RICARDO DAUNT
Tributo
Organização: DERIVALDO DOS SANTOS
Larga a minha boca, larga que eu quero falar: os espaços repressivos em “Os autos de Beatriz”, de Ricardo Daunt
Por GABRIELLA KELMER
Ensaísta, formada em Letras, Gabriella Kelmer cursa o mestrado em Literatura Comparada, no Programa de Pós-gradução em Estudos da Linguagem/Universidade Federal do Rio Grande do Norte, bolsista CAPES. UFRN/PPGEL/CAPES
gabi.kelmer@gmail.com
Introdução
Lançada em 1979 pela Civilização Brasileira, a coletânea Grito Empalhado, de Ricardo Daunt, pode ser vista como um dos textos mais explicitamente engajados da ficção do autor. A obra apresenta três narrativas: “Os autos de Beatriz”, “O último comercial” e “A última morte de Huaina Cápac”. Por meio de procedimentos estéticos que pautam a banalidade do cotidiano, as histórias espreitam o dia a dia e perscrutam nele a violência e o horror que permanecem longe dos olhos do grande público. Seja na forma de uma jovem assassinada pelo seu envolvimento com os movimentos estudantis durante a ditadura militar, seja em um fim do mundo alegórico no qual se opera a gravação de um comercial de sabonete, ou ainda na transposição de um imperador inca como líder de uma greve operária duramente reprimida, os graves acontecimentos dividem espaço com a frivolidade dos comerciais, das rádios e do trânsito nas grandes cidades. Faz-se flagrante, assim, a maneira com que as elaborações literárias realçam a violência ao colocá-la em contraste com a vida pública.
O grito é “a expressão vazia, a pura expressão que não diz nada senão a perturbação, a emoção, o pavor, a dor, o sofrimento, o puro sofrimento” (WOLFF, 2014, p. 43), sendo uma exalação emocional anterior à formulação de palavras. Ao longo das três narrativas, as personagens se mostram incapazes de vencerem a forte repressão que não apenas tolhe a fala indesejada e opositora, mas impede essa manifestação gutural do ser humano. Incapaz de alçar voo, o grito empalhado indica como os acontecimentos que sinalizam o fim do mundo – particular ou coletivo – permanecem embalsamados, enquanto o banal se propaga livremente.
A contraposição entre a luta política e cotidiano é representada pela visão de um “narrador-repórter” que “acompanha o desenrolar dos fatos, cortando, montando e desmontando sequências” (SÁ, 1979, p. 3). Por meio da colagem de discursos dinamicamente inter-relacionados, esse procedimento representa as vozes da sociedade brasileira no período da publicação e rompe a vedação do contexto histórico da época ao explicitar as narrativas em que o dia a dia serve de cortina de fumaça para a ocultação da tortura e dos assassinatos cometidos pela ditadura militar.
Apesar de considerarmos que o estudo de todas as novelas nos trará, à frente, uma compreensão mais aprofundada da obra como um todo, nossa proposta, neste ensaio, é analisar somente “Os autos de Beatriz”, que narra os acontecimentos perturbadores que levaram à morte uma estudante envolvida na luta política durante a ditadura. Imbricando a transcrição de notícias reais de jornais de circulação nacional com depoimentos fictícios de transeuntes que viram Beatriz pelas ruas da capital paulista, em estratégia que aproxima o real e o fictício, o leitor toma conhecimento de que a jovem é identificada como uma opositora ao regime durante as manifestações estudantis do ano de 1977. Nesse contexto, alguns transeuntes são interrogados sobre a estudante, sendo o envolvimento dela com os opositores da conjuntura política confirmado. Pouco depois disso, Beatriz é sequestrada. Seu diário também é posteriormente capturado quando um representante governamental não identificado vai a sua casa. Apesar dos esforços da família e do noivo em encontrá-la, a busca é infrutífera, sendo o corpo da moça encontrado na marginal do Tietê (informação dada em nota de rodapé).
Apresentada como “um relato nada misterioso sobre uma bela jovem e suas experiências ultrapessoais no trato com a vida” (DAUNT, 1979, p. 3), a história de Beatriz trata, antes das “experiências ultrapessoais” da jovem, do uso exacerbado da força no regime militar. Com ironia, o narrador dissimula a temática da novela por trás da descrição frívola, ao igualá-la a outras criações divulgadas pelos meios de comunicação do período. O caráter da narrativa é revelado em sua dedicatória “aos ratos de laboratório que tanto contribuíram para as revoluções científicas; e àqueles outros ratos segregados nos esgotos do poder” (DAUNT, 1979, p. 5), trecho que fala sobre seres cujo destino é o choque dos laboratórios ou a marginalização dos esgotos. De forma análoga, o destino dos opositores do regime militar, uma vez identificados, era a perseguição e tortura, conforme ocorreu com Beatriz, ou o sumiço na surdina. Também como os ratos, esses indivíduos receberam pouca empatia de parte da população brasileira que preferia o desconhecimento à estância política por considerarem os subversivos – comunistas, estudantes, sindicalistas, entre outros grupos de oposição política – inimigos da nação.
Nesse panorama tensionado, a novela transita por diversos ambientes da vida pública e privada de Beatriz, antes e depois de seu sequestro. Nesta análise, focalizaremos as vias públicas em que são realizadas as manifestações, o porão onde a estudante é torturada e a própria página nas transcrições de seu diário, por considerarmos tais espaços fundamentais à compreensão da novela em suas repercussões estéticas e linguísticas. Desse modo, abordaremos duas dimensões, uma interna ao discurso literário, relativa ao universo fictício, e outra concretamente realizada como palavra impressa, cujos significados só podem ser recuperados quando levados em conta os sentidos depreendidos da narrativa em sua totalidade. Em ambos os níveis, interessa-nos perceber a repressão e a violência vinculadas aos espaços.
1 As ruas de São Paulo: perseguição política
Como ratos, os estudantes são perseguidos pelas ruas da capital paulista durante as manifestações de 23 de agosto de 1977 que dão início à obra. Os acontecimentos que iniciam a história são descritos por meio de recortes de trechos de importantes jornais brasileiros, publicados no dia seguinte, 24 de agosto, sendo imprescindíveis à natureza ambígua do texto no estabelecimento de pontos de contato entre o mundo referencial e a ficção. Cabe, brevemente, antes de adentrarmos as repercussões literárias que caracterizam as ruas da capital paulista como ambientes de repressão, situar o contexto histórico referido.
O ano de 1977, em que se situa o texto, foi extremamente relevante à luta estudantil. Depois de 1968, quando fora promulgado o AI-5, que abria precedentes para a perseguição a quaisquer indivíduo “no interesse de preservar a Revolução” (BRASIL, 1968), houvera um “silenciamento das vozes das ruas e a instauração de um tempo de medo, controle e repressão política e social” (LACERDA, 2017). Esse temor de organização social é rompido nove anos depois, quando as ruas são ocupadas pelos estudantes. As manifestações começam em 30 de maio, reunindo, em São Paulo, cerca de 5 mil pessoas saídas da USP. O ato foi marcante por ter deixado o ambiente universitário e seguido cidade adentro, apesar da tentativa policial de impedir essa movimentação.
Pouco depois da primeira passeata, é aprovado o Pacote de Abril por Geisel, que, dentre outras coisas, fechou o Congresso Nacional e criou o cargo do senador biônico, eleito indiretamente. Essas decisões políticas enrijeceram também as articulações estudantis, tornando-se uma das razões para a manifestação que reuniu 10 mil pessoas no dia 5 de maio na “Passeata do Viaduto do Chá”, sendo este o local em que os manifestantes ficaram presos pelo cerco policial. Lá, eles leram uma carta, distribuída para a população, que afirmava, dentre outras coisas, que “Hoje, não mais suportamos as correntes. Exigimos das autoridades o respeito às liberdades de manifestação, expressão e organização de todos os setores oprimidos da população” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1977, p. 18).
Com essa ação organizada, apesar da repressão por bombas efetivada pelo secretário de Segurança de São Paulo à época, Erasmo Dias, foram criados os Dias Nacionais da Luta (DNL) pelos estudantes, iniciativa que se popularizou nos diferentes estados do Brasil. Mesmo com a dura iniciativa repressiva, os movimentos organizados foram às ruas de São Paulo nos dias 19 de maio, 15 de junho e 23 de agosto. Nessa última data, que representa o momento político em que se inicia a novela de Daunt, os estudantes misturaram-se ao fluxo de pessoas da cidade e criaram “passeatas relâmpago” em pontos da cidade, tentando evitar a violenta resposta policial (LACERDA, 2017).
A narrativa posiciona o leitor no olho desses acontecimentos, quando, segundo a Folha de São Paulo, grupos de estudantes “fizeram várias manifestações, ontem, em São Paulo, entre 17 e 20 horas, em ruas do centro e em Pinheiros. Os manifestantes levavam faixas e cartazes pedindo liberdades democráticas e anistia e gritavam frases…” (DAUNT, 1979, p. 7). Os jovens não ficaram sós por muito tempo, pois o governo estadual tinha à disposição 20 mil policiais para repressão do movimento.
A topoanálise, teoria literária que entende espaço como “tudo o que está inscrito em uma obra literária como tamanho, forma, objetos e suas relações” (BORGES FILHO, 2007, p. 22), é um instrumento para a compreensão desses acontecimentos. As ruas ficcionais, que encontram correspondência nas da realidade, são espaços em que os estudantes não podem se manifestar livremente, sendo sua ocupação organizada motivo suficiente para o uso de violência e para a efetivação de prisões. É isso que fica evidente nos trechos a seguir:
“As Galerias eram o melhor ponto para se assistir às manobras militares…
Em alta velocidade, também em sentido contrário ao trânsito, as quatro viaturas pararam diante dos estudantes. Antes de descerem, os soldados jogam bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral. Depois atacam moços e moças com golpes de cassetetes.” (Jornal da Tarde, 24/8/77)
“Somente às 8 e meia da noite é que o comandante do policiamento da Capital, Coronel Nelson Trancessi, recebeu ordens do Secretário de Segurança: o policiamento de choque deveria ‘parar de ficar como gato e rato’.” (Jornal da Tarde, 24/8/77) (DAUNT, 1979, p. 8)
Os estudantes são dispersos e combatidos. Às 8 e meia da noite, portanto mais de três horas depois do começo das manifestações, há a ordem de Erasmo Dias para o endurecimento da repressão, de modo a fazer cessar a atividade dos manifestantes que, conforme consta na obra literária, faziam soar “palmas de pessoas que estavam nos prédios” (DAUNT, 1979, p. 8). A menção do Jornal da Tarde a “gato e rato” reforça a leitura de que os estudantes – como opositores da ditadura – estavam à mercê de uma força desproporcional, sendo os ratos a serem retirados de circulação. Mais uma vez, o caráter proibitivo de utilizar o espaço público para se opor ao regime instaurado fica evidente, tanto pelo uso de bombas e cassetetes como pela utilização do policiamento de choque contra a juventude desarmada. As ruas tornam-se, rapidamente, a concretização do conflito ideológico. As manifestações estudantis, consideradas ilegítimas pelo governo, são varridas das ruas pela força, apesar de muitos resistirem e tentarem ressignificar o espaço para a luta política.
Os relatos de agressões contra os estudantes, no bojo da criação ficcional, estão contrapostos a falas reais de Erasmo Dias, dadas respectivamente ao Diário de São Paulo e ao Jornal da Tarde: no primeiro, ele afirma que “‘A polícia não agirá, mas reagirá’” (DAUNT, 1979, p. 8), enquanto no segundo, em entrevista, diz que “O imponderável atingiu a tudo e a todos. Estive com o coração nas mãos” (DAUNT, 1979, p. 9). Tais declarações, postas lado a lado com excertos que apontam para a desmedida repressão policial orientada pelo secretário, demonstram vivamente a maneira com que a violência ditatorial não era explicitada por seus perpetradores, sendo omitida por meio das culpabilizações dos estudantes e da utilização de discursos persuasivos que visavam convencer a opinião pública.
No universo ficcional, Beatriz está entre os jovens que Erasmo Dias nomeara “extremistas comunistas” (DAUNT, 1979, p. 8). O relato que ela dá, não se sabe se em seu diário ou nas fitas gravadas durante suas sessões de tortura, está no cerne dos fatos:
“[…] se reagrupar novamente, um trinado, um grito, um corpo caído, saltar sobre a cidade e vencer o pânico mas estar e continuar leve leve e correr com os panfletos debaixo do braço caindo pelos espaços, reunir, dispensar, abaixo a ditadura, meu Deus, vamos gritar mais alto, as pessoas nas janelas entendiam que a gente queria gritar mais alto e que não bastava olhar do terceiro andar, mas ficavam como fantoches corrida louca até a 24 de Maio, papel caindo na frente da gente, envolvendo a gente, afagando a gente, como foi bonito, como doía o medo do cassetete, correr, olhar para todos os lados, ouvir as palmas dos moradores do lugar, pessoal de gravata, lojistas atrás da sua prisão comercial, Dudu com a camisa rasgada, sangue no braço, vamos, vamos embora, calma, calma […]” (DAUNT, 1979, p. 33).
As impressões passadas pela jovem correspondem à vivência da fuga, ao temor da violência e a experiência de comoção perante a resposta popular. Ela apresenta alguns elementos que não estão presentes nos jornais, como a chuva de papéis lançadas pelos paulistanos sobre os manifestantes em um gesto de solidariedade e apoio, a experiência dos corpos atingidos ao redor, a entoação de gritos de ordem. A sintaxe sem fôlego, de vírgulas sem nenhum ponto, parece emular a rapidez dos passos durante a fuga, o assombro de quem está sendo perseguido e sente antecipadamente a dor do cassetete. Nas ruas de São Paulo, a repressão toma forma e coloca em moção os acontecimentos que mais tarde levarão a estudante à morte.
2 Topofobia: espaços públicos e privados
Em “Os autos de Beatriz”, a topofobia é um sentimento manifestado diversas vezes pela personagem que dá título à produção literária. A ideia de topofobia deriva do conceito de topofilia, sendo este um neologismo em que estão implicados “todos os laços afetivos do ser humano com o meio material” (TUAN, 1980, p. 107). É, assim, uma inclinação favorável de determinado indivíduo com relação a um ambiente específico, abarcando todo o gradiente de experiências emocionais vinculadas ao espaço, desde o breve prazer estético ao envolvimento mais intenso, causado por alguma vivência marcante. Como sugerido pelo sufixo, a topofobia vai ao outro extremo, abarcando as rejeições emocionais a lugares que o sujeito considera nefastos ou ameaçadores (BORGES FILHO, 2007, p. 158).
Na transcrição fragmentada do diário apreendido pelos militares, dentre reflexões sobre amor e sexo, frases interrompidas sobre política e comentários banais sobre amigos e parentes, Beatriz expõe claramente a ansiedade e a neurose que vivem em seu âmago: “angústia diluída nos espasmos do meu cérebro que está molhado de coisas grandes e pequenas” (DAUNT, 1979, p. 27). Em termos estruturais, é notável como o estilo da estudante evita pausas e vírgulas, o que alude a uma necessidade de despejar tudo na página de uma vez e transmite uma inquietação constante, palpável. Ela é muitas vezes lírica: “tudo é reflexo de mim e não é mais bonito” (DAUNT, 1979, p. 27). Essa escrita, emotiva, pessoal, metafórica, vai aos poucos revelando a incapacidade de Beatriz de se ver livre de si mesma e de seu próprio medo. Se tudo é reflexo dela, e ela se vê à mercê da angústia diluída em coisas grandes e pequenas, tudo que é externo a ela endossa seu desespero. O espaço, dessa forma, e todos que nele vivem, aumentam tal sensação, tornando-se espelhos de seus temores.
A falta de linearidade da escrita e a fragmentação da linguagem de Beatriz estabelecem articulação entre forma de expressão e conjuntura social no interior do discurso literário. É nesse sentido, pensando especificamente no momento vivido pela jovem, que podemos compreender que, para ela, “viver solta no pavor é pior que a prisão de limites para redes imbricadas da minha carne que é foice é faca que é corte quando sairemos disso, hein?” (DAUNT, 1979, p. 27). É pior estar solta e vivendo na antecipação da prisão do que ter sua carne – foice, faca, corte, todos referentes que sugerem letalidade e força – aprisionada. Seu sofrimento é causado pela iminência constante daquilo que ela teme, pois “esse pavor é não agir” (DAUNT, 1979, p. 27). Antes de ser presa, a conjuntura política já encerrou sua consciência em um cárcere.
O medo da jovem apregoa-se diretamente a qualquer espaço em que ela se encontre: “ele vem sinto seus passos rondando minha cama e a janela do quarto deve mesmo ser esse medo que é maior que a realidade” (DAUNT, 1979, p. 30); “tenho certeza que é a mim que ele quer, trabalho, faculdade, quando estou no cinema volto-me vejo sombras e o foco da luz infiltrando pelos cabelos das pessoas que são manchas e ele é uma mancha fria” (DAUNT, 1979, p. 30); “corro corro até o ponto do ônibus mas ele também está lá para me cheirar e examinar” (DAUNT, 1979, p. 31). Nesses excertos, a falta de encadeamento das palavras, decorrente da ausência de conectores e de pontuação, torna-se um componente estético que traduz o medo e a angústia da personagem, sendo matéria para o desequilíbrio emocional sentido. Seja no quarto de dormir, onde passa noites acordada enquanto os pais repousam tranquilamente ao lado, seja no cinema, onde vai para se divertir com os amigos, ou mesmo no ponto de ônibus, na volta para casa, o elemento comum é a vulnerabilidade. O pavor despertado pela sensação de insegurança corresponde à impressão de perseguição: “um homem anda me seguindo por todo lado Duílio disse que podia ser coincidência impressão minha mas ele está em todo lugar” (DAUNT, 1979, p. 30). Esse indivíduo fantasmagórico macula todo e qualquer espaço, público ou privado, adensando a ansiedade da estudante e prenunciando o seu destino.
Para Tuan (2005), o medo é um sentimento complexo. Dele decorrem duas consequências: o sinal de alerta e a ansiedade. Segundo o autor, o primeiro corresponde a um momento central que rompe a calmaria e obriga o ser a optar entre duas escolhas, quais sejam a fuga ou o enfrentamento. A ansiedade corresponde, por outro lado, a um medo não fixado, que implica uma atenção exacerbada para antecipação da ameaça, seja esta real ou não. Um gasto psíquico muito elevado é implicado. Considerando o texto em análise, nota-se em Beatriz o segundo traço, posto que ela está sempre em alerta; mesmo durante um filme, há a ruptura súbita da calmaria. Isso faz com que ela enxergue o perseguidor e as “sombras” por ele lançadas em todos os ambientes, inclusive em sua casa. Ela chega a ouvir passos rondando a cama onde dorme.
Essa topofobia vinculável a qualquer espaço corresponde diretamente ao contexto autoritário. Nessa circunstância, o medo torna-se uma companhia constante, em especial para aqueles que, na clandestinidade, buscam articular a luta contra o regime ditatorial. A dominação, por ser hierárquica, contamina todos os espaços, em especial os públicos, como as vias em que são organizadas as manifestações estudantis, mas também os privados, que, suspendidas as garantias humanas, perdem seu caráter protetor.
O pavor sentido por Beatriz corresponde diretamente àquilo que ela sabe ser o desfecho que a espera: “ainda na alma o instante do medo, medo contínuo da chacina daqueles instantes, medo perene da perseguição tudo isto um medo da morte, um medo da tortura” (DAUNT, 1979, p. 36). O medo do ponto de ônibus, da faculdade e da casa se condensam em um último medo, absoluto, paralisante: o de ser capturada e levada para o espaço de realização da tortura. Na configuração linear inescapável à linguagem, o medo da morte, no trecho em análise, vem antes do medo da tortura, e não depois. Essa escolha, que poderia sugerir uma gradação perseguição-morte-tortura, quebra a lógica do que seria mais grave e irreversível (a morte). Essa configuração pode sugerir que o terror primário da estudante não é a morte em si, mas a morte em determinadas condições de violação. Nesse sentido, compreende-se uma primeira característica do porão: ele é o ambiente último da topofobia, o cerne do medo explicitado pela personagem e o espaço a ser evitado a todo custo. Ele sombreia os outros espaços, é a heterotopia de desvio², a quebra absoluta do normal. Todos os ambientes, para a estudante, são devassáveis, podendo levá-la ao porão e às suas irreparáveis consequências.
3 O porão: obscuridade e tortura
Beatriz, rato capturado para obtenção de informações estratégicas sobre companheiros do movimento estudantil, não é levada ao laboratório, mas ao porão, onde é duramente torturada e eventualmente morta. Para analisar esse espaço, em que se realizam atos de absoluta perversidade, utilizaremos novamente a teoria da topoanálise. Assim, observaremos as características do local, assim como as relações a ele vinculadas.
O local onde Beatriz é mantida presa, diferentemente das vias públicas, da casa familiar, do escritório de advocacia e da universidade que dão espaço a cenas do enredo, não é representado de dentro para fora. O leitor não é convidado a adentrá-lo, de modo que pouco sabemos sobre seu interior além do que é proposto brevemente por uma voz interventora¹:
(É uma casa com dois cômodos. Janelas dando para um pequeno jardim maltratado. Na última sala, uma mesa com dois telefones, uma máquina de escrever, uma estante, pastas, garrafa térmica. No subsolo, uma mesa, um gravador, uma cama de ferro, apetrechos cirúrgicos e outros, duas cadeiras.) (DAUNT, 1979, p. 22, grifo nosso.)
No excerto, conseguimos visualizar a residência para onde Beatriz é levada. O caráter enxuto da linguagem, pouco lírica e bastante referencial, cria a impressão do discurso híbrido, entre o roteiro teatral e o inquérito, em que os objetos são secamente descritos para montagem da cena ou para reconstituição do ambiente. Conhecemos, no térreo, os elementos vinculados à burocracia desempenhada pelos militares: o telefone, a máquina de escrever, as pastas. Esses objetos, dentre os quais destacamos o aparelho telefônico usado ao longo da novela para estabelecimento de contato entre Ribeiro, “responsável pela ação direta” (DAUNT, 1979, p. 21), e o Comandante, “zeloso de suas funções” (DAUNT, 1979, p. 21), são facilmente vinculados às ações desempenháveis no cômodo. Igualmente, os objetos presentes no subsolo muito revelam, em especial o gravador, para registro das declarações dadas pelos torturados, e os apetrechos cirúrgicos utilizados nas sessões de tortura. Além deles, mesmo os objetos mundanos, como a cama de ferro e as cadeiras, recebem função dupla no porão, pois, em simultâneo à utilização primária, também podem ser instrumentalizados como superfícies de violação do corpo.
Para Bachelard (1993, p. 209), o porão é o ambiente do obscuro, das “potências subterrâneas” da casa. Verticalmente, portanto, é o espaço que o Sol não alcança, onde fica tudo aquilo que deve ser posto longe dos olhos: as sobras, o entulho e, no caso da novela em análise, a violência, o estupro e o assassinato. Essa leitura é reforçada pelo fato de haver, internamente ao governo militar, a necessidade de encontrar locais que estivessem além dos olhos da mídia e do conhecimento da sociedade, conforme afirmação de Starling (2018, S.I.) sobre o termo “porões da ditadura”, que indicavam espaços “ocultos dentro da máquina do Estado”. A ocultação física do porão era também sua omissão ideológica, necessária à manutenção das ações clandestinas lá praticadas.
Na novela, o porão cumpre função dupla como cárcere e sala de tortura. Beatriz é mantida prisioneira enquanto os torturadores dão conta de seus afazeres cotidianos, aqueles que podem estar alocados no térreo da casa. Encarcerada indefinidamente, a estudante é violentada para que forneça informações suficientes ao gosto dos torturadores, como fica claro quando Ribeiro diz que ela só revelou “Alguns nomes, mas só de gente miúda. Vamos ver se ela testemunha” (DAUNT, 1979, p. 22). Em função da violência aplicada à prisioneira, seu paradeiro deve permanecer em segredo, a ponto de que o Comandante recomende “cautela” e ordene: “Tenho ordens superiores para que ela permaneça o mais incomunicável possível, o que quer dizer que o assunto não pode ser ventilado a ninguém, ouviu bem?” (DAUNT, 1979, p. 22). Mais tarde na narrativa, um jornalista será encontrado morto por ter descoberto o sequestro da jovem.
Enquanto Beatriz é mantida presa, o tempo se torna um inimigo de seus familiares, posto que, com os dias se estendendo no porão, ela vai sendo submetida a estratégias de deterioramento da integridade física e mental. Em um contexto democrático, o tempo de isolamento é a punição do cárcere (FOUCAULT, 2014). Para Beatriz, ao contrário, a estadia na prisão é parte da estratégia de tortura, e o castigo corporal é aplicado sem que seus crimes sejam apresentados, evidenciando-se o fim do pacto democrático. Mesmo em um contexto autoritário, entretanto, não sendo mais o momento histórico representado compatível com a tortura, o porão ainda é necessário. Nele, fora do interesse e do campo de visão da sociedade civil, tudo entra em suspensão. É esse benefício que é explicitado no seguinte trecho:
“(Lício desceu. O buraco é mais escuro, mais distante dos olhares dos transeuntes, mais propício a evitar a imprensa sempre tão curiosa de notícias. Ribeiro ficou atrelado à mesa, no manuscrito e na intenção.)” (DAUNT, 1979, p. 18)
A descrição exposta é representativa ao falar em “buraco mais escuro”, distante do mundo externo. O termo “buraco” pode significar, segundo mitologia indígena, “uma porta do mundo, por onde a morte permite que se escape das leis daqui da terra” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2017, p. 148). Essa leitura reforça a ideia dada por Bachelard sobre o porão como ambiente obscuro, adensando a vinculação entre o porão e a morte. O adjetivo “escuro” também se vincula à estratégia literária de não inserção da cena narrativa no interior do porão. Isso mantém o que lá acontece em segredo e reforça a solidão de Beatriz.
A violência praticada é descrita majoritariamente pelos próprios algozes, fora do porão: “Ela tem um probleminha cardíaco” (DAUNT, 1979, p. 24); “ela está com a cara arrebentada” (DAUNT, 1979, p. 24) e “Ela está quietinha, não fala coisa com coisa. Acho que o trabalhinho nela está terminado” (DAUNT, 1979, p. 32). É interessante perceber que, linguisticamente, o diminutivo é usado muitas vezes por Ribeiro, dono de tais frases, em uma escolha que eufemiza aquilo que está sendo dito. “Trabalhinho”, “probleminha” e “quietinha” são termos que podem servir como estratégia quanto ao Comandante, com quem Ribeiro fala ao telefone, sendo, portanto, sinal de deferência, e como escolha que omite propositadamente a gravidade daquilo que está sendo feito à prisioneira. Lício usa o mesmo procedimento ao se dirigir a Ribeiro: “Eu vou lá pra baixo dar uma espiadinha nela” (DAUNT, 1979, p. 17). O uso de “espiadinha”, aliado às suas outras declarações de ser a moça “tesudinha” e de que ele gostaria de “brincar com ela”, evidenciam que o termo pode ser usado para reduzir o impacto da palavra estupro, relativa à violência sexual praticada contra Beatriz.
Também conhecemos a palavra da estudante por meio de uma gravação, único registro interno ao ambiente de tortura. Nela, fica evidente o delírio da jovem:
mam, onde está, mam, minhas unhas estão tão compridas, mam, corta pra mim, corta… não bate mais não, bate não, mam, eu não quero mais a sopa, eu juro que não quero mais, corta pra mim, mam, eu quero ouvir você cantar, mam eu vou pro colégio, sim… a madre disse que é pra você cortar minhas unhas, mam, não bate em mim, mam… ela falou que sou boazinha porque nunca fiquei de castigo no colégio, a madre… larga, Dudu, larga a minha boca, larga que eu quero falar, você não pode impedir que eu fale, larga, eu quero ficar sozinha, eu quero………………………………………………………………………………………….. mam, minhas unhas, mam, corta minhas unhas, mam, corta elas, corta………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………. (DAUNT, 1979, p. 35)
De acordo com Viñar e Vinãr (1992, p. 46), existe um momento “onde o sofrimento do corpo de um sujeito, outrora ileso, se converte em uma experiência destruidora, de abandono”. Depois de sofrer profusamente com as dores dos métodos de tortura, dentre os quais os teóricos destacam a privação sensorial, a ruptura com o mundo externo e a dor física, o torturado entra em um estágio de “desmoronamento”, “que desloca o indivíduo de seu mundo amado e investido para o colocar diante de um buraco sinistro, repleto de vergonha, de humilhação, de urina, de horror, de dor, de excrementos, de corpos e de órgãos mutilados” (VIÑAR; VINÃR, 1992, p. 47). A esse momento, caracterizado pela incapacidade de entender aquilo que é externo ou interno ao corpo, segue-se um momento de reorganização que pode seguir alternativas diversas, a depender do sujeito. Uma deles, segundo os autores, é a alucinação. No caso específico de Beatriz, como fica evidente no excerto, os métodos violentos são substituídos por momentos anteriores, vividos na presença de pessoas amadas, a quem ela atribui as dores sentidas, talvez em uma tentativa desesperada de reduzir o sofrimento do contexto vivido. É possível notar indícios de loucura pela repetição obsessiva do termo “mam”, apelido carinhoso destinado à mãe, e pela transição rápida entre episódios cujas vinculações são tênues, quando não inexistentes (a presença da mãe, da madre e de Dudu parecem não ter associação direta). Além disso, a repetição incessante de reticências apontam para os momentos de perda de consciência da jovem, em um procedimento que evidencia uma ironia cruel: ela diz “Dudu, larga a minha boca que eu quero falar, você não pode me impedir de falar”, pouco antes de ser definitivamente silenciada, restando apenas a marcação da ausência de sua voz.
Na escuridão, interrompida somente pela gravação de Beatriz, tanto o leitor como aqueles que buscavam a moça têm como incertos os golpes que vêm a assassiná-la. As consequências são explicitadas, mas não a tortura. Por isso, pelo fato de o espaço de violência continuar inexplorado pelos olhares externos, fica evidente a necessidade de, mesmo em um “lugar sigiloso, indevassável” (DAUNT, 1979, p. 17), como é descrita a casa para onde a jovem estudante é levada, existir um porão. Talvez essa seja a solução que apazigue térreo e porão, televisão e tortura: o fato de a existência de um lançar as sombras necessárias para a existência do outro.
4 Grito empalhado: o diário de Beatriz
Existe uma dimensão espacial, na literatura, que não corresponde ao nível da representação, meramente, e sim ao fato de que a palavra, como realidade material, ocupa as páginas de uma forma específica. Nessa leitura, não é apenas o nível referencial o que interessa, mas também a maneira com que os termos, frases, períodos e parágrafos se organizam ao longo das superfícies onde estão inscritos. Essa percepção é mais comum em poesia, mas também se aplica à prosa, em especial em momentos em que a obra possibilita ao leitor momentos de quebra do pacto ficcional e reflexão sobre a linguagem ali exposta. Desse modo, “o texto literário é tão mais espacial quanto mais a dimensão formal, ou do significante, é capaz de se destacar da dimensão conteudística, ou do significado” (BRANDÃO, 2013, p. 65). Para abordar uma tal perspectiva, não consideramos o verbo destacar, postulado pelo teórico, como sinônimo de prescindir, posto que não pode haver, em nossa percepção, a excludência mútua entre signo e sentido. O que isso implica, em lugar de uma distinção absoluta, é a possibilidade de percepção de uso da linguagem em si mesma, podendo ser essa dimensão aliada a uma leitura interpretativa da literatura.
Em “Os autos de Beatriz”, como em outras obras da produção ficcional de Ricardo Daunt, há diversos momentos em que o espaço literário se eleva à condição de componente estético e assume o protagonismo, tornando a compreensão uma segunda (mas igualmente importante) consequência. Isso ocorre nas transcrições do diário de Beatriz, em passagens em que a linguagem é abruptamente interrompida. Nas páginas, extraídas da intimidade da jovem, vazios impedem a leitura, como se os trechos tivessem sido apagados ou rasgados. A impressão imediata trazida pela configuração é o questionamento da editoração do exemplar do livro. Logo, entretanto, fica evidente que a estratégia ocorre propositadamente, posto que os termos próximos aos trechos extraídos do relato de Beatriz são bastante reveladores:
“quando mais nos pressionarem, reprimire
mais de nós restarão e nascerão e combat
dicarão e lutarão pelas liberdades demo
“vitória do grupo UNIÃO é a vitória
É a vitória do programa, melhores co
Delegação de poder a partir da base
fim da ditadura, eleições livres
organizado, liberdade de impre
entidades gerais, UNE, UEES
em torno dos CAS, DAS e DC
sei o que estou fazendo,
a chapa venceu, nós ve
por nós
(DAUNT, 1979, p. 28)
Ao tentar aferir o sentido das anotações da estudante, é possível perceber a volição envolvida nos apagamentos, assim como as repercussões que tais vazios assumem dentro da narrativa. A irregularidade das frases, tal qual transcrita acima, sugere que o diário foi submetido a alguma ação descuidada, que não atingiu todas as palavras igualmente, nem seguiu uma linha cartesiana. As palavras remanescentes sugerem um campo semântico facilmente identificável: o movimento estudantil, suas entidades de representação e suas disputas internas, como fica claro nas menções à UNE (União Nacional dos Estudantes), à UEES (União Estadual dos Estudantes de São Paulo), aos CAS (Centros Acadêmicos), aos DAS (Departamentos Acadêmicos) e ao DCE (Diretório Central dos Estudantes), cujo “E” é omitido. Desse modo, a inserção da estudante nos movimentos fica confirmada por ela mesma, que se mostra segura de si nesse meio: “sei o que estou fazendo”. Já as palavras amputadas podem ser, em sua maioria, recuperadas: “reprimirem”, “combaterão”, “democráticas”, “imprensa”, “vencemos”. Esses termos, especificamente, situam-se em outra esfera de disputa, não mais interna à universidade, por estarem diretamente vinculados ao enfrentamento da ditadura. É flagrante que ambos os sintagmas nominais que tenham “liberdade” como núcleo sejam cortados: liberdade demo(crática), liberdade de impre(nsa), ambas castradas ainda nos respectivos vocábulos.
Essa estratégia se estende por aproximadamente três páginas. Encolhida entre dois parágrafos sobre política, algumas menções da jovem a um relacionamento por ela mantido também acaba suprimida:
“de todo esse temp
te toco, você e su
nibida mas o que é isso
agora finalmente juntos
lindo melhor muito melhor
trabalhar que a loucura a
com a comunicação, com
“A experiência histó
ça em 68 o Brasil e hoj
África do Sul atualmen
ciaram dentro da Unive
mocráticas e/ou anti i stas
trapolar os muros da Universidade, traz
tros setores de movimentos de massas, ma
ter resultado mais consequente caso a cl
surgisse com única direção real e capaz
Entretanto devemos assinalar e enfatizar
um papel auxiliar na luta do proletariado
porque as radicalizações do ME têm uma li
é determinada pelo próprio caráter de
(DAUNT, 1979, p. 29)
Comparadas às outras menções explícitas de Beatriz ao sexo, não apagadas do diário, como “tenho vontade de espremer junto ao peito tudo o que foi e espalhar o líquido e a massa orgânica de nós pelo corpo todo, lábios, diluir-nos completamente pois eu acho que só assim serei água […]” (DAUNT, 1979, p. 31), percebe-se que as primeiras linhas do trecho em tela devem ter sido omitidas ou pela proximidade com o discurso subversivo, político, ou por conterem alguma informação não recuperável pelas palavras ainda expostas. A segunda parte, entretanto, começada nas segundas aspas, retoma a perspectiva de combate, trazendo à tona alguns termos-chave para compreensão da construção axiológica da personagem: “movimentos de massas”, “proletariado”, “radicalizações”, todos vocábulos vinculados aos ME (Movimentos Estudantis). É possível perceber, assim, nas palavras de Beatriz, sua posição política, que reflete a hegemonia cultural da esquerda no período³.
Os apagamentos reformam a noção de espaço da página e, de certa forma, a própria ideia de palavra literária. Essa estratégia, apenas brevemente comentada até aqui em seu potencial como representação, emula a censura do período ditatorial, impedindo que Beatriz, mesmo depois de sua morte, tenha direito ao registro de seus ideais. Nesse sentido, o envolvimento exato da estudante com os movimentos de combate à ditadura permanece difusa, assim como a profundidade de suas reflexões sobre os acontecimentos da época. Entendemos que a violação do diário aponta para a ação da polícia como responsável pela supressão da palavra e pela censura, apesar de ventilarmos a possibilidade de Beatriz ter tentado violar o diário para se proteger, o que nos parece mais improvável pela ausência de menções dos militares a trechos apagados do diário.
A censura foi, durante a ditadura militar brasileira, uma ferramenta usada para silenciar todo e qualquer opositor. Muitos artistas, lideranças, jornalistas, escritores, universitários e obras foram vitimados pela censura nos diversos ambientes em que ela se fazia presente, seja como impedimento discursivo a determinados assuntos, seja como destruição física de materiais considerados subversivos. Em termos discursivos, a censura implica o silenciamento, que é, de acordo com Orlandi (2007, p. 74), o apagamento de sentidos, a determinação dos “limites do dizer”. Existem, para a autora, dois tipos de silenciamento: o constitutivo, que corresponde aos silêncios decorrentes de qualquer interação comunicativa, cuja opção por determinados termos ocorre necessariamente em detrimento de outros; e o local, sendo este uma deliberada separação entre o que pode e o que não pode ser dito. A censura enquadra-se nesse último, sendo “a interdição da inscrição do sujeito em formações discursivas determinadas” (ORLANDI, 2007, p. 76). Assim, o indivíduo é impedido, autoritariamente, de transitar em certos sentidos. A ideologia única é incentivada, e qualquer outra que se imponha é considerada inimiga. Apesar de Orlandi enxergar esse debate no campo do discurso, não imputando a ele traços linguísticos, esta análise identifica, nos vazios deixados onde antes existia a palavra de Beatriz, elementos materiais que representam literariamente a repressão, transpondo um acontecimento da realidade para o texto literário.
É interessante perceber, considerando as colocações da teórica, como o diário de Beatriz é inicialmente um espaço de liberdade, essencialmente pessoal. Por esse motivo, suas conjecturas políticas, sugeridas pelas palavras mantidas nas páginas, ocupam espaço considerável, com o uso de termos sabidamente proibidos no período. Apesar das interdições, ela manifesta abertamente suas preferências políticas. Ao ser tomado pelos algozes, o diário, antes esfera íntima em que sua proprietária revelava suas vinculações e suas identificações, torna-se espaço repressivo, pois passa a veicular o impedimento da realização verbal. Se a censura engessa a palavra e impede sua realização íntegra, é preciso observar que, como procedimento autoritário interno ao discurso literário, ela também traz à superfície o silenciamento operado, causando, por isso mesmo, o preenchimento de sentidos. O registro dos apagamentos, da maneira como é elaborada, estruturada em vazios, não substitui a palavra omitida, mas permite a impressão distinta da existência do verbo ceifado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, buscamos demonstrar como são constituídos os espaços repressivos na novela “Os autos de Beatriz”, do escritor Ricardo Daunt. Para isso, utilizamos as noções da topoanálise e da espacialidade linguística, considerando que o texto literário opera simultaneamente nos níveis referencial e estrutural. No primeiro, reconhecemos, nas ruas, traços concernentes à repressão realizada, assim como os efeitos dessa repressão em Beatriz, que desenvolve, por medo de ser capturada, pavor absoluto do entorno, uma topofobia volúvel, vinculável a qualquer local. Ainda nesse âmbito, o porão é analisado em sua obscuridade como estratégia de concepção da tortura. No segundo nível, o diário parcialmente censurado da estudante demonstra o controle rigoroso sobre a palavra opositora, mas, simultaneamente, cria espaços de respiro, posto que permite o reconhecimento dos mecanismos de censura. Desse modo, há, de um lado, a perseguição e prisão do corpo, da lucidez e da integridade física e psíquica; e, de outro, o encarceramento dos ideais e da construção de sentidos. A morte de Beatriz e o apagamento de suas ideias são violências que, no contexto da novela, estão postas lado a lado com a rasura de sua história.
A narrativa não se reduz à natureza comunicativa na abordagem das ações criminosas e na castração dos direitos à liberdade de expressão, ou seja, não se move apenas pela transmissão de conteúdo. As palavras assumem grande protagonismo, dispostas em um caleidoscópio de gêneros textuais, dicções sociais e recursos estéticos. A fragmentação da linguagem, o uso de palavras e frases entrecortadas, a opção por sentenças que se estendem por páginas, a exacerbação das adjetivações e descrições na voz da estudante, o repertório clínico e esterilizado dos torturadores, a morte significantemente relegada ao rodapé da página, os apagamentos feitos na superfície textual, todos esses elementos apreendem a realidade histórica e a transformam em meios expressivos, aprofundando o alcance e o impacto da obra literária. Com isso, o autor consegue criar, na novela, a impressão distinta de que a escrita caótica emula a vida social representada, falando mais sobre a realidade do que a própria realidade o fez, sendo a ficção, assim, uma resposta ao mundo exterior, ao qual, por meio de procedimentos que evidenciam a banalização do trágico e do violento, ela se opõe.
Notas
1 A voz que intervém na novela sempre entre parênteses situa os espaços e as ações e, algumas vezes, traz falas e registros que possibilitam a compreensão daquilo que reside nas sombras e no silêncio.
2 As heterotopias de desvio “alocam os indivíduos cujo comportamento é desviante em relação à média, ou à norma exigida” (FOUCAULT, 2013, p. 117). Beatriz, nos termos atuais, não é criminosa, mas desviante em relação à norma exigida, o que, à época, era razão suficiente para sua prisão. Pensar e agir contrariamente aos interesses dos militares implicava a suspensão de direitos.
3 Roberto Schwarz (2009) menciona essa hegemonia em seu texto “Cultura e política, 1964-1969”.
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RICARDO DAUNT . TRIBUTO