VI ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
Casa das Monjas Dominicanas . Lumiar . Lisboa . 14 de Julho de 2018
A.M. AMORIM DA COSTA
O matraz da análise química da vontade
A.M. Amorim da Costa . Departamento de Química, Universidade de Coimbra
acosta@ci.uc.pt
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Os Químicos da Vontade
Inserido nos seus escritos filosóficos sobre a Comédia Humana, H. Balzac (1799-1850), recolhido no Castelo de Saché, situado no vale do rio Indre, na antiga Touraine, França, escreveu e publicou, em 1832, o romance Luis Lambert[1]. Nele narra a história de um jovem nascido em 1797, na cidade francesa de Montoire onde o pai explorava uma pequena fábrica de curtumes. Apenas com cinco anos, este jovem começou a ler a Bíblia por cujas narrativas se apaixonou profundamente, percorrendo a terra onde se iniciou nas primeiras letras à procura de outras obras para sua leitura que o ajudassem a melhor compreender as narrrativas bíblicas que tinha por sagradas.
Quando tinha apenas dez anos, para se acautelarem desde muito cedo que no futuro ele viesse a ser recrutado para o serviço militar, com as inevitáveis contingências da guerra, os pais enviaram-no, para casa do seu tio materno, cura de Mer, perto de Blois, um velho oratoriano muito instruido, com quem alimentasse as suas tendências de estudioso e, porventura, se preparasse para fazer carreira eclesiástica. Apesar de todo o convívio e toda a cultura científica que o tio lhe proporcionava, o jovem Luis Lambert não se sentiu muito feliz com a vida que aqui levava . Ao fim de menos de três anos, com o consentimento do tio, deixou Blois e entrou no Colégio de Vendôme, onde se matriculou, em 1811, onde se manteve às custas da escritora Madame Staël (1766 – 1817). Aqui “devorava livros de toda a espécie, alimentando-se indiscriminadamente de obras sobre religião, história, literatura, filosofia e física”, encontrando um prazer indescritível na leitura de todos os dicionários a que conseguia ter acesso, na falta de outros livros.
A frequentar o mesmo Colégio, foi aqui que Balzac, o autor do romance que tem por figura central L. Lambert o conheceu e efabulou.. Tornaram-se amigos muito íntimos e inseparáveis. Em longas e demoradas conversas, discutiram os mais diversos assuntos filosóficos e científicos, podendo considerar-se e afirmar que a descrição novelesca que Balzac faz de Luis Lambert mais não é que uma descrição autobiográfica e uma exposição ponderada das suas próprias ideias. No discurso do personagem central do romance é justo ver a exposição das ideias do próprio autor: o génio de Lambert assim como a sua erudição filosófica são reflexo perfeito da auto-concepção de Balzac, como o são a voracidade de leitura quando estudante e até os castigos de que foi alvo quando jovem e o gosto que nutria pelos pombos e pelos jardins do Colégio que frequentou.
No centro desse discurso está o seu pensamento sobre a Vontade. Não é por acaso que por diversas vezes, ao discorrer sobre os temas que refere como aqueles que discutia e sobre que se debruçava apaixonadamente nas conversas que tinha com o seu amigo, Balzac se refira como sendo eles as teses dos chamados “químicos da vontade”, título que o próprio Lambert revindicava para si e para o amigo e no qual depositava toda a fama que esperava vir a ter.
No mundo da novela, Luis Lambert escreveu, num estado febril e deslumbramento, o seu Tratado da Vontade; H. Balzac fez outro tanto no cumprimento das suas tarefas diárias de escritor, muitas vezes cumpridas à pressa, e pressionado pela necessidade de ganhar dinheiro. Não possuimos qualquer cópia do Tratado da Vontade escrito por L. Lambert pois durante uma rixa que se gerou um dia entre o autor e os seus companheiros, no recreio do Colégio por causa dos escritos que ele defendia, um dos prefeitos do Colégio, o “terrível” padre Haugoult, interveio ferozmente, apoderou-se do escrito e nunca mais o restituiu, tendo-o, provavelemente vendido a um tendeiro e não mais tendo sido possível encontrar-lhe o rasto[2]. Do seu conteúdo sabemos apenas o que nos diz o relato fictício apresentado pelo próprio Balzac servindo-se das recordações coligidas das conversas que manteve com o amigo durante os anos que com ele viveu no Colégio de Vendôme, e posteriormente, já depois de Lambert ter falecido, das conversas que teve com o senhor Lefebvre, o cura de Mer e tio de Lambert, assim como com a jovem Paulina de Villenoix por quem Lambert havia nutrido um amor louco, mas com quem nunca chegou a casar.
No mundo do real, o próprio Balzac fala várias vezes na sua obra A Comédia Humana do Tratado sobre a Vontade escrito por si, referindo-o mesmo como a sua primeira obra, mas sobre o qual diz, lamentando-se muito, que perdeu o manuscrito, remetendo para quanto havia referido sobre o assunto na sua referência fictícia ao Tratado da Vontade que atribui a L. Lambert.
Para compreender o interesse de um tal Tratado, podemos e devemos começar por nos interrogar: por que é que Luis Lambert e H. Balzac se tinham por os “químicos da Vontade”?
Espiritualista, Luis Lambert defendia que “pensar é ver” e considerava a inteligência como um produto totalmente físico. Nesta sua convicção, todo o seu pensamento dardejava de seus olhos e procurava explicar tudo à sua volta pela torrente deste pensamento que afirmava ter a sua origem na vontade, o meio onde o mesmo executava as suas evoluções, ou por outras palavras, a massa de força pela qual o Homem pode reproduzir, fora de si próprio as acções que compõem a sua vida exterior: a volição mais não seria que a expressão do acto pelo qual o Homem usa a Vontade. E o pensamento mais não é que o produto quintessencial da Vontade. “Para pensar, é preciso querer – dizia. Muitos seres vivem no estado de Vontade, sem contudo chegarem ao estado de Pensamento”[3].
Porque acreditava que a Vontade estava na origem de tudo, Lambert alimentava como um projecto seu vir a ser capaz de tudo explicar pela Vontade. E era devido a este seu projecto no qual considerava que o seu amigo Balzac também alinhava que se considerava serem ambos “os químicos da vontade”.
Como quimicos da Vontade, eles acreditavam ser possível explicar tudo a partir da Vontade; e acreditavam que esta era um fluido universal presente em toda a substância animal e penetrando as suas transmutações, incluindo o próprio Pensamento. Como fluido, ela seria uma das várias substâncias etéreas, base comum dos muitos fenómenos conhecidos à data pelos nomes impróprios de Electridcidade, Calor, Luz, Fluido Galvânico, etc, passível de ser preparado e analisado em laboratório, em matraz adequado, o cérebro[4].
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A fisiologia animal dos escritos de Emanuel Swedenborg
Como químicos da vontade que acreditavam ser esta um fluido etéreo e espiritual, L.Lambert e H Balzac que com ele comungava na mesma crença e tarefa, bebiam e alicerçavam muitas das suas ideias nos escritos do filósofo sueco que muito admiravam e idolatravam, Emanuel Swedenborg (1688-1772). Para um enquadramento mais adequado, será apropriado deixar aqui algumas palavras sobre sobre este e a sua obra[5].
Nascido em Estocolmo, E. Swedenborg estudou na Universidade de Uppsala, onde se formou em Filosofia Natural, em 1709. Com uma grande paixão por saber mais e mais sobre o mundo natural, Emanuel Swedenborg logo depois desta sua formatura, partiu, para a Inglaterra onde, em Londres, se dedicou ao estudo de todo o tipo das técnicas de astronomia tendo por mestre John Flamsteed (1646–1719) e onde frequentou os círculos científicos de Isaac Newton (1643–1727) e Edmund Halley (1656–1742). Aí se dedicou também ao estudo da Geologia, da Botânica e da Zoologia. De Inglaterra seguiu para Amsterdão e para Paris onde continuou os mesmos estudos, por aqui se demorando mais de cinco anos, só ao fim dos quais resolveu regressar ao seu País natal, a Suécia.
Aqui regressado, foi apresentado ao rei Carlos XII. Este ficou de tal modo impressionado com a sua vasta sabedoria de Swedenborg que logo o nomeou Intendente Geral das Minas, responsável directo da indústria mineira do país, sector chave da economia sueca. Totalmente empenhado no trabalho que fazia e intelectualmente imparável, criou de imediato a revista científica Daedalus Hyperboreus, com publicação em Uppsala, com seis edições em sueco e latim, nos anos de 1716-1718, tida pela Sociedade Sueca de Ciências como o primeiro Jornal científico editado na Suécia, onde começou a apresentar regularmente as suas ideias científicas sobre as mais diversas matérias: química, óptica, matemática, magnetismo, hidráulica, acústica, metalurgia, anatomia, fisiologia, hidrostática, pneumática, geologia, mineração, cristalografia, cosmologia, cosmogonia, dinâmica, astronomia, álgebra e mecânica.
Num muito curto espaço de tempo, publicou alguns livros sobre química e sobre física e o primeiro livro em língua sueca sobre álgebra. E publicou também várias invenções da sua lavra, incluindo o projecto de uma máquina voadora.
A primeira das obras de sua autoria foi Opera Philosophica et Mineralia[6], um extenso tratado, em latim, composto por três volumes: o primeiro, Principia Rerum Naturalium, sobre os princípios de todas as coisas; o segundo, sobre o ferro e o cobre; e o terceiro sobre as mais importantes ligas metálicas. Pouco depois, publicou um Tratado de anatomia, em dois volumes, intitulado Oeconomia Regni Animales[7], um vasto estudo de fisiologia e psicologia em que se empenhou em tentar caracterizar a sede da alma no corpo humano, descrevendo o coração, a circulação sanguínea, o cérebro, o sistema nervoso e a própria alma. Nestes estudos discorre demoradamente sobre a possível ligação entre o mundo físico e o mundo espiritual, com referência expressa a um fluido espiritual e subtil que permeia e sustém todos os seres vivos, como a grande característica da vida. Neste particular, publicou ainda, um outro muito extenso tratado, em três volumes, com o título Regnum Animale [8]. Extravasando o domínio estrito da ciência, estes seus últimos escritos marcam o período visionário da sua obra, seguindo-se-lhes, nos anos de 1749 a 1756, oito volumes de natureza estritamente teológica, os Arcana Coelestia[9] publicados em Londres para evitar as rigorosas leis anti-heresia que vigoravam na Suécia. Nestes, tenta explicar pormenorizadamente os primeiros livros da Bíblia, elucidando a exposição que faz com muitos relatos de experiências espirituais por si vivenciadas.
A sua intensa actividade científica em cuja publicação e divulgação ele próprio se empenhou, e que inclui um grande número de escritos que só viriam a ser publicados postumamente por alguns dos seus fieis sequazes, entusiasmou e muito influenciou o modo de pensar de um grande número de jovens e homens do saber de então,, particularmente na Europa.
Em particular, as ideias avançadas por E. Swedenborg sobre a fisiologia animal, dando particular atenção ao fluido cérebro-espinal e à correspondência que afirmava haver entre certas partes do corpo e certas regiões do córtex cerebral tiveram grande influência, junto dos estudiosos da possível fisiologia dos fenómenos do pensamento humano, seus contemporâneos, nomeadamente, Bichat, Cuvier e Mesmer, para não citar outros mais. O anatomista e fisiologista francês M. F. Xavier Bichat (1771-1802) celebrizou-se com observações sobre o dualismo dos nossos sentidos exteriores[10]; o naturalista e zoólogo, também francês, G. Cuvier (1769 –1832), com os seus estudos de morfologia animal[11]; e o médico austríaco Friedrich Mesmer (1734–1815), o fundador da teoria do magnetismo animal, o biomagnetismo, com seus estudos sobre os fluidos desprovidos de peso, não-tangíveis, nem visíveis pelos sentidos humanos que envolvem todos os corpos subtis, bem como pelo método de curar que desenvolveu e aplicou largamente, em Viena e Paris, baseado em tais fluidos que descreveu pormenorizadamente na sua “Dissertação sobre a descoberta do magnetismo animal”, editada em Paris em 1779[12].
Estava na ordem do dia o interesse pelos estudos do mecanismo da mente que se tornou apaixonante, dando lugar ao que poderíamos chamar um debate aberto. Com efeito, impõe-se referir aqui, em particular, a vasta divulgação que os escritos de Swedenborg apresentados na sua obra Arcana Coelestia tiveram um pouco por toda a parte, louvados e admirados por muitos, lado a lado acesas contestações e mesmo, aqui e ali, uma certa ridicularização. Ao ponto de haver até quem acabasse acabariam mesmo por pôr em causa a sua sanidade mental. Uns e outros, sequazes e adversários, favoreciam a grande reputação em que era tido como cientista e filósofo.. Sem se importar muito com as críticas, ele escreveu e publicou com a serenidade dos que sabem o que estão fazendo, até ao fim dos seus dias, convicto de que sua obra seria para um futuro distante. Morreu em 29 de março de 1772. E se os adversários que a ele se opunham acirradamente se faziam afirmar, outro tanto acontecia com um bom número de seus sequazes. Luis Lambert e o seu criador H. Balzac são confessadamente dois deles.
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Os mecanismos do Mente
Modelados pelas doutrinas de Swedenborg que liam apaixonadamente e a quem seguiam como se segue a um mestre que muito se admira, Luis Lambert e H. Balzcac, tinham como convicção profunda que o Pensamento é o produto quintessencial da Vontade na qual se executam as suas evoluções, e é também o meio onde nascem as ideias. Na prática, o pensamento mais não é que o nome comum de todas as criações do cérebro, o verdadeiro matraz químico onde se prepara o fluido que ela é. E acreditavam que da “maior ou menor perfeição do aparelho humano, vêm as inúmeras formas que o pensamento assume, sendo que a Vontade se exerce através dos órgãos vulgarmente chamados os cinco sentidos, que nela se resumem a um, a faculdade de ver”[13]
Esta crença não era, todavia, simples aceitação das ideias do Mestre; apoiava-se e decorria de diversas situações vivenciadas para as quais se apresentava como explicação natural e que tinham como a mais óbvia, nomeadamente os fenómenos de ubiquidade registados por muito historiadores, e os muitos fenómenos associados a sonhos e situações similares, em que andamos, vemos e ouvimos, onde não há espaço para o movimento acontecer, nem condições para que o som se forme, nem luz para se poder ver, e no entanto neles vemos, ouvimos e andamos, ora por lugares que conhecemos bem, ora por lugares que nunca vimos e que possivelmente nem sequer existem nem nunca existiram. São situações cuja explicação só parece viável admitindo que possuímos faculdades internas que são independentes das leis físicas externas. São uma quantidade de fenómenos que revelam ser o Homem dotado de poderes imensos para os quais nem a Física, nem a Química têm explicação cabal e que parecem acusar a existência de uma vida dupla nos seres vivos em que acontecem[14].
Apontaremos aqui apenas alguns das ocorrências e factos por eles aduzidas.
Uma das mais determinantes dessas situações foi para L. Lambert o que se passou quando visitou com o jovem Balzac, pela primeira vez, o famoso castelo de Rochambeau, no vale do Loire, ao tempo em ambos frequentavam o Colégio de Vendôme, a situação que o levou a escrever de imediato o seu Tratado da Vontade. Eis o relato: no fim da Primavera de 1812, os responsáveis do Colégio de Vendôme levaram os seus alunos numa excursão ao castelo de Rochambeau; Lambert e Balzac integraram o grupo e era a primeira vez que iam ao famoso castelo. Nas vésperas da excursão, no Colégio, a excitação dos alunos pela visita que iam fazer, era geral. Muitos deles não falavam de outra coisa e faziam os mais diversos planos sobre o destino que dariam às prendas que, habitualmente, o proprietário do castelo costumava oferecer aos visitantes. Chegado o dia, partiram para a visita, depois do almoço, levando consigo um pequeno farnel para o lanche; seguiram em grupo, encosta acima. Quando atingiram a colina de onde conseguiram ter a primeira vista do castelo, muitos deles pararam como que extasiados a contemplar a beleza que se lhes oferecia. Nesse preciso momento Lambert virou-se para o seu companheiro, Balzac, e disse-lhe com todo o entusiasmo: “mas esta noite, eu vi isto tudo em sonhos!”. Estava a reconhecer quer o bosque em que se encontravam, quer a disposição das folhagens, quer a cor das águas do rio que serpenteava junto do castelo, quer os imponentes torreões do mesmo, quer os altos e baixos da paisagem em volta, mais ao longe e mais ao perto. Tudo que avistava pela primeira vez lhe era familiar; tudo ele tinha visto em sonhos, na noite antes de partirem para a visita. Surpreendido pela firmeza da convicção do amigo que jurava que vira tudo aquilo na noite anterior, em sonho, enquanto dormia, Balzac não deixou de lhe perguntar se, por acaso, na sua infância, não estivera ali em visita que já esquecera por completo. Lambert negou com um rotundo “não”, “nunca antes estivera ali”. Nesse momento, sentaram-se os dois debaixo de um velho tronco de carvalho, e Luis Lambert, após alguns momentos de reflexão, concluiu: “se a paisagem não veio ter comigo, o que seria absurdo pensar, então fui eu quem veio ter com ela. Se me encontrei aqui enquanto dormia na minha alcova, não constituirá este facto uma separação completa entre o meu corpo e o meu interior?” Não testemunha ele não sei que faculdade locomotora do meu espírito ou dos efeitos que equivalem aos da locomoção do corpo? Ora se o meu espírito e o meu corpo puderam separar-se durante o sono, porque os não poderei separar igualmente durante a vigília?”
Posta a questão nestes termos, ele acreditava que nestas situações tudo se passava em algum centro nervoso que a ciência ainda desconhecia, mas que seria o centro nervoso onde se produzem os sentimentos, o centro cerebral onde as ideias se manifestam e donde irradiam graças ao movimento do fluido que constitui a Vontade. Se assim fosse, existiriam em nós duas naturezas capazes de se separarem por espaços temporais mais ou menos maiores, voltando a juntar-se sem deixar marcas duradouras dos momentos em que estiveram separadas.
Esta seria a chave e a base do seu Tratado da Vontade cuja escrita começou no dia seguinte ao da sua excursão ao castelo de Rochambeau, como colegial.
Pensativo, embora ainda demasiado jovem – estava nos seus quinze anos e o seu companheiro não tinha ainda passado dos treze! – achava que eram prova desta sua conclusão muitos dos variados fenómenos de actividade testemunhados e narrados por autores que tinha por absolutamente credíveis, e que sempre haviam espicaçado a sua curiosidade. Lembrou-se de imediato do singular poder de visão do filósofo neo-pitagórico, Apolónio de Tiana (ca. 5 -100 ) que estando em viagem na Ásia, anunciou no próprio local em que se encontrava e descreveu na própria hora, as circunstâncias e os suplícios em que estava a ocorrer, em Roma, a morte do tirano e terrível Imperador Tito Flávio Domiciano (51 —96), o ultimo imperador romano da chamada dinastia Flávia, assassinado em setembro do ano 96, numa conspiração palaciana urdida por cortesãos e líderada pelo fidalgo imperial Parténio[15]; lembrava-se do que se contava sobre o filósofo grego Plotino (204 – 270 ), quem estando separado do filósofo neo-platónico Porfírio (ca. 234 —304) e muito longe dele, sentiu a intenção que ele tinha de se matar e acorreu rapidamente para o dissuadir de o fazer[16]. Lembrou também o facto de Afonso Maria de Ligório (1696-1787), bispo de Santa Ágata, que a uma distância enorme de Roma consolou o Papa Clemente XIV (1705-1772) que o viu, ouviu e lhe respondeu, num momemto em que era observado em êxtase, em sua casa, numa poltrona onde se sentava habitualmente depois de voltar da missa, tendo a seu lado, ajoelhados, alguns dos seus servidores que o julgavam morto, que o viram abrir os olhos e exclamar “meus amigos, o Santo Padre acaba de expirar”. Só dois dias depois lhes chegava a notícia por um mensageiro vindo expressamente de Roma que confirmava a hora da morte do Papa como sendo precisamente a hora em que o bispo saira do êxtase e regressara ao seu estado normal[17].
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Laurent lembrou-se ainda de várias outras narrativas do género, fartamente documentadas ao longo da História, ocorridas nos mais diversos locais e com o mais variado tipo de pessoas.Transcrevemos aqui tão somente a história ocorrida com a sua família: seu pai e sua mãe tiveram de suportar um processo em que estava em causa a honra de ambos, o bem que mais prezavam e quase o único que consideravam restar-lhe. Para a reunião de decisão do julgamento foi convocado para depor seu avô materno, velho lavrador já viúvo. No momento em que foi chamado para fazer o seu depoimento, ele levantou-se com muita dificuldade pois eram já poucas as suas forças, e com firmeza disse: “este assunto é demasiado grave para que o possa decidir sózinho; preciso consultar a minha mulher”; levantou-se, pegou no bastão e com passo firme. saiu da sala para ir ao cemitério ouvir a esposa que aí jazia, há anos. Porém, ao fim de breves minutos estava de regresso e disse em voz alta e firme: “não precisei de ir ao cemitério pois a minha mulher antecipou-se-me; encontrei-a junto ao rio e disse-me que podeis encontrar no escritório do notário de Blois os recibos que vos farão ganhar este processo”. Seguindo esta informação, o tribunal procurou no local referido e lá encontrou os recibos que dirimiram a causa em disputa, ilibando seus pais na causa em que estavam a ser julgados[18].
Ao prescindir da enumeração das restantes histórias referenciadas por L. Lambert para dar melhor e mais firme suporte às ideias que lhe bailavam na cabeça a favor da natureza dual do nosso ser, acrescentaremos aqui, ao elenco das histórias por ele apresentadas, a história de Santo António livrando seu pai da forca, conforme consta da hagiografia do Santo[19]: tinha havido um crime de morte em Lisboa, onde nascera Santo António; todas as suspeitas do crime recaíam sobre o pai do santo, Martinho de Bulhões. Chegado o dia do julgamento, no momento em que os juízes estavam já reunidos para proferir a sentença condenatória, estava o Santo fazendo um sermão em Pádua, Itália. Nesse mesmo momento, ele interrompeu o sermão e ficou imóvel, como se estivesse dormindo em pé, e apareceu na sala do júri, em Lisboa, conversando com os juízes. Entre outras coisas, disse-lhes o santo: “porquê tanta precipitação? Posso provar a inocência de meu pai. Venham comigo até ao cemitério”. Os juízes aceitaram o repto e seguiram-no até ao cemitério; lá chegados, frei António mandou abrir a cova do homem assassinado e perguntou ao defunto: “meu irmão, diga perante todos, se foi meu pai quem o matou”. Para espanto dos juízes e de todos que ali estavam, o defunto abriu a boca e disse devagar, como se estivesse medindo as palavras: “Não foi Martinho de Bulhões quem me matou”. E tornou a calar-se. Provada assim a inocência do pai, o santo continuou o seu sermão em Pádua, onde os presentes que o ouviam nem sequer haviam notado a sua ausência, por breves instantes que tenha durado.
Para Luis Lambert o que acontecera com seu avô, como o que acontecera com os inúmeros casos registados ao longo de toda a história, desde os mais remotos tempos da Antiguidade e da Idade Média, nos quais incluimos este caso de Santo António, todos apelam a uma dupla percepção e poder da Vontade humana e parecem ser prova convincente da dupla natureza do poder físico do Pensamento humano bem como a afirmação da pós-existência do nosso ser interior. Os muitos escritos literários, bíblicos e os textos tidos como sagrados pelas mais diversas religiões, eram para si a afirmação clara de que “a vida do homem é um movimento que se resolve muito particularmente em cada ser, ao sabor de uma influência cuja natureza ainda não conhecemos, pelo cérebro, pelo coração ou pelos nervos”[20]. Esse movimento é o produto de uma força engendrada pela palavra e por uma resistência que é a matéria; sem esta resistência, todo o movimento é infrutífero. Em função da resistência que encontra, o movimento produz combinações diversas que são as diferentes formas de vida. A Vontade é um fluido que está na base de todo o movimento que gera a vida. Em nenhuma parte ele é estéril; por toda a parte ele engendra o número: todavia, pode ser neutralizado por uma resistência superior, e então não manifesta a vida; é o que se passa com o mineral. Na sua diversidade, o seu poder não se esgota no ser físico de qualquer ser animado, mas inclui também o ser espiritual, dois produtos idênticos na sua essência, apenas se diferenciando pelo diferente Número que produz nas diferentes faculdades sobre que actua[21].
Só poderemos compreender bem o nosso ser compreendendo bem o fluido que é a nossa vontade. Para tanto, o verdadeiro sábio deverá recolher-se no laboratório, e tornado um verdadeiro artesão da química, pegar num matraz e escalpelizar com inteligência e pormenor a natureza desse fluido. Fazendo-o, ele é um verdadeiro “químico da Vontade”.
[1]H. Balzac, Luis Lambert, 1834, in A comédia Humana, Livraria Civilização Editora, Barcelos, 1981, vol. XV, pp.215-289.
[2] Idem, loc. cit.. pp.242-243.
[3] Idem, loc. cit.. pp.236-244, passim.
[4] Idem, loc. cit.. pp.282-283, Teses I-IV.
[5] Sobre este E. Swedenbor e sua obra, veja-se, vg: (i) E. Benz, Emanuel Swedenborg: Visionary Savant in the Age of Reason, Swedenborg Foundation Publ., West Chester, Pennsylvania,2002; (ii) M. Lamm, Emanuel Swedenborg: The Development of His Thought, Swedenborg Studies, nº. 9, 2001.
[6] E. Swendenborg, Opera Philosophica et Mineralia , Dresden e Leipzig, 1734.
[7] E. Swendenborg, Oeconomia Regni Animales, em dois volumes, Amsterdão, 1740 e 1741.
[8] E. Swendenborg Regnum Animale , 3vols, Haia, 1744-45.
[9] E. Swendenborg , Arcana Coelestia, 8 vols.Londres, 1749-1756.
[10] M. F. Xavier Bichat Recherches physiologiques sur la vie et la mort, Paris, Caille et Ravier, 1800; Idem, Anatomie générale appliquée à la physiologie et à la médecine, 4 vols.,Paris , Brosson, Gabon, 1801.
[11] G. Cuvier, Le Règne animal distribué d’après son organisation, pour servir de base à l’histoire naturelle des animaux et d’introduction à l’anatomie comparée , 4 vols, Paris, 1817.
[12]G. Mesmer, Mémoire sur la découverte du magnétisme animal, Paris, Harmattan, 1779.
[13]H. Balzac, Luis Lambert, in loc.cit., pp.244, 283-284, teses V-VII.
[14] Idem, pp. 240-241.
[15] vid. Philostratus (ca.170-244), Vida de Apollonius of Tyana (8 livros).
[16] Porfirio.Enéadas, I-III.
[17] vid. v.g., Giuseppe Orlandi, Spicilegium Historicum C.Ss.R.”, 18 (1970), 93-100.
[18] H. Balzac, Luis Lambert, in loc.cit., pp.251-252
[19] Vid. v.g.:Fontes Franciscanas, III. Santo António de Lisboa, 3 vols. Braga: Editorial Franciscana, 1998
[20]H. Balzac, Luis Lambert, in loc.cit., pg. 251-257.
[21] Idem, pg. 287.
REVISTA TRIPLOV DE ARTES, RELIGIÕES E CIÊNCIAS
série gótica. outono . 2018