O último rei de Portugal

 

MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO


«Acorda, Portugal, do teu desmaio!
Que o nevoeiro da lenda matutina
Escureça, ribombe e gere o raio!» 
Guerra Junqueiro

 

O CABO DAS TORMENTAS 

Meus dias, uma sombra Além de lá.

Cumprindo o Destino de um mar sepulto.

Disse-me Deus, em sonhos: Deus não há.

Só fantasmas, ânsias. E um mistério oculto.

 

E o mar em impropérios fez  Continentes,

Vomitou a Terra, o ar e o céu que atravessou;

E, em vários continentes, d’ Oriente a Ocidentes,

Ergueu, do sonho negro, o Mostrengo que falou:

 

— Pois venha o que não Há que é já Império,

O sonho que foi morto é já no ventre.  —

E Deus, sem porto, nem sombra de mistério,

Juntou o mar ao céu. Tornou-se crente.

 

Rodou o Mostrengo então. Rodou três vezes.

Três vezes mais rodou além de estreme;

E Deus, da velha Nau, daqueles revezes,

Tornou-se Português. Com Bojador ao leme.

 

MAGISTÉRIO

Ó Portugal! O destino é teu!

Um Rei te fadou no trono dum Império!

E em teu doce seio, maternal, nasceu,

Não Portugal, mas todo o Magistério!

 

DOM SEBASTIÃO

Quem soube Ser? Quem trouxe a Nau

Antes de mim? …

Porquanto o mar imenso me chorou,

Sangrando no «areal moreno» lágrimas de sal,

Naquele dia perdido, de alma imersa no globo,

Em nevoeiro e fogo e o céu sereno …

 

E o Sonho mau que tive, aqui, me veio buscar,

Querendo desvendar mais do que o mar …

Sonhando meu Ser, Senhor, sem acabar …

Nesta Antemanhã de Esperança, onde um dia

Irei despertar …

 

Loucura? Loucura, sim.

Loucura de compreender o que Portugal

Me segredou daquela Nau antiga que vi partir,

Em febre, ânsia e porto, e o mar enfim,

E a Saudade imensa de quanto amor Houve …

 

Ah, mas quando? Quando?

Quando regressei a mim,

De minha leda Esperança, que Hoje há,

Que tresloucou meu Ser,

Onde El-Rei está?

 

NAUFRÁGIO E SER

O mar sozinho pode crer e ser.

O céu tem outro poder: O de negar.

Mas Portugal ousado, a abranger,

Aos seus, deu voz! E à Terra, o mar.

 

E sempre unido à Rosa, de Onde nasceu,

Entre naufrágios, perigos e glória,

Ergueu do abismo o Sonho que O deu,

Soltando, das mãos, a Forma da História.

 

PRECE

Senhor, a era é nova! E a Luz exalta

A Realidade que trouxe a História

A Portugal cumprido. E à Hora que falta,

A Arte e o Céu, em Terra e glória!

 

O TEATRO

O Homem representa. O Céu é ave.

E, onde os sinais da terra são do mundo,

A Deusa guarda, mais Além, a sua chave

Para dar ao céu, o Sol. E ao Gesto, o largo fundo.

 

PEDRO NUNES

Diluído numa esfera d’ oiro, a arder,

Ao Sol escaldante, e amante do rigor,

Tracei inventos, sonhei d’ alto o Ser,

Por ser d’ além a Noite do esplendor.

 

E com a esfera na mão, e aquela   Ogiva

Num rubro turbilhão de sinfonia,

Meu sonho turbulento e à deriva,

Deu nervos d’ oiro ao mar e à esquadria.

 

Hoje, ergo-A ao alto. E com o nónio, na mão,

Medindo o mar com a astronomia,

Por ser o Sol o meu rigor d’ Irmão,

 

Dei ao mundo mais que a engenharia,

Fui poeta desses astros, qu’ inda são

Rubis do Céu e da Cartografia!

 

ANTÓNIO VIEIRA

Num país de cerração e de surdez

Outrora fui alguém, a quem Portugal voltou a Face,

Sendo, no solo páreo, o céu que é português,

Traçando meu ser a Mãe e o seu Disfarce.

 

Mas, Hoje, terra e céus são um. Portugal

Fez-se, ao Longe, um farol de mar e sal

Beijando o Sol, o uno litoral,

A Língua-mãe, o Véu, e o Santo Graal.

 

ÂNGELO DE LIMA

Ó memória daquela noite escura

Que desabrochou ao pé da sepultura!

Fui devoto desta morte impura

Sábio apedrejado por não haver loucura…

E senti cair essas noites turvas,

Místicas de horas, místicas de ruas,

Em formas poderosas d’ águas curvas,

Com ouros, esmaltes, anéis nas luas…

 

E do trono dum Império consagrado,

No gesto da demência dum país selvagem,

Dei ao Oceano o gesto sossegado,

 

Em campas do Ocaso, onde o mar é pajem,

Buscando ali a Paz, o reino coroado,

A Terra, Zeus. O espírito da Margem.

 

FERNANDO PESSOA 

Chove.

Chove mais. Chove

sobre

mim…

 

E a porta do Templo,

fechada,

soa em timbras lá

por dentro…

 

Quem chora? Quem

jaz o morto,

ali? E minha alma sem Templo

viaja,

lá por dentro,

na sombra fria da Esfinge

que é esta Hora sem mim.

 

Fita por dentro! Fita outras cousas

dentro de si…

 

Estou só.

Mais só que todo o Templo!

………………………………….

O Templo abriu as portas.

Sinto a espada,

As espadas.

O ser maior lá Fora…

 

 NATÁLIA CORREIA

Floriu imensa. E até a divindade a viu

Beber da Fonte ouro e estrelas: pérolas

Encantadas, da noite, que cobriu,

Coroadas de estrelas e de auréolas.

 

Partiu p’ rás Índias no azul imenso

Das águas ou do céu, mão do Ocaso;

Partiu com «lírios e feras», intenso

Fado onde havia pérolas num vaso.

 

E no esplendor das mesas penteava

Sonhos, ondas, séculos de cristais:

Verdes sombras verdes que transformava

 

Em clarões, poeiras, risos de adegas,

Que no calendário das águas musicais

Servia a morte com magias cegas.

 

FERNANDO DACOSTA

As flores dos mosteiros:

Uma navegação de heras

E de harpas.

Um lirismo de espelhos.

Digo: gruta     violinos:

 

Uma vocação de latim

E de areias.

 

IMPÉRIO

Sou um rei.

Um rei no alto dos nomes.

Um rei-ouro.

Um rei-ourives.

Um rei-novo.

 

Sou um rei com mãos de fogo.

 

In: O ÚLTIMO REI DE PORTUGAL, Fundação Lusíada, Lisboa, 1992


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