferver. Mas não foi, porque entretanto chegaram ao campo do rei legados do príncipe com ordens de paz. O rei, que se sentia doído e tatibitate, aceitou em troca de Santarém e da submissão definitiva do príncipe a destituição e o desterro de Afonso Sanches.

– Filho, melhor que fujas enquanto eu vivo. Vais para Albuquerque são e salvo e eu entro em Santarém, que já não via modo de ver – aliviou-se.

Chegaram assim às pazes e o rei pôde cobrar Santarém, cuja perda tanto sofrer lhe dera nos dias que se seguiram às cortes de Lisboa. Tomou conta da cidade, enquanto o filho recuava procaz e sempre cominatório para Pombal. Pouco durou a estadia na cidade amada e leal porque lhe veio apoplexia tão violenta que os cortesãos e a rainha pensaram que ele não mais tomava cobro de si. Mas horas depois, embalado pelo seio da rainha, abriu os olhos a custo, chegado não se percebia de que névoas e rumores. Recolheu à cama, balbuciando uns monossílabos sem nexo para os brucelários que o levavam de tabuleiro. Nunca mais se levantou nem disse palavra clara e inteira; nem sequer se sabia se tinha consciência certa do abalo que sofrera. A rainha beijava-o com redobrado ardor, pronunciando palavras de paixão e ardor.

– Dinis… gostas dos meus beijos? Sentes tudo… meu amor?

E por aí fora, até à gradação máxima. Os servos diziam que a rainha estava endoidecendo com a moléstia do rei e que um transe iria acontecer; com tanto desvelo o rei não tardaria a levantar-se. Mas ele, o rei, por enquanto, limitava-se a revirar os olhos, com ar de cinza fria. Havia contudo quem afirmasse que eram os beijos da rainha que o mantinham vivo.

Estava o Inverno para entrar e rodopiavam os ventos nas ribas da meseta de Santarém, arrastando no alarido a folha quebradiça da vide e da figueira. O rei, que há mais de vinte anos, não punha mão em verso, monologava umas sílabas que mais pareciam refrão de cantiga, ai Deus e u é, que verbo que se entendesse. Ainda ratificou o testamento mas depois entrou num torpor de que não mais saiu. Logo depois da Natividade vieram de Pombal o filho, a nora e os dois netos, Maria e Pedro, o herdeiro do reino. Desta vez o príncipe vinha sem homens de armas, pronto para encomendar a vida do pai aos bons e chuvosos ventos que sopravam do levante.

– O que ele quer – dizia-se na corte – é apressar o passamento do rei, desejoso que anda de pespegar a coroa na cabeça e fazer a guerra aos irmãos, mesmo que tenha de ir a Castela deitar o gadanho de ferro a Afonso Sanches.

A rainha, à cabeceira do rei, quando viu o filho e a nora debruçados sobre o corpo inerte do esposo, inspeccionando com atenção os sinais da corrupção, percebeu o que estava para sobrevir. Deixasse ou não esta vida, Dinis estava rei deposto. Quando isto entendeu, a rainha desinteressou-se das ardências em que andara. – Melhor é que o rei vá para outro lugar. Que lhe importa ficar no limbo, dependente dos meus beijos, enquanto Afonso se faz rei – pensou.

Recolheu-se a rainha aos aposentos que para si improvisara. Jejuava para perceber claro que passo daria ou tão-só para aguardar no escuro, longe do ruído do filho e da nora e do tumulto bravio das crianças. De repente teve a certeza do passamento do rei para daí a poucos dias. – Melhor… melhor… que assim seja… – pensou com alívio manso. Percebeu que ficava sozinha; deu em pensar no que seria a vida de futuro. – Corte não mais! – exclamou para si, a sorrir. Suportara a do pai por razões de formação; escapulira-se da do marido por razões atávicas; excluía-se agora da do filho por motivos de badaluque. Chanfanas de sangue e papas de sarrabulho não eram para ela; antes a larica excruciante, tão de família sua, que tripas à mostra na távua. Na verdade tinha corte e mesa num curral de Alenquer ou num cenóbio da margem do Mondego ou das florestas druídicas de Compostela. Para sublinhar esta verdade, mandou lavrar por escrito decisão de vestir hábito de clarissa depois do desaparecimento do rei. Nunca mais aprumava no corpo vestido de seda com escarpim de carneira macia. Em seu lugar envergava o hábito áspero de burel, a barbela desgraciosa, o véu e a corda de nós. Os pés ou descalços ou nas correias grossas das sandálias rudes. O oiro e as jóias que sobravam eram para ir ao leilão dos musaranhos.

Agonizava o rei no salão da alcáçova, com o lume de azinho a crepitar ao lado por razão da capucha de frio que caíra na campina, e ditava ela no cubículo do escrivão as palavras da certidão. Temos ainda hoje o documento. É a prova inequívoca da sua vocação religiosa mas também da sua independência de espírito. Nele se recusa a pronunciar votos, a fazer noviciado, a obedecer a qualquer regra, a fazer profissão de fé, mantendo toda a liberdade de pessoa laica. Percebe-se a raiz gibelina do projecto e o que teria sido Santa Clara no Mondego se não tivesse havido a necessidade de fintar o clero velho de Coimbra. O hábito que a rainha então vestiu tem afinal parentela com o do bisavô, o temível imperador, vestido na Apúlia, no momento do passamento.

Morreu o rei num dia glacial da entrada de Janeiro. Arrepelaram alguns o pêlo, culpando o afastamento da rainha.

– Foi a rainha que o deixou morrer. Ficou frio com a falta dos beijos.

Mas quando a rainha apareceu no seu hábito de clarissa laica, descalça e rosto velado, alheia como uma bruxa dos caminhos, todos ficaram suspensos, sem pinga de sangue; o fatacaz metia-lhes mais medo que o cadáver do rei. Alguns creram que bastava aquela presença para o rei regressar à vida.

– Basta uma reza dela, e o rei regressa a esta vida, feito menino – afirmavam.

Mas não, o rei não ressuscitou, nem velho, nem menino. Estava desejoso de descansar no moimento de pedra que mandara fazer em Odivelas. Razão teve Vitorino Nemésio quando o pôs a dizer no transe: – Dão-me licença de dormir?! – Durma o rei, e sem pesadelos, que bem merece sono sem objurgatória.

Ficou o corpo em Santarém para ser velado. Passado pouco todos se puseram a chorá-lo em alto brado. Só quando o viam deitado e frio, pronto a ser despejado na arca donde nunca mais se levantaria, os súbditos pareciam perceber o rei que haviam perdido. Antes até a coroa lhe queriam tirar para a dar ao filho frascário, que não valia metade dum dedo dele. Agora entendiam. Nunca houvera outro como aquele. Governara o reino com uma pena e um alaúde; trouxera o estudo de Bolonha e Paris; fizera-se pai de todos; unira o Minho e o Algarve; bailara com moiros e escolares; comera do purim com judeus; amealhara muitas terras na raia com Castela; fizera a felicidade de muita moça; deixara filhos e dádivas em quase todos os lugares; criara uma armada que ia de Lisboa a Sevilha e do Porto a Bristol; fora temido e admirado em todos os reinos da Península como homem munífico e árbitro justo e imparcial. E durara como castanheiro rijo, nunca deixando de dar fruto nutritivo e tabuão grosso. Bem podiam esperar mais cem anos para voltarem a ter rei padreador como aquele.

Levaram o corpo a Odivelas. Dali saiu o novo rei a gozar o mando com uma montaria pomposa em Sintra; precisava o lascarinho de aperitivo miúdo para lhe abrir o apetite para a chanfana quente. E de Odivelas saiu a rainha para Coimbra, a ver a obra do Mondego e nela se recolher. Passou a Alenquer para se despedir dos do lugar e recolher os de Coimbra que por lá andavam ainda. O préstito bateu para Coimbra, desta vez com alguma pressa. Nevava uma farinha leve e não havia pés novos para aquele gelo. Ainda assim, sempre que atravessava um lugar, mandava a rainha-mãe como outrora cozer dois fornos de pão, porque também desta vez o filho lhe dera de presente dois carros de farinha. Era um alívio que a mãe se retirasse para o Mondego… ou para o Inferno, tanto lhe dava.

– Desde que não ande por perto e não se meta na governação estamos bem – afirmava ele aos privados.

Chegaram novos tempos para Isabel de Aragão. Não mais era rainha; outra, mais leve e útil, o reino tinha. Embora! O que ela ansiava era o tempo sem duração que vivera esquecida na margem esquerda do Mondego ou no cenóbio de Compostela. Não tinha ânsias nem suores de súbditos; tinha ânsias ternas de gafos, cegos, larvas das brenhas e galdérias das congostas, toda essa fauna ínfera e miúda com quem vivera nos primeiros tempos da lavra do Mondego e que agora infestava os arrabaldes da obra de Santa Clara como nuvem de pássaros no figueiral em tempo de prole madura. E quando chegou a Coimbra e viu que os trabalhos se mantinham na margem esquerda, com a igreja e o mosteiro quase acabados, Santa Cruz sossegada e a sua amada fauna bem tratada, lembrou-se do cenóbio de Compostela e não mais deixou de pensar nele. E lá foi mais uma vez por entre matas e fraguedos, pau de monstros na mão, taleiga ao ombro, pedindo uma côdea de pão aos cabreiros e fugindo dos lugares, em busca da bocarra do fim do mundo. Quando regressou, o filho já andava metido em acesas lutas com os irmãos; tirara todos os bens a Afonso Sanches e pusera-se a fazer razias no termo de Albuquerque. – Mais tarde ou mais cedo apanho-o em campo – dizia. Ficou Isabel tão apoquentada que tomou outra vez o bordão de pau na mão e foi a Lisboa pedir ao filho tratos de paz.

Mas teve pouco descanso. Logo o rei se voltou contra outro irmão, João Afonso, que nos derradeiros tempos de vida do pai substituíra junto dele Afonso Sanches. Chamou-o à corte com dissimulações de motejo; mal lhe deitou o gadanho, acusou-o de traição e de andar mancomunado com o tredo que andava por Castela. Atirou-o para uma enxovia e lá o deixou atarantado com os olhos a habituarem-se ao escuro e o faro a fazer-se às fezes. Ele gozava a extravagância.

– Tenho-o na mão uns dias para o gracejo e depois já se sabe… É pombinho que vai ao ar e estoira com frecha certeira atirada cá de baixo – dizia.

Julgou-o, condenou-o à pena capital e no mesmo instante executou a sentença. Sujaram-se os paços de Afonso IV pela primeira vez e levou as mãos ao rosto a horrorizada mãe em Coimbra. Alguns meses depois era a vez de Afonso Sanches rebentar em Albuquerque. E Afonso IV, que não era de trovas, menos ainda de bailar, foi frechar para Sintra o porco-montês. Não havia modo de deixar o sangue; ou varava porcos para afogar a excitação ou para celebrar a distensão. Tudo lhe servia para açoitar os varais. E quando não eram bichos, eram homens ou até donas. E assim andou, cada vez mais solitário e comprometido.

Isabel de Aragão chegava por sua vez à soleira do fim. Estava a caminho dos sessenta anos – um carro cheio! – e quando deitava os olhos à vida custava a crer que ainda andasse nela. Quase todas as donas do tempo de Barcelona já tinham passado ao Outro Mundo; até o irmão Jaime, rei da grande confederação do levante, já se sumira na terra. E o mesmo sucedera a Marquesa Rodrigues, irmã de leite do paço do avô. Por sua vez Maria, a neta, a quem se afeiçoara o seu tanto nos tempos de Coimbra, fora casar a Castela, com o primo, Afonso XI, e era também como se houvesse morrido. Sobrava Vataça que vinha às vezes fazer as mesmas rezas e sartar o mesmo fio de antigamente no cenóbio da margem esquerda.

Decidiu fazer testamento, para arrumar de vez as gavetas do porvir. Desfez-se de todos os bens e indicou o local onde deviam arrumar o corpo defunto. Em tempos pensara ficar na abadia de Alcobaça junto do rei como os antigos do reino haviam feito. Ele escolhera depois Odivelas, para ficar cerca da filha Maria Afonso, que fora monja no lugar e lhe mundificara muitos dos azedumes. Ela não havia sítio que lhe conviesse em Odivelas. Fora sempre, tirando o arruído dos últimos anos, mulher furtiva ao marido. Maridara mal o esposo, metendo-se em contumélias acesas com os pantafaçudos de Santa Cruz; do lapso não lhe faltava consciência. Nem os beijos finais, tão sofridos e ardorosos, haviam salvo o enlace. Também Alcobaça não era para ela. Estava lá o clero velho que ela malquistava pela riqueza, pela petulância, pela salacidade, pela violência sanguinária.

– Ou fico numa barroca do caminho, como aconteceu à tia Sancha, ou em Santa Clara.

Lembrou-se também da igrejinha dos fratelos de Alenquer, onde ainda metera pedra e ao que se dizia milagre. Corria que a festa do divino Espírito Santo, a quem se dedicara a igrejinha, se popularizava por toda o centro do país, com confrarias copiosas e mordomos de sentinela. Mas a margem esquerda do Mondego fora para ela a cachoeira farta de odores e regalos. Alenquer, com o regueirão de luz, era apenas um fio adjacente da taleigada mistagógica que vivera por Coimbra.

Decidiu-se pois a deixar o corpo na nova igreja de Santa Clara, cujo modelo sempre tivera na ideia. Um palmo de construção, com colunas adelgaçadas em extremo, paredes imponderáveis, que não se percebia como se aguentavam de pé, e abóbadas de nervuras. Nada que tivesse a dimensão e a insolência grandiosa de Alcobaça; antes um milagre de equilíbrio com cinco pedras roladas, quer dizer, um funâmbulo plebeu, num fio, a mostrar que qualquer prodígio podia suceder na vida da Terra.

Demais havia as águas do rio e as marés que se vinham espraiar na charneca vizinha; eram porventura a razão forte da sua escolha; há décadas que convivia com elas e sempre a surpreendiam como cítara que nunca se fatigasse de tirar dos seus arranjos novos e mais maravilhosos acordes. Assim as águas. Momentos havia que chegavam a tocar as pedras do mosteiro, alagando os campos em volta. A cada sazão se esperava um Inverno em que a água pusesse mão no mosteiro e na igreja; vinham mais velozes e avassaladoras. Ela prestava-lhes culto com a sua vara de prestidigitadora; sempre perscrutara os segredos do caudal argênteo e mais e mais lhe apetecia a inquirição. Eram as águas da vida e do silêncio, cheias de monstros no seio frio. Não conseguia imaginar outra vizinhança para o moimento que lhe guardasse os ossos. Alenquer ao pé daquilo era uma lura de coelho. Com as águas do Mondego até o mausoléu era capaz de desandar em barca, vogando aos trambolhões nas entranhas do derradeiro oceano.

– Santa Cruz ainda se lembra do Draco com que me requestava? Pois aqui tem a Isabel Dragão que veio ao Mondego numa corrente do vento… e um dia por ele descerá até ao infinito – dizia ela para brincar com as recordações e os devaneios.

E enquanto um mestre canteiro lhe arrumava a talha com escopro e cinzel, fincava ela pé nos terrenos da margem esquerda do Mondego. Nessa polegada de terra e água tinha as horsas e poria a tumba. Mas à medida que os meses e os anos foram passando foi aborrindo uma ponta da vida do mosteiro. Estava sempre rodeada por uma mole de gente que vinha de todo o reino. Santa Clara tornara-se ponto de peregrinação; não havia dia que não arribasse ao campo bardino de olho gázeo para lhe soprar a lamparina. Havia sempre um ciclope por perto para lhe cativar um prodígio. Uns queriam recuperar a vista; outros curar uma pústula de gangrena; outros ainda acautelar um parto; outros encomendar a alma dum defunto; outros proteger um recém-nascido; outros recordar com ela um passo do passado; outros limpar a alma dum roubo ou dum homicídio; outros esconjurar o Porco-Sujo; e por aí fora, até aos Pirenéus, onde a fila para lhe prédica ou sortilégio se começava na verdade a formar. Na verdade, até de Castela, Aragão e Navarra vinha gente para tratar com ela.

– Nem a catedral de Compostela… – dizia-se de pasmo em Coimbra, que de pomareira passara a passageira.

Uma nova povoação nascera entretanto em torno do mosteiro, mantendo com ele relações osmóticas. Aí se amontoavam os que vinham a Coimbra por razão da rainha e dos seus prodígios e aí muitos outros se achegavam por razão da garantia. Não havia lugar mais seguro em Portugal. Nem as queixas dos alvasis podiam nada contra os vadios e os vagantes que por lá se aboletavam; a rainha dava-lhes guarida e as tabernas onde se batia a carta sebenta e se bebia o hidromel na companhia das comborças era sítio tão seguro como o claustro do mosteiro ou o altar do levante. Havia ainda o hospital, devotado a Isabel da Hungria, e o retiro da rainha, a sul, no lugar onde ela outrora, depois do milagre das rosas, se recolhera em transe. Agora, com a expansão de Santa Clara, era o cenóbio que ela reservava para si. Mais tarde, quando deu em fazer temporadas largas fora de Santa Clara, abriu-o aos parentes próximos, mas sem lhe mexer nas características mendicantes. Foi neste espaço que, duas gerações depois, se deu o episódio de Inês de Castro. Ó Santa Clara, ó chão sagrado! Só tu podias ter bebido o sangue de Inês. Nenhum outro espaço do reino era capaz de sacralizar como tu a morte de Inês e o amor louco de Pedro.

Mas o retiro da cerca de Santa Clara não chegava à rainha velha para se isolar da chusma que a procurava. Cogitou então forma de se retirar de quando em quando para o anonimato. Lembrou-se duma vila a poente, Óbidos, que recebera em arras nas verduras da vinda para o reino. – É uma pérola branca – dissera-lhe na época o rei. Passou a frequentá-la em largas temporadas. Ia para lá na mulinha, às esconsas, acompanhada à distância por Hermigo e uns tantos mesteirais de Coimbra que lhe prestavam serviço de conto, e por lá ficava retirada num cubículo do castelo. De dia olhava o olho de água, sartava e broslava e de noite orava, ouvindo o silvo do pavão que o alcaide tinha no pomar da alcáçova. Depois tomou gosto num lugar do termo do concelho que ficava ainda mais recuado, quase nas areias do oceano. Tinha cinco casas e uma cerca avançada de esporão onde Dinis tinha por hábito passar de Inverno, para bater de montaria as florestas da encosta e admirar as rendas de espuma que o oceano engrolava nas grossas ondas. Por esse motivo chamavam ao lugar Serra d’el-Rei. Apurou a cerca em que Dinis punha os alões e por lá se instalou. Em baixo, na foz do rio, viam-se as casinhas da Atouguia da Baleia, que tinha foral desde o tempo do fundador do reino, e que era também terra sua, pois Dinis, no acume da glória, depois dos tratos com Aragão e Castela, porfiara em lha ofertar. O filho porém deitara-lhe a mão e ficara-lhe com o paço ribeirinho, por via das fustas que seguiam para Bristol dizia ele. Ela deixava fazer, mais interessada nos pastorinhos de monco e boca fedorenta que na forra do filho. Por trás das ruas da Atouguia estendia-se o traço do mar, pontuado por ilhéus escuros de pedra.

O mar! Primeiro, contemplava-o de longe, numa linha verde e parada, que não diferia daquela que fora a da sua infância, em Montjuich; depois, uma manhã, desceu o declive, aproximou-se do velho barbaçudo que dava roncos de tremer e ficou a ouvir o seu rugido de animal de fábula. Nem em Compostela o ouvira assim tão ameaçador e grandiloquente. Aquela dobra do fim do mundo nada tinha a ver com a água mansa e ordeira que conhecera na infância; era uma massa viva, que respirava, aos haustos, nas marés, com um canto cheio, de ênfase, onde gritavam e sussurravam todas as vozes do mundo. Habituou-se Isabel a descer da casinha da Serra d’el-rei, à procura das areias do poente; ia sentar-se nos médões, entre tojos, nas praias de areia que subiam para Óbidos e Alfeizarão, a meditar nas águas. Momentos havia em que à força de contemplar o movimento respiratório das marés se misturava ela própria com a ondulação do oceano. Sentia-se respirar com ele, boca contra boca, olhos nos olhos; era então senhora das cobras de água que coroavam o seu bastão de caminhante.

Nos caminhos que a levavam às areias era raro encontrar alguém. Mas quando acontecia passar por algum foragido nenhum lhe vinha à fala. Tomavam-na por uma mera emparedada, a cumprir promessa ou penitência ao pé do mar. Os trajes eram pobres, a corda de nós e as sandálias quase miseráveis. Acontecia às vezes ir dar pelas veredas da serra aos arrabaldes de São Bartolomeu dos Galegos, na cerca da Lourinhã, e por lá lhe chegou notícia que havia nos ermos das arribas um lapedo de gafos. Não sossegou enquanto não se arranjou para lá entrar. Passou a ir todos os domingos com os açafates de tiras de linho, roupa lavada e fritos de pão. Às vezes não se continha e beijava-lhes as pústulas pestilentas, por onde escorria o ranho de pus. Nesses momentos rebentava um atavio de gemidos, uma simetria de uivos que se ouvia porventura no castelo da vila. Vestia-os de seguida, recuperando-lhes a roupa suja que levava consigo, para depois a lavar no olho de água da Serra d’el-Rei.

Um dia veio bater-lhe à porta do retiro um cavaleiro, que logo tirou por rico-homem poderoso pelo modo de trajar. Tinha cinto de pele de gamo, gibão de veludo lavrado a fio de oiro, calça de seda golpeada, barrete de veludo azul adornado com pluma rica de pavão. A pequena distância uma escolta de homens, de piques e gonfalão, esperava-o. Observou-o melhor. Tinha um ar frio e áspero que o tornava mais velho. – Passa pouco dos vinte anos mas podia ser avaliado pelo dobro – pensou a rainha. Nos fundos da memória agitava-se uma reminiscência imprecisa de o haver topado nas exéquias do rei em Odivelas. Mas depois de tanto afastamento, de tanto cruzar os caminhos do mundo, de tanto ouvir das gentes e dos lugares, não saberia dizer nem apelido nem ascendência, que havia de ser de primeira importância pelo trajo e pela escolta. Cortejou-a o homem.

– Deus vos guarde, senhora!

– Deus vos guarde, cavaleiro.

– Não vos lembrais de mim?

– Não me recordo de vós, não, senão o saber que já vos vi. Mas não saberia dizer vosso nome, senhor.

– Pois sou Diogo Lopes Pecheco, filho de Lopo Fernandes Pacheco, meirinho-mor del-rei. Lembrais agora?

– Pois sim! Escusai, senhor, o descuido. Mas em poucos anos haveis mudado tanto como a Lua quando cresce. Ainda no tempo de Alenquer éreis tamaninho… Agora sois roble dos fortes!

– Tudo muda, senhora. Até vosso neto já não é o mesmo. Se ora o vísseis não o reconheceríeis.

– Decerto que não, senhor. Mas porque falais nele agora? Alguma maleita o apoquenta?

– Santa Maria val! Nem pensar! Está mais rijo que alão veloz. O que vos quero dizer da parte de-rei, vosso filho, é que vosso neto está agora no paço da vila da Atouguia para onde el-rei o mandou para lhe dar desafogo. É rapaz de grandes cismas e liberdades.

– Que quer dizer isso, senhor Diogo Lopes Pacheco?

– Pois vós o sabeis melhor que eu, senhora. Este menino nasceu quando seu pai porfiava com el-rei, vosso esposo. Viveu sempre arredado da corte, primeiro por razão das guerras e depois das correições del-rei, seu pai. Não era mal visto que agora convosco vivesse o seu tanto, de modo a polir certas rudezas.

E deste modo passou Isabel de Aragão a descer com frequência o trilho que levava da Serra ao porto da Atouguia, onde encontrava o neto e o mordomo. Levava depois o neto aos médões que ficavam a norte, no caminho para Alfeizarão, pouco dizendo. Isabel escutava o mar, apanhava conchas e pedrinhas, enquanto Pedro se entretinha a fazer o auto do vento, que sempre ali soprava forte, vindo com certeza do Outro Mundo. Era o encontro de dois solitários, cada um fechado no seu estojo córneo. Assim como assim não era mister senão daquele passeio para se apreciarem. A avó não precisava sequer de pôr nele os olhos para o entender. Preto no branco, o neto era um ser selvagem e inocente. Adolescia sem ter ponta de cortesão; acamaradava melhor com os ribaldeiros, moços de estábulo do paço, que com os áulicos que por lá passavam. Via-se que era uma criança rude, que começava a sentir os primeiros sacolejos do instinto. Mostrava-se modelo grosso que não hesitava em se satisfazer numa montada como qualquer cabreiro. Tinha o retrato dum instintivo puro, com sensualidade grossa, destinado a sofrer fundas feridas e a fazer sofrer pior. Sob esse aspecto ela e o neto eram dois mundos sem passagem. Ainda assim um elo de simpatia passava entre os dois.

Um dia, quando regressavam das areias, a avó tocou-lhe os olhos. Com esse gesto não lhe queria evitar o sofrimento, que era inevitável em ser tão primário, mas apenas abrir-lhe o coração. O fogo que lá estava dentro era tão escaldante que chegaria para realizar um prodígio.

– Quando precisares de dessedentar o corpo, regressa a estas areias e a este vento. Nunca te faltarão com brandura e alento – sussurrou-lhe a avó.

E a partir desse dia habituou-se o neto a acompanhar a avó à cerca da Serra. Sabia, sem entender por quê, que naquelas palavras tinha a lição capital dos dias; se a esquecesse, por um instante que fosse, era peão morto na lide. Na cerca despedia-se da avó com um trejeito dos olhos e descia para o paço da ribeira, mais sisudo do que viera, lembrando sem gravame algum ponto de cântaro velho que nessa manhã vira na fonte baixa da Atouguia. Figurava sério mas por dentro ia feliz; tinha os olhos postos no traço do mar, que ali dava porém de almoeda. Mal sabia ele, coitado, que não havendo o sal daquela água era homem perdido no futuro; sem o penso do cloreto de sódio, não sobreviveria às feridas dos cravos com que a vida o havia de sangrar. E mesmo com ele, estigmas cicatrizados, nunca voltaria a ser o gardingo despreocupado e pascácio dos primeiros tempos de mar e bravatas na Atouguia.

Abro aqui um parêntese para evocar esta relação entre Isabel e Pedro. Dum lado está uma santa, uma santa pecadora, e do outro um homem cru e vulgar, mas cujo amor se tornou memorável e transcendente. Um elo de sangue e de luz liga os dois; foi preciso haver Santa Clara de Coimbra para haver Inês de Castro e foi preciso haver Inês para Santa Clara se fazer altar. Dito de outro modo, sem a vida de Isabel, a história fantástica de Pedro ficava tão incompleta que não chegava sequer a existir ou, existindo, não passava duma contrafacção. Um grande amante que não esconda um santo é tão falso como o cobre quando se propõe imitar ou substituir o oiro; não passa dum predador insaciável de rolinhas tenras e virgens. Mas Isabel sem Pedro seria também uma figura muito mais parda e insulsa. O amor enlouquecido de Pedro é que completa a história da rainha santa. Uma santa sem o amor da carne é uma árvore sem folha. Pedro humanizou no concreto da paixão o amor caridoso e sublime de Isabel. Sem o fogo do neto a vida de Isabel era muito mais apagada; brilhava apenas no meio da mormaceira fria. Assim brilha também no escaldão do Estio.

Por isso se uma personagem sem ascendentes é uma árvore sem raízes, Isabel de Aragão sem Pedro, seu neto, é uma árvore estéril, sem fruto e sem futuro. Pedro é resultado acabado, não parte ou parcela para somar ou subtrair. Entra na História de Portugal como um dos indígenas de maior ressonância universal, quer dizer, um dos pomos de maior renome e sabor. É a um tempo castiço e estranho; é nosso sem deixar de pertencer aos outros. Fruto da lembrança e do desejo, do passado e do futuro, está numa situação limite, entre tudo o que existe; ombreia com Orfeu, Apolo e Baco. Foi ele que protagonizou o primeiro mito da saudade e nos deixou em Alcobaça um sarcófago digno do Vale dos Reis, entre Karnah e Luxor, no Antigo Egipto.

Mas para subir tão alto este simplório que andou metido nos encontrões do povo precisou dum ascendente capaz de realizar prodígios. Se não fosse Isabel, em vez do amante português que sacralizou o Amor, em vez do Orfeu que de novo desceu aos Infernos para arrancar da morte a divina Inês, no lugar do eterno titã de pedra que vemos dormir em Alcobaça o sono passageiro dos séculos, esperando sem pressas o fim do mundo, teríamos tão-só, igual a tantos outros, um antipático e desenganado galináceo de capoeira, um pinta musculado de laço e perfume.

Feche-se o parêntese e diga-se que foi por razão de Pedro, herdeiro da coroa, que a vida de Isabel de Aragão chegou ao termo. Eu conto. A dada altura, quando as relações entre Maria de Portugal e Afonso XI se haviam já desnaturado, Afonso IV pensou casar o filho com Constança Manuel, filha de João Manuel, sobrinho de Afonso X e neto de Fernando III, que chegara a reger o reino na meninice da Afonso XI. Por azedume para com o sogro, que lhe ia às orelhas por causa da esposa, por ciúme para com Constança Manuel, que lhe chegara a estar prometida, ou por qualquer outra causa pessoal ou de mando, Afonso XI prendeu Constança Manuel em Valadolide e não a deixou sair do reino. O pai, João Manuel, refugiou-se despeitado em Aragão e Afonso IV, que não era para despeitos, escreveu palavras grossas ao genro, dando-lhe ordem para desamparar na hora a menina. Pelo sim e pelo não veio para Estremoz a deitar esboço de campanha bélica. Como não tivesse resposta a gosto, Afonso IV mandou reunir hoste, pressuroso de avançar sobre Badajoz para deitar o gadanho ao gado das herdades.

Nisto veio a rainha de Óbidos para Santa Clara, passar o Solstício ao Mondego, época que evocava nos murmúrios os eventos da primeira ida aos Fetais. Sentia-se imbele, sem forças para andar, com uma idade tão avançada, que já perdera a conta dos anos. O neto da Atouguia já estava para casar e receber casa própria, à espera de herdeiros, e ela em vida, sumindo os dias e os anos. Soube a nova das desavenças entre o filho e o neto de Castela e logo se lembrou das guerras entre o marido e o filho. Assustou-se muito. Ver uma guerra entre Castela e o reino logo por causa do ardor do neto que estava para a Atouguia pareceu-lhe vaticínio de muito sangue. Meteu para si que aquela guerra não havia de começar e abrindo havia de ser ela, Isabel, a pará-la como fizera em Alvalade. Também desta vez o filho viria ter com ela para lhe dar submisso e envergonhado o cinturão do montante; depois, ao modo de Dinis, também o neto de Castela se chegaria, entregando-lhe a arma, e dando-lhe de seguida o braço de cavaleiro para a levar e receber na tenda real. Sentiu forças e ânimo de fazer a viagem e tirar fora do mundo outra guerra. Quando lhe falaram das desmedidas dificuldades em separar os dois reis, ela deu às rebatinhas.

– De que vos serve o Divino Espírito e sua festa se nem embargo puserdes numa guerra entre filho e neto vosso. Senhores, deixai passar uma pobre crente.

Replicavam os contendentes que os propósitos da rainha eram nobres; eles próprios, em seu lugar, fariam o mesmo. E até não duvidavam da aptidão da rainha em separar os dois. – Só quem não viu o que se passou no Lumiar pode pôr dúvida em vosso sucesso, senhora – condescendiam. Mas juntavam depois outras razões para evitar a viagem, antes de mais o mormaço escaldante, que se pusera a seguir ao Solstício e que dificultava qualquer viagem, muito mais a uma idosa debilitada pelo jejum como ela. A rainha rebatia e porfiava, rindo e desvalorizando as razões.

– Tanto se põe cobro a uma testilha em Dezembro como em Agosto. Tanto dá a neve como o Sol… descuidai do tempo senhores – ria ela.

Mandou recado a Vataça que posava no castelo de Santiago do Cacém, marcando-lhe mesa e desabafo no castelo de Estremoz, onde estava a corte e se enchia a hoste. Quando se punha a pensar no burgo trastagano, logo recordava o bairro curto e a alcáçova altaneira, com o dorso escalvado da serra por diante e o reguengo de vinha e cereal, num declive doce e acetinado, aos pés. Andara por lá no tempo das primeiras correições de Dinis e nunca mais esquecera as congostas miúdas, tortas como faladura de bêbedo, e o paço de pedra, no revelim da alcáçova, onde pousara com o rei. Para lá iria agora, com boa esperança de extirpar à nascença o pedúnculo maligno.

Partiu. Ia sentada no arção duma mulinha, à imagem do que fizera entre Alenquer e a charneca do Lumiar. Só que desta vez o calor apertava tanto que ela por volta da Sertã teve de recolher à sombra dum carro. Espreitava de vez em vez pela cortina e não via vivalma; apenas os campos queimados, aqui com os trigos aparados rentes e ali à espera ainda do gadanho. Quiseram parar em Abrantes, mas ela não deixou. Quanto mais rápido se visse em Estremoz, mais depressa descansava. Assim com a grilada do caminho não era capaz. Quando chegou a Estremoz – ia o mês de Julho abrir a porta – apareceu-lhe num dos braços um fleimão com pústula. Observou-o; era um sinal ruivo que abria ferida, nada mais. Não ligou e tratou de se instalar no cubículo de pedra, no pé da torre, que escolheu para pousada.

– Amanhã, no tavolado do paço, se cuidará do que nos traz – aliviou-se.

Mas no dia seguinte, quando se levantou de madrugada com a chilreada da passarada que vinha dos lados de Sousel, tinha o braço preso. Reparou que o sinal inchara, que a purgação era agora muita e contínua. Não tinha forças para se levantar, quanto mais para dar um passo. Mandou-lhe o rei físico da corte, que a observou sem mostrar preocupação.

– Não me parece mais que levandiga. O calor a trouxe e o frio a há-de levar – concluiu ele.

Ordenou pois aplicar no tumor da rainha panos de linho embebidos em água fresca de cântaro. Mas nada daí resultou. O fleimão desenvolvia-se e purgava mais e mais. Parecia fonte no tojo seco. Alguns servos que vinham ao cubículo tratar do penso, vendo o inchaço desmedido no braço, começaram a espalhar a nova que a rainha chegara gafosa a Estremoz. Num sopro se espalhou pelas quelhas do burgo e pelos casais em redor, do Rossio ao vale, a maleita da rainha.

– Depois de tantos anos a limpar gafos não é para espantar – comentavam os homens-bons do castelo com ar temeroso.

Todos conheciam os rumores das incursões voluptuárias e redolentes da rainha nas gafarias. Um movimento de retracção e repulsa fez-se sentir; nenhum queria ser contaminado.

Valeu-lhe a chegada de Vataça, que a acompanhou no transe. Corria já na rainha-mãe um despreendimento do exterior. Mal reconhecia o que a cercava e toda a sua atenção se concentrava dentro de si. Se lhe falassem nas guerras que aí vinham entre o filho e o neto de Castela, encolheria os ombros de pasmo. – Não sei o que contam! – exclamaria com surpresa. Perdia o contacto com a mó de gente, punha-se a viver por dentro. E que vida extraordinária por lá brotava.

Via o primeiro horror diante da morte no paço de Barcelona com a luz sufocante do céu. Via as amas, Berengária, a querida Berengária, com a barbela de viúva e a corda de esparto, e Sancha, a Sancha sisuda das noites hiemais, com a camisa de burel e os escarpins esburacados. Via o remorso de viver e via as pétalas secas das rosas do pátio desfazendo-se num cisco de pó negro. Via depois a viagem para Trancoso, atravessando a meseta desolada, com os castelos em festa e as meninas deitando olhares de medo à terra. Via o fio de sartar e o vidrilho; a roca e a estriga da lã; a colgadura e a armação de broslar. Via tudo e de tudo tirava de novo, como se recuasse ao cairel de assombração do avô Jaime, a inutilidade da vida e a dor moral. Astrosa e aziaga, sem siso nem senso, amarga e pevidosa, era a existência. Mas na tropeada tumultuosa dos factos ruins esmaecia um doce favor. Os frades de capeirão preto, os facínoras que levavam a calistagem das quelas e dos casais à fogueira por venialidades sem importância, os farândolas que davam cabo dos condados do sul da Gália, empurrando para a fogueira centenas e centenas de almas piedosas, nunca haviam posto mão na Península.

Nesse momento lembrou-se que estava no cubículo de Estremoz por razão duma briga entre o filho e o neto. Abriu os olhos e viu Vataça com o rosto sombrio sobre o seu. Ouviu as suas palavras no infinito. – Senhora, senhora, dai-me palavra vossa… – Tentou responder, mas sentiu a língua encortiçada a encher o paul da boca e voltou a mergulhar no oceano das visões. Desta vez via a linha ameada dos cavaleiros no cerco que o filho montara a Coimbra. Depois percebeu um sinal de rebite na porta de Santarém em que nunca reparara e por fim teve uma iluminação que a encheu de favor. Soube que ia morrer. E a morte, ali, daquele modo, entre tanto absurdo, pareceu-lhe uma mercê.

Suspirou, abriu a boca mais pastosa que bafordo, voltou-se de lado como quem está pronto para fechar os olhos, de tudo se esquecendo. Teve a impressão que morria, mas no instante em que isso acontecia veio-lhe uma nova recordação, a do mar da Atouguia. Primeiro, não passava duma linha; depois, fez-se o próprio infinito em movimento. Era com certeza esse mar que a vinha buscar nas suas ondas sem medida. Movimentou o bastão para se enovelar com as águas mas nesse instante viu-se de novo nos médões da Atouguia a meditar sobre o mar. Ficou apavorada porque no interior da cogitação se lembrou que as águas que sempre tomara por infinito podiam afinal não passar doutro Mediterrâneo; do lado de lá havia nova mó de gente. Mais gente significava mais sofrimento. O fim não era o fim; círculos e círculos concêntricos esticavam sempre mais além o perímetro do sofrimento. Era infindável. E por ser sem fim se fazia insuportável. Na longa fila dos sucessos do porvir divisou os domínicos de fueiro em punho, à volta da polé e da prensa, nas terras do avô Jaime e nas de Dinis. Até nos latíbulos de Santa Clara os grulhas farejavam à procura da heresia. Era o horror!

Mas o que a assustava mais na constatação em que estava é que também a morte não era o fim mas apenas um novo princípio. Não havia dormir; não havia repouso; não havia esquecimento. Tinha agora a certeza que a morte era uma ilusão e que do lado de lá se inculcava um sofrimento inimaginável. – Morrer é voltar a viver doutro modo – pensou.

Neste momento voltou ao recordo do presente e viu o esconso de Estremoz onde agonizava num dia escaldante de Julho. Nem aragem leve a refrescar o mormaço podre. Debruçada sobre si, olhando-a com ternura, dando-lhe as mãos, estava Vataça; por trás, chorosa, postava-se a nora e logo detrás, mais grave e duro, o filho. De seguida olhou para diante e viu uma procissão de almas, gemendo e caminhando. Enfileirou na cauda e assim foi. De repente percebeu mais visões. Desta vez era um montado de carvalho, com clareiras de luz no meio. Havia com certeza montaria porque ao longe se ouviam as trombas longas de prata que anunciavam os monteiros. A luz era cinzenta e sufocante, como antes duma tempestade. Um latido gigantesco ecoou então: eram os alões que corriam disparados atrás de cerdo. Assustou-se mas depressa a cena mudou. Desta vez estava ao pé duma porta chapeada a ferro e ao seu lado estava um homem sentado no chão, trincando uma erva verde. Reparou no ar abstracto do homem e nos trajes poeirentos que vestia. Parecia não dar conta dela. Foi então que ela lhe dirigiu a palavra para lhe perguntar uma curiosidade banal.

– Quem sois?

O homem pareceu não ouvir. Ela repetiu a pergunta. Então o homem voltou-se e mostrou o rosto, levantando uns olhos pesarosos para Isabel. Nunca esta vira rosto tão mofino e olhos assim desistentes. Era a acídia a escabujar em corpo de homem. Repetiu a pergunta, intrigada e curiosa.

– Não me conheceis, senhora?! – tornou-lhe então o contuso.

Isabel fixou melhor a atenção. Nada reconheceu.

– Pois eu sou aquele… – começou o homem.

Mas nesse momento calou-se e teve um encolher de ombros, como a dizer que todas as palavras se faziam inúteis. Relampejou então em Isabel uma suspeita horrorosa. O sevandija que ali se postava era o Mafarrico. Procurou-lhe os olhos à procura da troça que tão bem conhecera. Desta vez porém só lá encontrou uma tristeza como nunca vira em nenhum. – Será pela porta? – perguntou-se. Indagou-a suspeitosa. Mas de seguida veio-lhe ao pensamento a ideia de que o Demo tendeiro das ruas de Barcelona era distinto do Pero-Botelho cabreiro que andava pelas matas portuguesas. Das poucas vezes que o avistara pelos silvedos da Beira não lhe alcançara a diferença; agora bailava-lhe aquela dúvida.

Nisto reparou que o homem recolhera à sua posição inicial. Visto de costas não passava dum basbaque sujo e cansado, costas abauladas, que por um instante se resguardara à beira do caminho. Demo ou não, ali estava um pobre diacho com a infelicidade do mundo em cima. Pesava-lhe mais nos ombros que o calhau todo dos Pirenéus. Olhou a porta de ferro e em vez de seguir por ela, apiedou-se do homem que tinha ao seu lado. Demo ou não, sofria e parecia colher no círculo da existência a mais dura condenação de todas. Se havia um condenado à pena eterna, sem remissão possível, era ele. Nesse instante percebeu que tinha consigo um derradeiro gafo, o mais doído de todos. Era mister que alguém o aliviasse; afinal cabiam-lhe em sorte as piores dores do mundo, as irremissíveis. Que dor!

Ajoelhou-se e assim ficou por um momento, Depois, de joelhos, com um requebro amoroso, transpôs o espaço para tomar nas mãos as do homem. Percebia que tudo o que lhe restava, ser homiziado no meio da infinitude absurda dos mundos e das gerações sucessivas, era genuflectir diante do sofrimento, fosse ele o do simples animal indefeso e inocente ou o do derradeiro culpado cósmico. A santidade, digo eu diante da cena que ora vejo, quando não é uma burla, é um pecado!

Nesse instante tudo se baralhou e um turbilhão sideral tomou conta dela. No meio das espirais que a tomavam abriu os olhos e a derradeira coisa que vislumbrou foi o sorriso agora pleno de Vataça.


VII. O OIRO E A AURÉOLA


Quando correu que a rainha-mãe morrera um clamor tomou Estremoz. – Agora irão chover os milagres – dizia-se nas quelhas, a medo, sem se perceber que tipo de prodígios vinham aí. Uns vaticinavam que vinha aí uma chuva de pétalas de rosa à mistura de outras de prata e oiro para dar fartura aos barrancos dos servos e dos colonos; outros afirmavam que na excelsitude em que a rainha ia ser elevada, com anjos e arcanjos, todos iam ser beneficiados com as dádivas do santo Espírito. Fosse como fosse o primeiro a entrar no cubículo cobrou a audição dum ouvido que havia muitos anos perdera com uma pancada. De seguida, dividiu-se a corte em duas facções. Os primeiros afirmavam que a rainha devia quedar-se em Estremoz, por razão do mormaço que crescia lá por fora mais nojoso que carne putrefacta; os segundos defendiam que devia partir para Coimbra por via do sarcófago que por lá mandara fazer e que por ela estava no coro alto do novo templo da margem esquerda.

– Nem bílis da rainha chega a Santa Clara – diziam os primeiros, opinando que se deixasse a rainha na igreja do castelo e um dia se trouxesse o moimento de pedra que ela mandara fazer para si e que estava na igreja de Santa Clara.

Mas Vataça, a princesa grega, nos braços de quem a rainha expirara, opôs-se. A rainha pertencia às terras baixas do Mondego, onde vivera o momento crítico de Santa Clara, e não à alcáçova de Estremoz, que a vira apenas chegar. Assentiu o rei. Combinou-se então a partida do féretro para Coimbra.

Neste momento a notícia do falecimento de Isabel de Aragão já correra o Alentejo e o centro do país. Acorria gente do mais ínfimo lugar à procura da santa das rosas e da fundadora das confrarias laicas do santo Espírito. Era uma abundância de gente nunca vista. Saiu o préstito de Estremoz com a caixa da rainha envolvida por uma pele espessa de boi, tapada por sua vez com um pano púrpura. Ao caminho mais gente acorria a engrossar a multidão que seguia as andas de jornada onde ia o féretro da rainha. Mordomos e alferes das confrarias vinham esperar aos trilhos a passagem do cortejo, decorados com as insígnias. O Sol abrasava cada vez mais e temia-se pela putrefacção rápida do corpo. Havia três ou quatro dias que caminhavam, subindo e descendo os outeiros secos do centro do reino. De repente os homem que flanqueavam o carro onde seguia a caixa com o corpo da rainha aperceberam-se que a pele e o pano começavam a tomar manchas líquidas. O corpo da rainha, no interior da caixa, estava em putrefacção, devido ao Sol intenso. Temeu-se pela continuidade da viagem. Recolheu-se a caixa da rainha à sombra, para evitar mais estragos. Nenhum sabia como dar seguimento ao trânsito.

Acorreu o povo a saber por que motivo o préstito parava e a caixa da rainha se arrumava a um canto na alfombra do bosque. Disseram-lhes a apoquentação que sucedera. Nisto um hálito fresco de essências despertou algures e correu fino e fresco pelos ares, desfazendo o enjoo do mormaço.

– São as rosas da rainha! – exclamaram alguns.

Quem assim gritava, havia vivido as horas dos Fetais junto da rainha e recordava bem os odores que então cobriam Coimbra. Alguém teve a ideia de que aquele aroma vinha dos líquidos que se libertavam. Confirmou-se que sim. Precipitou-se o povo para a caixa de pinho para aspirar os aromas divinos e conseguir para si uma parte daqueles panos que haviam os líquidos da rainha.

– Não era ela que beijava as pústulas dos gafos como se pusesse os lábios e mel? – inquiria-se para se explicar aquele sucesso maravilhoso.

Seguiu depois o cortejo sem mais se falar em Sol. Este continuava a queimar como lume aceso de azinho; os líquidos continuavam a escorrer dos interstícios da madeira; os aromas eram porém tão doces que nenhum se importunava com a proximidade, antes se deliciando com ela.

Por fim o préstito fúnebre chegou a Coimbra. Novos milagres se repetiram na igreja de Santa Clara. Cegos tomaram vista; gangrenados cerziram as feridas; paralíticos voltaram a andar. E tudo por se chegarem à arca de pedra em que a caixa de madeira fora depositada. A canonização popular de Isabel de Aragão estava feita e o seu culto instituído.

A outra, a canonização oficial, foi história mais triste e mais longa. Eu conto. Tudo começou com Santa Cruz e tudo acabou muitos anos depois em Roma. Santa Cruz já o leitor conhece e Roma é Roma, cabeça do mundo e do mando. A virtude, que é íntima, vai bem no lugar como flor de adorno; não paga porém templos, relicários, píxides, colgaduras, pluviais, dalmáticas, sedas, opas, luvas, capas, mitras e o diabo-a-sete. O que conta – ai não, como dizia o satírico – é pois o tinir gostoso do oiro.

Quem pela primeira vez se interessou em Portugal, com vontade incontrastável, em pôr a rainha portuguesa no hagiológio de Roma foi Sebastião de Portugal. Feito o processo episcopal em Coimbra, foi enviado para Roma para se dar início ao processo apostólico. Roma vetou porém o prosseguimento. Nem o papa Gregório XIII nem os cardeais, consultados à sorrelfa, conseguiram entender com que argumentos é que se poderia levar ao hagiológio romano a neta de Manfredo e a filha querida de Constança da Sicília. Meteu o papa ironia no caso.

– Estes Portugueses são engraçados! Agora até a neta de Manfredo querem dar por santa!

Foi necessário um rei espanhol, Filipe III, que também reinou em Portugal, para se retomar o processo. Em seu nome entrou na congregação dos ritos de Roma nova petição para se instaurar o processo de canonização. Dir-se-á que sendo a nossa rainha aragonesa natural era esta sustentação. Zorreira!, digo eu. Corria o ano de 1611; Isabel de Aragão morrera há quase trezentos anos. Dois anos antes o Conselho de Estado decidira a expulsão dos mouriscos de Espanha; por outro lado, os conflitos na Europa da Espanha estavam num momento de pausa mas a monarquia católica não escondia a vontade de voltar à força de terços às escaramuças europeias. Triunfava na Península uma economia de guerra e Madrid esforçava-se por meter no bolso a cerviz das províncias. Isabel de Aragão foi para a Espanha a fineza arteira com que se garantiu mais uns anos de exacção em Portugal.

Chegou o pedido à congregação e quem o recebeu nem o nome da rainha portuguesa conhecia. O papa, Paulo V, foi ler a informação que sobre ela havia nos arquivos e voltou a meter ironia no caso.

– Não há como os Espanhóis! Que porfia, Deus meu! Não desistem de levar a neta de Manfredo a santa!

Mas o rei espanhol já esperava o humor do santo padre e tratou de procurar uma razão para o convencer. Havia por lá tanta mitra para recamar que era preciso ser asno para não encontrar o argumento sem réplica. Foi-se o rei às libras do fundo do saco, que as guerras da Flandres muito haviam rapado, e tomou-as por prelúdio da preia-mar do futuro. Paulo V deu placet e formou-se a equipa dos auditores, constituída por três galatins da confiança do Habsburgo. Levantou-se o processo, lavrou-se a acta, redigiu-se o relatório, tiraram-se as cópias manuscritas que se distribuíram aos cardeais e aos consultores da congregação dos ritos. Estava aqui o primeiro pedrisco. Caso os ventos da congregação corressem azedos, o caso morria ali. Ora os cardeais quando puseram olhos nas letras da genealogia da rainha torceram-se de espanto e arremedaram o caudilho da casa:

– Que descaro! Uma Hohenstaufen no altar de Roma!

Mas o rei de Espanha estava atento e mais uma vez tinha o argumento certo. É que havia tanta seda púrpura para costurar na congregação dos ritos. Seguiram as libras para Roma. Espórtula ou não espórtula, a comissão engrolou e porfiou. Por vontade deles Isabel de Aragão, filha e neta de hereges, não havia de saltar para o livro dos santos. Um mais exaltado chegou mesmo a dizer:

– Meter a filha de Pedro III no Martirológio é como meter o rabo pelado do Demo no Confiteor.

Nesse tempo o Chavelhudo estava ainda vivo no coração da Igreja. O inferno andava longe de viver a grande crise por que hoje passa; nenhum pensava meter escritos nas janelas, tanta era a vida e o tumulto que por lá ia. Quem diria que uma mansão daquelas, tão rica, tão populosa, em poucos anos ia ficar vazia e ao abandono, escritos nas janelas, a ver se uma alma piedosa se interessa por dar uns cêntimos por ela.

Seguiram mais regalos, mas nem assim a congregação capitulou. – Muita seda gastam os cardeais – pensou o rei. Cogitou bem o Habsburgo mas tinha o tacho rapado e as libras no fim. O processo ficou no tremedal do esquecimento.

Correram os anos e morreu o rei, tomando-lhe o lugar o filho, Filipe IV. Foi-se também o papa e governou em seu lugar Gregório XV. Faleceu este, veio Urbano VIII e o processo sempre nos lençóis do sono ou do esquecimento. Sentiu o rei espanhol o transtorno da situação. A Flandres andava outra vez metida em trabuzana valente, com a França forte de Richelieu a pular na puída crista hispânica. Sem a fineza da santa portuguesa, a cessação era tão certa como o frio era infalível no pico de Janeiro. Arrebanhou-se mais moeda, juntou-se seda e pedra para recamar mitras, enviou-se tudo para a congregação. Vergou-se por fim uma parte do colégio cardinalício. Roma não podia desautorizar em sede amiga a requisição de aliada tão fiel, para mais vivendo na Flandres passo tão adverso e cruciante.

Acertou-se então no consistório a canonização da rainha portuguesa. Estávamos já em 1625. Alguns cardeais continuavam porém a manifestar coração litigante e a pedir desobriga do acto em que se diziam coactos.

– A santa não é de antanho, senhores – replicavam os mais mansos. – Essa tem a vontade ossificada; não nos empece. A santa é nossa e faz os milagres pios que hoje quisermos.

Concertou-se por fim entre todos um estratagema que desonerava os revéis. A mancha laica e gibelina que enodoava o pano da rainha limpa seria pela Inquisição de Coimbra com uma novena de razias por tudo o que fosse herege e cristão-novo da diocese. Com esse tributo, aceitavam os cardeais insurgentes vir ao redil do bom voto.

– E que se vasculhe em Santa Clara – indicavam os mais obstinados entre eles. – Pode ainda haver, entre as vestais que lá se rebuçam, escondido broto dos antigos erros.

Lançou o tribunal a rede nefanda e arderam na fogueira várias levas de hereges, metendo-se nelas um punhado de sal, uma mão cheia de clarissas da margem esquerda. Santa Cruz podia deitar a cabeça no cabeçal e dormir sem azias; cumpriam-se por fim vaticínios e desiderandos antigos.

Vestiu o papa o pluvial vermelho, coroou-se com a mitra de oiro e tomou lugar no trono. E foi assim que Isabel de Aragão entrou no hagiológio romano. Revolveu-se com certeza a rainha na arca. Se lá no alto firmamento se consente desta vida sinal e memória, então a rainha voltou a mergulhar nos piores e mais amargos enredos da dor moral. Via-se santa canónica, inscrita no catálogo romano, com festa instituída a 4 de Julho, ao mesmo tempo que a sua diocese querida era aterrorizada pelo tribunal da Inquisição com fogueiras para onde atiravam gente viva. Que iniquidade! Que ignomínia!

Passaram quase quatrocentos anos sobre estes acontecimentos. Isabel de Aragão não morreu. A peçonha dos inquisidores não chegou para a roubar ao nosso mundo; abalou-a mas não a matou. Está viva, sobreviveu como outrora resistiu aos violentos ataques do clero rico e poderoso de Coimbra. Tudo venceu, até o pavor da morte, e está viva. Tão viva que eu vi e vejo a sua morte e os seus pecados e me ajoelho diante dela, contrito e compadecido, como ela se ajoelhou diante do céu e do inferno no momento da morte.

Precisamos muito de ti, Isabel. Estás viva, mais viva do que eu, no teu exemplo de tudo dares aos outros como se dos outros também fosse, como é, o que temos por nosso. Estás viva no teu exemplo de fautora da Paz, como se a consciência fosse, como é, superior à violência egoísta do instinto. Estás viva e não precisas de auréola. Tudo o que necessitas é do teu báculo de peregrina, do burel roto, da corda de esparto passada à cintura, das sandálias gastas e poeirentas. És muito mais do que a insonsa padroeira das mulheres mal-maridadas em que os papa-missas te transformaram. Tu és a santa laica e gibelina que fez frente ao clero insolente de Santa Cruz e instituiu entre nós as festas da Terceira Idade, a do Evangelho Eterno de Gerardo de San Donino; tu és a santa comunista que se desfez de todos os bens, tudo repartindo pelos outros; tu és a santa libertária que recusou obediência a votos e bateu o pé a todas as Ordens em nome da liberdade da sua pessoa; tu és a santa pacifista que condenou as guerras e se bateu pelo seu fim, tu és a criança eterna.

És nossa para sempre. Não saias da nossa beira, Mãe. Fazes tanta falta ao mundo. Vem, vem reformar a sociedade iníqua que temos e inundar a nossa vida de perfume. Vem, só mais uma vez, ensinar-nos a transformar o dinheiro de Wall Street em rosas singelas de camponeses.

 

9 de Fevereiro

21-22 de Agosto de 2010


NOTA FINAL


O que o leitor acabou de ler é um conto desenvolvido em torno da sexta rainha de Portugal, Isabel de Aragão. Não me interessou fazer História, mas contá-la. A História para mim não é um mausoléu, com esqueletos alinhados nas prateleiras, mas um palco com personagens vivas e em movimento. Em vez do epitáfio temos o drama e em lugar dos ossos ou dos documentos temos o sangue. É a imaginação que ilumina os interstícios obscuros da História e é ela que não deixa morrer nenhum dos momentos do passado.

A História por si para nada chega; sem a memória, sem a palavra, não passaria dum momento cego e inconsistente, tão volúvel e incerto como o mais efémero devaneio. A História, toda a História, mesmo a mais ínfima, a minha ou a do leitor, só escrita ganha duração e espessura. Para contá-la é pois conveniente pois ter boca descarada. Quanto mais a palavra flui, mais a História toma forma e ganha vida. Não há História sem palavra. É por isso que a tomada de Tróia, um facto talvez menor, de ressonâncias quase só locais, com mais de três mil anos de idade, está para sempre viva num poema.

Nada de História, diz o ficcionista quando pede de empréstimo uma personagem ao passado. A História toda, só a História, contradiz o historiador muito seguro diante da mesma personagem. Assim como assim, os dois extremos tocam-se, pois o ficcionista monta uma história que parece verdade e o historiador lida com uma verdade que faz figura de ficção. E a ficção mentirosa do dramaturgo é tantas vezes superior à verdade do historiador!

Quem não sente a Inês dos versos de Camões mais autêntica, mais próxima do real e da verdade, que a despintura crua da mesma personagem pelos historiadores? Entre a mísera e mesquinha e a aleivosa, a espia política ao serviço dos Castros, quem não escolhe a primeira? Quem não vê na mísera e mesquinha a verdade funda do instinto e na intriguista a ficção dos modelos e das circunstâncias? E assim por diante, até aos dias de hoje, até mim próprio, até ao leitor, que está mais vivo na memória que de si deixa aos filhos e aos netos que nos seus gestos reais.

A situação histórica é sempre tão confusa, tão apagada, tão manietada por interesses estranhos, com tantas reescritas posteriores, que só a ficção dum romance pode dar espessura e nitidez ao traço. Leonor Teles sem a força da imaginação, sem a construção da mentira, não passa dum espantalho falso, um nariz de carnaval para fazer o jeito aos donos da História. Mesmo uma personagem histórica resistente, sempre presente, como a esposa de Dinis, com tanto documento pessoal a favor, não se livra dos mesmos enganos; se não usarmos a liberdade da ficção, o poder criador da mente, não a arrancamos do latíbulo negro onde séculos de adulteração religiosa a esconderam. Só como personagem poética Isabel de Aragão encontra a pintura esplêndida e fiel da sua vida. Tenho para mim que ninguém a restituiu tão viva, num retrato de consciência tão exacto e certo, como António Patrício, no drama Dinis e Isabel–Conto de Primavera (1919). E no entanto nunca outro mentiu tanto e tanto à História; no drama de que falo até Dinis, contra a mais elementar verdade histórica, sobrevive a Isabel.

O que me interessa nestes trabalhos que tenho feito sobre as figuras trágicas da História de Portugal, de Inês de Castro a Carlos de Bragança, é a História como palco vivo de romance. Quero, à força de factos, que são por vezes as algemas de oiro da poesia, ficar apenas com acontecimentos, tão vivos, tão materiais, tão reais, tão livres, tão imprevisíveis como os do presente. Em vez das algemas de oiro da realidade da larva, as asas eternas da borboleta simbólica. E o poder simbólico da ficção – simbólico mas não falso – é tão grande, desce tão fundo na elaboração do retrato íntimo, pode tanto na revelação da fotografia dos recessos escusos e escuros da consciência, que porventura em História só através duma mentira podemos dizer a verdade.

Por isso eu choro ao escrever os meus livros como choro a ler muitos outros e como choro no dia a dia com o sofrimento das pessoas de carne e osso que me rodeiam.


ANEXOS


CRONOLOGIA

1193 – Morte de Saladino.

1194 – Nascimento de Frederico II, rei da Sicília e imperador do sacro império romano-germânico. Raimundo VI, conde de Toulouse. Apogeu do catarismo occitano.

1198 – Lotário, conde de Segni, é eleito papa com o nome de Inocêncio III.

1202 – Morte de Joaquim de Flora.

1204 – Tomada de Constantinopla pelas tropas do papa.

1206 – Domingos de Gusmão inicia a predicação nos condados meridionais da Gália.

1207 – Nascimento de Isabel da Hungria.

1208 – Nascimento de Jaime I, herdeiro e rei da confederação catalã-aragonesa. Homicídio do legado papal Pierre de Castelnau, cisterciense de Fontfroide, no condado de Toulouse.

1209 – Início da cruzada contra os cátaros, lançada por Inocêncio III com apoio do rei de França.

1211 – Fogueiras de Lavaur de Carrés; centenas de cátaros queimados por Simão de Monforte, barão do rei de França.

1213 – Morte de Pedro II, rei da confederação catalã-aragonesa, na batalha de Muret (Setembro), contra os cruzados franceses do papa. Prisão em Carcassona (e depois em Narbona) de Jaime I, filho de Pedro II. Queda de Toulouse e retractação de Raimundo VI.

1215 – Fundação da ordem dos frades pregadores de Domingos de Gusmão. Quarto concílio de Latrão. Cruzada papal contra os pagãos da Prússia.

1216 – Morte de Inocêncio III. Início da reconquista de Toulouse pela nobreza occitana.

1218 – Morte de Simão de Monforte (Junho) diante dos muros de Toulouse. Cruzada papal contra os valdenses.

1220 – Reconquista do condado de Toulouse aos cruzados do rei de França. Restabelecimento da Igreja cátara.

1221 – Morte de Domingos de Gusmão. Primeiro casamento de Jaime I (com Leonor de Castela, filha de Afonso VIII). Casamento de Isabel da Hungria com Luís IV, landegrave da Turíngia e vassalo do imperador Frederico II.

1222 – Morte de Raimundo VI, conde de Toulouse; Raimundo VII, seu filho, conde de Toulouse

1223 – Morte de Afonso II de Portugal; Sancho II, seu filho, rei de Portugal.

1226 – Luís IX, rei de França, retoma a cruzada papal contra o condado de Toulouse e o catarismo occitano. Morte de Francisco de Assis. Concílio cátaro de Pieusse.

1228 – Cruzada de Frederico II; acordo pacífico com o emir aiúbida do Egipto. Nascimento de Conrado IV, filho de Frederico II e de Violante de Briene.

1229 – Capitulação de Raimundo VII, conde de Toulouse, diante da cruzada do rei de França. Tratado de Meaux-Paris (o condado de Toulouse perde autonomia). Repúdio de Leonor de Castela por Jaime I; tomada da ilha de Maiorca por Jaime I.

1231 – Morte de Isabel da Hungria. Nascimento de Manfredo, filho de Frederico II e de Bianca Lancia.

1232 – Cortes de Monzon; Jaime I inicia a expansão em direcção de Valença.

1233 – Gregório IX funda a Inquisição eclesiástica, entregue à ordem dos frades pregadores de Domingos de Gusmão. Resistência da Igreja cátara nas fortalezas dos Pirenéus.

1235 – Nascimento de Raimundo Lullo. Casamento de Jaime I com Violante da Hungria (Setembro), irmã de Isabel da Hungria. Revoltas cátaras contra a Inquisição em Toulouse, Albi e Narbona.

1238 – Tomada de Valença (Setembro), Jativa e Alcira. Início da expansão catalã-araganosesa para Múrcia

1239 – Nascimento de Pedro III (pai de Isabel de Aragão), rei da confederação catalã-aragonesa.

1240 – Excomunhão de Frederico II por Gregório IX.

1242 – Levantamento cátaro no condado de Toulouse. Organização da resistência militar em torno da fortaleza de Montsegur. A Inquisição eclesiástica sofre o revés de Avignonet. Raimundo VII toma posição a favor da nobreza local e da Igreja cátara. Carta de Frederico II aos príncipes da Europa propondo a nacionalização dos bens do clero e o fim da Igreja de Roma.

1243 – Nova cruzada de Luís IX contra os cátaros e Raimundo VII. O conde de Toulouse capitula; paz de Lorris. Cerco de Montsegur.

1244 – Queda de Montsegur (16 de Março), último grande bastião cátaro; centenas de pessoas são queimadas vivas. Fim da Igreja cátara organizada.

1246 – Guerra civil entre Sancho II e seu irmão, Afonso III, conde de Bolonha e feudatário do rei de França.

1248 – Morte de Sancho II de Portugal no desterro; Afonso III, seu irmão, rei de Portugal. Jaime I faz a primeira partilha do reino entre os filhos. Cruzada de Luís IX, rei de França, ao Oriente; pesada derrota no Egipto e retirada (1253).

1249 – Morte de Raimundo VII; Luís IX de França toma para os capetos o condado de Toulouse. Nascimento de Constança da Sicília (mãe de Isabel de Aragão), filha de Manfredo e de Beatriz da Suábia.

1250 – Morte de Frederico II. Nascimento de Roger de Lauria, filho dum escudeiro calabrês de Manfredo, que morreu na batalha de Benevente.

1252 – Nascimento de Conradino, filho de Conrado IV.

1253 – Casamento bígamo de Afonso III de Portugal com Beatriz, filha de Afonso X de Castela.

1254 – Morte de Conrado IV, filho de Frederico II.

1255 – Gerardo de San Donino, frade franciscano, é condenado pelo Evangelho Eterno, em que advoga a Terceira Idade e o fim da Igreja de Roma. O gibelinismo liga-se em definitivo às teses fioristas e paracletianas. Queda do último refúgio cátaro nos Pirenéus, Queribus (Maio).

1258 – Primeiras clarissas em Portugal. Tratado de Corbeil entre Jaime I e Luís IX de França; a confederação catalã-aragonesa reconhece a soberania dos capetos no condado de Toulouse. Manfredo rei da Sicília.

1261 – Nascimento de Dinis de Portugal. Urbano IV declara Carlos de Anju, irmão de Luís IX, caudilho dos guelfos italianos. Excomunhão de Manfredo. Os cruzados são expulsos de Constantinopla; fim do Império latino do Oriente.

1262 – Casamento de Pedro III e Constança da Sicília, filha de Manfredo. Novo testamento de Jaime I. Carlos de Anju, senhor de Roma e protector de Florença. Bella Damichi, mãe de Roger de Lauria, vem para a confederação catalã-aragonesa no séquito de Constança da Sicília.

1263 – Nascimento do infante Afonso, irmão de Dinis de Portugal. Nascimento de Afonso III, rei da confederação catalã-aragonesa.

1264 – Carlos de Anju, senhor de Turim.

1265 – Clemente IV oferece a Carlos de Anju o reino da Sicília. Campanhas militares contra os gibelinos italianos. Dinis e Beatriz visitam em Sevilha Afonso X. Nascimento de Jaime II, rei da confederação catalã-aragonesa.

1266 – Morte de Manfredo, filho de Frederico II, na batalha de Benavente (Janeiro) contra Carlos de Anju. Dinastia angevina na Sicília e em Nápoles. Jaime I toma Múrcia. Nascimento de Roger de Flor, filho do falcoeiro-mor de Frederico II.

1268 – Derrota e morte de Conradino, filho de Conrado IV, na batalha de Tagliacozzo. Morte na batalha do pai de Roger de Flor. Constança da Sicília, filha de Manfredo e esposa de Pedro III, herda os títulos e os direitos da casa Hohenstaufen. Fim do gibelinismo na Itália; exílio na confederação catalã-aragonesa dos sobreviventes de Benevente e Tagliacozzo. Os mamelucos ocupam Antioquia.

1269 – Cruzada à Palestina de Jaime I. Nascimento provável de Isabel de Aragão; primeira infância passada no paço de Barcelona, junto de Jaime I.

1270 – Última cruzada papal à Palestina protagonizada por Luís IX, rei de França; derrota e morte de Luís IX diante de Tunes.

1275 – Maioridade de Dinis de Portugal. Cortes de Lérida; desacatos entre Fernão Sanches de Castro, bastardo de Jaime I, e Pedro III.

1276 – Morte de Jaime I; Pedro III, seu filho, rei da confederação catalã-aragonesa.

1278 – Tentativa de erradicar o catarismo no norte da Itália; duas centenas de pessoas são queimados vivas em auto-de-fé no Coliseu de Verona.

1279 – Morte de Afonso III de Portugal; Dinis, seu filho, rei de Portugal.

1280 – Negociações de casamento entre Dinis de Portugal e Isabel de Aragão. Influência de Arnaldo de Vilanova na corte de Pedro III.

1282 – Conflitos entre Dinis de Portugal e o irmão Afonso. Conquista da Sicília por Pedro III, vingando a morte de Conrado, Manfredo (seu sogro) e Conradino. Expulsão dos angevinos da Sicília e cerco a Nápoles. Casamento de Isabel de Aragão com Dinis de Portugal. Chegada de Isabel de Aragão a Portugal (Junho). Afonso X é deposto nas cortes de Valadolid.

1283 – Roger de Lauria derrota os angevinos em Malta; é nomeado almirante da frota de Pedro III. Ocupação de La Valeta pelos catalães.

1284 – Morte de Afonso X. Campanhas de Roger de Lauria no mar Tirreno contra os angevinos e as armadas de Roma. Prisão de Carlos o Coxo, filho de Carlos de Anju. Cruzada de Martinho IV contra Pedro III com ajuda do rei de França (Filipe III). Primeiras inquirições gerais em Portugal por Dinis.

1285 – Nascimento de Fernando IV, filho de Sancho IV de Castela e de Maria Molina. Novas derrotas dos angevinos ao largo de Barcelona; sucessos de Roger de Lauria. Morte de Filipe III, rei de França, e fracasso da cruzada contra Aragão e Catalunha. Morte de Pedro III; Afonso III, seu filho e irmão de Isabel de Aragão, rei da confederação catalã-aragonesa.

1286 – Interdição em Portugal de compra de bens de raiz a instituições religiosas e eclesiásticos. Primeiros propósitos de fundar um mosteiro de clarissas, dedicado a Isabel de Hungria, na margem esquerda do Mondego.

1287 – Doações de Dinis a Isabel de Aragão (Sintra, Óbidos, Abrantes e Porto de Mós). Novos conflitos entre Dinis e Afonso, seu irmão. Inquirições aos bens de Gonçalo Garcia de Sousa, antigo alferes-mor do rei. Primeira comunidade de monjas na margem esquerda do Mondego.

1288 – Ocupação de Tripoli pelos Mamelucos.

1289 – Trasladação de Afonso III de São Domingos de Lisboa para Alcobaça.

1290 – Nascimento de Constança (3 de Janeiro), filha de Dinis e Isabel.

1291 – Nascimento de Afonso IV (8 de Fevereiro), filho de Dinis e de Isabel. Isabel de Aragão e Mor Dias assumem-se como patronas das construções da margem esquerda; concretização do mosteiro dedicado a Isabel da Hungria, tia da rainha portuguesa. Mal-estar em Santa Cruz de Coimbra. Ocupação de Acre pelos Mamelucos; evacuação sequente de todas as outras fortalezas cristãs da Palestina.

1292 – Agravam-se os conflitos entre a margem esquerda e os crúzios de Coimbra. Excomunhão de Mor Dias e tentativas de destruição da comunidade da margem esquerda. A setença de excomunhão foi lançada pelo abade de Santa Cruz e confirmada depois pelo bispo de Coimbra, com anúncio público na porta da Sé (15 de Agosto).

1293 – Nascimento de Beatriz de Castela, filha de Sancho IV e de Maria de Molina.

1295 – Morte de Sancho IV de Castela. Dinis funda o mosteiro de Odivelas (23 de Março). Regência de Maria de Molina. Guerra em Castela.

1297 – Tratado de Alcanizes (12 de Setembro). Confirmação do casamento entre Constança de Portugal e Fernando IV de Castela. Beatriz de Castela vem para Portugal com 4 anos para casar com Afonso IV.

1299 – Primeiro testamento de Dinis. Novo conflito entre Dinis e o seu irmão Afonso. Recidiva cátara no condado de Toulouse.

1300 – Morte de Beatriz de Castela, mãe de Dinis e de Afonso. Doação de Leiria a Isabel (4 de Julho). Acordo de paz entre Dinis e Afonso, seu irmão. Partida deste para Castela. Conflitos entre Filipe IV, rei de França, e Bonifácio VIII. Revoltas em Carcassona e Toulouse contra a Inquisição dominicana.

1301 – Novas inquirições gerais.

1302 – Casamento de Fernando IV e Constança de Portugal. Morte de Mor Dias em Coimbra; os crúzios de Coimbra reclamam os seus bens. Morte de Constança da Sicília, filha de Manfredo e mãe de Isabel de Aragão.

1303 – Morte de Bonifácio VIII. Início da campanha no Oriente dos almogáveres catalães, capitaneados por Roger de Flor, antigo templário e almirante de Frederico da Sicília, filho de Pedro III e de Constança.

1304 – Dinis e Isabel arbitram conflito entre Castela e Aragão; tratado de Torrelas. Novas doações de Dinis a Isabel. Primeiras doações de Dinis a Afonso Sanches, seu filho natural. Nova aliança entre o papado (Clemente V) e os capetos de França (Filipe IV). As revoltas contra a Inquisição no condado de Toulouse são esmagadas pelo rei de França. Roger de Flor é feito megaduque e césar.

1305 – As monjas da margem esquerda do Mondego sublevam-se contra a autoridade do bispo de Lisboa, João de Soalhães. Primeiras inquirições do tribunal eclesiástico à recidiva cátara nos Pirenéus e ao avanço do franciscanismo espiritual. Morte de roger de Lauria, almirante de Aragão, ao serviço da coroa de Jaime II.

1307 – Doação da Atouguia da Baleia a Isabel (19 de Outubro). Nascimento de Leonor, filha de Fernando IV de Castela e de Constança de Portugal. Prisão dos Templários em França e depois por toda a Europa. Intervenção de Isabel de Aragão na defesa das monjas da margem esquerda do Mondego. Auto-de-fé na Lombardia contra os franciscanos espirituais, seguidores de Gerardo de San Donino. Bernard Gui, dominicano e terror dos espirituais, inquisidor em Toulouse. Morte de Roger de Flor, na Grécia, às mãos de Miguel Paleólogo; as campanhas dos almogáveres continuam.

1308 – Claustro de Dinis em Alcobaça.

1309 – Casamento de Afonso IV com Beatriz de Castela. Instalação do papado (Clemente V) em Avinhão. Infiltração da Inquisição nas aldeias cátaras dos Pirenéus (Foix e Tarascon); razias entre os franciscanos.

1310 – Auto-de-fé em Toulouse; cátaros e franciscanos espirituais são condenados às chamas; fugas para a Catalunha, onde Jaime II, irmão de Isabel de Aragão, os deixa em liberdade.

1311 – Nascimento de Afonso XI, filho de Fernando IV de Castela e de Constança de Portugal. Por acordo de Santa Cruz e do bispo de Lisboa, a casa religiosa na margem esquerda do Mondego é extinta e os seus bens são atribuídos a Santa Cruz de Coimbra. Morte de Arnaldo de Vilanova na corte de Jaime II. Fundação do ducado de Atenas pelos catalães (durou oito décadas).

1312 – Morte de Afonso, irmão de Dinis. Morte de Fernando IV. Nova regência de Maria de Molina. Afonso Sanches é feito mordomo-mor da corte.

1313 – Nascimento de Maria de Portugal, a formosíssima Maria de Camões, filha de Afonso IV e de Beatriz de Castela.

1314 – Pedro Afonso, filho natural de Dinis, é feito conde de Barcelos. São queimados os últimos Templários. Refundação por Isabel de Aragão da comunidade da margem esquerda. Nasce Santa Clara, tal como a conhecemos.

1316 – Agravam-se as disputas entre Dinis de Portugal e Afonso IV, seu filho.

1317 – Desterro de Pedro Afonso em Castela por disputas com o pai, Dinis de Portugal. Novos pleitos judiciais entre Santa Cruz de Coimbra e Santa Clara. Jacques Fournier, abade cisterciense de Fontfroide, torna-se bispo de Pamiers (Foix) e inquisisdor da diocese.

1318 – Criação em Portugal da Ordem de Cristo com os bens da Ordem do Templo. Exílio em Avinhão dos bispos de Lisboa e Porto. Afonso Sanches, filho natural de Dinis, funda o mosteiro de Santa Clara (Vila do Conde). João Afonso, outro filho natural de Dinis, é feito alferes-mor. Os Catalães estão no apogeu da sua expansão na Grécia; fundação do condado de Neopatria. Auto-de-fé em Marselha contra franciscanos espirituais.

1319 – Abre-se o período de guerra civil entre Dinis de Portugal e Afonso IV, seu filho. Conferência de Afonso IV com Maria de Molina (Maio). Santa Cruz recusa-se a restituir os bens de Mor Dias.

1320 – Nasce Pedro de Portugal (Abril), filho de Afonso IV e Beatriz de Castela. Manifesto de Dinis contra o filho (Julho). Novas prisões nos Pirenéus por iniciativa de Jacques Fournier; auto-de-fé em Pamiers contra valdenses e cátaros.

1321 – Aprovação dos primeiros estatutos da Ordem de Cristo. Homicídio do bispo de Évora, Geraldo Domingues, por ordem de Afonso IV. Campanhas militares de Afonso IV no centro do reino (Leiria e Coimbra). Novos manifestos de Dinis contra o filho (Maio e Dezembro). João XXII oficializa a Ordem de Cristo. Desterro de Isabel em Alenquer. Os últimos perfeitos cátaros são queimados em Carcassona e Narbona. Morte de Maria de Molina, rainha-avó de Castela.

1322 – Novas campanhas militares de Afonso IV (Montemor, Feira, Gaia e Porto). Cerco de Guimarães (Fevereiro). Contra-ataque de Dinis (Leiria e Coimbra). Intervenção da rainha e acordo de paz entre Dinis e Afonso (Maio). Doença de Dinis e novo testamento (troca a sepultura de Alcobaça por Odivelas). Primeira festa (provável) do santo Espírito em Alenquer, sinal da Terceira Idade de Flora e do evangelho eterno de Gerardo de San Donino.

1323 – Cortes de Lisboa; novo conflito bélico entre Dinis e Afonso. Intervenção de Isabel de Aragão; episódio de Alvalade (Dezembro).

1324 – Lide de Santarém; acordo de paz definitivo entre Dinis e Afonso IV (Fevereiro). Desterro de Afonso Sanches, mordomo-mor, e de Mem Rodrigues de Vasconcelos, meirinho-mor. João Afonso, alferes-mor, é feito mordomo-mor. Doença grave de Dinis e novo testamento.

1325 – Compromisso público de Isabel de Aragão em se tornar freira laica, sem votos e sem obediência a regra (2 de Janeiro). Morte de Dinis (7 de Janeiro). Isabel de Aragão veste o hábito de monja clarissa. Maioridade de Afonso XI de Castela. Afonso Sanches perde todos os bens em terra portuguesa; guerras entre Afonso IV e Afonso Sanches. Novas prisões de crentes cátaros nas aldeias dos Pirenéus.

1326 – João Afonso, filho natural de Dinis e seu mordomo-mor, é executado por Afonso IV (Julho).

1327 – Jacques Fournier é ordenado cardeal.

1328 – Morte de Afonso Sanches. Casamento de Maria de Portugal com Afonso XI de Castela, seu primo-irmão. Testamento da rainha para se desfazer de todos os bens; doações várias a Santa Clara de Coimbra.

1329 – Desaparecem nas labaredas (Carcassona) os últimos crentes da Igreja cátara.

1330 – Afonso XI de Castela liga-se a Leonor de Gusmão; desavenças conjugais entre Afonso XI e Maria de Portugal. Primeiras negociações com vista ao casamento de Pedro de Portugal com Constança Manuel, filha de João Manuel e Constança de Aragão.

1333 – Afonso XI de Castela retém Constança Manuel em Castela.

1334 – Nascimento de Pedro de Castela, filho de Afonso XI e de Maria de Portugal. Jacques Founier, antigo Inquisidor da diocese de Pamiers e último carrasco da Igreja cátara occitana, é eleito papa em Avinhão. Tomou o nome de Bento XII e sucedeu a João XXII, o anti-Cristo dos franciscanos espirituais.

1336 – Casamento por procuração em Évora e Cuenca de Pedro de Portugal e Constança Manuel; Afonso XI recusa-se a deixar sair de Castela Constança Manuel. Afonso IV de Portugal reúne hoste em Estremoz para entrar em Castela; intervenção e morte de Isabel de Aragão em Estremoz (4 de Julho). Guerras de Afonso IV de Portugal e Afonso XI de Castela.

1337 – Início da guerra dos Cem Anos, opondo França e Inglaterra. Continua a guerra entre Afonso IV e Afonso XI.

1338 – Tratado de paz entre Portugal e Castela.

1340 – Batalha do Salado. Casamento em Lisboa de Pedro de Portugal e de Constança Manuel. Vinda para Portugal de Inês Peres de Castro, filha natural de Pedro Fernandes de Castro, no séquito de Constança Manuel.

1342 – Morte de Bento XII (Jacques Fournier); foi acusado à morte de simonia.

1345 – Nascimento de Fernando, filho de Pedro de Portugal e de Constança Manuel. Morte de Constança Manuel.

1346 – Regresso de Inês Peres de Castro a Portugal, depois do exílio que dois anos antes Afonso IV de Portugal lhe impusera em Albuquerque. Batalha de Crécy.

1348 – Morte de Lopo Fernandes Pacheco, privado de Afonso IV de Portugal e pai de Diogo Lopes Pacheco.

1350 – Morte de Afonso XI de Castela. Reinado de Pedro de Castela, filho da formosíssima Maria e de Afonso XI.

1354 – Início da guerra civil em Castela; prisão de Pedro de Castela. Afonso IV de Portugal decide matar Inês Peres de Castro.

1355 – Homicídio de Inês de Castro; guerra civil em Portugal.

1357 – Morte em Évora, no exílio, de Maria de Portugal; morte de  Afonso IV, seu pai.

1362 – Exumação provável de Inês de Castro, em Santa Clara, e trasladação para Alcobaça.

1367 –  Morte em Estremoz de Pedro de Portugal; início do reinado de Fernando de Portugal, seu filho.

1371 –Paixão de Fernando por Leonor Teles.

1372 – Casamento de Fernando de Portugal com Leonor Teles (Leça do Bailio; Maio).

1373 – Nascimento de Beatriz de Portugal, filha de Fernando e de Leonor.

1378 – Morte do papa Gregório XI; Grande Cisma do Ocidente, que se prolongará até 1410.

1383 – Morte de Fernando de Portugal (Outubro).

1516 – Breve de Leão X sobre Isabel de Aragão, a pedido de Manuel I de Portugal. Culto público de Isabel de Aragão autorizado na diocese de Coimbra.

1554 – Generalização do culto de Isabel de Aragão a todo o reino por breve de Paulo IV.

1576 – Sebastião de Portugal faz uma primeira tentativa, sem qualquer efeito, para canonização em Roma de Isabel de Aragão. Roma suspendeu o processo.

1611 – Filipe III de Espanha pede a Roma a canonização de Isabel de Aragão. Pio V aceita com reticências a entrada do processo.

1612 – Vistoria ao corpo de Isabel de Aragão.

1623 – A Inquisição de Coimbra festeja a vigília da festa de Isabel de Aragão (4 de Julho) com um auto-de-fé na praça de São Bartolomeu, com cento e trinta e nove condenados, sendo dez queimados vivos. No mesmo ano (26 de Novembro), quando decorriam as reuniões da congregação dos ritos para a canonização da rainha portuguesa, novo auto-de-fé em Coimbra com setenta e cinco condenados e oito executados na fogueira.

1624 – O doutor António Homem, testemunha XIV do processo de canonização de Isabel de Aragão (declarações prestadas em Fevereiro de 1612) é preso em Coimbra pela Inquisição e queimado em Lisboa em auto-de-fé (Março).

1625 – Consistório final de aprovação da canonização de Isabel Aragão por Urbano VIII (28 de Abril); cerimónia pública de canonização da rainha portuguesa na Basílica de São Pedro (25 de Maio). Neste mesmo mês, ao tempo que decorriam as festas da canonização em Roma, a Inquisição de Coimbra celebrou o evento com dois autos-de-fé, o primeiro na praça de São Bartolomeu (4 de Maio) e o segundo na casa do tribunal (23 de Maio). No primeiro saíram cento e oitenta e nove condenados, sendo queimados vinte, e no segundo foram penintenciados quatro. Das vinte pessoas queimadas vivas no primeiro auto, oito eram freiras (mosteiros de Santa Clara e Celas). A bula de canonização só foi passada por Bento XIV, que subiu ao sólio papal de 1740, mais de cem depois, o que pode indiciar a forte resistência de Urbano VIII e dos onze papas seguintes à canonização duma Hohenstaufen.

1677- Trasladação do corpo de Isabel de Aragão da igreja de Santa Clara (a Velha) para a igreja nova.

 

SOBRE AS FONTES

O mais antigo texto sobre a sexta rainha de Portugal, Isabel de Aragão, é ao que se afere contemporâneo do final da sua vida e terá sido composto em 1336 ou 1337 por pessoa próxima e de confiança. Entre as várias hipóteses aponta-se um frade, Frei Salvado Martins, testamenteiro da rainha e seu confessor; outros preferem indicar dona conventual, saída da refundação de Santa Clara depois da morte de Mor Dias e boa conhecedora dos passos biográficos e espirituais da rainha. De qualquer modo nenhuma certeza sobre a autoria do texto, cujo autógrafo também é desconhecido; perdeu-se, extraviou-se, foi destruído, não se sabe. O que hoje conhecemos são apógrafos, posteriores ao século XÁ e com apostilas ao texto primitivo, conhecido apenas por Lenda, termo que no sec. XIV designava a narração de feitos heróicos ou extraordinários.

A primeira impressão tipográfica deste complexo documento aparece na sexta parte da Monarquia Lusitana (1672), de Frei Francisco Brandão. Tem como título, “Relaçam da Vida da Gloriosa Santa Isabel Rainha de Portugal, tresladada de hum livro escrito de mão, que está no Convento de S. Clara de Coimbra, e serve para vários capítulos desta história, e da subsequente”. O apógrafo, que existia ao tempo em Santa Clara, conserva-se hoje no Museu Machado de Castro, em Coimbra. Foi descrito, julgo que pela primeira vez, no valioso estudo de Frederico Francisco La Figanière, Memórias das Rainhas de Portugal (1859). É cópia já dos finais do século XVI; traz a data de 1592 na primeira folha de pergaminho. O título do apógrafo do século XVI não coincide com o da primeira impressão, pois chama-se, Livro que fala da boa vida que fez a Rainha de Portugal, Dona Isabel, e de seus bons feitos e Milagres em sua vida e depois da morte. É certo que existiu no convento Santa Clara de Coimbra pelo menos uma outra cópia do autógrafo, esta do século XÁ.

Recentemente José Joaquim Nunes tentou com os elementos de que dispunha, e que são os acima vistorizados, uma reconstituição do texto primitivo. O trabalho publicou-se com o título Vida e Milagres de Dona Isabel Rainha de Portugal–texto do século XIV, restituído à sua presumível forma primitiva e acompanhado de notas explicativas (separata do Boletim da Classe das Letras, Academia das Ciências de Lisboa, vol. III, 1921).

O texto abre com a genealogia sumária da rainha, passa de seguida aos tratos que seu pai fez para a casar e à sua viagem para o reino de Portugal. Relata de seguida muitas das suas acções em terra portuguesa, começando pelos dois filhos que deu ao reino. Tem elementos pertinentes sobre as relações de Dinis e Isabel e sobre a acção política desta em Castela e Aragão, bem como nota sobre a sua intervenção na guerra civil que opôs Afonso IV a Dinis. Omite, como era de esperar em época que levava ao fastígio a ferocidade brutal da Inquisição, as festividades do santo Espírito (que a rainha terá instituído no reino na parte final do reinado de Dinis e de que só nos Açores encontramos hoje o desenvolvimento). Tem ainda assim plano sucinto dos conflitos entre a rainha e Santa Cruz de Coimbra. Por fim, em apostila incontraditável, traz uma extensa relação dos milagres, muitos deles pósteros à sua morte (um deles é de 1420, era de César, quer dizer de 1382 da nossa era).

Para as festas do Espírito Santo a primeira fonte é Frei Manuel da Esperança, na História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de São Francisco na Província de Portugal (1656, I Parte, cap. 10), que publicou em época de maior desafogo inquisitorial. Frei Francisco Brandão, pouco depois, também alude às festas (diz ele com boda, & cerimonias de Emperador, como se usa, & não sem presunçoens misteriosas; Liv. XVIII, cap. XXXXII, p. 185). O trabalho de Brandão tornou pública a escritura, datada de 8 de Janeiro de 1325, em que a rainha viúva recusa abandonar a condição laica (Liv. XIX, cap. XXXXIII, p. 479-81).

Deixando de lado a Lenda, o primeiro a escrever em portuguesa língua sobre Isabel de Aragão talvez tenha sido Rui de Pina, na Crónica de D. Dinis e na Crónica de D. Afonso IV; são textos dos finais do século XÁ mas com edição muito posterior (Crónica de Afonso IV, com prólogo de Pedro Mariz, apareceu impressa em 1653 e Crónica de D. Dinis só saiu dos prelos em 1729). O texto de 1653 tem capítulo dedicado ao falecimento da rainha em Estremoz, “Do falecimento da Sancta Rainha Dona Isabel molher de el Rey D. Dinis, & madre del Rey D. Afonso, & dos milagres que Deus despois de sua morte por ella fez” (cap. XXIII), e o de 1729 traz no cap. XXV (“De huua carta do Papa Johaõ XXII aho Ifante D, Affonso filho del Rey D. Diniz, sobre has dezavenças”) a recriminatória de João XXII a Afonso IV e que levou ao homicídio do bispo de Évora, que publicamente a leu e divulgou. Há reedição das Crónicas de Rui de Pina (Porto, Lello & Irmão, 1977).

Entre os autores dos séculos XVI e XVII que escreveram e indagaram sobre a vida de Isabel de Aragão (André de Resende, Frei Marcos de Lisboa, Pedro João Perpiniano, Frei Jeronymo Roman), é de assinalar o caso único, absolutamente excepcional, de Pedro Mariz, em Diálogos de Vária História (1594). Na segunda impressão deste livro, em 1599, inseriu o autor novo capítulo, o II do Diálogo Terceiro, dedicado a Isabel de Aragão, que foi mutilado do livro, com certeza por ditame da censura inquisitorial. A mutilação foi feita já com o livro impresso, por desatenção anterior à matéria ou por descuido do autor em apresentar o livro à barra do tribunal; ficou assim à vista a supressão de dezasseis páginas (fols. 92-99), não se conhecendo infelizmente um único exemplar completo da obra.

Em língua castelhana assinale-se pela mesma época a obra de Diogo Jose Dormer, nos Discursos Varios de Historia (Saragoça, 1683), que transcreve duas cartas da rainha dirigidas ao irmão Jaime II, rei da confederação catalã-aragonesa, que se encontravam depositadas no Arquivo da Deputação e que foram mais tarde reproduzidas entre nós por F. F. Figanière (1859) e Sebastião A. Rodrigues (1958). As duas cartas haviam já sido referenciadas, mas não transcritas, por Zurita no autógrafo Annales de la Corona de Aragón, que as dava por desaparecidas.

No século XIX são intorneáveis três livros: Memórias das Rainhas de Portugal (1859), de Francisco Frederico de la Figanière, Rainhas de Portugal –Estudo Histórico (1878; reed. 2007, Livros Horizonte), de Francisco da Fonseca Benevides, e Evolução do Culto de D. Isabel de Aragão (2 vols., 1894) de António de Vasconcelos. O estudo de Fonseca Benevides traz duas gravuras: a primeira (desenho de Columbano) é cópia do quadro que está em Colónia (e no qual Lima de Freitas se parece ter inspirado para os dois retratos conhecidos de Isabel), que passa por ser o único feito com o modelo; a segunda (desenho de José Miguel Abreu) é cópia da estátua jacente do túmulo, feita também a partir do modelo vivo. Acrescente-se um longo texto de Sampaio Bruno, “Rainha Santa Isabel”, que só recentemente, pela mão conscienciosa de Joaquim Domingues, veio à luz (in Plano de um livro a fazer–Os Cavaleiros do Amor ou a Religião da Razão, 1996, pp. 196-221). O escrito do autor de O Encoberto é o único, até hoje, que tem por viso o entendimento dos aspectos heréticos da rainha portuguesa.

Refira-se por fim, no século XX, a biografia Isabel de Aragão–Rainha Santa (1936; há reed., 1993) de Vitorino Nemésio, lavrada em castigado e irrepreensível vernáculo português. Assinalem-se os trabalhos do padre Sebastião Antunes Rodrigues, antes de mais o livro Rainha Santa. Cartas inéditas e outros documentos (Coimbra Editora, 1958, pp. 135). Foi trabalho atendido por Jaime Cortesão e por Aquilino, que lhe dedicou todo um comento na primeira página do jornal O Século (18.6.1958). Lastima-se que Sebastião Antunes Rodrigues, já depois da morte do Mestre, tenha tomado o texto por acintoso (in 7º Centenário do Casamento de D. Dinis com a Princesa de Aragão D. Isabel–A Cultura da Rainha Santa, Coimbra, 1988, pp. 30-1); melhor andou na resposta de 13 de Julho de 1958, no jornal A Voz, e depois no Arquivo Coimbrão (XXV, 1970, pp. 243-252), onde reuniu o artigo de Aquilino e a sua réplica. O escrupuloso trabalho de Sebastião A. Rodrigues, que Aquilino apoda sem reservas de interessante, não se pode hoje dispensar no conhecimento da sexta rainha portuguesa.

Ainda assim as limitações hermenêuticas do autor saltam à vista. Foi ele, ao que sei, pelo menos entre nós, o primeiro a dar a público documento certificativo das relações de Isabel de Aragão com Arnaldo de Vilanova (1958, p. 76; com notícia da vinda deste a Portugal). Pois limita-se a apresentar A. de Vilanova como célebre filósofo e particular amigo do Papa Clemente V (p. 129). Bastava atender ao muito ortodoxo (tem imprimatur eclesiástico) estudo de Marcelino Menendez Pelayo, Historia de los Heterodoxos Españoles (2 vols., 1880-82), para se acrescentar, como parece devido, que o médico catalão (ou occitano) foi o corifeo de los begardos o beguinos en Cataluña (Livro III, cap. III, VII). E que os begardos ou beguinos eram os franciscanos espirituais que recebiam o influxo das teses de Gerardo de San Donino, e por este do milenarismo de Joaquim de Flora, quando não do rigorismo de Pierre Valdés ou até do libertarismo dos amaurianos, adeptos do Livre Espírito (de feito a figura de Isabel da Turíngia, inspiradora da rainha portuguesa, parece situar-se na perigosa vizinhança de Margarida Porète, autora de Carta do Amor Purificado e de Espelho das Simples Almas, que foi queimada em Paris, em 1310, pela Inquisição).

Não admira que o enredo da heterodoxia de Isabel de Aragão tenha ficado ao longo dos séculos soterrado numa interminável multidão de omissões, de esquecimentos, e até de apagamentos, logo a começar pelo que aconteceu ao livro de Pedro Mariz.

 

DOCUMENTOS

  • Canção de D. Dinis[1]

 

Pois que Deus vos fez, Senhora,

Fazer do bem sempre o melhor

E dele ser tão sabedora,

Em verdade vos direi:

Érades boa para Rei!

 

E pois sabedes entender

Sempre o melhor e bem escolher,

Verdade vos quero dizer,

– Senhora que sirvo e servirei:

– Pois Deus assim o quis fazer,

Érades boa para Rei!

 

Pois sois de Deus obra sem par

No bem sentir, no bem falar

Nem outro igual se pode achar.

Meu bem, Senhora, vos direi:

Se Deus quisesse assim mandar,

Érades boa para Rei.

 

Poys que vos Deus fez, mha senhor,

fazer do ben sempr’o melhor

e vos en fez tam sabedor

hua verdade vos direy,

se mi valha Nostro Senhor:

erades boa para rey.

 

E, poys sabedes entender

sempr’o melhor e escolher,

verdade vos quero dizer,

senhor, que servh’ e servirey,

poys vos Deus atal foy fazer:

erades boa pera rey.

 

E, poys vos Deus nunca fez par

de bon sen, nen de ben falar,

nen fará já, a meu cuydar,

mnha senhor e quanta ben ey,

se o Deus quisesse guysar,

erades boa para rey.

 

  • Carta de Isabel de Aragão[2]

Ao muyt alto, e muy nobre Dom Iame, pela graça de Deus Rey daragon, de Valença, de Corcega, e Conde de Barcelona, e Santa Egresia de Roma Almirante, e Sinaleyro, Capitan general. Doña Isabel, por essa meesma graça Reynha de Portugal, e do Algarve, saude come Irmaao de quien muyto fio, e para quien tanta vida, e saude, com onrra querria, por muytos anos, e boos, come pera mi meesma. Rey Irmaao vy vossa carta que me invastes por Dom fray Sancho vosso Irmaao, e meu, e el disse a el Rey o que lhi vos mandastes ben, e conpridamente, e a mi outrosi. E gradescavos Deus o boon talan que vos mostrades contra el Rey, e contra mi, e contra o Iffante Dom Afonso nosso filho, en quererdes saber parte de nossa fazenda, e de vos sentirdes dela, e fazedes gran direito, e gran razon. E Irmaao sabede, que veendo eu as couasas en como passaban, e receando de vinire ao estado en que están, pedi por muytas vezes a el Rey, e roguey alguuns de seu Conselho, que tevessen por ben, que estes feytos non fossen cada dia para peyor como foron, e que me dessem logar, e que eu que trabalharia hy quanto podesse, de guisa que o Iffante, e os outros ouvessen ben, e mercee del Rey, e que todos vivessem como devian, e a serviço del Rey, e que a todos fezesse mercee. E sabe Deus, que esta foy senpre a minha voontade, e seria cada que podesse, e Deus per ben tevesse: mais tantos foron senpre os estorvadores da parte do ben, que non pudi hy rem fazer. E sabe Deus, que ey eu ende gran pesar no corazon; polo del Rey primeiramente, a quien eu deseio vida, e saude, e onrra, como a minha meesma; e polo do Iffante; e polo meu, que vivo vida muyto amargosa. E se per Deus non ven hy alguna avininça, ou ben antreles, non creo que por obra Domens se possa hy fazer rem; moormente hu nenhuunos trabalhan salvando en meter discordia. Dom Fray Sancho vos dirá o recado que achou en el Rey, e no Iffante outrosi, do estado da terra en que estado está. E rogo vos Irmaao, que senpre vos nembredes de mi, e me fazades saber da vossa saude, e do vosso boon estado, e dos Iffantes vossos filhos, ca o non podedes enviar dizer a cousa do Mundo a que mais praza ende, nem que mais conpra a vossa vida que a mi. Dat. En Alanquer xxiii dias de Dezembre. A Reynha o mandou. Ioham Sans a fez.

 

  • Escritura de Isabel de Aragão[3]

In nomine Domini Amen. Conhoscão quantos esta nossa presente carta virem, que nòs Dona Isabel mulher em outro tempo do muito alto, & mui nobre Rey, & Senhor Dom Dinis pela graça de Deos Rey de Portugal, & do Algarve, & Rainha dos ditos Reynos: auendo fe usa em nosso Senhor Iesu Christo, & na Virgem Santa Maria sà Madre, & na Corte Celestial, & auendo devoçom na Ordem de Santa Clara, como sempre aquelles, & aquellas onde nos vehemos, auiamos posto em nossa vontade, que se acontecesse que nòs morressemos antes que o dito  Rey Dom Dinis nosso marido lidimo, que auiamos devoçom de morrer no avito de Santa Clara, o qual autto conuem a saber huma corda com noos para cingir, & hum veo branco, & hua vestidura que tinhamos ja tempo ha em nossa arca para esto. E se por ventura o dito Senhor Rey Dom Dinis primeiro morresse, o que Deos non quizesse, & contecesse que nòs vivessemos depois, queriamos, & entendiamos de filhar, & receber, & vestir este auito segundo como dito he: solamente per razom de tresteza, & de doo, & domildade, & nom per Religiom, nem professom, nem por obedeença dalguma ordem estremadamente. (…) E porque Deos teve por bem que o dito Senhor Rey Dom Dinis nosso marido lidimo morresse ante que nos, em a qual morte nos teemos que somos assim tomem morta com el, & devemos segundo bõo costume mudar nossa vida & nosso auito em doo, & em tresteza, & en humildade, recebemos, & vestimos primeiramente, & presentemente a dita vestidura, & corda, e veeo sobreditos, solamente polas razoes sobreditas, e nõ por al. (…) E de mais dezemos que voto algu simples, ou solene, calado, ou expresso, ou profissom, ou obedeença calada, ou expressa, nom auemos demonstrada, nem feita por algua maneira, nem queremos, nem entedemos demonstrar, nem fazer em este recebimento da corda, & vestidura, & veeo sobreditos, nem em outra maneira. E outro si nom demonstramos, nem entendemos, nem propoemos, nem queremos fazer, nem fazemos a nenhuma Ordem, nem regla, nem pessoa alguma obligaçom de nos, nem dos nossos bens, nem dos nossos direitos por todalas cousas sobreditas, nem por algua dellas; mais entendemos, & queremos com todos nossos bens, & direitos moueis, & de raiz de todo em todo livremente ficar, & desses vender, doar, alongar, apenhorar, emprazar, & emprazamentos teer, & fazer Igrejas, & Mosteiros, & Espitaes, & outros piedosos logares, & esmolas, & dos outros cada que quizermos despoer em nossa vida, & em nossa morte, assim como a nos prouguer, & por bem teuermos, & como nos Deos der graça de fazer. (…) Dat en Santarem no Castello nos paços do sobredito Rey em nossa Camara oito dias de Janeiro. A Reynha o mandou. Pero Soares a fez Era de mil & trezentos & sessenta & tres annos.

 

  • Relaçam da Vida da Gloriosa Santa Isabel Rainha de Portugal…[4]

Outrosi por hua boa Dona a que dizião Mor Dias, for a fundado hum Mosteiro de Donas da Ordem de S. Clara; hauendo jà casas, & oratorio, veo a morrer esta Mor Dias, & e Prior de Santa Cruz de Coimbra que em aquelle tempo era, dizia que aquella Mor Dias era Dona professa daquele seu Mosteiro, & que aquel logo hu começàra de fazer aquelle logar era daquelle Mosteiro, hu hauia feito profissom. E contenderom tanto per dante os Iuzes a que per o Papa for a aquel feito começado, que huas poucas de Donas que em aquel logo estauam, foram lançadas daquel logar, & foraõ desparadas as casas com seu terreir que per o Priol do Mosteiro de Santa Cruz, & dahi a diante ficarom aquellas casas despobradas, & tornouse aquele logar, que for a começado para fazerem em elle seruiço a Deos, acolhimento de muitos maos, & màas peccadoras pruuicos, & sem vergoça. Veendo esta Rainha aquel logar despoboado, & doendose ende, propos a fundar acerca daquel logar, Igreja, & Mosteiro da Ordem de Santa Clara, para fazer em elle seruiço a Deos, & cobrou aquel logar daquelles cujo era.

 

  • Trecho de Sampaio Bruno sobre Isabel de Aragão[5]

Pedro Mariz, publicando em 1598 a segunda edição dos seus Diálogos de vária História, que saíram pela primeira vez a lume em 1584, nele introduziu de novo um capítulo, o II do Diálogo terceiro, onde tratava especialmente da esposa de D. Dinis. Neste capítulo escreveu a respeito de D. Isabel tais cousas (escreve o Dr. Vasconcelos) que se viu forçado, por exigências porventura da Inquisição, a mutilar todos os exemplares do seu livro. Nem um só destes exemplares se conhece, que seja completo; a todos se arrancaram as oito folhas que compreendiam aquele capítulo, manuscrevendo-se ao fundo da última página anterior à mutilação, que terminava pela frase incompleta que tanto d’ante-, as palavras mão deu princípio a tamanhas, as quais no alto da primeira página suprimida rematavam, ao que parece, o cap. I. Faltam nesses exemplares as fls. 92 a 99, ou sejam, 16 páginas. Nas edições seguintes de 1674, 1749, 1755 e 1806 continuou a faltar este capítulo, passando a indicar-se como II o que na segunda edição era cap. III. O Dr. Vasconcelos [v. António de Vasconcelos, autor de Evolução do culto de D. Isabel de Aragão, 1894] memora que Inocêncio Francisco da Silva, no seu Dicionário bibliográfico português, alude com estranheza a este facto; e que Frederico Francisco de la Figanière, nas Memórias das Rainhas de Portugal, também dele se ocupa, rematando por opinar: “Parece que a censura teria mandado suprimir aquele capítulo em todos os exemplares, por conter, talvez, alguns factos pouco aceitáveis para os que se esforçavam por obter a canonização da rainha, que até então se não havia conseguido. E o caso é que empregaram tanta diligência e habilidade, que hoje não resta o menor vestígio do que se continha no citado capítulo.” Arquiva o Dr. Vasconcelos que Joaquim Martins de Carvalho, no seu jornal O Conimbricense, falara mais largamente deste problema bibliográfico, para o qual não achara solução, deixando formulada a pergunta: “Qual seria, porém, o motivo por que a Inquisição fez suprimir a vida de Santa Isabel, impressa de 1597 a 1599, poucos anos antes dela ser canonizada?” O Dr. Vasconcelos adita que o notável investigador aditara: “Parece-nos que ficará perpetuamente por explicar este mistério, por haverem desaparecido as provas para o esclarecer, que eram as folhas que de propósito inutilizaram.” Efectivamente, o Dr. Vasconcelos comenta, não nos resta o corpo de delito, nem conhecemos a sentença que condenou à supressão o capítulo isabelino do curioso livro de Mariz: nem ficaram sequer vestígios de tudo isto, a não ser a lacuna, que se nota em a numeração dos capítulos e das folhas, e bem assim a epígrafe do capítulo suprimido, que se lê no índice que precede a obra. O desenvolvido índice analítico do volume, que vem no fim com a epígrafe “Index das cousas notáveis que nestes Diálogos se contêm”, não faz referência a nenhum facto exposto nas folhas arrancadas; daqui se conclui que foi impresso depois de realizada a mutilação.

Contudo, o Dr. Vasconcelos declara que nunca poderia suspeitar que o motivo determinante dessa mutilação fosse o encontrarem-se no mencionado capítulo algumas expressões nas quais se pusesse em dúvida a santidade de D. Isabel.

Decerto. Não se engana, enganando-se, o Dr. Vasconcelos. Ele julga, em última análise, do caso, por este teor: “O problema tem uma solução, quando não certa, por que faltam as provas, ao menos verosímil e probabilíssima. O ilustrado presbítero, guarda-mor da livraria da universidade (Pedro Mariz), tanto exagerou os elogios de D. Isabel, que a Inquisição teve de suprimir o que ele escreveu.”

Na verdade, a solução proposta é verosímil. Mas depois dela e por debaixo dela resta uma questão ainda, e formidável: – Qual seria o motivo da má vontade da Inquisição, ulteriormente manifestada ainda e com insigne veemência? Bastará, para Mariz, o facto de desatender à prescrição de Roma, proibindo expressamente que a D. Isabel alguém a reputasse inscrita no catálogo dos santos, enquanto não fosse solenemente canonizada? E essa mesma severa prescrição não merecerá que nela se atenda e a ela se busque, em consequência, interpretá-la?

***

e

[1] Cantiga de refrão; seis estrofes, a primeira com cinco versos e as restantes com seis; versos de oito sílabas; rima aaaba/b, com exclusão da primeira estrofe (aaabb) em zejel. Encontra-se no Cancioneiro Colloci-Brancuti e Cancioneiro da Vaticana. Leitura crítica de José Joaquim Nunes, in Cantigas d’Amor dos Trovadores Galego-Portugueses (1932). Sebastião A. Rodrigues, a partir de H. Cidade, reproduziu-a no livro 7º Centenário do Casamento de D. Dinis com a Princesa de Aragão D. Isabel–A Cultura da Rainha Santa  (2ª ed., Instituto Português do Património Cultural–Museu Nacional Machado dos Santos, Coimbra, 1988, pp. 43-4). Apresentamos, sem as notas finais, a última transcrição.

[2] Carta de Isabel de Aragão a seu irmão Jaime II, rei da confederação catalã-aragonesa. Foi publicada por Diogo Joseph Dormer em 1683, primeiro em separata e depois no livro Discursos Vários de História (Saragoça). F. F. Figanière reproduziu-a no seu estudo; o mesmo fez Sebastião A. Rodrigues no livro de 1958 (daí a extraímos, pp. 117-8; sublinhados nossos). A primeira frase é fórmula repetida em todas as missivas. Foi dada e escrita em Alenquer, no exílio da rainha, a 23 de Dezembro (1321).

[3] Texto publicado no capítulo XXXXIII da sexta parte da Monarquia Lusitana (Lisboa, 1672, pp. 479-81); o autor, Frei Francisco Brandão, dá-o por traslado do autógrafo então conservado no Cartório do mosteiro de Santa Clara de Coimbra. A data final refere-se à era de César; para conversão ao calendário actual tirem-se trinta oito anos, o que dá 8 de Janeiro de 1325.

[4] Texto publicado como apêndice da sexta parte da Monarquia Lusitana (Lisboa, 1672; v. supra “Sobre as Fontes”); para a passagem aqui transcrita cf.  pp. 509-10.

[5] Trecho de “Rainha Santa” de Sampaio Bruno (in Plano dum Livro a Fazer–Os cavaleiros do Amor ou a Religião da Razão,  org. Joaquim Domingues, 1996, pp. 217-8).


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Portugal – Maio de 2023