Ode espacial

JULIÃO BERNARDES


Os navios continuam a partir e a voltar

Aos mesmos cais tumultuosos

Cheios de movimento, da sua agitação própria,

Feito de cargas, de descargas, de correrias,

De transportes, de amarrações, de subidas e descidas,

De impropérios que são gritos de alento e de apoio…

Já não me fazem vibrar como antigamente.

 

Levaram-nos à descoberta de outros Continentes

Neste planeta que já pouco tem por desvendar,

Transportando em cada convés e porão a nossa memória,

Os nossos sonhos e as nossas esperanças loucas

Em viagens horizontais.

 

Todo o cais é já uma memória plena de passado,

De todas as viagens que empolgaram a minha imaginação,

É a história trágico-marítima e as rotas comerciais…

 

Mas desvendado o mistério outros mistérios há.

Os aviões, barcos-a-remos-aéreos do nosso espaço-mar,

Vieram permitir-nos dobrar inimagináveis cabos

Onde não existe o medo do velho Adamastor.

 

Aproximaram os continentes e os povos,

Permitiram que os meses se transformassem em horas,

Foram o início das aventuras ao espaço ilimitado,

Das viagens verticais que sempre nos aguardaram

Ao encontro dos castelos fantásticos, reais ou irreais,

De novos futuros a viver.

Observando um aeroporto em movimento

Sinto a Alma a começar a flutuar mais livremente.

 

Os aviões que chegam, os aviões que partem, todos eles,

Lembram-me os foguetões, as naves pilotadas

Que mergulham no nosso sistema solar, corajosamente,

Na escuridão profunda do imensurável desconhecido,

À descoberta de outros mundos para lá das nuvens,

De novos planetas com seus anéis e suas crateras,

Seus satélites, suas partículas e poeiras de gelo.

 

Há sempre o imponderável desconhecido à nossa espera.

Novo atracar, novo largar, novos sonhos

Que perturbam de igual modo o meu inacessível ser.

Parto com eles! Vou com esses novos marinheiros,

Argonauta sem curso da paz sempre anunciada,

À descoberta do que há para lá do que se vê,

E sinto-me mais próximo da nossa Origem-Destino.

 

Minha imaginação é um navio que voa, lá no alto,

De névoa em névoa, da sombra à luz,

Cada vez mais alto, cada vez mais depressa!

Atravessa trovões, relâmpagos, ares em movimento,

De planeta em planeta, cronometricamente

E a minha Alma começa a girar, flutuando sempre.

 

Turbilhões de estrelas, indícios, sinais!

O meu pensamento sempre atrás dos sentidos

Ao encontro de um inabalável chamamento.

E as velhas angústias brilhando como o Sol,

Os silêncios pesando como cidades adormecidas.

As pessoas que sofro dentro de mim, avaramente,

Estão cheias de saudades de outros aeroportos,

E querem partir, partir, largando amarras…

 

Ir ao encontro da imemorial imensidão!

 

Todo o aeroporto é uma vertigem para Deus!

E eu lanço-me no espaço da minha febril consciência

A descobrir novos planetas e seus satélites-luas.

Mergulho nas suas atmosferas, respiro-as…

Hidrogénio, hélio, metano… o que for!

 

Transformo o meu corpo em partículas microscópicas

E dou-lhe novas formas incoercíveis

Que são brinquedos nas minhas mãos criadoras.

 

O estrondo inimitável da passagem da barreira do som

Faz-me estremecer em ânsias de Distância,

Em ânsias de imortalidade inatingível e não desejada,

E o meu coração sofre todas as impurezas humanas,

E a minha Alma gira a flutuar

Cada vez mais solta.

 

Vou a Mercúrio, Vénus, Marte, a todos os planetas!

A Júpiter e seus dezasseis satélites!

A Saturno e seus vinte satélites!

A Urano e seus quinze satélites!

A beleza de Tritão!…

Os tons de cada um, diferenciados…

Rosa, vermelho, azul… inolvidáveis.

 

Sou cientista, astrónomo, astrofísico,

Recebendo informações das sondas espaciais

À velocidade de trezentos mil quilómetros por segundo

Em dezenas de milhar de fotografias e registos.

Estudo-as… Tiro conclusões… Traço planos…

Ganho uma força nova, incomensurável.

Sem esforço sou um turbilhão.

Tudo em mim é movimento, harmonia em movimento,

Tudo é uma sinfonia perfeita de sons,

De cores, de cheiros, de paladares,

Em movimento, em movimento, em movimento!

 

Projecto inacabado e indecisamente lúcido,

Posta-restante a que não chega senão o correio que

[ninguém quer,

Cheio de um cansaço oblíquo de ser o que sou,

Saturado de pátrias, de deuses, de falsos profetas,

O meu corpo é um cavalo louco de freio nos dentes

Que a minha Alma transporta através de íntima quimera,

Sem fantasmas, sem medos, sem incertezas, sem

[ressentimentos.

Tranquilamente imutável, a minha Alma continua girando

Cada vez mais solta, mais leve, mais simples, mais pura.

 

Entro no espaço interestelar em trajectória de desafio

À descoberta de outros sóis, de outros sistemas solares!

Vou de galáxia em galáxia, em náuseas de insuportável

[lucidez!

Sou todas as galáxias do Universo!

Sou Andrómeda, Sírius, todas, todas,

Mesmo as que ainda estão por descobrir!

Ultrapassei o limite infeliz de todas as derrotas…

E o equívoco de ser este ser que sou, desfez-se na

[interminável noite líquida.

 

Vejo-me lançado na voragem implacável e fascinante

Do Grande Desafio, feito de estrelas, de sol e de luar.

 

Meu corpo já nem dou por ele, perdi-o…

Sou todos os poetas, todos os mendigos, todos os

[pecadores, Todos os sofredores, todos os deuses…

Sentindo profundamente tudo, já nada sinto.

Sinto e permaneço eu, despido das minhas emoções,

Inalterável Alma girando, sem parar,

No espaço interior das minhas interrogações,

Das minhas dúvidas, dos meus anseios,

Das inamovíveis maldições que apenas entrevejo

E me entontecem em emoções inapreensíveis.

 

Em turbulências de um efeito propulsor aceleradamente

[criador

Atinjo o Fogo Central do Universo todo,

Lá, onde fui criado, lá, onde tudo será criado,

E vivo todas as vidas passadas e futuras,

Esquecido do desencanto quotidiano dos pesadelos sem

[sono.

 

E a minha Alma atinge os limites da velocidade infinita.

 

Ah! Vou finalmente conhecer a estrutura do Universo!

Vou finalmente conhecer-me no fascínio da primeira vez!

Vou ser todas as naves, todas as sondas, todas as informações,

Pelo espaço afora, intangível sombra sem forma,

[vogando… vogando…

 

Mas, inadvertidamente, toquei o silêncio com a lógica

[da lucidez

E um curto-circuito fechou-me as portas dessas visões

Trazendo-me a aparência ofuscada e irreal ainda

Da janela de onde me debruço sobre a noite.

Tomo consciência do meu corpo assim abandonado

Quebrando-se o fascínio do tempo indefinido,

E a minha Alma pára, decididamente indecisa.

De olhos abertos, quase sem pestanejar,

Sei que estou acordado (estarei?),

E que tudo o que pressenti, e vi,

Há-de suceder para além de mim.

 

Há qualquer coisa que me faz tentar pensar.

Tento resistir.

O pensamento não pode estragar definitivamente

Esta maravilha de imagens incompreendidas

[(incompreensíveis?)

Que vejo no meu interior como um filme.

 

O meu ser-total anseia por esses momentos fugazes de

[êxtase

Em vibrações de incontrolável saudade

E respira a recordação-perfume de cada átomo-espaço de

[deslumbramento

Em que, em relâmpagos, entreviu a beleza do Universo

E a simplicidade incompreendida dos mistérios todos.

 

Será a morte como a chegada do rio ao mar,

Onde tudo se junta e tudo se recomeça?

Na noite silenciosa e calma volto à tranquilidade

[do meu quarto

Com o sangue pulsando ainda ao ritmo de inolvidáveis

[miragens.

 

Talvez adormeça e sonhe em cor-de-rosa…

E a minha Alma girará, talvez, a flutuar…

 

Todo o começo é um recomeço.


Participação no 4º Encontro Triplov na Quinta do Frade. Mosteiro de Santa Maria, Lisboa, 4 de novembro de 2017


© Revista Triplov  .  Série Gótica .  Inverno 2017