AMADEU BAPTISTA
Por José Miguel Braga
“o infinito o mais das vezes é
não mais do que o que toca o coração”
Sim, o infinito pode tocar o coração. O poeta senta-se à mesa de trabalho e escreve. Leva-o uma cadência, uma força que o absorve, parece um destino, como um sorvedouro. Não existe propriamente um plano, mas antes a tentação e a casa que vai tecendo as suas formas, volumes, jogos de luz e sombra. Depois, o canto da língua e a sintaxe ou uma fuga em favor do delírio. O poeta caminho em risco de desobediência, como se fosse possível cair de uma linha em favor de um abismo que o aproxima da terra. Eis a nostalgia ou então a eminência da prosa como abismo da leitura e também como aproximação à música. Leio e oiço as vozes, leio e viajo em pleno conflito. O livro é também a livre expansão por mundos de impressão e pensamento, como se erguessem ilhas encantadas os precipícios; mas o livro é antes de mais casa e objecto e “Danos Patrimoniais”, de Amadeu Baptista, um espaço imenso. Enquanto antologia não envolve toda a obra. Uma boa parte, é certo.
A leitura faz-me navegado em mares e cenários tocados de mistério e emoção. Coisas do lirismo. Em certa passagem, vou andando até à Grécia, encanto-me e depois desembarco num longo poema cheio de acontecimentos, de passagens, geografia e sentimento. Sigo e sou obrigado a parar – este é um lugar sagrado. Acontece um desmaio, a deflagração poética provoca um levantamento das operações e circunstâncias. Esta poesia parece regressar da tradição. Não a vejo descompassada de uma primeira infância escutada no cantar de amigo e depois o poema abre-se como um Florilégio no Cancioneiro de Garcia de Resende. Muito próxima ou aconchegada em Camões e em Horácio, claro. Depois, é a sua obra. Uma obstinação e um não saber ser de outro modo, assim sendo. Vou andando e vou lendo. Um livro é uma casa, um lugar de ventos, circulação extrema entre palavra e ritmo, explosão e nascimento. O sentido em risco, a grande noite, dispersão e entendimento. No caso que se apresenta, temos uma antologia, “um conjunto de poemas escolhidos entre todos os livros que publiquei”, escreve o poeta em “nota do autor”. O livro também é um objecto, a invenção do “animal vivo”. Depois vem o ordenamento, a colocação da “coisa poética” no espaço, os materiais, a arte gráfica, alguns elementos “decorativos” e outros levemente explicativos, modos de acontecer o livro, um desenho, há quem lhe chame grafismo, de António Ferra. O desenho da figura de Amadeu Baptista, “grafite s/papel”, de Margarida Santos, a dedicatória à mãe e aos filhos, a epígrafe de W. H. Auden: “Let us honour if we can/ The vertical man./ Though we value none/ But the horizontal one”. A fechar o livro ou a casa, o lugar dos ritmos assombrados, fluentes e encantados, o posfácio de Henrique Manuel Bento Fialho intitulado “Ponto[s] Culminante[s]”. Posfácio, texto que se apresenta depois da coisa feita. Só deve ser lido no fim. É o que farei. Segue o relato minucioso das obras do autor e o índice. Assim se organiza o livro e a viagem é longa. Atravessamos terras, climas e sezões, conduz-nos o canto, os longos poemas que pedem a voz humana, a leitura, a palavra dita “olhos nos olhos”, o eco de um halo sagrado, a seiva e quantas vezes as sombras de um rio e o seu marulhar. Um livro em visita, o ícone a iluminar a escuridão, o enigma e o saber. O canto amoroso, a tentação da voz comum, a exaltação contida em prosódia, arte da contenção e da expansão. Vou lendo. Ficam ressonâncias, modos de adejar, deixo-me andar e por vezes observo um enxame, um bando, aves de arribação. Os poetas conhecem a versificação, empreendem o longo estudo e encontram o momento em que a palavra lembrou sua origem de estrela e fez nascer a matéria vertiginosa, onde tudo é química e por ela se estruturam forças, dinâmicas, leis que resultam do experimento.
Encontrei um livro publicado em 2021, que se intitula “Poeira Escura”. Enquanto lia ia lembrando o tesouro de referencialidade desta poesia, no seu modo de encontrar uma razão para o devir poético. Um motivo, que bem pode ser Rimbaud ou apenas o nome de uma cidade, a eclosão de uma catástrofe, a pandemia que aprisionou a gente durante o ano de 2020. Espero chegar aos grandes poemas que o Amadeu Baptista dedicou à pintura e também à música e aos grandes intérpretes de todas as artes. Ontem e hoje andei enredado nos meandros da catástrofe. Os poemas, apresentados em estrutura de soneto, levam-me junto à dor e à sua expansão e especulam. “(…) a pandemia/ Faz com que desconfiemos de tudo e de nada (…)”. Mais à frente: “(…)Se me levar o vírus, vou queixar-me a quem? (…)”. Não posso deixar de transcrever estes dois tercetos. Entre a beleza, levemente levados na cadência, por entre interrogações onde a retórica toma passo de dança, assim vamos nesta melodia:
“Esta carne e este vinho que envelhece.
Quanto tempo demora a nossa fome?
Quanto tempo demora a nossa sede?
A luz viaja louca pelo firmamento,
Sem tempo vai em frente para sempre.
O que vai acontecer assim que a encontrarmos?”
Quando entramos nesta casa, hoje a livraria “Centésima Página”, podemos olhar o desenho de André Soares inscrito na fachada. Atravessamos o espaço dos livros acompanhados pelo encanto de um desenho, mas também pelo modo como se reúnem os elementos, pedra, cal, a cor, o silêncio que se desprende e vem projectado de um tempo antigo até chegar mais perto, neste lugar onde nos sentamos, neste livro que podemos ler. Alguns metros à frente, do outro lado da Avenida, ergue-se a casa onde nasceu Maria Ondina Braga. Estamos em Braga e podemos ler “Ondina”, o longo poema de Amadeu Baptista, que recebeu em 2017 o “Prémio Literário Maria Ondina Braga”. Li-o agora, como se fosse em viagem. O poema canta e diverge, enreda-se em tópicos, casos, referências, lugares, nomes e os modos de dizer em verso. As estrofes vão pontuando as passagens, animadas por uma voz emigrada, um anjo espreitando as tílias, as aves que surpreendem o olhar profundo. Podemos recolher passagens, acasos do ritmo, imagens: “A fragilidade (…) o que vem da sombra/ para que tudo possa ser claro (…)
Bem poderíamos prosseguir a visitação. O poema vai escutando os textos, a vida que foi sua, mas o poema é mais do que a história, o objecto dos limites ou a vida crua e o poeta encontra a fala e os modos de ser, transfigura-se, aparece dissolvido nos espaços, no sentido do andamento, nos lugares do mundo, na busca de si, perdendo-se da razão e das explicações, buscando a música. De entre a já vasta bibliografia dedicada a Maria Ondina Braga, “Ondina”, de Amadeu Baptista, é visita e leitura obrigatória, sabendo nós que o poema é canto livre das obrigações. Apenas um silêncio, um abrir de olhos ou de asas, um desconcerto, um ligar de coisas que tocam o coração e se aproximam do indizível e dessa nocturna claridade que ora aparece e logo se esvai, modo de lume e água. fábula, encanto, leitura. Acrescento que o poema é dedicado a José António Barreiros, um leitor e conhecedor profundo da vida e obra de Maria Ondina Braga.
Leio depois os vinte e oito poemas incluídos em “paixão”, Edição Afrontamento, 2003. A obra recebeu o prémio Vítor Matos e Sá, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 2001 e o Prémio Teixeira de Pascoaes em 2004. Vou seguindo a Via Sacra e os “Passos da Cruz”; visito os últimos dias e as imagens consagradas, a voz que ecoa como um silêncio a interrogar o mundo e a dor humana, a cadência do drama, mas não leio um poema pio nem tão pouco um sistema normativo, moral ou especulativo.
Oiço a dor e a paisagem humana, olho os quadros, pressinto os ícones dourados em fuga e uma espécie de voz que regressa a este mundo, cantando e tangendo a lira, como se inscrevesse a notação de um canto maior. Jesus é agora Cristo. Sigo os títulos dos poemas e viajo entre o mito e a tradição; só a palavra poética resiste, só ela escapa ao buraco negro, por ela a salvação e Cristo despede-se da virgem, entra em Jerusalém, expulsa os vendilhões do templo, assiste a última ceia, depois o lava-pés e a oração no horto, a prisão e agora Cristo perante Anás, Cristo escarnecido e então a flagelação, a coroação de espinhos. Ecce Homo! Mas eis Pilatos lavando as mãos e a queda a caminho do Calvário, Verónica e a Crucificação, Cristo na Cruz, a descida ao limbo e a descida da Cruz, lamentação, reposição e ressurreição, aparecimento de Cristo à Virgem. “Noli me tangere”, mas “(…) Tudo o que é humano me atinge, porque tudo o que é humano é divino”. Os sinais recebidos na “Ceia em Emaús” trazem a dor de todo o tempo, “a fome do mundo/ (…) Como se sequestra a luz que há no espírito, a dor/ pela treva irremissível?” e a terminar, a “Incredulidade de S. Tomé”, a prova, as marcas, “A ferida nos pés, mas não acredites. / Não acredites nunca. A dúvida transfigura”.
Exercícios de hermenêutica, evocações da ecdótica, sociologia literária e quase me perco a lembrar as aulas de literatura. Boas conversas, um dia. Falávamos das revistas a propósito da “Presença”. Nessa altura estava vivo José Terra, que trazia com ele a “Árvore” e quase sabíamos de cor o que se escreveu em “Orpheu”. No canto assombrado do Marão voava a “Águia”. Ah, as revistas, às vezes um acaso, o número único. O acto fundador, o assunto, a reunião, o experimento, abrir a porta para uma aventura, a revista com o seu ar iniciático e fundador. Alguns nomes: “Águia, Orpheu, Presença, Athena, Távola Redonda, Árvore, Centauro, Sudoeste. Em “Danos Patrimoniais”, de Amadeu Baptista, podemos viajar pelo Sol e seguir por Hífen, Mea Libra, Apeadeiro, Águasfurtadas, DiVersos, O Pin da Bíblia, Correntes de Escritas, Inútil, Saudade, Piolho, Eclipse, Eufeme, Logos, A Ideia, Devir, RUA.
Procurei o fim – “Eterno retorno”, o poema que encerra a antologia. Viajei esta manhã em género maior, entre o trágico e às vezes o humor ou o amargo a sorrir a luz da eternidade, mas também a reunião das coisas em volta, o delírio da metafísica e o suor das coisas humanas, ruídos, perdas, os nomes da música e as cores, tela, umbral. Ou então a dor, a mesma dor de todo o tempo, a sintaxe em viagem e os versos como paragens ou suspensões, o lugar onde nasce o andamento ligando as coisas, a corrente, prodígios da memória, o cântico das imagens que voam na terra chã. Às vezes chove “e outro dia bate o sol”, viajo, sim, oiço Ruy Belo e Rimbaud, Beethoven, espelhos de mil cores e a fuga em modo maior, a melancolia e as águas de Luísa Dacosta em A-Ver-O-Mar, a eternidade e o “calendário perpétuo”, Rubens, Pasternak, a Pietà.
“Bem mais que a expressão do inefável
seja a expressão do amor a poesia.
Mais longe ainda que o silêncio denso
onde tudo se amplia e se concentra, (…)”.
Acabo de ler estes versos em ‘Apontamento entre as páginas de um livro de Jorge de Sena’ – “Desenho de Luzes”, 1997. O título chamou-me a atenção. O poema desencadeia, como se fosse a onda de peste, uma grave perturbação biográfica. Ó, o teatro, o espectáculo! Saio do índice ao encontro das telas de Caravaggio, de Leonardo, de Rubens, de Goya. Aos poucos preparo-me para ser conduzido por uma voz ou várias vozes, um coro. A cenografia expõe lugares e coisas que se encontram no mundo. Na teia, passam fluidos e saltos na gramática, surtos de entendimento, coisas fracturadas. Os textos sucedem animados por um explosivo dramático. O leitor deve andar perdido a encontrar lugares e vai imaginando a convulsão.
Sigo a ordem inscrita em “Desenho de Luzes” e depois daquela obscuridade tão luminosa de Caravaggio, o “(…) Retrato de Sofonisba Anguissola” e a leitura “fascina o meu rosto”; depois Goya “Assusta esse lugar” e descubro o “Apontamento, entre as páginas de um livro de Jorge de Sena” – algumas dessas palavras inscrevem-se na epígrafe. A leitura traz encontros e nomes que deixamos esquecidos: “Ignoro o paradeiro de Christopher Isherwood, / há muito que o outro lado do mundo o fascinava, / muitas vezes me perguntou que poderia pensar-se/ da separação das águas e quais seriam as melhores embarcações”. Sigo viagem “por portos nunca dantes vistos” e depois de ouvir a W. H. Auden, já vem a noite, “A noite de Pavese” – “(…) Obviamente eu abençoo/quem me deixa entrar, dou a entender/ que alguma coisa brilha nas minhas mãos/ e posso matar a fome com uma ou outra palavra/ próxima do amor, um dedo nos cabelos/ de quem me recebe. (…)”.
O último poema intitula-se “Intervalo para Leonard Cohen”:
“ (…)
Outro cigarro?
Outro mistério, ainda,
na auréola de fumo sobre as cabeças
– e o mistério, a que devastação conclama?
O destino das coisas, o mundo de instantes
À deriva? “
Bem gostava de ler em voz alta “Os poemas de Caravaggio” que se publicam em 2008 e os “Doze Cantos do Mundo” que vêm a lume no ano seguinte. Pudesse eu parar em Veneza e visitar “os Selos da Lituânia” e passaria o fim de tarde a ouvir música n’ “O Bosque Cintilante”. Ando assim de um lado para o outro e a vida… Ó, “Vida Breve”! – (…) A minha poesia chega-me carregada/ de infância, embora venha revestida/ das adustas dores de eu ser adulto/ há demasiado tempo (…)”
Bem gostaria também de dedicar algum tempo às questões de poética e talvez produzir um texto sistemático, coisa que pudesse ler-se em forma de resumo ou de pontuação de tópicos e forças, mas a hora do silêncio vem chegada na tarde fria de Janeiro. Felizmente a antologia “Danos Patrimoniais” encerra ou abre portas a partir de um posfácio de Henrique Manuel Bento Fialho intitulado “Ponto[s] Culminante[s]”. Como num complexo sistema orográfico, procura-se um ponto máximo de luz, o cume revelador, a palavra forte que poderia constituir-me como ponto de luz ou lugar onde se perfaz ou se ilumina a revelação. Serão vários, no entanto, os pontos culminantes. Desde logo a música, o tanger uníssono e disforme da criação, a experiência e a oficina enquanto espaço de esperança e de reunião de formas e de celebração da tradição. Uma poética que vem de longe e que mergulha e se expande numa espécie de crepúsculo vital, onde os deuses desconfiam e ordenam e os homens julgam governar a nau e vencer a grande tormenta. A poesia de Amadeu Baptista vê-se revelada e em parte esclarecida neste precioso posfácio, exercício documentado de lucidez e de aproximação às forças que governam um longo escrever de décadas. Pulsão, arroubo, delírio, o eco transcendente de um Deus expulso da ignorância e do atavismo, um deus irmão da vocação instrumental, um deus das ruas, plangente e próximo do vulgo, do respirar da gente e do mundo.
Para concluir, lembremos as “temáticas há muito denunciadas nos livros do autor. São elas a desumanização do mundo, a crueldade entre os homens, a falência do humanismo, a ausência e o ‘silêncio de Deus’, a reprodução do mal e a excepcionalidade do bem, as desigualdades sociais, a sublimação da natureza, enfim, a ‘desafinação geral’, de um cosmos visceralmente assimétrico”, resume Henrique Manuel Bento Fialho e com estas palavras damos por concluído ou iniciado este tão frágil e tímido exercício de aproximação a uma obra imensa, que ousa trazer a língua à percepção do espanto ou da maravilha que se faz música: “E que outra coisa é poesia senão música, ritmo, respiração? E que outra coisa é a música senão o homem? E que outra coisa é o homem senão Deus, todos os rostos de Deus?”
José Miguel Braga
Apresentação de “Danos Patrimoniais” de Amadeu Baptista, Edições Afrontamento, 2023, no dia 6 de Janeiro, na Livraria Centésima Página, em Braga.
Revista Triplov . Dezembro de 2024