Saudade de futuro
MODERNISMO PORTUGUÊS
Organização de Antoneli M. B. Sinder e Daniel M. Laks
TRAÇAR O SEMBLANTE DA MODERNIDADE,
NO PERCURSO INQUIETO DAS IMAGENS
Por Izabel Margato
Resumo: O modernismo e a configuração de suas imagens em poemas de Charles Baudelaire, Cesário Verde e Fernando Pessoa. O pintor da vida moderna no cotidiano das grandes cidades. As reconfigurações do passado no percurso inquieto das imagens que em movimentos contínuos atravessam a porosidade das épocas. A sobrevivência e configuração das imagens nas obras de arte.
Abstract : Modernism and the configuration of its images in poems by Charles Baudelaire, Cesário Verde and Fernando Pessoa. The painter of modern life in the everyday life of big cities. The reconfigurations of the past in the restless journey of the images that in continuous movements cross the porosity of the times. The survival and configuration of images in works of art.
Palavras chave: Modernismos, Charles Baudelaire, Cesário Verde, Fernando Pessoa, George Didi-Huberman
Diante de uma imagem – por muito antiga que seja –, o presente nunca cessa de se reconfigurar, mesmo que o desapossamento do olhar tenha completamente cedido o lugar ao hábito enfadado do «especialista». Diante de uma imagem – por mais recente e contemporânea que seja – também o passado nunca cessa de se reconfigurar, já que esta imagem só se torna pensável numa construção da memória, senão mesmo do assombro.[1]
Este texto nasce da retomada de alguns fragmentos dispersos em textos de poetas do Modernismo português para aproximá-los e revê-los a partir de assertivas presentes em textos de Charles Baudelaire, o vate que impôs a si mesmo a tarefa de “dar forma à modernidade”.[2] Ao assumir essa tarefa, Baudelaire procede de saída ao mapeamento de um semblante de poeta que, a cada traço, marca uma ruptura intransponível entre dois mundos, e se constitui como o signo e a “expressão de uma crise da cultura, particularmente ambígua”[3].
O semblante do poeta moderno será o de um “novo herói”, articulado a partir de uma sucessão de alegorias, melhor dizendo, a partir de uma sucessão de imagens móveis que, na interpretação de Walter Benjamin, Baudelaire construiu conforme a sua própria imagem de artista.[4] O primeiro traço desse semblante associa a imagem do poeta ao trabalho. Nos tempos modernos, o poeta não tem mais os atributos ou a posição privilegiada que lhe garantia a sobrevivência. Trata-se do tempo do desemprego do poeta e, por isso, como o flâneur ou a prostituta ele vai à feira. Baudelaire sabia como se situava o literato que, ao dirige-se à feira pensa que é para olhar, mas, na verdade, já está à procura de um comprador.[5]
Essa nova condição, se por um lado delineia a imagem do poeta como aquele que vende os seus pensamentos, por outro, o associa à imagem do esgrimista, do poeta sem aura que, para ser livre terá de abrir mão do seu antigo papel[6], terá de aprender não só a esquivar-se no movimento incessante das ruas, mas também a contra-atacar, lançando mão de uma “estranha esgrima”, para poder sobreviver às novas leis do mercado que fazem de sua obra mais uma mercadoria em exposição. E assim, a cada nova imagem criada por Baudelaire o semblante do poeta moderno vai adquirindo um novo contorno. Certamente, a construção dessa alegoria ficaria incompleta sem a intersecção da singular figura do trapeiro. A descrição da imagem do trapeiro é interpretada por Walter Benjamin como uma dilatada metáfora, construída por Baudelaire, para traçar o percurso do poeta moderno:
Aqui temos um homem – ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis e agradáveis.[7]
A partir da configuração de mais esta imagem, Baudelaire elege a rua da grande cidade como o espaço privilegiado onde o poeta-trapeiro, em meio à multidão, vai recolher o seu assunto heroico. Trata-se de uma recolha de imagens espalhadas pela cidade. Essas imagens muitas vezes são de figuras anônimas, como passantes que imobilizam o poeta; outras vezes são seres sem individualidade, sem um contorno preciso que, do mesmo modo que outros despossuídos, se deixam ficar nas grandes avenidas, como uma espécie de entulho esquecido[8], à espera do olhar interessado de um pintor da vida moderna ou de um poeta-trapeiro que os venha arrancar da cotidiana invisibilidade para os transformar – estranha alquimia – em arte. Trata-se do sentimento que Eduardo Lourenço denominou de “a consciência positiva de uma realidade histórica nova” cujo solo é o famoso “lodo infame” que a “alquimia dolorosa do poeta deve transfigurar em ouro.”[9] A alegoria dessa dolorosa alquimia do ato de criação da arte moderna – que nela se inscreve como seu código genético – já havia sido descrita pelo poeta num famoso trecho em que analisa a vida e a obra do pintor Constantin Guys:
Agora, à hora em que os outros estão dormindo, ele está curvado sobre sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas, lutando com seu lápis, sua pena, seu pincel, lançando água do copo até o teto, limpando a pena na camisa, apressado, violento, ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso, mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E as coisas renascem no papel, naturais, belas; mais do que belas, singulares e dotadas de uma vida entusiasta como a alma do autor. A fantasmagoria foi extraída da natureza.[10]
Nesse texto construído em prosa alegórica o poeta traça os atributos e limites da Modernidade a partir de um sistema de oposição entre o clássico e o moderno; o antigo e o novo; o geral e o particular; o consagrado e o circunstancial, onde o que poderia parecer um simples jogo de oposições provocantes, transforma-se numa fenda indissolúvel; mais precisamente, num divisor de água que não poderá ser rasurado. Isso pode ser percebido quando Baudelaire estabelece uma estratégia operacional para pensar a arte moderna, opondo obras de primeira e de segunda categorias a partir de um sistema de valores fora das coordenadas até então assentes. Essa estratégia não só altera os antigos padrões e procedimento próprios do fazer artístico, como também dá a conhecer um repertório mais condizente com o que poderia ser considerado arte moderna. Esse novo repertório – inusitado e por isso revolucionário – vai transformar o modo de ver as obras de arte, transformando também o modo de relacionar-se com elas. Em seus poemas e, nomeadamente, naqueles que compõem o livro O Spleen de Paris[11], o poeta cria uma espécie de solo fecundo de onde brotam os segmentos dessa realidade histórica nova composta por resíduos, arrancados ao cotidiano das ruas das grandes cidades, que permitem aceder ao “imenso dicionário da vida moderna disseminado nas bibliotecas, nas pastas dos amadores e nas vitrines das lojas mais vulgares.”[12] Munidos desse dicionário, o poeta-pintor procede “a uma dramatização sem tréguas das imagens que darão corpo à Modernidade”[13]. O seu olhar busca captar o presente, isto é, o presente agora marcado por uma “mudança incessante e veloz”[14] , mas atrai também o passado, isto é, o passado que já conserva o sabor de fantasma, mas que recupera, como imagem, a luz e o movimento da vida presente.[15]
O “dicionário da vida moderna” possui também verbetes para imagens de episódios corriqueiros das ruas da cidade, tais como: os encontros bruscos na multidão[16]; a insólita experiência do transeunte anônimo que atravessa a cidade[17]; os resplandecentes cafés, recentemente abertos, no boulevard novo[18]; o poeta que abre mão de suas insígnias e opta por ser apenas mais um habitante da cidade[19]; a esgrima do poeta em busca de suas imagens poéticas ao mesmo tempo em que tenta esquivar-se no vertiginoso movimento das avenidas[20]; as esplêndidas passantes que num encontro abrupto transformam o transeunte desprevenido em uma espécie de basbaque[21]; as experiências de choque que o espetáculo da cidade oferece e inebria até o esquecimento e também a fragmentação do sujeito. Mas nesse imenso dicionário há também um lugar reservado para as imagens compostas pelas sobras, ou seja, aquilo que, por não acompanhar o novo ritmo incessante da grande cidade, fica de fora. Com essas sobras ficam todos os excluídos, os invisíveis que estão fora do lugar em todos os lugares. Essas imagens também compõem o “imenso dicionário da vida moderna”. E na qualidade de emblemas, elas viajam. Viajam e reaparecem aqui e ali.
Para pensar esse movimento das imagens e as suas reconfigurações em outros textos busquei um modelo teórico, recolhido em textos do historiador da arte Georges Didi-Huberman, a partir do seu trabalho sobre o conceito e a sobrevivência das imagens nas obras de arte. Para o historiador, o princípio fundamental e primeiro desse processo nasce do ato de olhar exigido pelas imagens: é preciso observar as imagens com olhos de ver e sem comprometer a sua liberdade de movimento, porque:
Elas são ao mesmo tempo movimentos e tempos, irrefreáveis e imprevisíveis. Elas migram pelo espaço e sobrevivem na história […]. Elas se transformam e mudam de aspecto, voam por aqui e por ali, aparecem e desaparecem alternadamente. Elas vivem suas “vidas” por elas mesmas, e são essas mesmas “vidas” que nos interessam e nos “olham”, muito mais do que as cascas de uma pele morta que podem deixar à nossa disposição.”[22]
Com essa primeira ferramenta teórica foi possível fazer uma releitura de textos de Baudelaire, articulando-a aos fragmentos de textos de poetas do Modernismo português e neles encontrar a presença de imagens recorrentes que ultrapassam os limites de tempo e espaço, ora aparecendo como fulgurações em textos de autores de épocas passadas, ora sobrevivendo reconfiguradas na obra de outros autores de tempos e lugares distintos. Como disse Huberman, as “imagens migram pelo espaço e sobrevivem na história”. Buscando olhar de perto esse movimento e a permanências de imagens em outros textos, o primeiro traço que salta aos olhos diz respeito à representação da cidade moderna, esse espaço insólito, muitas vezes inóspito, marcado pela tensão entre o “traçado geométrico” e “emaranhado das existências humanas”[23].
Com essa difusão dos novos signos que permitem ler a cidade, o pintor, o poeta ou o deambulador comum passam a recolher e transfigurar os segmentos heteróclitos que compõem o emaranhado inseguro do tecido urbano, onde nada permanece igual na metamorfose veloz e incessante imposta pelos novos tempos.
Segundo Eduardo Lourenço, esse tempo de mudanças ininterruptas próprio da cidade moderna constitui uma “realidade ambígua, composta de um lado por uma matriz de sofrimentos sem redenção, e de outro pela excitante possibilidade de estar em contato com um “fantástico quotidiano”. É esse cotidiano fantástico que vai movimentar-se na porosidade dos tempos, de um texto a outro, e inscrever-se em textos de Cesário Verde e Fernando Pessoa, poetas que escolhemos para analisar e representar o modernismo português. Seus poemas recolhem, garantem a permanência, alteram, negam ou reconfiguram as imagens inscritas por Baudelaire no seu “imenso dicionário da vida moderna”. Esses poemas são seus intérpretes, pois como afirma Didi-Huberman “as obras, em geral, são os primeiros interpretantes das obras. Elas o são sempre na diferença e na impertinência anacrônicas de um deslocamento da história”.[24]
Seguindo essas imagens que migram e “voam por aqui e por ali, aparecem e desaparecem alternadamente”[25] passamos aos versos de Cesário Verde e Fernando Pessoa. Também eles souberam fazer do luxo e do lixo das ruas a sua matéria poética – o seu assunto heroico.
Cesário constrói um olhar deslumbrado com reconfigurações da passante criada por Baudelaire que agora perambulam pelas ruas de Lisboa com “real solenidade” ao mesmo tempo que impõem “toilettes complicadas”. Essas mulheres distantes fazem parte da cena cambiante de uma Lisboa que também se quer moderna:
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.[26]
Com seu olhar, duplamente atento, Cesário também vai recortar outras imagens femininas que atravessam reconfiguradas pela cidade. No poema “Num bairro moderno”, o eu lírico – espécie de funcionário cansado – é surpreendido por uma figura feminina que atravessa a rua:
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
[…]
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo de uma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
[…]
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esgadelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos. [27]
Essa mulher não pode ser confundida com a passante dos versos de Baudelaire. Entretanto, se recuperarmos as palavras de Didi-Huberman, poderíamos ver também aqui a permanência de uma imagem que sobrevive porque foi reconfigurada nas histórias que compõem os enredos da cidade moderna.
Em outro poema, o poeta com seu olhar também duplo e visionário recupera a imagem de uma outra mulher. Trata-se do poema “Humilhações”, onde o eu lírico esconde-se atrás de um cartaz do teatro para entrever a mulher “nervosa e vã” que o atrai como a voragem. Mas esse “eu”, pobre e só, e com a roupa rota, não pode aproximar-se da mulher que o fascina. Ele se afasta e, ao sair, os seus olhos se deparam com outras existências que se avolumam à porta do teatro:
[…]
Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.
De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
– Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?…[28]
Estes versos também configuram a modernidade, pois muito embora ela pareça estar concentrada nas imagens brilhantes dos traçados geométricos, ela não poderá nunca ser homogênea nem linear, porque a Modernidade também é contraditória e excludente, fundamentalmente, porque ela está contida no movediço “emaranhado das existências humanas” que ora se dispersa, ora se avoluma mas que também deixa restos, escombros, como todas as sobras que se acumulam do lado de fora.
Como sabemos, Pessoa – através do 1º. Álvaro de Campos – também recolhe e transforma os traços do cotidiano em imagens eficazes da Modernidade. Ele também recolhe objetos, figuras anônimas, depositadas nas ruas ou em versos de outros tempos. O poeta articula sentidos, recupera a circunstância casual e cotidiana para transformá-la em imagens múltiplas que passam a invadir o nosso olhar, como também invadem e transformam o nosso repertório. Mas ao invadir e modificar o nosso olhar – o olhar com que víamos o mundo – transformam também os mecanismos que coordenam o nosso pensamento.[29] E isso também nos apaixonam. Poderíamos afirmar, na esteira de Carl Einstein, que “essas imagens não nos apaixonariam como elas o fazem, se fossem eficazes somente sob o aspecto limitado de sua especificação histórica ou estilística.”[30] Elas nos apaixonam porque lutam, num conflito de formas contra formas […] que as mudanças temporais impõem às imagens. Para recuperar essa afirmação de forma mais precisa, recorro, mais uma vez, às palavras de Didi-Huberman, nomeadamente a um trecho em que analisa algumas afirmações do também historiador da arte Carl Einstein:
[trata-se da] história da arte como fato, isto é, saber a transformação temporal que cada obra impõe às outras. Pensar essas obras como uma luta, um conflito de formas contra formas, de «experiências óticas», de «espaços inventados» e de «figurações sempre reconfiguradas» [onde] «Toda forma precisa é um assassinato de outras versões […]» [31]
Mais precisamente, esse tratamento de choque dado às imagens, segundo Huberman, é “um modo de abrir [as próprias imagens], isto é, de ferir e de revelar ao mesmo tempo um corpo de evidências.”[32] Trata-se de uma luta, um conflito de formas contra formas, onde percebemos também a “deambulação” de imagens de um texto para outro, migrando pelo espaço e sobrevivendo na história. Às vezes recuperando, ou mudando apenas alguns aspectos, outras vezes, reconfigurando posições e papéis.
Dando sequência a essa recuperação de traços, poderíamos dizer que, tanto nos versos de Cesário quanto nos de Álvaro de Campos o eu que segue pelas ruas de Lisboa também já pode ser visto como um anônimo habitante da cidade. Mas que só será visto como um homem evidentemente marcado pela cultura da modernidade no exato momento em que passar a conhecer uma nova manifestação de erotismo. Nos poemas de deambulações pela cidade, essa moderna forma de erotismo também já pode ser pressentida, pois a representação da cena amorosa é antes uma espécie de amor que não encontra paralelo nas formas consagradas pelo amor romântico. Mais precisamente, é o amor que surge da experiência com a multidão: um amor sem tempo, ou melhor, um amor marcado pela exiguidade do tempo de quem caminha apenas de passagem pela cidade. Designadamente oposto ao amor à primeira vista, esse novo erotismo vai circunscrever-se à última vista e consagrar o nunca como o “ápice do encontro”.[33] A negatividade dessa nova função no sujeito erótico, não se confunde, entretanto, com “rebaixamento” ou com a expressão do “amor degradante”, apontados pela crítica feita pelos contemporâneos de Cesário Verde. Trata-se antes de uma outra forma de amor que Cesário foi intuindo ou recriando, como uma visão, a visão insólita de um erotismo que nasce da perplexidade diante de uma imagem fascinante, “algo mais próximo do choque com que um desejo imperioso acomete subitamente o solitário”.[34] Para Walter Benjamin, essa “aparição que fascina o poeta, longe de lhe ser subtraída pela multidão, só através desta lhe será entregue.”[35] Uma leitura capaz de destacar a positividade desta cena não era na época de fácil elaboração. O registro dessa moderna forma de erotismo vai ecoar e desdobrar-se, anos depois, nos primeiros versos de Álvaro de Campos, discípulo confesso de Cesário Verde.
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.[36]
Dando continuidade a essa recolha de imagens modernas que voam de um texto a outro, vamos encontrar um outro Eu construído (ou reconstruído) por Cesário. Trata-se de um “poeta desempregado” que, por saber em que tempo vive, tem a consciência precisa do valor de mercadoria atribuído ao seu trabalho.
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros,
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
[…]
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa de um jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Longe de terminar essa recolha de imagens que se reconfiguram diante do tempo, talvez seja importante acrescentarmos que este recorte dá a ver a figura do poeta que nos versos de Cesário sofre um processo reconfiguração. Esse processo de imagens em movimento, agora sofrendo mutações a cada poema poderia ser lido como uma das expressões da fantasmagoria de uma cidade desejada e vislumbrada por Cesário? Provavelmente sim. Mas ela também pode ser lida como mais uma das antecipações geniais do modernismo por Cesário Verde.
Nesse sentido, a “poética do imprevisível”, inaugurada por Cesário, é muito mais produtora do que reprodutora de sentidos de realidade, onde a banalidade cotidiana, retida em seu olhar, já vem transfigurada pelo filtro da superposição de diferentes planos de percepção. É essa a “visão de artista” que mais tarde Fernando Pessoa designará como Interseccionismo. Do mesmo modo que os diferentes EUS, surgidos inesperadamente a cada poema (outro traço vai ser apontado como uma antecipação do movimento modernista) Cesário inaugura também o princípio da desagregação ou fragmentação do eu que está na origem da famosa constelação heteronímica de Pessoa.
Entretanto há um traço moderno que talvez configure de forma mais acabada o universo do Modernismo que até aqui viemos mapeando. Trata-se da dispersão do eu na própria textura do poema. Esse processo está presente em vários poemas, mas no poema “Realidade” esse processo ganha contornos mais evidentes.
Datado de 1932, o poema “Realidade”[37] apresenta o mesmo processo de olhar a cidade costumeira pelos olhares díspares dos diferentes Eus espalhados pelos versos de Cesário Verde. Entretanto, agora os olhares díspares não se reconfiguram na passagem de um poema para outro. Aqui o processo de reconfiguração, de dispersão ou fragmentação do eu está presente no próprio eu lírico que anuncia o poema:
Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos…
Nada está mudado – ou, pelo menos, não dou por isso –
Nesta localidade da cidade…
Há vinte anos!…
O que eu era então! Ora, era outro…
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada…
[…]
Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos …
Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse …
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por [dentro]
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!
Sim, o mistério do tempo.
Sim o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de dizer …
Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada …
Nesses versos, o poeta parece divertir-se com o fato de ser outro e com as casas não saberem disso. Chega mesmo a colocar frente a frente os dois eus distintos que se cruzam na mesma rua. O mais apropriado seria talvez dizer, os dois eus que se cruzam num tempo “fora do tempo”, só permitido aos que fazem do não limite o seu próprio existir:
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no
[futuro,
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.
Hoje, descendo esta rua nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso…
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.[38]
À parte a blague ou a indiferença, intencionalmente construídas, à parte todos os aspectos formais notadamente modernos deste poema, chamo a atenção para o insólito com que se constrói a cena do cruzamento: a eliminação das fronteiras do tempo, que perturbam o cruzamento; a união entre o “então” e o “agora”; o faz-de-conta verdadeiro com que se junta o separado e o à vontade com que Álvaro de Campos brinca de rasurar a mudança. O novo aqui não é apenas sentir-se duplo, mas a encenação de um ponto de união para dar continuidade aos diferentes Eus. O ser único (ainda que apenas encenado) se verifica no cruzamento de um eu “antigo” que, no passado, subia a rua sonhando o futuro como um girassol com um eu “moderno” que desce a mesma rua mas que já não consegue ver girassóis, que não consegue imaginar nada por não ter mais ilusões, ainda que o tal cruzamento não pareça ser mais que uma ilusão. Trata-se de um jogo. Jogo prodigioso, onde a própria encenação do cruzamento do Eu que passa com o Eu que passou coexistindo no mesmo tempo, tem uma carta escondida no bolso do colete, isto é, a presença de um terceiro eu. Trata-se do eu que observa, pois existe também um eu observador que assiste ao jogo do cruzamento. E existe ainda um outro eu, o Álvaro de Campos. E, como se sabe, existe ainda um outro.
Poder-se-ia afirmar que o poeta coloca em cena a sua própria dispersão, a partir de um jogo, uma “brincadeira” de quem se distrai iludindo, ou criando situações de confronto com o diverso e o disperso que o compõe. Mas o que é que o compõe? Sem poder responder a essa pergunta, chamo a atenção para o título do poema, “Realidade”, que funciona como uma marca de peso, uma oposição à blague; e, ainda, para o final do poema que clama veladamente para a seriedade (ou realidade) desta cena em fantasia:
Talvez isto realmente se desse…
Verdadeiramente se desse…
Sim, carnalmente se desse…
Sim, talvez…. [39]
Referências bibliográficas
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——-. “Olhos livres da História”. Revista Ícone. Recife: PPGCOM/UFPE, Vol. 16. N. 2, 2018, p. 163.
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MARGATO, Izabel. Tiranias da modernidade. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2008.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1972.
VERDE, Cesário. Obra Completa de Cesário Verde. Lisboa: Portugália Editora, s. d.
Notas
[1] DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo. Lisboa: Orfeu Negro, 2017, 10.
[2] BENJAMIN, Walter. “Paris do Segundo Império”. In: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 80.
[3] Cf. LOURENÇO, Eduardo. “Dialética mítica da nossa modernidade.” In: Tempo e poesia. Porto: Inova, 1974, pp. 203-223.
[4] Cf. BENJAMIN, W. Obra citada, p. 67.
[5] BENJAMIN, Walter. Obra citada. p. 30.
[6] Cf. BAUDELAIRE, Charles. “A perda da auréola”. In: O Spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2020.
[7] BAUDELAIRE, Charles. Apud. BENJAMIN, Walter. Obra citada. P.78.
[8] BAUDELAIRE, Charles. “Os olhos dos pobres”. In: O Spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 58.
[9] LOURENÇO, Eduardo. Obra citada. p. 204.
[10] BAUDELAIRE, Charles. “O pintor da vida Moderna”. In: A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 173.
[11] BAUDELAIRE, Charles. O Spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2020.
[12] BAUDELAIRE, Charles. “O Pintor da vida moderna”. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.164.
[13] BAUDELAIRE, Charles. “O Pintor da vida moderna”. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.166.
[14] BAUDELAIRE, Charles. “O Pintor da vida moderna”. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.164.
[15] Cf. BAUDELAIRE, Charles. “O Pintor da vida moderna”. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.161.
[16] BAUDELAIRE, Charles. “As Multidões”. In: O Spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2020, p.26.
[17] BAUDELAIRE, Charles. “As Multidões”. In: O Spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2020, p.26.
[18] BAUDELAIRE, Charles. “Os olhos dos Pobres” In: O Spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2020, p.58.
[19] BAUDELAIRE, Charles. “
Perda da auréola” In: O Spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2020, p.100.
[20] BAUDELAIRE, Charles. “O Sol” In: As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: 1985, p. 319.
[21] BAUDELAIRE, Charles. “O Sol” In: As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: 1985, p. 345.
[22] DIDI-HUBERMAN, Georges. “Olhos livres da História”. Revista Ícone. Recife: PPGCOM/UFPE, Vol. 16. N. 2, 2018, p. 163.
[23] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.85.
[24] DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo. História da arte e o anacronismo das imagens. Trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p. 203.
[25] DIDI-HUBERMAN, Georges. “Olhos livres da História”. Revista Ícone. Recife: PPGCOM/UFPE, Vol. 16. N. 2, 2018, p. 163.
[26] Cesário Verde. “Deslumbramentos”. Obra completa de Cesário Verde. Lisboa: Portugália Editora, s. d., p.41
[27] VERDE, Cesário. “Num bairro Moderno”. Obra completa de Cesário Verde. Lisboa: Portugália Editora, s. d., p.41
[28] VERDE, Cesário. “Humilhações”. Obra completa de Cesário Verde. Lisboa: Portugália Editora, s.d.p.34.
[29]Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo. Lisboa: Orfeu Negro, 2017, p.187.
[30] EINSTEIN, Carl. Apud DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo. Lisboa: Orfeu Negro, 2017,
[31] DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: História da Arte e anacronismo das imagens. Trad. Vera Casa Nova, Márcia Aebex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p. 189.
[32] DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo. Lisboa: Orfeu Negro, 2017, p 190.
[33] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 43.
[34] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 43.
[35] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 109
[36] PESSOA, Fernando. “Ode Triunfal”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1972, p. 308.
[37] PESSOA, Fernando. “Realidade”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1972, p.385
[38] PESSOA, Fernando. “Realidade”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1972, p.386
[39] PESSOA, Fernando. “Realidade”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1972, p.386