AMADEU BAPTISTA
Por Joaquim Pinto da Silva
“Sobre a Beleza”, de Amadeo Baptista . Obra apresentada no Espaço Mira, Porto, em 27.9.24, com a colaboração de Maria João Alvarez. Fotografias da capa e do interior de Alfredo Cunha.
Amadeu botou em papel diário não datado essa prestação de contas ao mundo, talvez mais a ele mesmo, creio que é mais a ele mesmo e, paradoxalmente, à sua posteridade.
Amálgama de recordações, queixas e arrependimentos, desejos e negações, não posso eu arrumar o inarrumável, organizar o inorganizável, ou seja, destruir o texto colocando uma directriz num mar onde cada onda é irrepetível, ou que se atravessa uma montanha evitando-lhe as voltas.
Texto testamenteiro, com laivos de vital, este rol de vivências pretende então o quê? Para quem apela o narrador, fugindo de si mesmo, em espera de que milagre?
O número para o qual ligou não se encontra atribuído!
Numa torrente informativa da passagem por um Inferno, “No meio do caminho em nossa vida, encontrei-me numa selva escura…” (Dante) – torrente avassaladora, em cachões de prosa sabida, de ritmo certo e empolgante, desgovernada na aparência – Inferno esse para o qual foi enviado, mas a que essa palavra mágica – o acaso, aquele que encarreira infelizes vidas para excelsos artistas.
Neste assunto, e para mim, lutador anti-dogmático por aprendizagem própria, reservo sempre um cantinho para esse esconso lugar onde a ciência porventura nunca entrará, mas a que alguns, teimosamente, chamam “o que ainda não se conhece” e outros, mais sisudos, nomeiam de mistério.
Como nasce esta lamúria contra o mundo… e contra si mesmo?
e eu, por que pretérito ou por que presente vim aqui parar, com a boca ao lado e a fala entaramelada, que mal me consigo fazer entender, se é que algum entendimento ainda me resta? ontem estava bem e hoje estou o quê…
Confrontado com esse AVC, conduzido ao Hospital onde passa alguns meses o narrador, nesse mundo que já conhecia mas no qual e sobre o qual, com uma lucidez, entre a coragem e a displicência, esmiúça o espaço e a sua memória da vida, isto é, a situação e o ido.
afinal, o que é um avc?
um paliativo a desculpar a disfunção eréctil?
uma hostilidade que o corpo abriu contra nós mesmos?
Numa espécie de recorrência, permitam-me, de metáfora da metáfora, Amadeu vivifica pelo poema, transformado em tábua salvífica, renasce.
Não inventou nada!
Cada autor carrega um cadáver, que por certo procria, mas adiado e, no entretanto, sempre autobiográfico. Mesmo a falar do cosmos, o escritor procura-se no texto. Ele busca-se!
“Nudus e inermis”, nu e desarmado, atira-se ao espelho (aquele que devia reflectir antes de reflectir, como alguém disse) e auto-revela-se.
regresso à solidão, a rotação dos meus imaginários faz de mim
um ser esquivo, suspenso de um salto quântico que não vem,
ou que, pelo menos, não consigo reconhecer neste forno
onde as ossadas são faróis que esbraseiam o ovo da serpente…
Este poeta foge da permanência do lugar-comum, que também usa, mas não abusa, e regista uma voz própria, autónoma e segura.
Não há na obra banalidade – “essa criação do Homem, o seu pecado original”, segundo Leonardo Coimbra, que acompanha assim a multifacetada Natureza.
Antes uma realidade permanentemente confrontada com os múltiplos sonhos e reflexões, às perguntas constantes e às respostas que não tem.
Questiona-se ritmicamente:
com que real é que me confronto quando me confronto com a realidade?
Este ser: criador, narrador, autor (e cito Marco Aurélio):
“Ontem uma gota de sémen, amanhã uma mão cheia de cinzas”,
consciente disso, reage ao balizamento proposto, ao alfa e ómega da existência conhecida, renuncia a ser um dos que “da eternidade têm apenas a noção do minuto em que jantam” (Guerra Junqueiro) e, em fulgurações súbitas e inesperadas, no culto do paradoxal, do raciocínio irónico, do humor, amiúde, negro, sobrevive em lassas recordações secas, frias, desnuda-se, tão afirmativo como revoltado.
quem sou? de onde vim? para onde vou?
a alguma coisa estou grato, mas não sei bem a quê.
mas, provocador e gélido, conclui aqui:
mas como ir à sanita se tenho medo de cair?
Sinais reveladores de uma apartação da posteridade – verdade fingida, sabemos, própria de quem, escrevendo, forçosamente renuncia ao olvido – apartação poética, portanto, pejada de recordações, de retrospectivas onde a infância e juventude, filtradas pelo tempo, os defeitos e a selecção involuntária ou procurada reinam.
Diz-nos: o poema inscreve-se nesta dimensão sem atenuantes, este caminho onde sou guerreiro e perdedor.
“Criamos ideias, sofremos realidades” (Leonardo Coimbra) e estas sendo invencíveis são humanamente relativizadas pela força interior que nos é própria e merece ser acostumada.
o fim que está no princípio, o princípio que está no fim. a enfermeira passa-me um envelope com documentos vários, … olho em volta e sinto a nostalgia da partida a invadir-me, passei aqui uns quantos dias e é impossível despedir-me sem mágoa do que tanto me afectou.
Fomos de novo às “Meditações”, de Marco Aurélio: “O obstáculo à acção faz avançar a acção. O que se coloca no caminho, torna-se o caminho…É uma vergonha que a alma desista quando o corpo ainda tem forças.”
“Sísifo sempre é maior que o seu rochedo”, repetiria o nosso grande Alberto, Camus de seu nome se tivesse conhecido Amadeu Baptista.
Este construiu uma notável obra, e, dizemo-lo com convicção firme, forçosamente ela o levará ao alto de uma colina chamada sucesso. Inevitável, não podemos, no entanto, prometê-lo em vida… sina em que não é único.
Este Amadeu, a nós, que estávamos postos em sossego, veio aqui perturbar-nos com as suas andanças, com as suas tricas a que somos alheios. Não contente com as viver envolve-nos no seu martírio, transforma a sua auto-flagelação em culpa universal… escrevendo-as.
E agora Amadeu?
O número para o qual ligou não se encontra atribuído!
Joaquim Pinto da Silva
Revista Triplov . Dezembro de 2024