O essencial de Bernardim Ribeiro

 

Tributo a ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO


O essencial de Bernardim Ribeiro, António Cândido Franco, 2007

ÍNDICE

1. Introdução

2. As Duas Tradições Textuais

3. As Dramatizações Pastoris

4. A Questão Crisfal

5. O Livro das Saudades

6. A Leitura Judaico-Cabalística

7. Neo-Platonismo e Saudade

8. Bibliografia


INTRODUÇÃO


A primeira questão que se nos afigura pertinente ao falarmos de Bernardim Ribeiro, tanto mais que o assunto da sua biografia continua oculto por condições atmosféricas propícias ao aparecimento de névoa, é a das tradições textuais que se ligam à sua obra impressa. Esta questão, que de resto se mostra oportuna para a quase generalidade dos autores portugueses editados no século XVI, e reeditados ainda no mesmo século ou na primeira metade do seguinte, carreia uma reflexão contrastiva, capaz de no seu termo levar à escolha de uma tradição textual fidedigna. Se não estamos em condições de apresentar um roteiro biográfico credível para Bernardim Ribeiro, nem tão pouco de indicar caminhos inovadores para essa indagação, podemos porém avançar com segurança na detecção de segmentos erradamente atribuídos ao autor ao longo dos séculos, fixando-lhe de vez um documento literário digno de crédito.

Depois de resolvido o problema do corpo textual de Bernardim, importa seleccionar a partir da sua obra um conjunto de problemas suficientemente representativos para servirem de matéria de leitura. Esses problemas são a nosso ver essencialmente dois, a ligação dessa literatura ao criptojudaísmo e a saudade. Eles decorrem do quadro textual dessa literatura, onde a saudade assume uma importância filológica intorneável, quer pela recorrência, quer pela significação, mas também do contexto cultural ibérico do século que a viu surgir e onde o estabelecimento da Inquisição em Portugal em 1536, com o consequente programa de censura, vigilância e opressão, faz figura de acontecimento crucial e determinante.

Não se trata de ligar de forma absolutamente provada esta literatura com o criptojudaísmo nascente na cultura portuguesa, nem tão-pouco de ter essa linha de leitura como única ou mesmo dominante. Assim como assim, temos um ponto de partida interessante. É a publicação em 1554 da edição princeps das obras de Bernardim Ribeiro na mesma tipografia de Ferrara que editara um ano antes a obra de Samuel Usque, Consolação às Tribulações de Israel, esta sim uma obra assumidamente judaica, com manifesto propósito de resistência (recorde-se por exemplo a célebre descrição que Usque faz da Inquisição portuguesa no terceiro diálogo), ainda que escrita em portuguesa língua, o que constitui elemento claro de hibridismo cultural. Só muito mais tarde, já na primeira metade do século XX, a obra de Usque será traduzida para hebraico, yiddish. A tipografia em causa, propriedade dos irmãos Usques, Samuel e Abraão, publicou entre 1552 e 1555 obras para um público judaico, com duas excepções, Bernardim Ribeiro e Jorge Manrique (1440-1479?). As coplas de Manrique (cremos serem as ‘coplas por la muerte de su padre’, austera e carregada meditação sobre a morte e a imortalidade da alma que pode ser aproximada com facilidade da literatura parenética hebraica, sobretudo a sálmica e a aforística) apareceram em 1554 como apêndice final, em escassas onze páginas, à Vision Delectable de la Philosophia y Artes Liberales, obra de um cristão-novo espanhol do século XV, Alfonso de la Torre, tocada pela filosofia de Maimónides, que abundantemente cita e que parece ter tido boa recepção mental nos círculos criptojudaicos da época. Neste sentido, teremos mesmo uma única excepção, a de Bernardim Ribeiro, o que evidentemente nos leva a cruzar dentro de certos limites a sua obra com o criptojudaísmo português da época.

Neste plano, é importante não confundir judaísmo com criptojudaísmo; o primeiro é reconhecimente ortodoxo, enquanto o segundo, manifestando-se num contexto de perseguição, resistência ou clandestinidade tende invariavelmente para hibridismos e sincretismos culturais que o tornam irreconhecível ou pelo menos distorcido à luz da ortodoxia judaica. Isto dito, e aceitando que a literatura de Bernardim ganha em ser discutida contextualmente a partir da questão do criptojudaísmo, a linha de leitura interna que nos interessa privilegiar para essa literatura são as figurações e representações da saudade, quer em termos gráficos, quer em termos de significação.

É verdade que também aí o texto de Bernardim Ribeiro não escapa à problemática do criptojudaísmo ou do judaísmo de resistência pois interage de forma privilegiada com o de Samuel Usque. Foi neste que a forma gráfica moderna da palavra apareceu pela primeira vez na prosa portuguesa. Muitos dos significados que a palavra encontra na literatura de Bernardim estão também presentes no texto de Usque. Sem ser um tópico judaico, a saudade moderna, quinhentista e seiscentista, sofreu um impulso significativo com a prosa religiosa de Samuel Usque, recebendo dela alguns dos seus mais largos e novos significados, entre eles o seu sentido religioso, a saudade de Deus, que o Camões das redondilhas de “Babel e Sião” e o Francisco Manuel de Melo da Epanáfora Amorosa depois explorarão. E isto que aqui se diz para os significados da palavra, pode também ser dito para os seus revestimentos gráficos. Usque usou na sua prosa uma profusão notável de formas gráficas da palavra (dos arcaísmos à forma moderna), que não estão longe também do que encontramos em Bernardim (em que se detectam pelo menos três formas: soydades e soidade para a prosa e saudade e suydade para o verso). Há pois afinidade profunda na forma como os dois autores tratam a saudade.

De qualquer modo, a forma mimética que a literatura de Bernardim Ribeiro voluntariamente assume, distanciando-se por aí da forma didáctica ou apologética da de Samuel Usque, obriga a ponderar diferenças entre a criação dos dois e a encarar uma parcela de absoluta independência e alguma novidade na saudade de Bernardim Ribeiro. É essa novidade que nos interessa explorar. O objectivo é assim perceber uma obra chave da literatura portuguesa quinhentista a partir das metamorfoses significantes do termo saudade, ao mesmo tempo que se problematizam questões importantes do contexto histórico, cultural e literário da época.


AS DUAS TRADIÇÕES TEXTUAIS


Temos hoje dois manuscritos bernardinianos (para a obra em prosa). O primeiro que se designa por Ms. Bernardiniano da BNL [Biblioteca Nacional de Lisboa; COD 11353] é um volume de 251 folhas, contendo um conjunto largo de textos de vários autores (Bernardim, Sá de Miranda, Boscán e Garcilaso, Zurara, Afonso de Albuquerque, entre outros). As primeiras 34 folhas, a duas colunas, tem o seguinte título: “Obra intitulada saudades de / bernardim ribeiro q foy autor della”. Outros textos atribuídos a Bernardim aparecem manuscritos na miscelânea; é o caso do romance “Ao longo de ua ribeira” (impresso numa silva de romances castelhanos, Cancionero de Romances, surgida na cidade de Antuérpia, antes de 1550) ou a écloga “Silvestre e Amador”. A miscelânea de textos e autores comprova que estamos ante um apógrafo. Trata-se de qualquer modo de um manuscrito com valor, pois segundo a abalizada opinião do seu primeiro possuidor, Eugenio Asensio, a cópia manuscrita data (segundo a letra) de 1545-1550. Se a hipótese for verdadeira, o códice da Biblioteca Nacional de Lisboa será anterior à edição princeps da prosa de Bernardim. Este manuscrito foi adquirido no início da segunda metade do século XX pelo insigne filólogo espanhol em Lisboa, onde era tido por um apógrafo vulgar e tardio. Asensio escreveu em 1957 um importante e revelador ensaio crítico sobre o manuscrito, “Bernardim Ribeiro a la luz de un Manuscrito Nuevo” (in Revista Brasileira de Filologia, vol. 3, tomo I, Rio de Janeiro, Livraria Académica, Junho, 1957). Em 1976 o conjunto foi adquirido pelo professor José Vitorino de Pina Martins que posteriormente, em Fevereiro de 1983, o ofereceu à Biblioteca Nacional de Lisboa, onde hoje se encontra.

O segundo manuscrito bernardiniano é o Ms. da Real Academia de la Historia de Madrid (col. Salazar, Est. 7, cr. 2, nº 76). Trata-se de um volume de 245 páginas, contendo também um largo espectro de textos. Setenta e seis páginas desse manuscrito, numa única coluna de 40 linhas, são ocupadas pelo texto em prosa de Bernardim Ribeiro, com o título “Tratado de Bernaldim Ribeiro”. A letra foi identificada como sendo dos finais do século XVI. Trata-se portanto de mais um apógrafo. O manuscrito de Lisboa e o da Real Academia pertencem à mesma estirpe, pois os desvios entre os dois códices são pequenos (mas existem, começando pelo título). Há cópia do manuscrito de Madrid na Biblioteca Nacional de Lisboa (com a cota ‘Ms. 8166’, pp. 66), mandada fazer por Teófilo Braga nos finais do século XIX. O título do códice de Madrid, que diverge muito do do manuscrito de Lisboa acima transcrito, parece um eco da literatura de Diego de San Pedro, um autor castelhano da segunda metade do século XV, que publicou em 1491 o Tratado de los Amores de Arnalte e Lucena e em 1492 Cárcel de Amor, duas novelas sentimentais às quais a novela de Bernardim tem sido associada. Encontramos no autor espanhol uma mística do amor, que necessita de leitura simbólica ou mesmo anagógica. Esta vertente das novelas de San Pedro parece assim reforçar o lado alegórico da de Bernardim. Assinale-se ainda que San Pedro é cristão-novo e que a sua  primeira literatura, proibida pela Inquisição espanhola, aparece ligada em termos de ideias às correntes heterodoxas do pensamento da época, em especial à difusa atmosfera mental dos novos conversos, onde se pode ainda  incluir um dos textos capitais da época, a Tragicomedia de Calixto y Melibea (1499), de Fernando de Rojas, vulgarmente conhecido pelo nome de La Celestina, e que alguma afinidade mostra também com a problemática amorosa da obra de Bernardim.

Quanto a edições impressas, temos três edições bernardinianas no século XVI, todas elas contendo as obras em prosa e em verso de Bernardim, posto que com critérios e lições desencontradas como se verá a partir da descrição de cada uma delas.

A primeira edição, a editio princeps, apareceu na cidade italiana de Ferrara, em 1554, na tipografia de Abraão Usque, irmão de Samuel Usque, o autor que um ano antes na mesma cidade e na mesma tipografia publicara a Consolação  às Tribulações de Israel. A folha de rosto da obra apresenta os seguintes dizeres, para além do ano, do local e da marca do impressor (uma esfera armilar): HYSTORIA / DE MENINA E MOÇA, POR BER- /NALDIM RIBEYRO AGORA DE NOVO ESTAMPADA E CON / SVMMA DELIGENCIA / EMENDADA. / E assi alguas Eglogas suas com ho mais / que na pagina seguinte se vera /. Na página seguinte, a portada do texto, encontramos a tábua descritiva das matérias do livro. Lá figuram as obras reconhecidamente de Bernardim [Hystoria de Menina e Moça; Egloga chamada, Persio e Fauno; Egloga, Jano e Franco; Egloga, Silvestre e Amador; Egloga, Agrestes e Ribeirio [sic]; Egloga, chamada Jano; Sextina, hontem posse o Sol; algus motes e cantigas (são duas, Nam sam casado senhora e Para mim nasceo cuidado)]. E acrescentam-se as seguintes, assim descritas: Hua muy nomeada e agradavel / Egloga chamada Crisfal que diz. / Entre Sintra a muy prezada. / Que dizem ser de Cristovã fal- / cam. ho que parece alludir ho / nome da mesma Egloga. / Hua carta do dito, Hos presos cõ- / tam os dias. Mil anos por cada dia. / E outras cousas que entre lendo se / poderam ver. As outras matérias que lendo se vêem são as cantigas e as esparsas desta vez em elevado número (quarenta e uma), sem autoria na portada mas atribuídas depois no corpo do texto (fol. cl; aparece sem numeração no cimélio entre a cxlix e a cli) ao autor da écloga (com a seguinte designação na referida folha: Cantigas /  De Crisfal). Trata-se irrefragavelmente da primeira edição das obras de Bernardim, mau grado os dizeres do rosto “agora de / novo estampada e con / summa deligencia / emendada”; José Vitorino de Pina Martins chamou a atenção para o erro que é ler estas palavras do século XVI com o sentido que lhes damos ou podemos dar quase quinhentos anos depois. O  novo tem aqui segundo ele sentido de afirmação ou de revelação e não de repetição.

Esta edição foi durante muitos anos desconhecida em Portugal. Ainda no século XIX, um bibliógrafo como Inocêncio Silva Dias não dava dela notícia (o que não admira dada a absoluta raridade do volume; até meados do século XX só se conhecia um único exemplar). Na entrada que escreveu para ‘Bernardim Ribeiro’ no seu Dicionário Bibliográfico Português (tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858, pp. 359-361) nem sequer a menciona nas obras do autor, limitando-se a descrever as outras duas edições do século XVI. No penúltimo parágrafo do verbete, chama contudo a atenção para a última edição acabada de sair do Manuel du Libraire (tomo IV) de Jacques-Charles Brunet onde se referencia um exemplar da edição de Ferrara de 1554, a que Inocêncio não parece dar crédito nem valor. É talvez a primeira referência entre nós à edição hoje tida como princeps das obras de Bernardim (pelo menos na modernidade, pois tanto Gaspar Frutuoso como Diogo do Couto parecem referenciá-la nas alusões que fazem à écloga Crisfal no Livro III das Saudades da Terra e no cap. XXXIV da Década Oitava da Ásia; a menos que a fonte textual desses dois autores seja a terceira edição das obras de Bernardim, de 1559, o que também é aceitável).

Toda a tradição crítica portuguesa anterior a Inocêncio, com destaque para Diogo Barbosa Machado, desconhecia em absoluto a edição de Ferrara, o que se comprova ainda pelas edições portuguesas da novela e das restantes obras de Bernardim depois do século XVI, todas feitas no desconhecimento da edição de Ferrara. Entre 1645 (data da quarta edição do texto e primeira edição seiscentista conhecida) até 1923, a obra de Bernardim Ribeiro teve entre nós sete edições (1645; 1785; 1852; 1860; 1891; s/d; 1923). Só na última, de 1923, preparada por Anselmo Braamcamp Freire e prefaciada por Carolina Michaëlis de Vasconcelos, se regressou ao texto de Ferrara numa cuidada e fiel leitura diplomática. O texto de Ferrara foi depois disso usado por vários editores, com destaque para Dorothe E. Grokenberger, que em 1947 nos deu aquela que ainda hoje é a melhor edição da obra em prosa de Bernardim. A edição de D. E. Grokenberger, com apresentação de Hernâni Cidade (pp. VII-IX), é a única que merece a designação de edição crítica, pois partindo de uma leitura escrupulosa do texto da edição de Ferrara, lhe acrescenta um aparato crítico-textual onde são registadas as variantes significativas das outras duas edições do século XVI e do único manuscrito bernardiniano então conhecido, o de Madrid. Só se lamenta que essa edição crítica se restrinja à obra em prosa de Bernardim. Recentemente, em 2002, o professor José Vitorino de Pina Martins deu-nos uma edição facsimilada da edição de Ferrara de 1554, acrescentando-lhe um estudo introdutório de inestimável valor heurístico, ainda que ou quando discutível do ponto de vista das ideias, sobretudo na teimosa e a nosso ver forçada e nada convincente defesa da ortodoxia religiosa de Bernardim e da sua obra. Esse trabalho contém hoje a mais extensa, completa e bem comentada bibliografia bernardiniana. Foi estudo que demorou (segundo informação pessoal do autor) cerca de dez anos a escrever; do ponto de vista documental, em especial no que à descrição das fontes diz respeito, o trabalho parece-nos modelar ou mesmo inexcedível.

A segunda edição das obras de Bernardim, que até ao século XX passou por ser a primeira e a mais fidedigna, apareceu na cidade portuguesa de Évora, em 1557 [o cólofon apresenta a data de 30 de Janeiro de 1558 (M.D.lviij)], na tipografia de André de Burgos e a folha de rosto da obra apresenta dentro de moldura xilográfica rectangular de assinalável primor os seguintes dizeres, para além do ano na última linha (1557): Primeira / & seguda parte do / liuro chamado as / saudades / de Ber / nardim Ribeiro, / com todas suas o / bras treladado / de seu proprio ori / ginal. Nouamen / te impresso. Esta edição (rara também) apresenta notáveis divergências com a de Ferrara. Não inclui a Sextina de Bernardim nem os motes e as cantigas que se encontram na edição de 1554, nem tão pouco a écloga de Crisfal, a carta e as cantigas deste. De qualquer modo, a divergência mais assinalável diz respeito ao texto da novela em prosa. O título muda, a história divide-se pela primeira vez por duas partes distintas, que se agrupam por sua vez também pela primeira vez em capítulos numerados e titulados com texto (XXXI para a primeira parte e LVIII para a segunda). Ademais, aparecem variantes de pontuação, de léxico, de ortografia e de sintaxe, e sobretudo a extensão do texto diverge. Enquanto o texto de Ferrara é curto, terminando pouco depois do romance em verso de Avalor (inserido no capítulo XI da segunda parte da edição de 1557), o texto de Évora é muito mais extenso, com um conjunto significativo de novos capítulos (os que vão na segunda parte do cap. XVIII ao cap. final, o LVIII, num total de quarenta e um capítulos), que prolongam as aventuras de Avalor e Bimarder e dão mesmo lugar a novas personagens e novas acções.

Este desacerto textual tem sido muito discutido, mas é hoje quase consensual, depois do estudo de Carolina Michaëlis para a edição de Braamcamp Freire das obras de Bernardim, e na falta de um documento manuscrito coevo que o corrobore e justifique, que o acrescento da edição de Évora é espúrio e apócrifo. E isto apesar do aviso “Aos Leitores” dessa edição em que se diz que o texto apresentado foi tirado “a limpo do próprio original seu” (f. ii). Mas se para o texto da edição tipográfica de Ferrara nós possuímos dois manuscritos do século XVI que o caucionam, permitindo-nos perceber alguma coisa do seu processo genético, pois pertencem à mesma estirpe do autógrafo ou do apógrafo que esteve na base dessa edição, para a edição de Évora não temos nenhum manuscrito que nos permita sustentá-la ou percebê-la. Neste sentido, esta edição, que foi desde o século XVII até ao XX a única fonte de todas as reedições bernardinianas, perdeu a importância que outrora teve, tornando-se apenas num elemento de confrontação crítica com o texto da edição princeps.

A terceira edição das obras de Bernardim apareceu na cidade alemã de Colónia e apresenta os seguintes dizeres no rosto: HYSTORIA / DE MENINA E / MOÇA, POR BERNALDIM / RIBEYRO AGORA DE NO / uo estampada, e cõ summa deli / gencia emendada. / E assi alguas Eglogas suas com ho mais / que na pagina seguinte se vera / [marca do impressor] / Vendese a presente obra em Lixboa, em / casa de Francisco Grafeo, acabouse / de imprimir a 20 de Março, / de 1559 annos. Esta edição repete a de Ferrara, com pequenas mas numerosas alterações, que não mexem todavia com a estrutura do texto. A edição de 1559, subsidiária da princeps, é conhecida como sendo de Colónia porque a marca que apresenta no rosto é a do impressor colonino Arnold Birckman. Em parte nenhuma do volume se indica o local de impressão, assinalando apenas o rosto a casa lisbonina de Francisco Grafeo, que José Vitorino de Pina Martins aventa ser sucursal da casa Birkman.

A estas fontes é preciso acrescentar mais três elementos. Primeiro, a edição em folheto de uma écloga de Bernardim, conhecida como “A folha volante de 1536”. A folha de rosto da obra apresenta dentro de gravura rectangular os seguintes dizeres: Siluestre.  Amador / Trouas de dous pastores. J. Sil- / uestre & Amador. Feytas por Bernal- / dim ribeyro. Nouamente empremidas / Com outros dous romãces com suas / grosas: que dizem. Obelesma. E justa / fue mi perdicion. E passando el mar le- / andro. Na moldura xilográfica que enquadra estas palavras, composta por quatro peças móveis, encontra-se na base da peça da direita, uma coluna, o ano de 1536. A data não está impressa, mas gravada na madeira da gravura, aparecendo por isso em outros livros e folhetos da tipografia de Germão Galharde, a quem se atribui a impressão desta folha de Bernardim, alguns muito posteriores ao ano de 1536. É por exemplo o caso da Tragedia de los Amores de Eneas, um folheto de 20 folhas. É provável que a verdadeira data de impressão deste folheto seja assim posterior a 1536.

Segundo elemento, a edição em folheto da écloga Crisfal. Não tem dizeres de rosto, a não ser num frontão simples, de duas figuras com árvore no meio, encimando o início do poema. Aí se encontram as seguintes palavras, que podem ser tidas como titulares: Trouas de Chrisfal. / Trouas de hu pastor per nome Chrisfal. / Autor. / Começam logo de seguida os versos do poema a duas colunas. Não tem indicação de ano ou de local de impressão. A impressão é geralmente atribuída a Germão Galharde; Carolina Michaëlis no estudo de 1923 fixou a data de edição entre 1545 e 1547, mas pode ser posterior à de Ferrara.

Finalmente, como terceiro elemento, juntem-se as doze composições de Bernardim Ribeiro no Cancioneiro Geral (1516) de Garcia de Resende, duas trovas, quatro vilancetes, três cantigas e três esparsas (publicadas nas fls. CXCII v.–CXCIII r. e CCXI r.–CCXII r.), que não figuram nas edições quinhentistas da sua obra, tal como as duas cantigas das edições de Ferrara e de Colónia não figuram no florilégio de Resende. No conjunto lírico final destas duas edições, a primeira e a terceira, apendiciado à écloga de Crisfal e à carta, aparecem algumas das composições de Bernardim no cancioneiro de 1516, quase todas elas com alterações, mostrando um autor torturado pela forma das suas composições. Lá se encontra o vilancete tão bernardiniano do “Antre mim mesmo e mim” (que na edição de Ferrara aparece “Antre mi mesmo em mim”, aqui decerto por gralha dos compositores italianos e revisão apressada dos Usques, apesar da indicação do rosto que diz “con / summa deligencia / emendada”).

O facto de seis importantes composições em verso do Bernardim Ribeiro do Cancioneiro Geral aparecerem na edição princeps atribuídas ao autor da écloga Crisfal, torna mais problemática a autoria deste poema, levando-nos a pensar que é defensável a sua atribuição a Bernardim Ribeiro. Assinale-se que a portada da edição de Ferrara não atribui taxativamente a écloga a Cristovã Falcam, jogando apenas de modo imaginoso com a hipótese (“Egloga chamada Crisfal / … / Que dizem ser de Cristovã Fal- / cam. ho que parece alludir ho / nome da mesma Egloga.”). Os desacertos que se têm visto entre a obra de Bernardim e Crisfal são mais biográficos que estilísticos. Ora a biografia de Bernardim Ribeiro (sobretudo depois de Álvaro Júlio da Costa Pimpão ter impugnado em 1947 as pesquisas genealógicas de António Maria de Freitas e do Visconde de Sanches Baena publicadas em 1895, pesquisas que levaram Teófilo Braga a rectificar a biografia oficial do autor da História de Menina e Moça, aquela que vinha de Faria e Sousa e ainda levara Garrett no século XIX a escrever Um Auto de Gil Vicente) é mera construção conjectural, sem qualquer base documental segura. Bernardim Ribeiro é ou continua a ser um poeta sem biografia, o que desautoriza a possibilidade de lhe atribuir ou de lhe retirar a autoria de poemas de acordo com as ilacções biográficas que deles se extraem. E o que aqui se diz para a biografia de Bernardim Ribeiro, com muito mais razão se dirá para a do Cristovã Falcam nomeado no sumário da edição de Ferrara de 1554.

De tudo isto se tira que a questão do texto original da obra de Bernardim é complexa e pode estar longe de se encontrar esgotada ou resolvida. Assim como assim, temos dois manuscritos bernardinianos do século XVI e três edições quinhentistas, duas que se repetem e uma outra que diverge. Percebe-se a partir do confronto destes cinco elementos que estamos diante de duas tradições textuais distintas: a primeira engloba os dois manuscritos conhecidos e as edições tipográficas de Ferrara e de Colónia, já que as variações entre estes quatro elementos são pequenas e permitem reconhecer uma mesma fonte, que se pensa ser a autógrafa, ou estar pelo menos conexa a ela; a segunda diz apenas respeito à edição de Évora de 1557 e não tem qualquer base manuscrita de apoio. Tendo em atenção que a força distintiva desta edição, aquilo que a autonomiza a ponto de se poder falar numa tradição textual distinta, é o longo acrescento da segunda parte, fica de lado pelo menos de momento a autenticidade do texto acrescentado nesta edição (acrescento que de resto tem sido tomado por alguns leitores experientes como uma imitação fraudulenta e inferior do estilo de Bernardim).

A nós o problema da autenticidade textual da obra de Bernardim não nos deixa indiferentes. Estamos convencidos que qualquer leitura interpretativa ou cultural da obra deste autor, como de resto de qualquer outro autor quinhentista, necessita sempre de uma reflexão prévia e séria em torno dos manuscritos disponíveis e das edições coevas da sua obra, de modo a poder escolher uma tradição textual fidedigna, quer dizer, que esteja o mais próxima possível do texto autógrafo do autor. No caso de Bernardim esta reflexão prévia faz todo o sentido. Basta dizer que ler Bernardim Ribeiro na edição de 1554 não é a mesma coisa que lê-lo na edição de 1557. Na de Ferrara temos um Bernardim textual muito diferente do de Évora; neste cresce a prosa e mingua o verso, desaparecendo a importante sextina, as duas cantigas, a écloga Crisfal e o importante conjunto de cantigas e esparsas atribuídas ao mesmo autor da Crisfal, e que já vimos pelo menos em alguns casos pertencerem comprovadamente ao Bernardim do cancioneiro resendiano. Estamos diante de duas tradições textuais distintas e logo de duas leituras diferentes; interpretar o texto do Bernardim de Ferrara não é a mesma coisa que interpretar o de Évora. A base textual não coincide, o imaginário cultural é distinto, o perfil estilístico diverge. Existe um denominador comum entre as duas tradições textuais, que é constituído por uma parte da História de Menina e Moça e pelas cinco éclogas, mas não chega para fazer coincidir os dois ‘autores’, tanto mais que esse mesmo denominador apresenta flutuações (menores todavia) de uma edição para outra.

No caso da literatura de Bernardim Ribeiro o estabelecimento de uma lição textual original, fiel à do autor, não é irrelevante; trata-se de uma questão preliminar, anterior à interpretação, mas da máxima importância. Diante de duas tradições textuais tão divergentes, a ponto de podermos falar em dois ‘autores’, é preciso escolher em consciência uma delas. É esse o indispensável trabalho prévio à interpretação, sem o qual não pode existir no caso de Bernardim uma leitura segura.  Decorrendo do que atrás se disse, e na ausência de um manuscrito justificativo da edição de Évora, que permita estabelecer uma genealogia autógrafa para essa tradição textual, só o Bernardim da edição princeps nos oferece garantia textual. Nesse sentido, parece-nos que só as leituras do texto desta edição podem hoje ser sancionadas.

Mas a nossa reflexão sobre uma lição textual fidedigna para Bernardim não se fica por aqui. O que nos interessa não é um mero problema de ecdótica; a escolha de uma tradição textual não nos satisfaz por inteiro. Essa questão para nós é apenas preliminar; o que nos interessa é a leitura, em particular a leitura da saudade, dada a importância e a densidade que a palavra tem no texto de Bernardim. Ora, se atendermos a que a questão da saudade na literatura portuguesa de quinhentos é como ensinou Carolina Michaëlis um problema filológico, percebemos como a leitura da saudade em Bernardim se cruza com a crítica das tradições textuais. É que, indagando a saudade num período de grande flutuação gráfica e semântica, em que a palavra parecia andar à procura do seu moderno e duradouro (mas não eterno pelo que hoje se vê em Cabo Verde com a sodade ou no Brasil com a sodadji) revestimento gráfico, qualquer pequena divergência temporal pode ser em termos filológicos significativa. É o que efectivamente se passa entre a edição de Ferrara e a de Évora. Esta edição tendeu a modernizar ou a normalizar os arcaísmos da palavra. Não sobreviveu nela nenhum dos arcaísmos que vinham de Ferrara, oito na totalidade, isto no que à prosa da História de Menina e Moça diz respeito. Também os novos acrescentos da palavra no que à prosa da novela concerne (dois nos capítulos coincidentes com a edição de Ferrara e cinco nos capítulos exclusivos a essa edição) recorrem sempre ao revestimento gráfico moderno. Esta modernização significa em nosso entender um empobrecimento linguístico do texto. Daí a ideia de normalização.

Sob esse aspecto, o da flutuação ortográfica e semântica, agravada na época pela ausência de qualquer norma e pela intervenção consentida de compositores tipográficos compositores ou de copistas em pequenos pormenores do texto, a única fonte textual que nos poderia satisfazer plenamente para um estudo da saudade em Bernardim, sabendo como as variações gráficas da palavra se podiam multiplicar indiscriminadamente em textos copiados (quer manuscritos, quer compostos em caracteres), era o texto autógrafo, o texto escrito pela mão do autor. Na ausência deste, a solução aceitável parece-nos o recurso à edição princeps de Ferrara, mesmo sabendo que os Usques devem ter trabalhado a partir de um apógrafo, dada a distância entre Portugal e a Itália e a idade do autor (se é que ainda estava vivo nesse ano de 1554; a última biografia oficial de Bernardim estabelecida por Teófilo, hoje sem qualquer valor, punha-o a falecer demente aos setenta anos de idade, numa cela do Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa, no ano de 1552). As duas cópias manuscritas que hoje possuímos não nos parecem em condições de poder substituir, nem mesmo para a novela em prosa, a edição de Ferrara, porque a primeira delas, a de Madrid, é muito tardia e a segunda, a da BNL, é incompleta (ausência de parte da obra em verso) e de datação difícil ou pelo menos ambígua e insegura. Este último apógrafo parece-nos assim muito longe de poder servir para texto-base de qualquer edição fidedigna de Bernardim como pretendeu Eugenio Asensio. Para nós o texto-base das obras de Bernardim continua a ser, quer para uma futura edição crítica, quer para a construção de qualquer leitura interpretativa, o texto da edição de Ferrara, que reputamos de valioso.

Sobre esta edição, dada a sua importância de texto-base, vale a pena fazer ainda a seguinte pergunta. Como é que um impressor judeu como Abraão Usque, mesmo português de origem, foi capaz de editar no século XVI a alguns milhares de quilómetros de distância da pátria uma edição princeps de uma obra literária portuguesa? Deixando agora de lado o facto da actividade tipográfica de Abraão Usque estar quase exclusivamente voltada para a apologia religiosa do judaísmo ou da sua tradição, o que mais complica a questão, a resposta não se afigura nada fácil. Assim como assim, as hipóteses para um tal sucesso não podem ser mais do que duas. Ou os Usques antes da sua ida para o exílio, o que deve ter acontecido depois do primeiro auto-de-fé em Portugal, ocorrido em Évora por volta de 1541, estavam em contacto estreito com Bernardim Ribeiro e com o círculo dos seus herdeiros (caso o poeta nessa data houvesse já falecido), levando assim nas bagagens uma cópia das obras do poeta, ou já depois do exílio os Usques, por sua iniciativa ou não, entraram em contacto com alguém que conhecia de perto Bernardim, dele recebendo uma cópia manuscrita com as obras do poeta que depois mandaram imprimir. Não deve ser possível sair muito daqui.

Do que sabemos, e é infelizmente pouco, nada nos permite inferir que os Usques terão conhecido em Portugal o autor da História de Menina e Moça ou o círculo dos seus herdeiros; quanto à possibilidade dos Usques terem contactado ou terem sido contactados já em Itália por alguém que conhecia Bernardim e estava em boas condições de possuir um apógrafo dos seus trabalhos há uma pista. É a pista de Alonso Núñez de Reinoso.

Alonso Núñez de Reinoso, poeta de língua castelhana, publicou as suas obras em 1552, na cidade de Veneza (impressor Giolito dei Ferrari), em dois livros, Libro Primero de las Obras e Libro Segundo de las Obras em Coplas Castellanas y Versos al Estilo Italiano. No primeiro encontra-se uma novela (Novela de Clareo y Florisea) e no segundo um conjunto de versos, entre os quais a écloga Baltea. Eugenio Asensio pediu já atenção para a forte intertextualidade mirandina desta última écloga; outros estudiosos, como Constance Hubbard Rose e José Vitorino de Pina Martins destacaram por sua vez a tradução quase literal de versos de Bernardim nas composições de Núñez de Reinoso. A questão de se saber com certeza de que lado partiam os empréstimos, quer dizer, se foi Núñez de Reinoso que traduziu Francisco Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro ou se foram estes que traduziram o primeiro, a questão, dizíamos, ficou resolvida com o manuscrito bernardiniano da BNL, onde existem composições inéditas do poeta castelhano. Entre elas, temos um trecho inédito em prosa, composto para servir de prefácio às obras publicadas em Veneza, mas que acabou por não ser impresso, onde genuflecte a Sá de Miranda e a Garcilaso de la Vega (que são postos ao lado de Sannazarro e Tebaldeo).

Conhecem-se mal os passos deste Núñez de Reinoso, outro poeta quase sem biografia. Sabe-se que nasceu em Guadalajara, passou por Portugal, onde frequentou o círculo áulico ou arcádico de Sá de Miranda, e foi editar a sua obra a Itália, onde parece que acabou por falecer. Sabe-se outrossim pela dedicatória do Libro Segundo publicado em Veneza em 1552, dedicado ao “Señor Iuan Micas”, familiar próximo de Gracia Nasi, que Núñez de Reinoso frequentava em Itália os meios dos criptojudeus portugueses e espanhóis fugidos à Inquisição dos seus países. Pina Martins reconhece mesmo a ascendência judaica do poeta castelhano, o que de resto vem de trás. Recorde-se que Gracia Mendes Nasi era uma cristã-nova portuguesa, nascida em Lisboa por volta de 1510, que alimentou nesta cidade um dos mais influentes círculos criptojudaicos portugueses. Com o alvará de 1536 e o estabelecimento da Inquisição em Portugal, Gracia tornou-se uma dedicada protectora dos seus compatriotas perseguidos. Acabou por partir para o exílio, passando pelos Países Baixos (Antuérpia), Alemanha, Itália (Ferrara e Veneza), onde tinha interesses comerciais de monta, acabando depois por se fixar em Constantinopla. Nas suas viagens nunca se esqueceu dos marranos no exílio, o que lhe valeu em 1553 a comovida página da dedicatória de Samuel Usque na abertura da Consolação às Tribulações de Israel.

Atendendo a que Núñez de Reinoso rendeu preito a Sá de Miranda, citou e traduziu Bernardim, passou por Portugal e por Lisboa, frequentou depois de 1550 os círculos dos cristãos-novos portugueses exilados na Itália, era ele próprio um converso, dedicou em 1552 um livro a João Micas, sobrinho de Gracia Mendes Nasi, protectora dos Usques, não custa aceitar que por um lado tenha levado consigo da Península uma cópia das obras de Bernardim e que por outro se tenha encontrado em Ferrara com os Usques, a quem terá entregue o apógrafo que depois foi impresso nos prelos de Abraão. A hipótese é sedutora e cativou mesmo uma investigadora tão escrupulosa como Carolina Michaëlis, que a defendeu com convicção no seu trabalho de 1923. Não passa contudo de hipótese, pois não surgiu ainda o documento que nos garanta que foi por intermédio de Núñez de Reinoso que os Usques chegaram ao conhecimento da literatura de Bernardim ou, já a conhecendo, que foi por ele que obtiveram a cópia manuscrita que lhes serviu como texto-base para a sua edição.

Ao fim e ao cabo, fica sempre um problema, que nos parece basilar: por que motivo um impressor cristão-novo no exílio, com os prelos ao serviço do proselitismo judaico, se interessou pela publicação das obras de Bernardim, quer as tenha obtido pela mão do poeta castelhano, quer a elas tenha chegado por qualquer outra via? É problema sem resposta imediata, mas que sustenta dentro de certos limites, que são os da exegese simbólica, a questão do criptojudaísmo na literatura de Bernardim. Essa questão parece-nos assim intorneável; ela radica nas próprias bases fidedignas da obra escrita de Bernardim, a edição de Ferrara de 1554, podendo por isso desenvolver-se com absoluta legitimidade até ao plano da hermenêutica textual alegórica.


AS DRAMATIZAÇÕES PASTORIS


Antes de nos aproximarmos da História de Menina e Moça, o romance que abre a edição de Ferrara (fls. ii-lxxx),  ocupemo-nos das cinco éclogas em verso de Bernardim que aparecem na edição de Ferrara logo a seguir ao cerrado texto em prosa (fls. lxxxi-cxxxi). Deixamos proprositadamente de lado a edição solta de uma das éclogas de Bernardim, Silvestre e Amador, que tem gravada na xilogravura do rosto a data de 1536, mas cuja edição deve ser posterior. As éclogas de Ferrara são para nós em língua portuguesa as primeiras composições deste género com edição tipográfica segura. Se atendermos ao velho metro peninsular em que estão escritas, podemos considerá-las as mais antigas da língua; elas contrastam com a língua latina das de Henrique Caiado (1475-1509) ou com o moderno metro italianizante usado por Miranda nas suas, de resto tanto umas como outras muito mais didácticas e muito menos poéticas que as de Bernardim.

A écloga é uma forma elementar de poesia dramática, curta e pastoril, que vem das raízes do género, com Teócrito (sec. IV a. C.); pode ser constituída por um monólogo reflexivo de pastor ou por um diálogo activo, ou também reflexivo, entre vários pastores ou pastoras, às vezes com presença forte de narrador introdutório, o que a torna quase um pequeno conto em verso, de recorte pastoril; pode ainda aparecer isolada ou ser parte de um romance pastoril mais extenso, como acontece com a Arcádia de Sannazarro. Em Bernardim, podemos encontrar a écloga pastoril simplificada a um solilóquio de pastor, como acontece com “Jano”, ou elaborada a partir da intervenção de dois pastores, com narrador introdutório, como sucede nas restantes quatro, “Pérsio e Fauno”, “Jano e Franco”, “Silvestre e Amador” e “Agrestes e Ribeiro” (é esta a ordem indicada na portada da edição de Ferrara, aparecendo no final o solilóquio de Jano; na realidade “Jano” antecede no corpo do texto a quinta écloga, a de “Agrestes e Ribeiro”).

Apesar do diverso formal, as éclogas de Bernardim contam todas uma história, afastando-se por aí do didactismo reflexivo que se pode também encontrar no género; essa história trata invariavelmente do amor de homem e mulher, do enamoramento à separação, com minuciosa atenção aos processos interiores psíquicos que daí decorrem. As personagens destes poemas são pastores enamorados, que vivem debaixo do influxo do amor por uma mulher. Ainda assim, não se sublinha o enamoramento inicial, muitas vezes da alçada do discurso indirecto do narrador introdutório, mas a posterior separação; dramatiza-se menos a felicidade física do amor, resumida pelo introdutor, que a sua dor psíquica, fruto da separação, restituída em longas tiradas pelo discurso directo dos pastores. A situação dramática preferida, e até exclusiva, em que as personagens nos aparecem vivas nos seus lamentos, é a solidão, a solidão de quem ama e se encontra inexoravelmente afastado do seu Amado, por não ser no amor correspondido ou por razões diversas e mesmo inexplicáveis, como sucede em “Agrestes e Ribeiro”.

A situação dramática escolhida por estes poemas de Bernardim, no seu minúsculo sistema de diálogos, parece ser a da Penha Pobre do Amadis de Gaula, na versão de Rodriguez Montalvo, texto impresso em 1508 na cidade de Saragoça, em língua castelhana, e que pode ser visto como um dos intertextos das dramatizações de Bernardim, quer em prosa, quer em verso; o que o episódio do romance tem de modelar em relação à obra de Bernardim é o amor humano contrariado. Os pastores de Bernardim encarnam a dor e a soledad de Beltenebros; vivem o desterro interior do luto amoroso e as suas falas são a espantosa dramatização deste estado da alma, que se lamenta da mulher ausente, mas sempre com a lembrança e o desejo nela. É um estado amoroso activo muito particular porque aparece ligado à solidão e à ascese e não ao pleno desenvolvimento dos sentidos. Algumas falas dos pastores de Bernardim podem passar por fragmentos de conversas a só de Beltenebros na reclusão da Penha Pobre. A situação dramática é sempre a mesma: o desespero, em forma de queixa ou gemido, de quem ama na solidão e se dá conta nos revoltos mares da sua consciência do profundo choque psíquico do amor.

Pela solidão e pela dor se aproximam e se afastam os pastores de Bernardim dos de Usque, que depois de Vicente foi quem deu fala na portuguesa língua a rústicos, pastores ou vaqueiros, ainda que os pastores de Usque tudo tenham de cultos e nada de rústicos. Por um lado, encontra-se a comum vivência da soledade ou da soidade; em ambos o tom que domina é o elegíaco do sentimento trágico, com a pequena consolação purgativa que daí pode vir. Solidão e memória, memória de um bem, unem todos estes pastores. Por outro, percebe-se a divergência de cenários: em Usque, com as aflições de um povo inteiro, que tem a memória da Idade de Oiro e um presente de ferro e sangue; em Bernardim, com as amarguras de um só indivíduo, com a memória querida do ser amado e um presente de solidão, ausência e desconforto. A catástrofe no primeiro caso é histórica e no segundo individual; no primeiro resulta da guerra e no segundo do amor erótico. As afinidades existem, até na dimensão catastrófica que faz passar do mundo físico para o da memória, mas a tematização do amor humano, que é obstinada e exclusiva em Bernardim, não conta para Usque, como para Bernardim não conta, pelo menos de forma patente, a aflição histórica de Israel. Os pastores de Usque vivem a sua condição de solitários desterrados da presença de Deus, enquanto os de Bernardim a de exilados da presença do ser amado. Há desterro em ambos, mas por razões diferentes, que só por analogia de efeito são afins. Pela sua ligação ao sofrimento de amor, as personagens de Bernardim voltam a ter parecenças fortes com personagens anteriores da literatura portuguesa saídas da mão de Gil Vicente, que dramatizou ainda que em língua castelhana o amor solitário e não correspondido de Amadis na Penha Pobre ou o de Duardos feito por vontade sua simplório de horta.

 Em “Pérsio e Fauno”, o narrador resume de entrada a paixão de Pérsio por Maria, que o trocou por um outro pastor e com ele partiu para terras distantes. Segue-se depois, através do diálogo com Fauno, a dramatização do estado de choque de Pérsio. Em “Jano e Franco”, o narrador pormenoriza a visão luminosa ao pé dos pascigos do Tejo que Jano fugido de uma dura seca transtagana tem de Joana, guardadora de patas. Jano sem ser visto apaixona-se de imediato por Joana, que mal o vê foge amedrontada para não mais regressar ou ser encontrada. Perde na precipitada fuga uma sapatilha, que se torna o fetiche de Jano e o motivo da sua primeira intervenção, em discurso directo, versando a mágoa que resulta da ausência da mulher amada. O narrador introduz de seguida a história do pastor mondeguino Franco de Sandovir. Helder de Macedo na sua edição da História de Menina e Moça fala de Franco de Sandomir (1999, p. 16), mas a lição da edição de Ferrara não deixa dúvidas quanto à transcrição. Este Franco de Sandovir [ou “Sandouir” como se lê na edição de 1554, (fl. xcii)] foi obrigado a afastar-se de Célia, sua paixão. Segue-se o encontro dos dois pastores e as respectivas confissões de amor. Em “Silvestre e Amador” o processo é o mesmo; um narrador introduz dois pastores, vencidos de tristezas amorosas, que depois falam do seu estado um com o outro. Em “Ribeiro e Agrestes” repete-se o processo introdutório do narrador e a situação característica do amor contrariado dos pastores. Ribeiro está enamorado por Ribeira, mas viu-se dela afastado; Agrestes ama uma formosa pastora, que por sua vez a outro dá seus amores, nada lhe dando a ele. Discutem os dois se a tristeza de um é maior ou menor que o ciúme do outro. Finalmente, em “Jano”, deparamos com um narrador que nos informa que Jano ama Dina, mas não sendo por ela correspondido se desterra para terra estranha. O poema é o longo solilóquio de Jano, em torno da sua desventura.

Percebe-se que estas éclogas todas contam uma história, mesmo elementar, que é sempre invariavelmente a mesma história de amor contrariado. Mais do que adversidades, o que se contam são estados de alma. A situação dramática que interessa obsessivamente Bernardim é uma situação intervalar, crítica e contraditória, em que o ser está sujeito à pressão anormal da tristeza, da solidão, da memória e do desejo amoroso. Em duas destas fábulas, “Silvestre e Amador” e “Agrestes e Ribeiro”, podemos encontrar uma visão do amor magoado ou não correspondido que nos parece nova, por ser muito mais contundente e nítida. Se pensarmos que este amor magoado e solitário é tópico que vem da lírica trovadoresca medieval, com o morrer de amor que se encontra nas palavras de um trovador português da corte de Afonso III, Johan Garcia de Guilhade, e dos primeiros romances peninsulares em prosa, o Amadis e o Primaleon, e das suas glosas vicentinas, compreenderemos a importância da novidade de Bernardim.

O que nessas duas fábulas vale a pena sublinhar a partir da situação em cena é o aspecto contraditoriamente doloroso do deleite de enamoramento. Por um lado, insiste-se com a separação nas consequências dolorosamente tristes do amor erótico; por outro reitera-se com a permanência do amor mesmo para além da separação o contentamento que caracteriza essa tristeza. Bernardim escolhe situações intervalares em que tanto se manifesta a tristeza como a alegria. Os momentos mais característicos do amor, o do enamoramento e o da separação, não são isentos para ele de contradições. A alegria do enamoramento supõe na sua perspectiva, por uma espécie de memória do futuro, a tristeza da separação como esta sustenta, por um alargamento da consciência do amor, um contentamento. Por isso, o enamoramento coincide de certa forma nele com a separação e a solidão com uma forma de lembrança que é reunião. No primeiro caso, isso dá a alegria triste e no segundo a tristeza alegre. A saudade é esse estado intervalar, tão penoso como luminoso. Ela tem uma parte de solidão que corresponde à separação do ser amado e uma parte de alegria que corresponde à permanência do amor e ao alargamento do desejo. É isso que parece típico nas dramatizações de Bernardim. Não admira pois que a saudade seja a sua situação dramática preferida. Todas estas pequenas fábulas bucólicas a que nos referimos podem assim ser a dramatização da saudade, porque elas não põem apenas em cena a solidão dos abandonados ou dos ascetas por livre vontade nem o deleite dos amorosos que plenamente realizam e satisfazem os seus sentidos. Essas dramatizações procuram um estado intervalar entre a solidão e a satisfação que é a saudade.

A certa altura Amador diz [transcrição literal do texto-base de Ferrara (fl. xcix; R iiii); quando necessário leitura minha entre parênteses rectos]:

O [Ó] meus olhos saudosos

minha grande soidade,*

meus sospiros tam queixosos,

o [ó] choros tam deleitosos,

por deleite, e por vontade.

Isto pode passar por ser a dramatização do amor solitário. Ora este tipo de amor não é uma novidade de Bernardim, nem tão pouco da literatura portuguesa, mas porventura ninguém como ele, ou até ele, em língua portuguesa, foi capaz de tão obstinadamente dar a impressão de o explorar e de o perceber em todos os segredos e recantos escusos. E é por isso que mais do que o amor solitário, Bernardim dramatiza o amor saudoso. Nos romances de cavalaria (pensamos no Amadis, mas também no Clarimundo de João de Barros, um texto português de 1520) e nas glosas vicentinas, a soledade é um degrau purgativo, que refina o instinto sexual e intensifica a sensação; em Bernardim, a soidade que aqui encontramos não é degrau, mas ponto de chegada, forte o bastante para ser celebrada em si. Os pastores de Bernardim parecem amar com a mesma paixão e a mesma pendência triste e fatal com que amavam os odhoritas imaginados por Ibn Dâwûd Ispahânî, no kitâb al-Zahra ou Livro de Vénus ou da Flor, esses que morriam quando acasalavam pela primeira vez e para eles única. Tanto os pastores portugueses como os virginalistas do deserto arábico estão condenados a morrer com o amor e amam por isso o morrer. A soidade ou a saudade (visto que os seus olhos são saudosos) destes pastores é a dor ou a solidão em que eles vivem depois dos seus desenganos amorosos, mas é também o erotismo psíquico, caloroso e amplo, que essa mesma solidão amplificou. Por isso, Amador, a personagem de Bernardim, remata assim a sua décima (segue-se sempre nas transcrições o mesmo critério acima definido):

Quem suspirasse algum dia

Pera soo desabafar

Mas eu jaa nam ousaria

por que hum suspiro daria

final de quem mo faz dar

Estão aqui nestas falas e nestas embrionárias acções os primeiros mitos poéticos da saudade; aqui e nas acções das personagens que dão corpo à complexa e imbricada intriga da História de Menina e Moça. Por mito poético entendemos o que Aristóteles dele disse no capítulo VI da Poética (“o princípio e como que a alma da tragédia”, quer dizer, o mito poético é imitação das acções humanas feita por meio da linguagem verbal); por mito poético da saudade entendemos, por sua vez, a construção de uma fábula imitativa que tenha por centro a dramatização mimética da saudade. Os mitos poéticos construídos em torno da saudade só aparecem pela primeira vez nos braços nus das fábulas sentimentais e bucólicas de Bernardim. O que está para trás é o húmus do tronco da árvore, a terra ou os torrões onde ele deitou as raízes, que tanto são os fragmentos líricos dos cancioneiros galaico-portugueses, como a reflexão de Dom Duarte no Leal Conselheiro, como ainda os textos narrativo-dramáticos em língua castelhana que falam da soledad. Os fragmentos líricos onde se fala dos arcaísmos da saudade (soedade e soidade) são balbuceios que não chegam a constituir um mito poético no sentido que Aristóteles lhe dá na Poética; o mesmo se diz do discurso didáctico de Dom Duarte que pouco ou nada tem de mimético. Restam os textos dramático-narrativos castelhanos, mas aí o que encontramos não é dramatização da saudade e dos seus arcaísmos mas a dramatização da soledad. Assim como assim, há forte parentesco entre esta e aquela, pois segundo Karl Vossler, que investigou a fundo o caso e as suas implicações literárias, a palavra soledad descende dos dois arcaísmos portugueses anteriores, a soidade e a soedade.

As dramatizações de Bernardim, quer nas éclogas, quer nas histórias que compõem a História de Menina e Moça, são assim para nós as primeiras composições em língua portuguesa que dramatizam em exclusivo a saudade, muitas vezes ainda com o nome de soidade, dando dela tipos e perfis definidos. Jano e Amador, Pérsio e Ribeiro são os arquétipos primitivos da saudade como a Medeia de Apolónio de Rodes ou a Dido de Virgílio o são do ciúme ou Lançarote e Tristão o são do adultério.

O que é novo em Bernardim são sobretudo as personagens que vivem dramaticamente as acções da saudade. É essa efabulação bernardiniana da saudade que é nova. A novidade é acompanhada nele por uma inovadora acomodação gráfica da palavra, que vem de resto de uma das cantigas que publicou no Cancioneiro Geral de 1516, e por um robustecimento dos seus sentidos. Bernardim Ribeiro é com Garcia de Resende e Samuel Usque um dos primeiros a modernizar a forma da palavra, como se vê no adjectivo saudosos e não soidosos usado no trecho atrás transcrito, no título da edição de Évora das suas obras, em 1557, título de resto concorde com o do manuscrito da BNL, e numa poesia sua do Cancioneiro Geral,  em forma de Memento (fl. CXCII v), chamada “De B. R. a huma mulher que servia”, onde encontramos na terceira décima da composição a palavra com o seu revestimento gráfico actual*. Neste poema a palavra possui um curioso e muito complexo e vinculativo sentido de vida e de desejo, muito mais moderno que o uso que dela faz Garcia de Resende no mesmo Cancioneiro, nas “Trovas à Morte de Dona Inês de Castro”, onde a palavra também na sua moderna forma parece apenas significar na boca de Inês (estrofe décima do seu discurso) o seu primitivo sentido de soledade ou solidão. Assim como assim, é nas “Trovas” de Garcia de Resende que pela primeira vez aparece na boca de Inês (estrofe terceira do seu discurso) a expressão “moça, menina”, consagrada uns anos depois pela literatura em prosa de Bernardim.

A propósito da saudade, recordem-se as palavras de Carolina de Michaëlis sobre a moderna forma da palavra: “Na segunda metade do sec. XV, nos textos versificados do Cancioneiro de Resende, é que eu procurei, e continuarei a procurar, as auroras da forma nacional.” (in A Saudade Portuguesa, 1914, p. 75)

O sentido mais imediato da saudade que se tira das bucólicas de Bernardim pode estar muito próximo tanto daquele que se desenha indeciso nas cantigas medievas galaico-portuguesas onde se alude à soidade ou à soedade, mistura de solidão e de ânsia, como daquele outro que se precisa com um rigor notável e uma amplidão surpreendente na prosa didáctica de Dom Duarte e na pastoril de Samuel Usque. A saudade é nestes, sobretudo em Usque, um estado de prejuízo, perda ou luto, depois de ter sido uma turva e ansiosa solidão. A saudade  em Usque, nascendo das mais graves aflições, é como que uma vontade religiosa de quebrar a separação de Deus e o exílio do Homem pela exacerbação do próprio sofrimento. Depois de um trabalho semântico tão exigente sobre a palavra como o de Usque era difícil modelar-lhe de imediato novos e mais largos sentidos. Daí Bernardim reforçar e robustecer os sentidos que se associam à saudade, situando-se a sua inovação na capacidade dramática que mostra. Essa dramatização foi absolutamente desconhecida pela prosa de Dom Duarte e é muito incipiente nos diálogos de Samuel Usque no livro de 1553, Consolação às Tribulações de Israel.

Releiam-se agora as palavras acima transcritas do Amador da terceira écloga de Bernardim. O que lá está são olhos saudosos, já que chorosos (como de resto acontecia na cantiga célebre de João Roiz de Castel Branco, dada à luz no Cancioneiro Geral, onde as duas palavras aparecem associadas), e uma soidade desmedida que é suspiro, queixa, choro. O mesmo se passa em Usque, onde as saudades são o murmúrio que se ergue e suspende de um tempo miserável e persecutório. A surpresa está que em Bernardim o choro é capaz de ser deleite. De qualquer modo, também em Usque não pode haver em última visão consolo, e até consolo divino, sem saudades ou sem suydades (grafia que também aparece na edição de Ferrara de 1554; veja-se a cantiga da fl. Cliiii, atribuída a Cristovam Falcam onde se fala de “terras estranhas /lugares de suydade”). Saudades são sinais de separação, mas sem saudades não há vínculo ao que se perdeu. É por isso que a saudade  em Usque, surgindo dos mais extremos tormentos, se mostra um desejo religioso de cicatrizar o exílio do Homem. Dito de outro modo, mais de acordo porventura com a experiência ontológica dos pastores bernaldinianos, sem memória não há alargamento do amor e sem soidade, no sentido de solidão e de separação do ser amado, não há memória.

A propósito das bucólicas de Bernardim, força é aludir às de Francisco Sá de Miranda, dadas à estampa pela primeira vez em 1595 (ed. Manoel de Lyra), mas cuja composição é coeva das de Bernardim. Há personagens que saltam de Bernardim para Sá de Miranda (ou deste para aquele), como essa Célia, a quem Miranda dedica toda uma écloga, e que faz a tristeza de Franco de Sandovir, quase um anagrama do autor de Vilhalpandos, na bucólica bernaldiniana “Jano e Franco”. Também as alusões a Ribeiro, personagem da quinta écloga de Bernardim, a de “Agrestes e Ribeiro”, são comuns nas éclogas de Sá de Miranda, que parece por aí aludir ou a Bernardim ou a personagem sua. Entre a colagem dessas passagens a Bernardim ou a personagem sua, preferimos esta, porque as ilações biográficas ou referenciais a tirar dos textos de Sá de Miranda devem ser em nosso entender cautelosas, pois se existem foram reelaboradas poeticamente, tornando-se por isso muito difícil destrinçar com precisão o que pertence à realidade ou à ficção. No “Epitalamio Pastoril”, escrito em língua castelhana, uma das personagens de Miranda chega a relatar um canto de Ribeiro, longo de mais de cem versos, dedicado aos males de amar. Bernardim por sua vez cita na quinta écloga, “Agrestes e Ribeiro”, o vilancete de Sá de Miranda “Que mal avindos cuidados”, atribuindo-o a Agrestes, reforçando de algum modo a possibilidade desta personagem se identificar com Sá de Miranda e Ribeiro consigo próprio.

Das nove bucólicas de Sá de Miranda, seis são escritas num castelhano terso e as restantes num português irrepreensível; o amor e o exílio marcam os diálogos destas personagens, mas o desterro não é efeito do amor, mas das injustiças sociais, como se tira da écloga “Montano”. Salvo omissão, em nenhuma das três éclogas escritas em portuguesa língua se alude à saudade ou a qualquer dos seus arcaísmos então ainda correntes e de que Miranda fez uso naquele perfeitíssimo cantar lírico que glosa, em três estrofes admiráveis, o mote velho “Suidade minha/ quando vos veria?”, que foi afinal nas suas voltas o ponto de partida do estudo que Carolina Michaëlis dedicou à saudade. Nas restantes seis éclogas escritas em castelhano, só encontro uma alusão à soledad, a bem dizer irrelevante, justamente no “Epitalamio Pastoril”, na terceira fala de Nuño.

Karl Vossler dedica todo um capítulo do seu estudo  sobre a soledad a Sá de Miranda, “Sá de Miranda y Su Círculo”, mostrando-se sensível à melancolia acesa que encontra nos versos do autor, e que ele classifica de insuperável. Causa todavia surpresa, se não consternação, o pouco espaço emprestado a Bernardim. Vossler distingue entre duas soledades, ou entre duas formas de sentir soledad, a erótica e a estóica. Esta distinção entre duas soledades deixa no ar a possibilidade de alargar a divisão à saudade portuguesa, como se poderia ver no trânsito da prosa de Samuel Usque, também estudado pelo tudesco, para a do autor da História de Menina e Moça. Mais tarde diremos porque nos parece artificial e pouco frutuosa esta distinção entre uma saudade religiosa e uma outra erótica. Vossler, sem deixar de aludir à importância dos sentidos na formação da noção castelhana de soledad, proveniente segundo ele dos cancioneiros galaico-portugueses, privilegia ainda assim uma corrente pensante, mais discursiva que mimética e mais oratória que lírica, próxima por isso de uma soledad religiosa, que Bernardim, ao menos na aparência, não parece ter conhecido, mas de que Miranda, no estoicismo do seu refúgio minhoto e dos seus epigramas desenganados e lhanos, estaria muito mais próximo.


A QUESTÃO CRISFAL

 


A écloga Crisfal  foi dada à estampa na edição de Ferrara das obras de Bernardim, mas a sua autoria tem sido motivo de discórdia devido aos dizeres da portada. Em nosso entender a questão tal como se encontra é insolúvel; podemos avançar razões para se aceitar a existência de um autor distinto para a écloga, mas também podemos aceitar razões para a atribuir a Bernardim. Estas últimas foram já expostas em anterior capítulo desta síntese. Estas razões vão ao encontro da tese de António José Saraiva que deu a Bernardim a autoria da écloga Crisfal, mas defendeu, com base ainda nos dizeres da portada da edição de Ferrara, a atribuição da “Carta” a autor distinto. Assim sendo, não vemos motivo para deixar de lado neste excurso a écloga Crisfal. A sua atmosfera magoadamente amorosa em nada contraria a das cinco éclogas anteriores, antes mostra com elas fundo parentesco, ajudando-nos por isso a compreender melhor a literatura de Bernardim; também o seu desembaraço narrativo, a sua imbricada complexidade de acções, a sua demorada dimensão, com cento e quatro estrofes, a maioria delas com dez versos, podem mostrar afinidade com a forma narrativa desenvolta de duas das éclogas de Bernardim, a segunda e a quinta, as mais longas. A écloga se não é assim da autoria de Bernardim é pelo menos bernardiniana na forma e nos processos. Atente-se no resumo da acção de Crisfal.

O narrador introduz personagens e acção, ao longo das nove estrofes iniciais, quer dizer, ao longo de noventa versos; perto do Tejo, entre Sintra e Arrábida, um pastor e uma pastora, Crisfal e Maria, tomam-se de amores um pelo outro. Por intriga de Joana, que amava Crisfal sem ser por ele amada, os pais de Maria decidem afastá-la do amante, levando-a consigo para terras distantes. Crisfal fica metido nas contendas interiores da mágoa e da solidão. É esse o momento da fábula que o narrador estrategicamente escolhe para dar a palavra ao protagonista, retirando-se de cena. É o mesmo processo que encontramos nas teatralizações bucólicas de Bernardim, com a escolha estratégica do momento da separação para se iniciar a dramatização de voz. Começa então um longo e magoado solilóquio do pastor ferido, que dura noventa e três estrofes, quase um milhar de versos; Crisfal durante um largo momento queixa-se do luto em que anda metido e dá-se depois, a partir da estrofe vigésima oitava, a contar um longo sonho que acabou de ter. A narração onírica demora dezenas de estrofes, da vigésima oitava até à nonagésima nona, e constitui uma narrativa dentro da narrativa, que com as suas novas sequências e personagens muito contribui para a complexidade do poema. É como segue o sonho.

Crisfal é levado pelos ares e dos ares avista, entre Tejo e Guadiana, o pastor Natónio lavado em lágrimas e suspirando por Guiomar. Passa de seguida pelo Tejo, que o faz tornar à lembrança magoada de Maria, sendo finalmente depositado no alto da serra da Estrela. É o fim da tarde e os pastores estão recolhendo seu gado; a música dolente dos badalos faz-lhe subir à lembrança a dor do seu luto. Duas pastoras suspiram, uma por Rodrigo e outra por Fernando. Uma outra, enquanto fia numa roca, conta a sua história. O leitor ouve então o seu discurso directo, ao correr de cinco estrofes. A pastora trocou, porque a obrigaram, amor por riqueza e confessa-se muito infeliz quando pensa no seu esposo actual e na vida que com ele leva; conclui que é preferível viver pobre e contente a rica e infeliz. Deseja melhor destino a Maria, sua velha amiga, e a Crisfal. Quando isto ouve, Crisfal reconhece na pastora uma sua antiga convivente, de nome Helena. Quer agradecer-lhe as palavras, mas o vento leva-o de novo. Enquanto é arrastado, não pode deixar de se lembrar de tudo aquilo que outrora viveu com Maria e Helena, refinando desse modo a sua mágoa e solidão. Finalmente, é deixado nas serranias do Lorvão, ao pé de uma fonte, coberta de denso arvoredo.

Sonha, dentro do seu sonho, que acorda, deixando de sonhar. Ouve, então no vale por entre gritos de pavões, uma voz cantar e ouve-a como se ela pertencesse já à realidade da vigília; Crisfal, narrador do seu sonho, passa então a palavra à voz que ecoa no vale. É o lamento magoado e triste de alguém inconsolável. Num repente, Crisfal suspeita que a voz seja a de Maria, o que se confirma daí a pedaço com a sua aproximação. Dá-se o encontro de Maria e Crisfal e inicia-se o diálogo dos dois; Maria considera-se uma mártir de amor, proibida pelos pais de ver ou falar com Crisfal, acusado de cobiçar mais a sua riqueza material que a sua alma, e obrigada por sua causa a desterrar-se naqueles lugares ásperos, tristes e para ela desconhecidos. Crisfal confessa-lhe um amor verdadeiro, íntimo, generoso, todo feito de tremores de alma, a que se misturam as vivas e calorosas recordações da meninice em que se conheceram. Passa nesse discurso uma noção de riqueza que se aproxima muito daquela que anteriormente ouviu no alto da serra Estrela à pastora Helena. Maria não se comove e confessa-lhe que a família lhe anda buscando um casamento de pompa que será a sua felicidade ou pelo menos o seu sossego. Pede em consequência que o amante parta e não mais regresse. Crisfal, numa exclamação curta e vibrante de apenas dois versos, chora falando e tem repentinamente um vágado. Maria arrepende-se da crueza com que lhe falou e encosta-lhe aflita e trémula a boca à paralisada boca; banha-lhe desse jeito o rosto de lágrimas. Neste preparo, retoma Crisfal consciência de si, ouvindo uma demorada confissão de amor da parte de Maria.

O pastor acorda neste ponto; o seu solilóquio deixa a narração intradiegética do sonho para regressar de novo ao primeiro plano da história, o da situação real de Crisfal; o prazer do abraço sincero que fecha o sonho é trocado pelo tormento da solidão e da sua tristeza infinita. Fecha aqui o discurso de Crisfal e o narrador inicial volta a tomar a palavra. Em duas décimas, que servem de remate ao poema, conta que o rasto do entristecido pastor se perdeu e todo o seu longo monólogo anterior foi por uma ninfa registado à medida que ia sendo ouvido no tronco de um álamo e daí trasladado para a écloga por si, narrador.

Eis a fábula de Crisfal. Trata-se de um emalhado romanesco notável, que acorda em nós ecos da composição em cadeia da écloga “Jano e Franco”. A história está centrada no monólogo sentimental de uma personagem, que funciona como um mergulho destemido nas profundidades aquáticas da sua vida sentimental e do seu agitado e nada monótono compartimento psíquico. O luto amoroso, com as suas lutas e desesperos absurdos, mas também com as suas nostalgias ansiosas de impossível, confere densidade ao mergulho sentimental e onírico, como de resto acontecia nos mais pequenos estilhaços pastoris de Bernardim. Nessa lenta viagem por dentro da alma de Crisfal, a saudade vem ao de cima como um dos mais visíveis destroços da maré da consciência. Ela pontua a história, aparecendo sob a forma de substantivo ou de adjectivo, com a grafia modernizada e às vezes sem indicação de ditongação das duas vogais iniciais. O adjectivo parece ser usado para as descrições da natureza ou dos perfis humanos, ao modo do Amadis, e o substantivo para os estados interiores.

Assim, no discurso inicial do narrador, depois do relato da separação dos dois amantes, Crisfal fica “Em vale mui solitario/ sombrio e saudoso” (fl. cxxx). Há variante do primeiro destes versos (“Em valle muy salutario”) na edição solta de Germão Galharde que Carolina estabeleceu como anterior à de Ferrara, mantendo o segundo verso nessa versão a forma modernizada da palavra saudade. Mais tarde, quando a personagem nos comunica, já em discurso directo, o seu sonho, o primeiro testemunho sobre Helena é a de uma serrana “soo, saudosa” (fl. cxxxvi; a edição solta da écloga apresenta a mesma lição). Eis dois casos de adjectivação. E tanto num como noutro a saudade está ligada por um fio linear e compreensível à solidão da paisagem ou ao apartamento do ser humano nela.

A substantivação da palavra surge logo no discurso introdutório do narrador, na segunda décima, quando este, a propósito do amor de Maria e Crisfal, adianta: “ […] dia que nam se viam,/ se via na saudade/ o que ambos se queriam” (fl. cxxxii). O valor da palavra multiplica-se aqui. Trata-se por um lado da solidão em que os amantes ficam quando não estão juntos e por outro do apaixonado desejo de união que os atravessa nessa solidão. A saudade destes pastores começa por ser a dor de não se verem sempre unidos um ao outro e acaba depois a ser o desejo de quebrar essa separação, aquilo que antes designámos como a amplificação psíquica do amor. Esta amplificação era evidentemente conhecida antes de Bernardim e fazia parte do código do amor cortês. Uma das regras deste tipo de amor, que passou depois para os poetas stilnovistas, era a ideia de que o amor crescia com a dificuldade dos amantes se encontrarem. Na lírica trovadoresca galaico-portuguesa encontram-se exemplos deste preceito que chegou mesmo a ser codificado no mais importante tratado medieval do amor cortês, De Amore, de André Cappellanus. O que é novo em Bernardim, do ponto de vista da língua em que ele escreve, é a sua dramatização em excursos miméticos e narrativos, excursos que deram à saudade os primeiros tipos universais bem definidos.

A experiência da solidão e da saudade que aqui é dramatizada na figura destes três pastores (Crisfal, Maria e Helena) pode ser aproximada em termos de significação da vivência sentimental e sensorial de Usque, quando nos dá a entender que é possível quebrar pelo desejo de união a separação humana de Deus. Um pouco adiante, na estrofe décima terceira, no discurso directo que antecede a narrativa do sonho, Crisfal confessa que as lágrimas lhe podem em desespero correr, que a esperança não há-de faltar, pois a saudade lha dará (fl. cxxxi).

Minhas lagrimas cançadas

sem descanço nem folgança,

a minha triste lembrança

vos tem tam aviventadas

como morta a esperança:

Correi de toda a vontade,

que esta vos nam faltara [faltará]

mas isto como seraa [será]

pedilaei a [à] saudade,

e a saudade ma daraa.

Regressemos então a Usque por um momento. As saudades são neste escritor o eco de um tempo menor e inferior, de separação e sofrimento, mas sem ele não pode haver em última visão consolo; as saudades são os sinais de um tempo de cisão, mas sem saudades não há vínculo ao que se perdeu. E por isso em Usque a saudade de tão diversa acaba por se revestir de múltiplas formas gráficas.* São esses variados revestimentos gráficos que podem servir para traduzir uma diversidade semântica caprichosa e contraditória, onde tanto se encontra a queda como a ascensão, a cisão como o desejo de união. Assim a soledade ou a suydade falam da separação como as saudades podem falar do vínculo unitivo do desejo. Antes, em Usque, sem sofrimento não podia haver memória do que se perdeu e sem memória não havia amor divino nem ânsia dele; agora, na écloga Crisfal, sem saudade não há esperança humana, o que é porventura uma outra forma de dizer o mesmo, posto que num plano individual em que o consolo não vem de Deus mas do Amado em forma humana.

Crisfal é mais uma dramatização do amor solitário que se faz dramatização do amor saudoso. A saudade começa aí por ser a solidão do ser separado, com o seu luto forçado, a sua frustração e tristeza, mas depressa se torna o prazer dessa dor; é isto que se sente naquele banho de lágrimas que fecha o sonho e mais parece um emocionante orgasmo de amor. Tristeza e alegria, amor e morte misturam e confundem nesse momento as suas águas. Crisfal e Maria pertencem por inteiro sob este aspecto à galeria dos pastores de Bernardim, que amam como os odhoritas do mito árabe acima referido com o abismo da morte diante de si. Morrem por isso de amor e amam por isso o morrer. No caso dos odhoritas é essa a sua condição biológica, pois só amam quando morrem (e só morrem, quem sabe, quando amam); no caso dos pastores portugueses bernardinianos, no contexto da primeira dramatização poética da saudade, é essa a sua condição psíquica, pois quando amam morrem.

A alegria não suporta a dor, como o amor não suporta a solidão, mas a saudade já não é mera dor ou inesperada separação. A saudade é um estado intervalar, que se torna mais do que qualquer uma das suas partes. Não se confunde nem com a dor, nem com a solidão, nem ainda com a alegria ou com a esperança. É outro nome. Assim sendo, mais do que o luto do amor e do desejo, a saudade é o luto da dor e da solidão, quer dizer, um luto amadurecido, que não reduziu ao grau zero do esquecimento o amor e a alegria. Neste estado sazonado e contraditório, a saudade permanece, através da memória e da esperança, um vínculo com aquilo que é essencial no plano divino, humano e natural. Nunca é de mais sublinhar, nesta complexa formulação da saudade e dos seus sentidos, o papel transitivo que a sofrida e meditada reflexão de Samuel Usque teve. Foi ela que deu um sentido unitivo à saudade, que antes dele só muito embrionariamente se pode sentir na prosa de Dom Duarte. De qualquer modo, só com a literatura de Bernardim esses sentidos deixaram de ser fruto da reflexão didáctica ou religiosa, para passarem a ser fruto da experiência sensitiva de personagens vivas no palco da poesia.

Crisfal teve continuação duas ou três gerações depois, numa obra curiosíssima e muito bem calibrada, dada à luz em 1597 e atribuída ao cistercience Bernardo de Brito. A obra é a Sílvia de Lisardo, que traz no frontispício a seguinte inscrição: “em que ha varios Sonetos, & Rimas, com a segunda parte do sonho de Chrisfal”. A concepção do amor humano é a mesma que o leitor encontra quer em “Silvestre e Amador”, com a glória a ser encontrada na pena da tristeza, quer em “Crisfal”, com a esperança a ser pedida à saudade. No livro atribuído a Bernardo de Brito, a saudade só é convocada e sob forma adjectival lembrando os curtos versos de João Roiz de Castelo Branco, num dos sonetos do conjunto, aquele que glosa o salmo 136, Super Flumina, que por sua vez já proporcionara a Camões, em idêntica paráfrase nas décimas de Sôbolos Rios, penetrantíssimo excurso sobre a saudade, a saudade de Sião. Tendo em conta que o primeiro diálogo pastoril de Usque se organiza em torno da primeira casa de Israel, com termo na queda de Jerusalém em 587 a. C. e no exílio babilonino, e que o salmo em questão é o canto deste exilado, é fácil perceber que a noção de saudade em Usque, que atravessa depois todos os exílios de Israel, que são afinal a reprodução alargada do primeiro, muito deve ao salmo bíblico glosado por Camões e pelo dotadíssimo autor da Sílvia de Lisardo.

Relacionado porventura com tudo isto anda aquela extensa paráfrase de Gil Vicente ao salmo 50, o Miserere Mei, cuja atmosfera é por de mais vizinha das saudades de Sião para aqui não ser notada e que foi expurgada por inteiro pela censura inquisitorial de 1623, depois de ter sido esbulhada de vários passos pela de 1586. O “Deos de minha saude” invocado por Gil Vicente na paráfrase em questão bem pode ser lido, ao modo de Usque, como a consciência activa no sujeito do elo que se quebrou e se memoriza, quer dizer, como o Deus da minha saudade.


O LIVRO DAS SAUDADES


Veja-se agora o romance em prosa chamado na edição de Ferrara, História de Menina e Moça. Recorde-se que logo na seguinte, a de Évora, de 1557, o texto aparece como o Livro das Saudades, o que é corroborado por uma versão manuscrita da obra, dada a conhecer pelo investigador Eugenio Asensio. Quer no cimélio, quer no códice, a palavra aparece na sua moderna forma gráfica. O título, mesmo não sendo o de Ferrara, mostra a importância que a matéria nele tem. É um romance forte, que cruza uma herança cavaleiresca muito viva na prosa romanesca da época, que era a do autor do Clarimundo ou a do do Palmeirim português, com a literatura pastoril, que Sannazarro pusera em dia e que entretanto tivera tempo de ganhar raiz em portuguesa língua com os trabalhos do mesmo Bernardim e de Sá de Miranda. A esta dupla herança é preciso acrescentar aquilo que se chama novela sentimental, com tradição em língua castelhana desde os finais do século XV e autores como Rodriguez del Padrón, Juan de Flores e sobretudo Diego de San Pedro. Lembro, em traços rápidos e grossos, a intriga desta história, sem meter na conta os capítulos suspeitos de apócrifos (parte II, caps. xviii-lviii), ignorados pela edição de Ferrara e por tudo o que com ela é conexo (edição de Colónia de 1559 e manuscritos da BNL e da Real Academia de la Historia de Madrid) e conhecidos apenas na edição de Évora e na importante tradição textual a que esta deu lugar durante vários séculos.

O romance principia com o desempoeirado monólogo de uma jovem, de que não conhecemos nome ou condição, num processo que evoca de imediato a emancipada interpelação feminina das cantigas de amigo. É a menina e moça que abre a primeira linha do livro, dando-lhe nome e título. A jovem queixa-se de uma dolorosa separação inicial e de mudanças amargas, que a atiraram para o desterro de um solitário monte, onde demora desde há dois anos. Deseja escrever o que viu e confessa que um livro que reúna as suas lembranças não pode deixar de ser um livro triste, desordenado e sem fim, porque assim desconcertantes e intermináveis são as mágoas que por ela passaram. Dá lugar de seguida à narração de um pequeno episódio que dias antes lhe sucedeu. Estando ela como de costume mergulhada em seus grandes cuidados, vivendo noites e dias seus pensamentos, numa solidão sem medida, viu a formosura da manhã levantar-se e desdobrar-se por entre os prados do vale. Foi sentar-se debaixo de um freixo, à beira rio, e não faltou muito que numa ramada que ante ela se alargava viesse pousar um rouxinol. Cantou então um tão triste e doce trinado, que por instantes tudo reteve. Logo de seguida, caiu morto na corrente larga da água, que sem tardar o arrastou para longe. A moça não conteve as lágrimas, que tanto corriam pelo infortúnio do passarinho, como pelas tristes lembranças de seus cuidados. Nisto viu uma mulher mais idosa aproximar-se, encetando com ela conversação, girando o diálogo em torno das desventuras de cada uma. Quando a dama se dá conta que a moça desconhece o lugar, e porque as mulheres são muito mais susceptíveis pela sensibilidade branda de compreenderem tristezas que os homens, propõe-se contar um triste sucesso muito conhecido naquela terra. É o sucesso de dois amigos, que acabaram mortos à traição e das respectivas senhoras que os ficaram esperando.

A partir daqui a segunda interveniente toma o papel de narradora e começa a contar o caso, que é o seguinte. O cavaleiro Lamentor chega numa rica nau de longes terras ao vale do rouxinol, acompanhado de duas formosas irmãs, Belisa, a mais velha, que vinha dele grávida, e Aónia. Desembarcados e chegados à ponte que ligava as duas partes do vale, atravessado a meio por um rio, é obrigado a uma dura justa com um cavaleiro, que por cruéis e desatinados deveres de amor caprichava em humilhar os que por ali passavam. Lamentor mata com pena sua o cavaleiro da ponte e no meio tempo chega a irmã do desventurado, uma dona viúva, que desconsoladamente chora a sua morte. Sobrevem de imediato o parto de Belisa, senhora de Lamentor, que morre nessa noite numa tenda de campanha ao dar à luz uma menina, Arima. Na manhã seguinte, chega à ponte um cavaleiro desconhecido, sem nome (Narbindel na edição de Évora, cap. x), que por sua senhora, de nome Aquelísia (ou Cruélcia, na edição de Évora, cap. xii), ali é enviado em missão de amor a combater o cavaleiro da ponte. Ouve com espanto seu o desencontrado choro na tenda de Lamentor e dela se aproxima, na esperança de aliviar cuidado. Ao entrar, depara com a formosura de Aónia, decomposta pela dor da morte da irmã, soltos os cabelos longos e molhados em tantas lágrimas os olhos tristes, e logo por ela se apaixona. Diz a narradora à sua ouvinte, aquela menina e moça do solilóquio inicial, que este cavaleiro é um dos dois amigos de que fala a sua história e que por Aónia veio ele mais tarde a perder a vida.

Fez-se o enterro de Belisa sem a presença do cavaleiro recém-chegado, que a pedido do viúvo se afastou. Estarrecido pela visão de Aónia, trespassado pelo amor que inesperadamente o envolvera, inquieto e dividido entre Aquelísia e a nova donzela, quer dizer, entre a obrigação e a formosura, o primeiro amigo medita, à beira rio, debaixo de um freixo, em espaçado momento, na sua vida. Toma então a decisão de abandonar Aquelísia e servir Aónia. Antes de prosseguir com a intriga, a narradora faz uma estudada e curta interrupção na história, deixando perceber no meio de considerações didácticas que as desditas que levaram o cavaleiro à morte se deveram à vingança que a sua antiga senhora dele depois pediu. O cavaleiro despacha o seu escudeiro para junto de Aquelísia, com as novas do que entretanto sucedera ao cavaleiro da ponte, e decide para não mais dele se saber mudar de nome e identidade. Aproveitando o enunciado de um mateiro galego que por ali andava, dando b por v, e que a outro respondeu secamente com o dito, ‘Bimarder’ (quer dizer, ‘vi-me arder’), o cavaleiro decide adoptá-lo como nome, pois também ele pensando no que lhe sucedera com Aónia ali viera para se ver arder. Posto isto, o seu cavalo é morto por uma matilha de lobos e Bimarder recolhido por um punhado de vaqueiros, a cujo viver se converte. Enquanto Bimarder passa seus dias pastorando vacas e tangendo numa frauta modinhas pastoris, Lamentor por seu turno levanta casas e paço para habitar.

Assim estiveram Aónia e Bimarder seu tempo sem se verem, até que a ama de Aónia ouve por acaso ao pastor uma cantiga de aflição, envolvida em lágrimas e atenções, que lhe não parecem alheias à sua presença, disso dando notícia à menina. Aónia, com treze ou catorze anos, sente inclinação favorável  pelo melancólico pastor e pede à ama que lhe repita muitas e muitas vezes as palavras desesperadas da cantiga que antes lhe ouvira. Não se tira Aónia de cuidados e toda a noite esteve sem dormir, jurando a si mesma que descanso não teria enquanto não visse cara a cara o pastor da frauta. De manhã, abeirando-se a ama de uma das varandas da casa que davam para o rio lá viu debaixo do freixo o pastor e logo disso avisou a menina, que foi para a açoteia da casa espreitar com curiosidade. Nisto viu vir um touro grande e negro aos urros bravos, escarvando ferozmente de quando em quando a terra, e lhe pareceu que o pastor dele era mortalmente tolhido, o que não sucedia assim. Desmaiou Aónia e só acordou com a chegada da ama que lhe contou o que de verdade se passara.

Acontece, que depois disto, já nenhum dos dois conseguiu perder o sentido do outro e só pensavam no modo como se podiam ver e falar. Usaram para tanto de uma fresta da casa e por ela se viram e falaram, mais por impulso destemido de Aónia que de Bimarder. Aconteceu uma das vezes que Bimarder adormeceu à fresta e dela caiu com prejuízo grave da sua saúde. Aónia pede a uma mulher de sua casa, Inês [“Ynees” na edição de Ferrara, (fl. l); Enis na de Évora], que recolha informações do pastor da frauta e arranja modo de o visitar no seu retiro; na despedida, arranca uma manga da camisa para que Bimarder dê consolo às suas lágrimas. Entretanto, um rico vizinho do lugar (sem nome na edição de Ferrara; Fileno na edição de Évora, cap. xxx), pede a mão de Aónia a Lamentor, que não encontra inconveniente em lha entregar. Acorda-se o casamento e Bimarder, tendo notícia quase por acaso do enlace de Aónia, fica mudo de aflição e desespero, desaparecendo sem deixar rasto e falhando assim, por instantes, um recado de amor e adultério que Inês lhe levava da parte de sua senhora. Aónia muda-se para o castelo do marido, ganha o costume da sua nova vida de casada, mas não espanta de todo de si a carregada consciência de que nunca poderá ser feliz.

Chega-se aqui ao fim provisório da primeira história, a história do primeiro amigo, e abre-se a segunda muitos anos depois destas ocorrências, quando a filha de Belisa e Lamentor, Arima, se mostra já uma jovem adolescente. O rei daquele país tendo ouvido falar das virtudes de Lamentor pede-lhe a filha para servir a rainha na corte. Dá-se então a separação de Arima e Lamentor e a partida da jovem para a corte. Durante a viagem, Avalor, cavaleiro conhecido de Aónia e seu marido, é apresentado a Arima. Toda a noite, acordado ou em sonhos, Avalor se debate com um olhar inocente que viu a Arima no momento da introdução, pensando que pode estar enamorado dela. Isso tanto é motivo de revelação graciosa como de perturbação terrível, pois o jovem cavaleiro tem compromisso de amor com uma dama da corte, designada por Senhora Deserdada [quer na edição de Ferrara (fl. lxi), quer na de Évora]. Na manhã seguinte, Avalor dá consigo dividido entre estas duas mulheres, uma de quem cuida e outra a quem lembra. Assim se passam alguns dias, sempre com Avalor enfiado na cama, até que um amigo lhe entra pelo quarto para o levar à corte, onde o rei e a rainha, de partida para uma cidade do interior, esperavam por eles. Na corte, Avalor dá com Arima no séquito da rainha e percebe, por conversa com a donzela, a inclinação amorosa que ela sente por ele.

Durante um ano os dois escondem o seu amor, temerosos da Senhora Deserdada. Ainda assim, alguns cortesãos desconfiam da ligação, intrigando na corte acerca do caso. Arima perturba-se tanto que decide afastar-se do palácio do rei, regressando ao pai (na edição de Évora é o pai que a força a regressar a casa, cap. xi, II parte). A partida de Arima deixa Avalor perdido de desespero, a ponto dele desaparecer. Do seu desaparecimento ficou registo num longo poema, o “Romance de Avalor”. Mais tarde, veio-se a saber que Avalor tentou seguir o barco onde Arima ia, mas perdendo a rota e julgando nunca mais encontrar a donzela se tentou suicidar nas águas do mar. As ondas depositam-lhe o corpo num areal, que é sem que ele o saiba o mesmo onde Arima desembarcara, e afinal a terra onde a dona está contando à menina esta e as outras histórias. Ouve então dentro de si uma voz assegurar-lhe que a procura de Arima o vai levar ainda muito mais longe. Neste entremeio, distingue por perto os queixumes doídos de uma donzela, determinando-se a ir até ela. A donzela confessa-se traída por um homem e pede-lhe vingança contra a mulher que lhe roubou o amado. Como cavaleiro, Avalor não pode fugir ao serviço. Mas antes de lhe fazer justiça, começa a contar-lhe uma longa aventura que noutro tempo acontecera a seu pai. O livro de Bernardim fecha com a narração de Avalor pela metade, com a excepção já notada da edição de Évora (que põe termo à história de Birmarder com a sua morte, a de Aónia e a do marido desta, num caso de adultério e vingança, e dá continuidade às aventuras agora cada vez mais cavaleirescas de Avalor).

Recapitulo os passos de maior relevo à volta dos quais se organiza a cadeia do romance. Em primeiro lugar, o pórtico de entrada em que se convive com a agilidade discursiva da menina e se assiste ao seu encontro inesperado com a dona. Toma-se aí nota do episódio do rouxinol, que aponta para a fatalidade a que toda a beleza está destinada. O encontro da menina com a dona é decisivo na economia do romance, já que esta última se propõe contar à sua interlocutora mais nova a história ou as histórias de dois amigos, fazendo adiar desse modo as confissões pessoais que a menina inicialmente propusera como tema da sua narração. De seguida, o leitor abandona o plano em que está, o do encontro da menina e da dona no solitário retiro do monte, e passa a seguir os eventos que a dona conta, que têm sempre lugar, com a excepção da corte por onde Arima e Avalor passam, no mesmo espaço onde as duas senhoras estão. Esses eventos organizam-se à volta de três núcleos narrativos, cada um deles em torno de um par ou casal.

Assim, o primeiro núcleo gira em torno de Lamentor e de Belisa, o segundo em torno de Bimarder e Aónia e o terceiro em torno de Avalor e Arima. O leitor sabe que os dois amigos da história da dona são Bimarder e Avalor; entre os dois medeia uma geração, a que vai de Aónia à sua sobrinha Arima. O episódio de Lamentor e Belisa parece apenas existir para que possa acontecer o encontro do cavaleiro (o futuro Bimarder) com Aónia, nos momentos sequentes ao nascimento de Arima e à morte de Belisa. De qualquer modo, o episódio tem alguma autonomia no conjunto da narrativa e centra-se numa mulher que dá à luz, morrendo. O tópico do sofrimento feminino, que é o pretexto das histórias da dona, não deixa de ser crucial nesta pequena fábula, que ilustra assim a partir da determinante vital o propósito do conjunto.

Aónia e Arima, tia e sobrinha, têm pelo seu lado destinos semelhantes; amam e são amadas por homens comprometidos anteriormente com outras senhoras, Aquelísia e a Senhora Deserdada. O seu destino é também idêntico: Aónia é obrigada por Lamentor, seu tio, a casar com um vizinho que a não pode fazer feliz e Arima abandona a corte onde vivia em secreto idílio com Avalor (na edição de Évora é chamada a casa por Lamentor, seu pai). Se a história não tivesse o seu termo neste ponto, é força que a partida de Arima passasse a ser motivo de um casamento idêntico àquele que Aónia fora obrigada a fazer pelo tio, Lamentor, que é afinal o pai de Arima. Por sua vez, tanto Bimarder como Avalor vivem as aflições psicológicas de um compromisso amoroso posto em causa por um novo enamoramento, chegando o primeiro por causa disso a mudar de nome e identidade. Depois do dilaceramento entre a mulher que abandonam e a que passam a servir, dadas as voltas do destino, tanto Bimarder como Avalor estão condenados a viver o sofrimento da separação.

Os três núcleos narrativos que constituem o eixo da história da dona estão assim centrados na relação do amor com o sofrimento, primeiro através da fatalidade da morte associada à reprodução sexual, e depois à inevitabilidade de sucessivos desencontros amorosos: Aquelísia ama Bimarder que ama Aónia, que por sua vez é obrigada a casar com um vizinho; a Senhora Deserdada ama Avalor que ama Arima. A estes três núcleos acrescenta-se ainda a incompleta e algo despropositada história final da dama ultrajada nos seus direitos amorosos que pede auxílio a Avalor e cuja situação pode roçar a de Aquelísia ou a da Senhora Deserdada. Em conjunto, todos estes episódios se mostram uma espantosa ilustração do amor e do sofrimento; todos eles a seu modo quer pela determinação, quer pela inconstância, quer ainda pelo destino, parecem dizer que não há amor sem dor. A vida funda-se na sua elementaridade original, como se tira do curso de uma Belisa parturiente, numa mescla indissociável de amor e morte; prazer e dor são contíguos.

Neste sentido, o livro de Bernardim Ribeiro aproxima-se de tudo aquilo que anteriormente se disse sobre a restante literatura do autor. E sobre isso diremos ainda algo mais. Para já assinale-se que a intriga do romance tem também paralelo com a literatura peninsular que decorre do ciclo arturiano do século XII, em particular o Amadis de Gaula, mas o Amadis como texto de temática amorosa e não cavaleiresca, onde se encontra um processo de mudança de identidade, desenvolvido depois no Dom Duardos vicentino. A fábula de Bimarder e da mudança de identidade tem evidente parentesco com essa literatura anterior. A autonomia do amor em relação ao sacramento conjungal, que tão grata foi à primeira leva de poemas e romances do ciclo arturiano, e cujo rasto ainda está vivo no Amadis de Montalvo, constitui uma das teses recorrentes dos núcleos dramático-narrativos do romance de Bernardim. Não seria ainda despropositado o paralelo do romance com a literatura árabe de assunto amoroso de Ibn Dâwûd Ispahânî, autor do século X, até Ibn Hasm, autor do Tawq al-Hamâma (o Colar da Pomba), obra poética e filosófica, em verso e prosa, escrita no Andaluz peninsular do século XI.

Regressemos agora ao paralelo entre as dramatizações bucólicas de Bernardim e as sequências dramáticas do seu romance. Tanto estas como as outras se encarregam de representar no palco da ficção o amor solitário que se transforma em amor saudoso. Todos os núcleos da História de Menina e Moça parecem apontar para uma dramatização da saudade a partir do luto amoroso. O luto amoroso parece mesmo constituir o centro da dramatização narrativa. Lamentor, cuidando apaziguar as saudades que Belisa sente, traz com ela Aónia mas acaba por perdê-la num parto aziago, mergulhando para sempre nas tristezas saudosas da recordação. Aónia, perdendo a irmã, vive a saudade. Bimarder, perdendo Aónia, saudoso fica. Arima desaparecendo, entrega Avalor aos braços da tristeza que é a desesperada parte que a saudade tem.

A isto é preciso acrescentar aquilo que podemos chamar o prólogo destas histórias, constituído pelo solilóquio da menina e pelo seu encontro com a dona trajando de negro. A consciência primordial do luto está pois nas duas instâncias enunciadoras iniciais. Nesse proémio (fl. ii-xiv), onde se engata o pretexto da narração das histórias de Lamentor, Bimarder e Avalor, a saudade ocupa um papel preponderante. No conjunto do livro é onde a palavra mais se faz notar. Em pouco mais de uma dezena de folhas, a palavra comparece quatro vezes sob a forma de substantivo (fls. v, viii, xii) e uma sob a forma de adjectivo (fl. vi). Tanto serve para caracterizar aspectos da natureza envolvente, aspectos vivos e comoventes, como estados psíquicos complexos, presos ao amor erótico de donzelas e cavaleiros. A primeira vez que a palavra aparece no texto da edição de Ferrara, na voz da menina e moça, serve para singularizar um monte no vale onde tudo se passa e passará no livro (fl. v). Mas não assim na edição de Évora, que a introduz logo nas primeiras linhas do texto, no plural e na sua forma moderna, substituindo a palavra cuydados da edição de Ferrara. As formas substantivadas são na edição princeps arcaicas (soidade e soydades) e a forma adjectival tem revestimento actual (saudoso). Note-se que no restante texto do livro, a saudade comparece apenas mais quatro vezes, todas sob a forma arcaica referida [soidade (fl. xiiii, xxiii, lix) e soydade (fl. xv)]. Três destas quatro alusões dizem respeito ao início da história de Lamentor, Belisa e Aónia e a última à despedida de Lamentor e Arima. Isto parece indicar a importância do proémio na economia do livro; ele é a consciência das histórias dramatrizadas depois em torno de Lamentor, Bimarder e Avalor ou Belisa, Aónia e Arima. Apesar de curto, ele é determinante, criando no livro uma atmosfera que depois não mais se apaga. Essa atmosfera é a da saudade. É ele, o proémio, que pode justificar quer o título do manuscrito da BNL, “saudades de bernardim ribeiro”, quer o da edição de Évora, livro chamado as Saudades de Bernardim Ribeiro (sempre nos títulos com a forma gráfica moderna). E tanto um como outro ajudam a perceber o propósito de Bernardim em dramatizar narrativamente a saudade.

O romance de Bernardim pôde assim aparecer comummente no capítulo da saudade como texto fundador.  E é-o ao lado das éclogas, se pensarmos aqui a saudade em termos de dramatização ou de mito poético. Sob esse aspecto, o romance aparece como um texto refundador da literatura em torno da saudade, porque antes dele e das éclogas bernardinianas (quer dizer, antes da edição de Ferrara de 1554) o que existia era uma literatura didáctica, filosófica, religiosa ou lírica em torno da saudade, não uma literatura dramática ou narrativa. Nem Usque, com a incipiente dramatização dos seus diálogos, chega a ser uma excepção, pois o seu texto  tendo visto a luz da publicidade um ano antes do romance bernaldiniano foi decerto escrito depois dele. Teixeira Rego chega mesmo a adiantar que o romance de Bernardim seja anterior ao Clarimundo de João de Barros (1990, pp. 175-6). Mas caso o romance de Bernardim seja posterior ao de Barros, como tudo a leva a crer que é, o texto de Barros torna-se no antecedente mais forte em portuguesa língua para a literatura dramático-narrativa de Bernardim, até no capítulo que à saudade diz respeito, ainda que esta tenha no romance de 1520 um papel muito discreto.

Dado o teor das três histórias contadas pela dona e atendendo ao inicial discurso desamparado da sua interlocutora, numa paisagem que em tudo é a fiel e alargada tradução das sua emoções e sentimentos, não é difícil encarar os sucessivos caroços dramáticos do romance como histórias de saudade, se por saudade entendermos aquilo que dissemos a propósito das éclogas da edição de Ferrara de 1554 e do livro de Usque, quer dizer, um tempo de separação e sofrimento que é ao mesmo tempo o caminho para a cauterização do que está cindido, pois as saudades tanto são penitenciais como vinculativas ao que se perdeu, e vinculativas pela lembrança obstinada mas também pela humana esperança, como se infere do pastor Crisfal. E isto tanto diz respeito a uma saudade austera, de natureza religiosa, nascida como no caso de Usque da separação entre o Homem e Deus, como a uma saudade mais sensível, de tipo amoroso, surgida como em Bernardim da contradição entre o desejo erótico e a solidão.

Recorde-se por exemplo o erotismo subtil, quase translato, da cena das lágrimas no sonho de Crisfal. Ora, essa mesma atmosfera de erotismo rarefeito, que de resto já está nos textos de um poeta tão antigo como Johan Garcia de Guilhade, banha com a sua luz de aurora vesperal algumas das passagens mais significativas do romance de Bernardim. É a isso que o narrador da história de Arima e Avalor chama na derradeira referência que o livro faz à saudade de “hua tristeza chea de soydade” (fl. lix), em alusão aos sentimentos de Lamentor por sua filha. O momento em que o cavaleiro se enamora de Aónia, ela está lavada em lágrimas e a única vez que esta o visita na sua choupana de pastor rasga uma parte do seu vestido para que ele possa limpar as lágrimas silenciosas que lhe escorrem como lava ardente pelo rosto.

É ainda a saudade que faz Lamentor ficar para sempre ligado à memória de Belisa, como Avalor à esperança de reencontrar Arima. Por isso, a dona quando se propõe contar à sua ouvinte uma velha história que se contava no lugar, e que ela própria já em menina ouvira a seu pai, justifica-se com um intuito purgativo, que tanto é a saudade como a folga de prazer que dão as coisas tristes quando contadas. É a passagem determinante, em que a saudade é referida duas vezes (fl. xii), pouco antes do início da história dos dois amigos, em que a dona conversando ainda ao sabor de pretextos ocasionais com a sua interlocutora deixa no ar a ideia que tudo o que de amor no mundo por então acontece são casos de saudade. É o momento em que na abertura do livro a saudade transita da natureza, a que até aí tinha sido sempre referida (mesmo sob a forma de adjectivo “hum saudoso tom”), para a interioridade psíquica. A passagem vale quase um mote, cuja glosa serão depois as histórias dos três pares; também os encobertos cuidados da menina e moça, que ocultos ficam, declinam de forma latente a legenda ou mote aí dado.  É ela, a passagem, que decerto justifica o título da edição de Évora e o do manuscrito da BNL, onde a saudade aparece como a matéria crucial do livro.

No texto de Ferrara a passagem aparece como segue (fl. xii): “quantas dõzellas comeo jaa a terra cõ as soydades que lhe deixaram cavaleiros, que comeo outra trra cõ outras soydades, cheos sam os livros de hystorias de donzellas que ficarom chorãdo por cavaleiros que se hiam, e que se lembravã ainda de dar desporas a seus cavalos por que nam erã tão desamorosos como eles.” No texto de Évora, que modernizou muito a grafia da palavra, as soydades são saudades (e saudade), sem que isso altere a composição do significado da palavra. Trata-se de um estado psíquico humano, que leva à morte, e que oscila entre a lembrança, o desejo, a solidão e o amor, não sendo na verdade nenhum deles em singular nem tão pouco a soma dos quatro.

Não podemos deixar de colar estas soydades às suydades que surgem associadas à inquietude, ao sobressalto da alma e aos grilhões do corpo, no terceiro diálogo de Samuel Usque, e que também elas fazem morrer. Assim, na fábula bernaldiniana presume-se que hão-de morrer com as tristes soydades de seus cavaleiros Aónia e Arima por deles terem sido afastadas (e até Aquelísia e a Senhora Deserdada, por deles terem sido abandonadas); as saudades se hão-de ainda vingar dos dois cavaleiros, Bimarder e Avalor, que vêem Aónia e Arima partirem e vítimas desse afastamento hão-de também de saudades sucumbir, como se vê pelo suicídio frustrado de Avalor e logo de entrada se fica a saber pela antecipação que dos seus destinos a dona faz.

Morre-se em Usque de suydade como se morre em Bernardim de soydade. No primeiro isso acontece pela separação do Homem e de Deus, enquanto no segundo pelo afastamento entre os amados. A vizinhança ou mesmo a analogia entre as saudades de Usque e as de Bernardim é um ponto de partida para uma leitura simbólica do romance de Bernardim à luz de certos valores de Usque. Já sabemos que o facto da edição bernardiniana de Ferrara ter visto a luz numa oficina quase exclusivamente dedicada à edição de obras destinadas a um público judaico, com a única excepção das vinte e três Coplas de Jorge Manrique, que apareceram porém como adenda à obra de um cristão-novo castelhano, onde se sente o influxo de Maimónides, levou vários escoliastas (Teixeira Rego, António José Saraiva, Pinharanda Gomes, Helder Macedo) a levantarem o problema do judaísmo na obra de Bernardim, apostando numa leitura interpretativa por ele orientada.

Centrada na questão da saudade, a nossa abordagem desagua ainda assim na identificação da saudade bernaldiniana com a usquiana. E esta convergência convoca a questão do criptojudaísmo, que pode no nosso caso ser formulada do seguinte modo: se a noção de saudade em Usque aparece condicionada ou moldada pelo ponto de vista de uma leitura judaica, então dada a coincidência ou a analogia de significados, algo de semelhante pode suceder com a saudade de Bernardim.


A LEITURA JUDAICO-CABALÍSTICA


Não custa a partir desta aproximação aceitar a leitura judaico-cabalística que Helder Macedo fez da História de Menina e Moça. É uma leitura convincente se pensarmos que a Cabala foi fruto dos círculos hebraicos peninsulares, em especial da escola cabalística de Gerona. Foi no seio deste cenáculo sefardita que surgiu já em finais do século XIII, da autoria de Moisés de Léon, o Sefer Ha Zohar (ou Livro do Esplendor), um livro em torno da separação da Chéquina de Deus, que se tornou um clássico da literatura mística judaica e cujo eco europeu posterior, pelo menos até ao século XVIII, foi enorme. Ainda hoje o Zohar é apresentado como uma das especulações filosóficas e místicas mais marcantes do judaísmo. Não parece difícil que Bernardim, um homem culto, como se tira das fontes literárias mais evidentes da sua obra, desde Teócrito a Petrarca, passando pelo Ovídio das Heroídes e pelo Boccaccio da Elegia di Madona Fiammetta, o tenha conhecido.

De qualquer modo não queremos repetir aqui a leitura de Helder de Macedo. Ele quis perceber à luz de um simbolismo religioso as histórias enigmáticas e cruas do romance; nós, partindo da mesma fonte, tudo o que propomos é um alargamento do entendimento da saudade dramatizada por essas histórias. A Cabala encara a criação do mundo a partir da emanação de Deus; essas emanações são os dez sephiroth. A última sephira, a derradeira emanação divina, conhecida por Malcuth, o Reino, associando-se à Terra ou à comunidade humana, representa a presença de Deus na matéria inferior. Nesse sentido, Malcuth pode ainda ser visto como sendo a Chéquina, a esposa exilada de Deus. Ora em nosso entender não é difícil aceitar que essa sephira possa ser associada à saudade.

 No processo cosmogónico das dez emanações, resultante do zimzoum, a última emanação, Malcuth, é a mais afastada da sua origem superior, estando por isso sujeita a transfúgios involuntários. Daí a ideia da Chéquina poder viver no exílio, afastada do seu Esposo.  É isso que se passa por outro lado com as aflições de Israel e é ainda isso que ocorre com o desterro inicial da menina e moça para uma terra de tristezas e cuidados; tanto a comunidade de Israel em Usque como a menina e moça em Bernardim podem ser encaradas como ilustrações da última sephira e da incerta oscilação do seu destino. Isso percebeu Helder Macedo.

Pense-se agora em termos de saudade. Quando a Chéquina se torna trânsfuga, mergulhando na treva do exílio, o remédio é agravar as suas amarguras, de modo que ela ardentemente lembre e deseje o luminoso seio da sua origem. Também esta teologia da exacerbação se revê no aspecto penitencial de Usque e no catártico de Bernardim. Tanto a História de Usque como as pequenas histórias ou dramatizações de Bernardim parecem ser, em termos de destino colectivo histórico ou de destino individual, discursivos ou poéticos, a dramatização do sinuoso exílio a que a última emanação divina se encontra temporariamente sujeita. Lembre-se que a saudade é um tempo de separação e sofrimento que é concomitantemente caminho para a cicatrização da ferida. Morre-se, mas morre-se de amor. Logo, na linguagem cabalística, a saudade é a última emanação divina, a Chéquina, e aquilo que nela está à espera, pela própria dor do afastamento, de ser reconduzido à presença esplêndida e luminosa da primeira emanação, Kether, a coroa, por ora vazia dado o desterro da esposa.

Todas as histórias de Bernardim contadas no seu romance são como vimos histórias de desencontros, separações, exílios e solidões, não se vislumbrando no desenrolar dessas histórias o mais pequeno sinal de alteração. O mesmo se passa com as sua dramatizações bucólicas. Estamos diante da teologia da exacerbação de que atrás falámos, mesmo que sem aplicação teológica. Quer dizer, o que interessa a Bernardim não é diminuir a distância entre o Homem e Deus, mas entre o sujeito que ama e o ser amado. De qualquer modo, também nele se agravam as amarguras, de modo que ardentemente se lembre e deseje o seio luminoso da origem, mesmo que essa origem seja no poeta dramático o seio do ser amado.  Todas as personagens de Bernardim parecem votadas à separação, à tristeza, ao luto radical. Todas elas, incluindo o glorioso rouxinol que morre nas águas correntes do rio, imagem do tempo e da sua fatalidade, estão sob o signo das qualidades da Chéquina no momento mesmo do seu afastamento da esfera divina.

Daí a importância do lamento na sua literatura em verso, com os queixumes desesperados dos seus pastores, ou em prosa, com a enunciação fatal das duas donas na abertura do seu romance. Mas carregando essa consciência da perda, o sujeito gera também um desejo de regresso, que em Bernardim é vago mas luminoso, profundo e beatífico. É que no instante do afastamento resta ainda ao último éon da criação divina, à comunidade humana, a lembrança, a lembrança de um passado glorioso, quando a Chéquina e Deus participavam da mesma esfera. Essa lembrança no caso de Bernardim pode acentuar mais em certos casos a tristeza, porque é consciência da queda e da distância que separa no exílio esse último éon da original casa de onde partiu. A écloga onde se relatam as desventuras de Crisfal, com a lembrança do encontro original, que é o sonho, e a queda brutal na realidade separativa, que é o despertar para a vigília, é deste ponto de vista a mais significativa e aquela que melhor se adapta a esta dialéctica da lembrança e do desespero, do amor e do desejo, da separação e do regresso.

E aqui entra a saudade. Há saudade em Bernardim porque tudo incide no desencontro dos amantes. Mas também há saudade nele porque há amplificação do amor. Tal como a saudade se associa em Usque à viuvez de Jerusalém, também em Bernardim é possível associá-la ao sofrimento e ao exílio da Chéquina. Atendendo ao quadro cultural contemporâneo de Bernardim, com um escol atento à reflexão cabalística peninsular e um problema social, o dos cristãos-novos, que dava visibilidade a essa cultura, faz sentido encarar as histórias saudosas de Bernardim como uma mitização poética do tema do exílio da Chéquina em relação ao Criador. A saudade era a palavra que na portuguesa língua melhor traduzia esse estado de sofrimento e de esperança, feito de separação e de ânsia de regresso.

Neste sentido, o desejo de união erótica estimulado pela saudade seria uma outra forma de falar do desejo religioso de salvação. O trabalho da saudade em prol da união de amante e amado traduziria o trabalho místico a favor da união do Homem com Deus. O desencontro saudoso dos amantes teria uma leitura cifrada ou simbólica no desacerto da Chéquina com a casa do Pai. Veremos ainda como a ligação destes dois planos, o erótico e o sagrado, faz algum sentido no quadro mental de uma época muito marcada pela reflexão filosófica de um pensador judeu de ascendência ou formação portuguesa como Leão Hebreu.

A visão cabalística da estruturação universal com um inferior apêndice final à deriva, entre exílio e êxodo, queda e reintegração, ajuda a ler a saudade. Em sentido inverso isto também é verdade. Quer dizer, a saudade também serve para traduzir essa visão peculiar. O paralelo entre a saudade e a Chéquina aponta assim para a necessidade de se perceber em que grau é que as características da cultura portuguesa tardo-medieval influíram na espiritualidade judaica e em que proporção esta por sua vez contribuiu para os aspectos típicos daquela. Os estudos de Helder Macedo sobre a poesia de Bernardim são um avançado contributo para o problema aqui levantado, mesmo que quase não toquem na saudade. Interessa agora depois deles e dos de Fiama Hasse Pais Brandão, que leu Camões como Macedo Bernardim, agarrar na cultura hebraica peninsular dos séculos XII ao XIV e ver como esse rico fundo cultural se relaciona com o sentido com que a saudade apareceu no século XVI na poesia pastoril e no romance de Bernardim. O problema é tanto mais significativo quanto é nas obras de Usque e Bernardim, tal como foram publicadas em 1553 e 1554, que a forma gráfica actual da palavra saudade surge, ao lado ainda dos arcaísmos, na prosa portuguesa.

 Os textos bernardinianos editados pelos Usques foram em vários planos os ascendentes mais directos da saudade portuguesa; depois de um avoengo Amadis, cujo original na língua se perdeu, esses textos são como vimos os pais fundadores da literatura dramática da saudade. Foram eles que desenharam em definitivo o genoma da saudade portuguesa enquanto mito poético. É mesmo possível que muita da poesia portuguesa posterior que dramatiza a saudade repita cromossomaticamente esses pais. São os braços da árvore, que multiplicam o tronco.

Sobre o aspecto dramático-narrativo da literatura de Bernardim vale a pena ainda dizer o seguinte. O estilo elegíaco e dorido, em que a ideia de exílio se manifesta, aproxima Bernardim e Samuel Usque. Em Usque isso acontece de forma explícita, apesar do estilo pastoril, enquanto em Bernardim quase nada de explícito se encontra, acentuando-se muito a dramatização das roupagens poéticas de estilo pastoril. O romance em prosa, entrecortado de versos ao modo de Sannazarro, prestava-se a um alcance alegórico religiosamente inofensivo, mas também se podia prestar a uma dissimulação críptica religiosamente muito mais perigosa. Pode acontecer que no caso de Bernardim a dissimulação críptica tenha existido. O facto de Bernardim ter falado de um tema sagrado do judaísmo atráves de fábulas que nada têm na aparência com ele (encontro de duas senhoras, morte de um rouxinol, histórias de desencontros amorosos ou então fábulas pastoris que falam desses mesmos desencontros eróticos) não nos parece difícil de aceitar. A poesia narrativa apresentava-se como um instrumento que era possível pôr ao serviço do cripticismo religioso.

Ora no quadro da perseguição feroz ao judaísmo que se seguiu ao estabelecimento da Inquição em 1536, ou até no quadro mais tolerante mas ainda assim periclitante das leis de D. Manuel I que se seguiram às conversões forçadas de 1496, falar de um tema sagrado do judaísmo peninsular, o exílio da Chéquina, através de histórias que não se associavam com ele de forma directa era uma forma segura de o fazer, quer dizer, um modo capaz de despistar a vigilância dos censores. E isto que se avança para o romance de Bernardim e para as suas restantes dramatizações pode afinal ser avançado para boa parte da literatura castelhana que falou do amor e da soledad no final do século XV, quando a Inquisição era já um flagelo nos territórios vizinhos, em primeiro lugar aquela que se costuma intertextualizar com a prosa de Bernardim, a de Diego de San Pedro.

Se isto tem alguma razão de ser, o que aceitamos ser discutível, então a edição de Évora encontra uma explicação, que é de resto a de Helder Macedo. Essa edição, feita por um cristão-novo que era o impressor oficial do inquisidor-geral do reino, André de Burgos, funcionou como uma tentativa de normalizar a literatura de Bernardim, limpando-a de suspeitas e anulando pelos acrescentos (muito óbvios no caso do desenlace da história de Bimarder e Aónia, transformada numa simples história de adultério, ainda por cima punido com a morte) a estranheza de certos lugares anteriores e de certos sentidos potencialmente ofensivos. Com essa edição oficial, que passou a ser a única reconhecida, e a história da edição é sob esse aspecto elucidativa, passou a existir um Bernardim mais aceitável do ponto de vista do cânone religioso da época. Mais aceitável pelos desenvolvimentos morais e rocambolescos que a sua nova literatura mostrava, mas ainda assim potencialmente perigoso por tudo aquilo que anteriormente lá estava nessa literatura e lá continuou depois, como nos mostra o índice proibitório de 1581, onde a novela de Bernardim figura no “Catálogo dos Livros que se Proibem nestes Reinos e Senhorios de Portugal”.

Trata-se de uma explicação possível para o aparecimento da edição de Évora das obras de Bernardim, e sobretudo para o que nela se mostra tão desacertado para com a tradição textual anterior, e que aqui aceitamos enquanto hipótese explicativa para texto tão distinto do de Ferrara, nada mais.


NEO-PLATONISMO E SAUDADE


Teixeira Rego foi o primeiro a formular a hipótese do judaísmo da História de Menina e Moça e da ascendência judaica do seu autor. Associou Bernardim Ribeiro por um processo anagramático com a família hebraica portuguesa Abrabanel ou Abravanel, citada de resto na pessoa de Samuel Abravanel nos diálogos de Usque; trata-se de distintísima família portuguesa, ligada por relações políticas, financeiras e culturais com a corte portuguesa do século XV. O eruditíssimo pensador portuense viu em Bernardim o anagrama de Abardinel e neste uma corruptela de Abrabanel ou Abravanel. Estabeleceu assim a identificação de Bernardim com Judá Abravanel, também conhecido por Leão Hebreu, irmão do Abravanel citado por Usque e autor dos Diálogos de Amor, publicados postumamente em Roma, no ano de 1535, em língua italiana (Dialoghi d’Amore), e ainda de cinco poesias soltas em língua hebraica, com destaque para uma Queixa sobre o Tempo.

O juízo de Rego passa por infundado e só por curiosidade comparece aqui. Independentemente da tese do portuense, e sem qualquer relação directa com os seus aspectos de identificação biográfica, que não perfilhamos, vale a pena ainda assim assinalar as fortes relações de vizinhança que se fazem sentir no plano textual entre os dois autores. Assinalar esse parentesco é uma forma de percebermos melhor o que mais importa na literatura de Bernardim, nela esclarecendo o papel sempre complexo da saudade. A atmosfera da Queixa é por exemplo contígua aos lamentos de Bernardim, sobretudo nas éclogas. Por outro lado, Bernardim debruçou toda a sua obra sobre o choque psíquico da paixão amorosa, dedicando particular atenção ao luto amoroso, em que se percebe o momento da epifania da saudade, enquanto dor e permanência (contraditória permanência e alargamento da esfera do prazer). Leão Hebreu por sua vez dedicou ao amor os Diálogos, tentando perceber a sua natureza, origem e finalidade.

A obra é uma síntese da espiritualidade judaica, da filosofia grega neo-platónica tal como ela corria no palco da cultura italiana dos finais do século XV, que é o tavolado de Gemistos Pléton, Marsílio Ficcino e Pico de Mirandola, e de elementos característicos da cultura peninsular, que vão do averroísmo aristotelizante à mitografia árabe do amor e ao cabalismo da escola de Gerona; ela faz parte do mesmo mesclado cultural que viu nascer alguns  anos mais tarde o livro de Samuel Usque e talvez o de Bernardim. O seu afloramento num estudo como este, mesmo tratando-se de obra escrita em italiano por um português, é proveitoso e serve pelo menos o propósito de perceber que no magma cultural em que a dramatização da saudade nasceu a distinção somática entre uma saudade religiosa e uma saudade arcádica, ao modo da distinção de Vossler entre duas soledades, é um risco desnecessário, que não subscrevemos.

A obra leonina compõe-se de três diálogos entre Sofia e Fílon, que tipificam com as suas intervenções a sabedoria racional e a ardência do saber apaixonado ou, de outro modo, o Amante que procura comedidamente conhecer e o Amado que tudo ardentemente conhece. Assim, se pode dizer que a Filosofia é para Abravanel a relação do Amante com o Amado ou o encontro, primeiro retraído, depois pleno,  da Razão com o Amor. A obra pela forma lembra o drama, o drama de personagens, mas o drama didáctico, sem acções, ao modo de Platão, que é também a ossatura pontiaguda dos diálogos de Usque. Pelo sentido, o trabalho aproxima-se da literatura que desde os gregos e os seus comentadores árabes e judeus tematizava o amor, com uma relação de vizinhança muito estreita, até em termos de citação ou explícito comentário, com os diálagos de Platão em torno de Eros e com as esclarecidas reflexões sobre a Beleza de Plotino nas Enéadas. Os diálogos de Leão Hebreu apresentam-se como uma síntese extraordinária de toda a literatura anterior sobre o amor. Não é por presunção que um dos intervenientes na obra, Fílon, diz a dado passo: “Noi abbiamo confabulato de l’amore de l’universo piú universamente di quello che fece Platone nel suo Convivio.”

O primeiro diálogo, “Do Amor e do Desejo”,  apresenta o amor como o desejo (o desiderio) do que se possui e o desejo como o amor do que se não possui. Amor e desejo são assim a mesma coisa, em planos diferentes, o da ausência e o da presença. É possível estabelecer a partir destes quatro termos uma relação de analogia entre amor e desejo. O amor é o desejo na presença e o desejo o amor na ausência. O segundo diálogo, “Da Extensão do Amor”, encara a universalidade do amor; ele alarga-se a todos os planos estruturais do universo, desde o mundo elementar ao celeste, e deste ao das ideias. O amor é a força constitutiva de todos estes planos universais, que estão assim em correspondência, mas não em absoluta coincidência. Aí encontramos uma visão da materialidade terrestre, com toda uma fisiognomonia das feições físicas do elemento terra, como degradação do plano celeste; há correspondências entre os dois planos, mas um tem as virtudes intensificadas, enquanto o outro sublinha os desequilíbrios.  Para além da terra e do céu, ambos corpóreos, ainda que um corruptível e o outro não, situa-se um terceiro plano, o das ideias.

No terceiro diálogo, “Da Origem do Amor”, sedimentam-se os planos, alargam-se as correspondências, aponta-se no centro das ideias o princípio intelectivo puro. Este por um acto de amor criou o mundo e os seus dois planos, o celeste e o terrestre, o anímico e o corporal. Deus sentiu amor ao que lhe faltava, quer dizer, teve o desejo da natureza e do homem, e assim os criou. A noção de falta ou  ausência, que funda em Leão Hebreu a argumentativa dialéctica do amor e do desejo, está assim no âmago de Deus. Inversamente, da mesma noção de falta, tira ele o desejo que a natureza terrestre e humana têm de tudo o que lhes é superior. A humanidade ama a beleza e caminha para ela, quer dizer, ama a beleza particular e deseja a geral, porque esta são as ideias. Logo é preciso distinguir as coisas belas e boas na aparência, mas não na realidade, porque carecem do plano ideativo, como é o caso do apetite material que Eva sentiu no Éden, e as coisas belas e boas na realidade, porque escudadas no desejo de elevação para as ideias.

Eis num relâmpago curto os diálogos de Leão Hebreu. Parece evidente que a sua visão do relacionamento do plano terrestre e do celeste tem paralelo imediato com as relações sefiróticas, na árvore cabalística, entre Kether, a Coroa, e Malcuth, a Terra; a Cabala de resto é expressamente convocada por Fílon no terceiro diálogo. Esta aproximação de Leão Hebreu  à Cabala não surpreende dado o judaísmo sefardita do autor, judaísmo que de resto nunca abjurou, mau grado a indicação das edições aldinas da sua obra de 1541 e 1545 de que se teria feito cristão. O plano das ideias e o seu princípio ordenador pode ser associado por sua vez ao Ain Sof cabalístico, anterior ao zimzoum estruturador. Também a finalidade ascendente da natureza e da humanidade, procurando a beleza superior do plano celeste incorruptível, e depois a do plano imaterial das ideias, se aproxima da noção de êxodo sagrado, solidária da de exílio terreno. Finalmente, o tratamento dado ao desejo sexual, como apetite estritamente material, em queda livre, e não como amor, em ascensão purgativa, mostra um remanescente gnóstico, que pode ter chegado ao judaísmo português e peninsular por via dos círculos hebraicos languedoquianos, mais dualistas como se vê no Sefer Ha Bahir (O Livro da Claridade), um livro do século XII saído desses círculos, mas que todavia não é para ser encarado, conforme se vê na paixão de Fílon por Sofia, de forma exclusiva e radical. Nada nele é comparável à categórica recusa do amplexo sexual que se encontra na ascese clunisina, na mística da castidade da Demanda do Santo Graal ou no radicalismo dualista de cátaros e gnósticos, diabolizando a matéria e a reprodução sexual.

Demais, a obra de Leão Hebreu ficou incompleta. As últimas palavras de Sofia são um desafio a Fílon, pedindo-lhe que esclareça no amor entre humanos o que pode haver de bom e de pernicioso; Fílon com o adiantado da hora escusa a resposta e adia o despique para outro momento, que completaria a obra com um quarto e último diálogo. Ainda assim, percebe-se no que fica dito ao longo do terceiro diálogo que o amor dos sentidos entre humanos, o desejo sensual, o amor erótico, é aceite como uma das vias do aperfeiçoamento espiritual do amor. A ambiguidade é porém patente num juízo que é discriminatório dos enganos e das verdades desse tipo de amor, com uma leitura da queda de Eva, a partir do que pode haver de êxul num apetite sexual desgarrado de forças menos densas, mais subtis e intelectivas.

É aqui que bate o ponto, em relação a Bernardim Ribeiro. Todas as suas histórias são sempre histórias de amor aparentemente frustrado. As éclogas põem em cena pastores ardentemente apaixonados por pastoras cativantes, mas sempre distantes, afastadas que foram para terras longíquas por variadas razões que podem ir da traição ao matrimónio involuntário; esses pastores ou estão sozinhos tomando consciência dos efeitos psicossomáticos do amor erótico, entre desejo e solidão, ou estão confessando a outros colegas de ofício essas mesmas meditações. Também as histórias do romance em prosa de Bernardim contadas pela dona colocam em palco pares de enamorados que vêem malogrados pelos mesmos motivos das éclogas os seus esforços para se fazerem presentes uns aos outros; o que é dramatizado nessas sequências depois do enamoramento é sempre e com muito pormenor o momento da separação e o seu choque psíquico. A combinação do enamoramento com a separação compõe sem excepção a receita das dramatizações de Bernardim, quer nas éclogas em verso, quer no romance em prosa; a diferença entre as éclogas e o romance está porventura em que no primeiro a dramatização incide exclusivamente sobre a consciência masculina e no segundo dilata-se com notável propriedade à consciência feminina.

O amor dramatizado por Bernardim é humano e sensitivo, parte da natureza sensível e sensual do homem e da mulher. Sob este aspecto a sua literatura afasta-se da de Samuel Usque, onde a questão é inexistente, e dá continuidade a todas as sequências dramáticas que saem do primeiro ciclo arturiano. Há algo porém que individualiza a literatura de amor de Bernardim entre toda esta nebulosa, em que é justíssimo destacar o Amadis e o acto sexual clandestino, no meio dos bosques, de Oriana e Amadis. Essa singularidade de Bernardim é a seguinte: a realização do amor dos sentidos não passa nunca nele pela realização sexual, e quando passa dá lugar à tragédia de Belisa. Isto é absolutamente original e motivo de surpresa numa literatura muito sexualizada. Lembrem-se as figuras de Lançarote e de Ginevra ou de Tristão e Isolda. As questões que se podem colocar a partir desta constatação são as seguintes. O acto sexual entre os pares de Bernardim existe mas não o vemos, porque o narrador acha desnecessária a sua narração, preferindo antes narrativizar outras sequências erótico-amorosas que têm idêntico valor? Neste caso, a morte de Belisa seria uma coincidência sem significado. Ou o acto sexual entre esses pares nunca chega mesmo a existir? E nesse caso a morte de Belisa poderia ter um significado emblemático. A resposta não é líquida, parecendo-nos aceitável qualquer uma delas.

 Assim como assim, passa por aqui a visão do amor humano de Leão Hebreu. Lembre-se a natureza ambígua do seu parecer: por um lado afirma-se a universalidade do amor; por outro abre-se uma excepção, justificada pela deriva separativa a que o plano terreno se encontra sujeito, para a excessiva densidade material do apetite sexual. O problema não está como nos gnósticos no sexo, mas no seu uso inconsequente; não é o sexo em si que é posto em causa na visão de Hebreu, mas o sexo desacompanhado de motivos finos e superiores, capazes de ligarem o homem e a mulher ao plano das ideias. O amor sexual tanto pode dar lugar ao rebaixamento como à elevação, tudo dependendo da abertura ou do fechamento a que ele dá lugar. E isto que se adianta para a filosofia de Leão Hebreu pode também dizer-se para o entendimento que do sexo tem a Cabala e em particular um dos seus livros fundadores, o Sefer Ha Zohar, que matizou  como vimos o dualismo cabalístico languedoquiano. Na visão do cabalismo ibérico, o sexo é ainda a Chéquina, quer dizer, um apêndice divino que tanto se pode extraviar nos mundos inferiores, exilando-se mais e mais da casa de seu Pai, como servir de ponto de partida para uma escalada de ascensão e de regresso ao mundo original que antecedeu a separação.

Eis então a chave que nos pode ajudar a compreender melhor as enigmáticas histórias de Bernardim Ribeiro em torno do amor. Aceitando uma visão em que não se condena o sexo em si mas apenas o seu uso estreitamente material, as fábulas de Bernardim só na aparência tratam de amores frustrados; pelo contrário, a troca do apetite sexual mais básico, imediatamente satisfeito, por um estado psíquico de ensimesmamento, que é alargamento da intimidade, faz do amor sensual de Bernardim um amor que cumpre rigorosamente as condições leoninas da paixão humana mais completa, aproximando-se também por aí do entendimento cabalístico do sexo como o último éon divino, a Chéquina, cuja missão é o regresso à casa do Pai. Nesse sentido, percebe-se que a literatura de Bernardim não dê uma resposta definitiva sobre o papel que o acto sexual tem nas suas histórias de amor. Nas situações dramatizadas por Bernardim, os sentidos emparelham com motivos subtis e mentais, que fazem do sensível o ponto de partida de um alargamento mental. As personagens de Bernardim complexificaram a sua vida interior devido à dinâmica inicial dos sentidos. É a isso que outrossim podemos chamar na literatura de Bernardim a saudade ou as contradições dinâmicas do desejo e da solidão.

Dito de outro modo, o coito carnal, como expressão máxima da vida sensitiva e sensorial, não interessa a Bernardim em si mesmo ou de qualquer modo; o que lhe interessa é transitar através dele ou de qualquer outra manifestação do amor físico da vida sensível para o plano das ideias. A base de todas as fábulas bernaldinianas é como se tira da ficção de Jano na segunda écloga a atracção sensual e sexual, com fortes motivos materiais e corporais, como o caso da sapatilha de Joana na mesma écloga indica, mas o seu termo parece sempre ser já outra coisa, muito menos densa e muito mais imaterial, de uma leveza etérea, toda feita de sentimentos, emoções e ideias. É um estado composto de tristeza e deleite, a tristeza que fica da insatisfação dos sentidos e o deleite que nasce do alargamento do processo de consciência. Dá ideia que em Bernardim o ser que ama quando confrontado com a ausência do ser amado tem a possibilidade de efectivar um desvio da carga do desejo amoroso para planos mais elevados. É um processo de sublimação do sensível em ordem da consciência e das ideias.

Por isso a literatura de Bernardim é tão rica e original em termos de captação e descrição de estados psíquicos complexos, sem que qualquer outro autor português seu contemporâneo se lhe possa comparar. Ora aquilo que faz transitar as personagens de Bernardim do plano da estrita e densa manifestação sensível para o plano das ideias, através de um estado psíquico que volatiliza a vida sensorial, é a saudade, quer dizer, o resultado do amor na ausência do ser amado.

Algo de próximo se encontra em Camões; ao amor sensitivo anda ligado muitas vezes um plano incorruptível, muito mais importante do que as manifestações sensuais do desejo. É isso que está por exemplo no sionismo mental, ideativo, das redondilhas de “Babel e Sião”, paráfrase do salmo 136, Super Flumina Babylonis, já referido anteriormente. Medite-se a seguinte passagem:

E aquela humana figura,

Que cá me pôde alterar,

Não é quem se há-de buscar:

É raio de Formosura

Que só se deve de amar;

 

Que os olhos e a luz que ateia

O fogo que cá sujeita,

(Não do Sol, mas da candeia)

É sombra daquela ideia

que em Deus está mais perfeita.

O tópico é como se sabe platónico. Encontra-se no segundo discurso de Sócrates no diálogo Fedro e na fala de Diotima no discurso de Sócrates em casa de Agatão no diálogo Banquete. Esta fala é com a intervenção de Aristófanes sobre o mito do andrógino o passo mais exaltante dos seis discursos sobre o amor que têm lugar na casa de Agatão. A noção de que o amor humano acciona um trânsito do sensível para a Ideia passou de Platão para Plotino e destes para a literatura árabe sobre o amor e depois através desta para certas franjas do amor cortês europeu. No fim do século XV encontramo-la em Leão Hebreu, pronta a enraizar-se em boa parte da poesia europeia renascentista, como tópico avulso e intervalar. Lembre-se que o desiderio leonino é o amor daquilo que está ausente; torna-se por isso a força propulsora do aperfeiçoamento da matéria em direcção ao inteligível. Não é difícil, atendendo às dramatizações do luto amoroso, fazer corresponder em pleno este desiderio do ausente com o sentido da saudade. E talvez seja aqui nesta relação entre o desiderio leonino e as dramatizações do luto do amor que melhor podemos surpreender a significação da saudade bernardiniana. Nessa relação reside decerto a sua chave interpretativa.

A saudade em Bernardim é desejo e desejo erótico muito forte. Não é possível senão partir daqui. Recordem-se nesse sentido os passos transcritos das éclogas, sobretudo o passo da écloga Crisfal, onde se diz que na saudade se vê o que os amantes se querem. Mas esse desejo em Bernardim é sempre um desejo que se mistura à solidão, porque o amante foi abandonado ou traído. E daí as saudades com que se morre de princípio ao fim na História de Menina e Moça. É um desejo solitário que não se pode satisfazer corporeamente; e por isso a preferência, não sei se propositada, se puramente acidental, da edição de Ferrara pelo arcaísmo soidade, sublinhando por ele a ligação da saudade à solidão. Mas pelo que existe de insatisfação física, resultante da separação dos amantes, é que o amplexo amoroso pode ganhar voo, alcançando através de estados psíquicos de sublimação o plano das ideias.

Ora a saudade é na literatura de Bernardim essa mistura de desejo e solidão. E a sua literatura é por sua vez a tentativa, a nosso ver bem sucedida, de dramatizar esse novo estado do desejo erótico, resultante da sublimação activa dos sentidos, que se chama saudade. O que passa nestas suas dramatizações da saudade é que o desejo, vendo-se despojado do seu objecto de prazer sensível, exerce uma pressão psíquica, alargando ou transpondo a sua força para círculos concêntricos que já pertencem mais ao domínio ideativo que ao sensível. As personagens bernardinianas vivem de uma tristeza que advem da separação e de uma esperança ansiosa e dorida de reencontro. Mas mais importante que essa matéria residual do passado, é o processo mental em que tudo isso tem lugar e que corresponde a uma novidade em relação ao passado imediatamente vivido.

Na saudade tal como Bernardim a dramatiza nas histórias do seu romance em prosa ou nas suas fábulas bucólicas percebe-se que o amor sensual serve de trampolim a um afinamento da inteligência interior, que é feito de dor e de esperança, mas também de uma acuidade de espírito que é nova, enriquecedora ou mesmo até paradoxalmente libertadora. Não é isso que se nota no Bimarder que se apaixona malogradamente por Aónia? E em Aónia não se nota esse mesmo refinamento espiritual que lhe dá uma superioridade sobre as mulheres que a rodeiam? E o que se pergunta deste par, pode avançar-se para o seguinte, Avalor e Arima. A separação, o exílio, a dor asseguram nestes curiosos e estranhos seres, através da saudade amorosa, uma percepção mental da plenitude, que de outro modo talvez não fosse possível.

E para percebermos isso faz-nos falta o tópico leonino do desiderio. É com ele que podemos perceber que a saudade é em Bernardim o exercício de um erotismo espiritualizante. Sem a saudade, as dramatizações de Bernardim seriam histórias de amor físico, sem mais; com a saudade, elas são histórias de amor físico que se transformam em histórias de desejo espiritual. As humanas figuras que nessas histórias se amam são os raios de formosura do poema camoniano. Esses jovens adolescendo, pastores e pastoras, cavaleiros e donzelas, que se desenham nas fábulas de Bernardim banhados de lágrimas, cabelos soltos, olhos melancólicos e cheios de desejo, são imagens humanas da beleza, mas não a Beleza. Não são elas que verdadeiramente interessam como não é o fogo que elas encadeiam aquele que mais importa. Este é só uma sombra da Luz, como aquelas uma imagem apenas passageira da Ideia. E não se pense que este neo-platonismo de Camões anda arredado de Bernardim e da sua saudade. Não chamou Teófilo a Bernardim o Énio de Camões? Assim aconteceu. E não foi esse mesmo Camões que numa carta de Lisboa, que se garante ser anterior a 1553, se referiu às “saudades de Bernardim Ribeiro”? Foi, como foi ele que nas mesmas redondilhas e até no mesmo passo viu na saudade um degrau para a Jerusalém celeste. Diz ele:

Não é logo, a saudade

Das terras onde nasceu

A carne, mas é do Céu,

Daquela santa cidade

Donde esta alma descendeu.

Que o caso de Bernardim possa ter uma tradução esotérica como afirmou Helder Macedo não é para espantar. Basta pensarmos no contexto cultural da época e nas implicações judaicas da edição princeps das obras de Bernardim. O primeiro prosador pós-duartino a ocupar-se da saudade foi Samuel Usque, um cristão-novo que nunca deixou de ser judeu e que alargou e enriqueceu muito o sentido da palavra, levando-a para um degrau divino, a saudade de Deus, a que talvez não tivesse chegado fora dessa síntese com o judaísmo. Sem Usque, o dito neo-platonismo do Camões das redondilhas de “Babel e Sião” talvez não se entendesse como se entende, sobretudo no que diz respeito à noção de uma saudade de Deus que não existia antes de Usque e que Camões tanto e tão bem usou nesses versos, que são de resto uma paráfrase de um dos salmos bíblicos mais característicos do imaginário político e religioso do judaísmo histórico.

É em Bernardim que todo este mundo desencontrado de significações se dramatiza pela primeira vez; é na sua literatura em verso e em prosa que se desenham as primeiras dramatizações em torno desta complexa saudade que tanto parece ser erótica como mística, carnal como espiritual; é nela que surgem bem definidos os primeiros tipos poéticos saudosos. Não é nada pouco, se pensarmos que esses curiosos seres de ficção que se chamam Jano, Ribeiro, Bimarder, Aónia, Joana, Avalor, Pérsio, Amador, Maria, Helena, Crisfal ou Arima são capazes de dramatizar no tosco palco de madeira da época, através da saudade, toda uma ideia do amor do ausente que parece conter em si as altas, complexas e misteriosas significações do mais representativo pensamento filosófico de sempre, de Platão a Leão Hebreu.


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* O arcaísmo mantém-se na edição de Évora; no manuscrito descoberto por Eugenio Asensio, hoje na Biblioteca Nacional de Lisboa, o arcaísmo é substituído pela forma moderna, ‘saudade’, o que também acontece no folheto da écloga que tem a data de 1536 gravada na madeira da moldura xilográfica da folha de rosto.

* Lembrevos que sem mudar/ o querer desta vontade/ me haveis sempre de lembrar/ tee de todo me acabar/ vos e vossa saudade.

* Argumenta-se, e bem, que a flutuação gráfica da palavra se deveu na época à intervenção de copistas e tipógrafos; no caso do texto de Usque custa-nos porém a admitir este elemento aleatório, pois estamos diante de um livro que foi decerto composto pelo próprio autor. Usque teve oportunidade de escolher os revestimentos gráficos da palavra no seu texto impresso. Atendendo à intervenção que depois terá tido na composição tipográfica da obra de Bernardim, essa intencionalidade pode ter servido de critério para certas opções no livro de 1554.

* Dispensamo-nos de citar as edições das obras de Bernardim entre o século XVII e a actualidade; preferimos antes citar as duas primeiras edições. A primeira é a matriz de quase todas as edições posteriores a 1923, e a única que nos pode interessar por ser a mais antiga e a mais fidedigna; por sua vez, a segunda foi a fonte de todas as edições entre 1645 (a primeira edição não quinhentista) e 1923, mostrando-se nesse sentido indispensável para se perceber como se leu durante alguns séculos Bernardim. Acrescentamos ainda, para a prosa de Bernardim, pela vastidão da informação textual, a edição crítica de Dorothe Grokenberger. Deixamos de lado uma descrição das espécies citadas, antes de mais porque aparecem pormenorizadamente descritas no segundo capítulo desta síntese. Para a bibliografia passiva seguimos o mesmo critério, citando apenas os textos indispensáveis (em três níveis: ecdótica; saudade; criptojudaísmo). As duas bibliografias indicadas (J. V. de Pina Martins e Guilherme G. de Oliveira Santos) são exaustivas e garantem folgadamente um quase completo conhecimento do panorama bibliográfico em torno da literatura de Bernardim Ribeiro.

 


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Tributo a António Cândido Franco – Índice

Portugal – Maioo de 2023