O cânone entre a estese e a antropologia

 

TRIBUTO A ANNABELA RITA


O cânone entre a estesia e a antropologia
Por Fernando Cristóvão
Professor Catedrático jubilado da Universidade de Lisboa / Academia das Ciências de Lisboa


Como o próprio título indica, a reflexão feita nesta obra sobre o cânone literário, especialmente o ocidental, o português e o lusófono, entrelaçada por conceções atualizadoras, domina e perspetiva o conjunto dos textos apresentados.

Reflexão esta atravessada pela dominância de duas figuras concetuais muito caras à Autora: a da cartografia e a do enfoque fotográfico, em pano de fundo das diversas artes da vista e do ouvido.

Em consequência, tanto o lugar e seu contexto, como a arte do zoom, revelam com maior clareza o mapeamento da palavra escrita em sua expressão lógica, estética e relacional. Reflexão esta que, aliás, entronca, naturalmente, nas suas obras analitico-críticas já publicadas, tais como Emergências Estéticas, Cartografias Literárias, Paisagens e Figuras, e na edição de ensaios e artigos vários em que a citada cartografia de memória museológica, ou de diálogo interartes, conduz depois a uma reflexão e problematização do cânone. Questionamento esse que vai desde a justificada crítica aos critérios de Bloom até à judiciosa enumeração de “problemas para o(s) cânone(s) da(s) literatura(s) lusófona(s)”. Reflexão esta inevitável na sua lucidez fundamental para a elaboração de um possível cânone lusófono, que tanto respeite os diversos aspetos linguísticos como os culturais, ultrapassado que foi o preconceito neocolonialista de se confundir Lusofonia com Lusitanidade, tal como o da falsa identificação de “língua portuguesa” com “expressão portuguesa”, como se não existissem as múltiplas expressões brasileira, africana e das diásporas.

Suposta na reflexão expressa nestes textos sobre a importância de cânones-cartografias ocidental, nacional, lusófonas, subjaz a convicção de que a literatura, ultrapassados que têm sido os preconceitos elitistas, é, cada vez mais, entendida como antropologia das antropologias.

Com efeito, a natureza ambígua e polimórfica da Literatura – que não sendo ciência contudo se impõe como um saber onde cabem todos os saberes, científicos ou não, lógicos ou absurdos, benditos ou malditos – não lhe permite alhear-se da realidade antes a transforma em proposta. G. Steiner bem denunciou o divórcio entre forma e conteúdo iniciado por Mallarmé, defendendo uma prática literária que recupere o valor das palavras e da sua dimensão sobrenatural de “presença real”, entendida até no sentido teológico.

É, pois, de oportuna pertinência neste tempo multicultural, em que a estese já não legitima o monopólio do literário, neste tempo de “terceira cultura”, na aceção de C. P. Snow e Brookman, em que cabem tanto as “letras” como as “ciências”, um melhor entendimento tanto do real como das suas exigências antropológicas. E que na formulação de um cânone, em qualquer cartografia que seja, se devem ter em conta exigências fundamentais, tanto da linguística como das culturas em geral. Maximamente num cânone lusófono, que tanto contemple a consideração das variantes linguísticas como a das variantes antropológicas. Em que se exige que o “júri” de tal consagração da nova espécie de “clássicos” seja múltiplo e representativo, ao mesmo tempo que cartograficamente ajustado ao tempo e ao espaço.

Bem anda a Autora destes ensaios, que, em zoom de grande angular, vai “dos clássicos a Dan Brown”, preconizando o “encontro de um saber de verdade última sobre o universo e o lugar do homem nele, mas também sobre a natureza do próprio conhecimento”, para concluir no seu inteligente texto que “o levantamento dos problemas colocados pelo(s) cânone(s) e pela construção do(s) cânone(s) da(s) literaturas lusófonas, aqui apenas perspetivado entre luz e sombras, e a tentativa de os resolver, poderão promover uma profunda alteração dos critérios, das pedagogias e dos modelos de bibliografia e de programas, para que se possa falar de definição, construção ou existência de cânone(s) nacional(ais), europeu(s) e lusófono(s)”.

Em suma, um excelente e oportuno contributo para a elaboração de um cânone lusófono.


Revista Triplov . Série Viridae
Julho de 2022
Tributo a Annabela Rita