TRIBUTO A ANA HADDAD
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência (Instituição-sede da última proposta de pesquisa) . Brasil
Desvendar os grandes mistérios da condição humana é, entre tantos outros, um dos objetivos da literatura, da história, da sociologia, filosofia e diversas áreas do conhecimento.
Lembremos, uma vez mais, que habitualmente deveríamos ler e interpretar o passado com os olhos da desconfiança. Conscientes de que até o momento final de nossas vidas estaremos sob as astúcias, para o bem e para o mal, da ingenuidade. Mas sejamos francos: um certo grau de ingenuidade é sempre eficaz para que a esperança seja fortalecida. Afinal, é preciso ter muita coragem para a desesperança, por não esquecer do título de uma das publicações, no Brasil, de Zizek.
A literatura é um poderoso e caudaloso caminho para leituras mais lúcidas da história humana. A prova disso, entre tantas outras que poderiam ser citadas, é uma das maiores escritoras de que temos registro. Falo de Marguerite Yourcenar. (Como esquecer de Memórias de Adriano?) Uma voz marcada pela universalidade e pelo equilíbrio tão desejável ao transitar pelo feminino e pelo masculino ao mesmo tempo que nos canaliza para determinados subterrâneos de uma história “documental” não registrada. E foi, justamente, uma das fontes consultadas pelo nosso saudoso e tão esquecido, (neste país em que as desmemórias, pendulares e flutuantes, predominam e engrossam os poderes cinicamente estabelecidos), José Paulo Paes ao fazer uma leitura belíssima, assim como a tradução, de um dos maiores poetas “modernos” do século XX. Refiro-me ao grandioso Konstantinos Kaváfis (1863-1933) . Nasceu em Alexandria. Considerado um poeta grego-otomano.
Por intermédio de Kaváfis podemos e devemos nos perguntar: quais teriam sido as possíveis verdades, de um tempo, que não foram reveladas? No entrecruzamento entre a história documental e a literatura do poeta helênico (como gostava de ser chamado) revisitamos as memórias de uma Grécia mítica, como por exemplo, em um dos mais belos e doloridos poemas escritos por ele:
Os cavalos de Aquiles
Ao verem Pátroclo morrer tão jovem,
em todo o seu vigor e bravura sem par,
os cavalos de Aquiles puseram-se a chorar.
A imortal natureza deles se insurgia
contra o feito de morte a que assistia.
Sacudiam as cabeças, as longas crinas agitavam,
e, pisoteando o chão com os cascos, pranteavam
Pátroclo, a quem ali percebiam inerme, aniquilado ––
cadáver ora desprezível –– o espírito evolado ––
indefeso –– sem sopro de vivente ––
exilado, da vida, no grande Nada novamente.
O pranto dos seus cavalos imortais
fez pena a Zeus. “No casamento de Peleu”,
disse, “irrefletido foi o gesto meu;
inditosos cavalos, melhor fora, creio,
não vos ter dado. Que faríeis lá no meio
da mísera humanidade que é joguete da Sorte?
Vós, a quem a velhice não ronda nem espreita morte,
infortúnios fugazes padeceis. Às suas
dores os homens vos prendem”. –– Mas as lágrimas suas
pelo eterno , sem remissão jamais,
infortúnio da morte vertiam os dois nobres animais.
Observamos no poema em questão a presença de Homero no contexto contemporâneo e, seguramente, uma reflexão a respeito da finitude humana. Em outras palavras: a miserabilidade da nossa condição. Mas não somente. Veja-se, neste poema, a síntese da imaterialidade de uma dor profunda. A dor de uma perda. Dor tão grande que desestabiliza, mesmo que por alguns instantes, até Zeus, deus do Olimpo. O poeta, inclusive, não esqueceu da nobreza dos cavalos (em sua perfeição representada, na mitologia grega, por Pégasus). Uma das espécies, talvez, mais misteriosas imersa em sua habitual solidão.
Kaváfis é, sobretudo, um memorialista. Os seus poemas possuem, em sua maioria, traços de uma memória individual em constante diálogo com o passado coletivo da história. Mas não somente isso. Nas palavras de José Paulo Paes: “(…) a obsessão do passado, que se compraz em superpor diferentes épocas históricas para marcar, a um só tempo, a continuidade e o pluralismo da tradição helenística, não exclui uma viva percepção do presente em que se nutre a sensualidade do poeta” [1].
Georges Seféris (1900-1971), poeta grego, diga-se de passagem que recebeu um merecido Nobel em 1963, não deixou de lado em seus ensaios de crítica literária, Kaváfis. De acordo com ele [2] a literatura de Kaváfis é composta de uma mescla e entrecruzamentos de sentimento, saber e pensamento. Por quê? Porque aparentemente ácido, ao mesmo tempo, conduz, nós leitores, a uma reinterpretação do que realmente seja sensibilidade. Em outras palavras: uma estética da sensibilidade. A estética, conforme sabemos, é inseparável do olhar sensível de uma subjetividade singular e, sobretudo, “original”. Aquele olhar, no caso de Kaváfis, que nos conduz para dentro de nós mesmos e faz com que as grandes verdades subterrâneas aflorem sem possíveis receios de nos depararmos com a dura realidade, já exposta por Fernando Pessoa. Isto é, “somos o que nos supusemos”. Quando amamos, para ficarmos somente com um exemplo, exteriorizamos, de nós mesmos, somente o que desejamos. Assim como amamos no outro o que queremos enxergar. Dura realidade. Mas que deveria, sempre, estar presente em nossas possíveis e contínuas incursões interiores que somente as literaturas regidas pela grandiosidade de linguagens não estabelecidas, como a de Kaváfis, podem nos conduzir.
[1] José Paulo Paes, Konstantinos Kaváfis Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [s.d]. p. 30.
[2] George Seféris, El Estilo Griego I. Tradução[do grego para o espanhol] de Selma Ancira. México: Fondo de Cultura Económica, 1994. p. 53.