O brilho escuro da treva

 

AMADEU BAPTISTA


Por Joana Ruas


Prefácio a O bosque cintilante


 

«Obscuridade de que nasci, amo-te mais que esta  chama que limita o mundo.
A obscuridade  contém tudo: as  formas  e as  chamas, os animais e eu próprio…».
Extracto do Livro da Vida Monástica de Rainer Maria Rilke

 

Amadeu Baptista, em O Bosque Cintilante(1), exprime o seu sentimento de  pertença do esplendor do mundo, o mundo suspenso do tempo próprio da música da sombra e do prodígio. As criaturas  deste bosque cintilante são as  árvores da harmonia, árvores de diamante pingando orvalho de sons em transe e das  quais  se  elevam  as aves sonoras de um voo sublime. Depois  que teceu a paisagem de uma possível solidão de cristal no seio da música de vários compositores, o poeta, guiado ainda pelos ecos  desse labirinto de  sons e luzes , numa atracção misteriosa pela decifração da obra  de um génio cuja escrita se exprimiu pelo desenho e pela cor,  enveredou  pela  floresta obscura onde o sol se cala, como a pintou  Dante ((1265/1324)), na Divina Comédia , transformando-se no rouxinol que canta na escuridão, tal como foi ideado por Keats (1795-1821) na sua célebre  Ode a um Rouxinol e por T. S. Eliot (1888-1965 ) em The Waste Land ,  em que o rouxinol  enche todo o deserto com a sua voz inviolável. Em Poemas de Caravaggio, é com júbilo solar que a linguagem pletórica do poeta transporta, na sua  matéria verbal, o  imaginário de um universo pictural  que  busca a sua materialização através  da luminosidade  da cor e da densidade das trevas. Sensível à substância da Cor que  é fruto de operações  alquímicas  em que as virtudes naturais aprisionadas na matéria se libertam,  o poeta refere-se a esse processo em Desenho de Luzes, obra literária em que se acha a matriz de Poemas de Caravaggio :

Mas o que faço,

Jerusaleme, é apenas seguir a intuição

de que alguma grandeza há nesta aventura,

uma dor insuportável por mais suportável que pareça,

um grito entre uma escolha e outra,

com a nítida certeza de que a um outro inferno

corresponde esta sombra sublime, este vermelho

brutal a que uma papoila moída deu lugar.

Inspirado nos cânticos de Salomão, A Incredulidade de S. Tomé é um canto solar de alegria e de louvor das maravilhas do  mundo concreto. Cântico em que  não se admite outro milagre que o da  própria Criação, neste poema, numa alusão às cores passageiras, o poeta , servindo-se da sensibilidade do apóstolo, mistura-as às cores principais, dando-lhes o mesmo valor utilitário e simbólico na Arte do pintor:

 « E acredito

nas cores, nos verdes e vermelhos

com que se esboça uma veste, ou um pregueio.»

e, ainda

«E que o índigo

é uma planta mágica, de que retiro

o mais belo azul.»

Além da cor obtida a partir das flores e das plantas há ainda a que é obtida pela espiritualização da pedra nos seus diferentes estados até à sua perfeição pelo fogo. A imaginação do poeta dá dupla vida à substância da cor negra, sangue de vários pigmentos e espessuras na sua transmutação  pelos enigmas, metáforas e alegorias da obra. As cores, cuja vivacidade e brilho desfalecem com o tempo, uma vez fixadas na tela  pela mão do mestre, são como que espelhos do invisível::

«Acredito no sol, no áspero espinho.

E que a poeira é cinzenta, e cinza, e negra.

E que no Horebe tudo arde.»

«Acredito na luminosidade e nos clarões

da distância, e como pode

um brilho ser decisivo num quadro,

a iluminar o oculto.»

Essa alquimia  de uma intimidade que permitiu que um universo pictural  se enxertasse num longo poema, deveu-se à visão activa do poeta cujo olhar iluminou imagens, formas e ritmos contidos na obscuridade das telas. A visão activa realizou a unidade natural do poeta com o  pintor da sua eleição, cumprindo-se uma  das leis elementares da imaginação poética e que consiste na união do visível e da visão.

Michelangelo Merisi Caravaggio (1571/1610), pintor do Barroco Italiano,  revolucionou a pintura italiana e  europeia entre o século XVI e XVII. Caravaggio viveu numa época em que na Itália se haviam expandido uma multidão de repúblicas. As manifestações políticas começaram em Itália quando as cidades lombardas saíram do controle dos seus bispos para a mão das comunas passando estas a serem  administradas por corpos de magistrados responsáveis perante os cidadãos. Propagou-se, nas cidades-estados italianas, o culto de um governo  que deu a si mesmo o nome helénico de democracia, mas as dificuldades de um  constitucionalismo incipiente e não representativo, abriram caminho à figura igualmente helénica da tirania. A época brilhante da pintura floresceu no meio de batalhas e mudanças de governo. Stendhal (1783-1842),  em Histoire de la peinture en Italie (2),  dá-nos uma ideia da relação entre o poder  e os artistas, escrevendo, grosso modo, que « os governos não se opunham aos artistas proibindo os temas dos quadros que pintavam mas quebrando-lhes as almas pela promoção dos medíocres. Os hábitos servis que levavam a que todos se afadigassem  para  agradar aos mecenas , fossem eles senhorias ou papas, afastava do público toda a originalidade,  criando entre os artistas grandes rivalidades pois  era amado pelo público quem agradava aos poderosos  e alguns artistas temiam que a originalidade de um desconhecido obtivesse o seu favor, nem que fosse esporádico, sentindo-se por isso continuamente ameaçados no seu estatuto de protegidos». Na época em que viveu Caravaggio, a teologia da Igreja estava tão ligada ao aristotelismo que Giordano Bruno perdeu a vida e Galileu incorreu em   censura eclesiástica por verdades científicas sem qualquer relação com a religião do Novo Testamento. A Justiça era, sob Clemente VIII (1536/1605), emanação directa do Estado. Ficou célebre o processo de Beatriz Cenci, a bela parricida que, sem nunca ter revelado a causa do seu crime, nem mesmo sob tortura, foi enforcada. Sob o pontificado de Clemente VIII a ordem civil e política actuava por uma distribuição precisa dos poderes,  dos cargos e  das competências. Amante da liberdade mas sem protecção alguma constitucional, o povo revoltava-se amiúde pegando em armas contra os nobres. A opinião pública não existia e só havia o freio da religião que, como vimos,  se desvanecia. Clemente VIII, que  foi Papa de 1529 a 1605, perante o enfraquecimento da Igreja, voltou-se para a expansão da Fé  nomeadamente em Angola, tendo também enviado  à Pérsia dois carmelitas descalços portuguesas e, atendendo à falta de padres na Companhia de Jesus, revogou o privilégio de exclusividade de que gozavam os Jesuítas, podendo quaisquer religiosos missionar onde houvesse necessidade de padres. Amadeu Baptista, num dos poemas do conjunto Poemas Sobre Tela, dá-nos, no auto-retrato do pintor,  as inúmeras vicissitudes que o afligiram:

«Ando fugido há muito. Quer a justiça

que dê contas de um homem que matei,

mas um artista é sempre um perseguido,

senão pelos outros, pelo braço secular

que em si habita.» «É a minha cabeça que David

segura, pelos cabelos — no meu rosto,

o rosto de Michelangelo Merisi Caravaggio,

estão as marcas  da luta

e os efeitos do combate desigual

que travo com a intransigência,

a castração e o medo,

em busca de um abrigo ou de um amigo

que soubesse o que a luz faz quando nos entra

no peito e toma o coração

para  que outra grandeza se estabeleça

na nossa condição

e a beleza estoure, à nossa volta,

e seja um festim a vida,

e, por uma vez, levemos de vencida

a morte que não morre.»

Numa época de lutas religiosas e políticas, a orientação da luz nas telas surge como metáfora das aspirações de racionalidade religiosa e de liberalismo político presentes na sociedade, ousando o pintor , para que o entendimento desmorone a falsidade , lançar um repto ao espectador pela manipulação das tensões, pelo fascínio da cor e pelos sortilégios do olhar:

A minha vida é a cor

– e o recorte que o relevo da luz

lhe introduz

serve para que o universo vibre

e uma tensão grandíloqua se estabeleça,

entre a detonação da tela

e o espectador,

num repto total,

esmagador.

Ouso o fascínio,

mas, mais do que o fascínio,

aspiro ao coração

dos que vêem a tela interiormente,

sendo que os olhos

acumulam sortilégio

para que o entendimento desmorone

a falsidade que nos cerca e mata.

Amadeu Baptista renova, em  Poemas de Caravaggio, a íntima relação entre poesia e pintura existente no período barroco e que se pode resumir no pensamento: a pintura é poesia muda e a poesia é imagem que fala. A obra de Caravaggio caracteriza-se pela acentuação   da força das sombras  como  o afirma  o seu poeta no  soneto Não sei, meu Deus, de outro enigma :

Bem sei que a criação tudo Te deve,

as coisas que há no mundo, visíveis

e invisíveis, os mistérios, as fossas abissais

e as estrelas e, entre todos, o maior enigma

que cada mulher é, vibrante em seus requebros

e volúpias, vindo e partindo quando a noite

se adensa sobre sombras duras

para que a treva seja, tão-só, um brilho escuro.

Miguel Ângelo Buonarrotti, além de escultor e pintor foi   autor de excelentes sonetos. Amadeu Baptista, sensível ao véu de injustiças e difamações que perturbaram o puro movimento de Caravaggio na sua relação conflictual com o mundo e com as tendências artísticas que marcavam o gosto da sua época, ouviu, com o coração, a voz desse destino interpelando-o a uma distância de três séculos. A memória, como dinâmica do tempo é mais vasta que o passado pois integra-o e, apoiando-se nele, abre uma passagem ao tempo que flui. Nesse espírito, o poeta, recriando o que no passado do pintor  se não pode cumprir, acrescentou  ao seu legado os sonetos que  ele   poderia ter escrito. Em  Sonetos de Caravaggio com que introduz a obra, Amadeu Baptista, tal como O percebeu Voltaire no século XVIII e entre nós Guerra Junqueiro (1850-1923) no seu poema  A  Velhice do Padre Eterno, dá-nos uma exegese pessoal do  Deus da Bíblia, um Deus  que de forma constante afirma o seu poder sobre a vida. Esta exegese  sobre o terrível Deus da Bíblia  tem uma história. A Bíblia Hebraica que a cristandade inclui nas suas escritas sagradas como Antigo Testamento, foi em finais do século XII considerada património exclusivamente cristão e, numa recusa da partilha de uma origem identitária comum, foi proibida  a discussão  de assuntos religiosos com os Judeus. A literatura cristã medieval  alimentou o antijudaísmo tendo sido no século XIII que se iniciou um período de rejeição das comunidades judaicas por parte da cristandade, tendo sido instaurado o uso  da estrela amarela e a ordem de encerramento dos Judeus nos guetos. No campo judaico também não foi sem risco de ostracismo  que Espinoza instaura a leitura crítica das Escrituras Sagradas no século XVII e no seu Tratado Teológico-Político. Em Of Liberty and Necessity, Hobbes (1588-1679), apresenta o próprio Deus  como o principal autor da perseguição das vítimas. As teses de Hobbes foram refutadas por Leibniz (1646-1716), em 1710,  no texto  Reflexões em torno da Liberdade, da Necessidade e do Acaso, a propósito da obra que Hobbes publicou em Inglês (3), dando  entre outros exemplos  o da exigência, por parte de Deus, do  sacrifício de Isaac. Segundo a sua interpretação, quando Deus ordena a Abraão o sacrifício de Isaac, não persegue a execução de tal mandato, pretendendo apenas  obter com ela a obediência de Abraão. No século XX, Simone Weil encarava  o Antigo Testamento como um livro de acusação e de cólera pois que  o Deus do Antigo Testamento  pugna pela salvação do homem pela tortura e desventura. Emmanuel Lévinas, em Difficile Liberté (4) afirma que, apesar disso, o Antigo Testamento é um livro histórico de denúncia da cobiça e onde, pela primeira vez na história da Humanidade, a Lei é única para todos. O Judaísmo guarda uma consciência aguda da justiça e Emmanuel Lévinas afirma nesta sua obra que só a justiça económica  torna  visível o rosto humano e  que no mandamento «Não Matarás» está implícito o conceito de justiça social. O Antigo Testamento, diz ainda Lévinas,  exprime um pensamento de uma época de tribos e clãs e a sua mensagem universal anuncia a unidade do género humano na sua difícil marcha para a liberdade, tal como foi entendida  pelos  Negros da América do Norte, vítimas, primeiro da escravidão e depois, já nos nossos dias, de racismo. Retomando temas do Êxodo, os Negros da América do Norte exprimiram a sua revolta colectiva através  dos espirituais negros, cânticos  que se elevavam dos campos de algodão onde  trabalhavam como escravos doze a quinze horas por dia e, em pleno século XX, os mesmos temas afloravam nas canções entoadas nas grandes marchas contra a segregação racial lideradas por Martin Luther King. A humanidade nasce no homem à medida que ele sabe reduzir as ofensas mortais a litígios de ordem civil, conclui Lévinas.

Caravaggio , tendo recusado o maneirismo da época,  inaugurou com as suas inovações e experiências  a pintura moderna. Numa relação mais espontânea e concreta com a realidade, Caravaggio  serve-se de modelos do povo mais humilde para os seus quadros, imprimindo ao sentimento religioso patente nas telas uma interiorização que o torna  mais autêntico. Em A Morte da Virgem, o poeta transmite-nos o que seria a pesquisa metódica do pintor em busca de um modelo para as suas telas. Neste poema , o pintor transporta para o seu atelier um cadáver que encontrou no Tibre  a quem deu, porque todas as mulheres são sem pecado, o  rosto da Virgem:

E eu sou Caravaggio,

que luto, denodadamente, com a arte

para que a tragédia,

sagrada ou profana,

se represente igual à sua gravidade,

cantem, ou não, os anjos as hossanas,

goste-se, ou não se goste, do que faço.

Proporcionada pela leitura ao mesmo tempo sagrada e profana do tema religioso exposto na obra A Morte da Virgem e induzida pela emoção estética motivada pela contemplação do cadáver de uma mulher, inchado,maculado,desfigurado, a expressão poética, transporta, na sua dinamogenia essencial, duas concepções do mundo e da História através de dois grupos distintos: um dos grupos representado é religioso e dele fazem parte  Maria Madalena e os apóstolos Mateus,Tiago e Lucas  enquanto o outro é  constituído por gente do povo no seu labor quotidiano. Os dois grupos estão separados pela ideologia então dominante, a da Igreja, que herdou o preconceito dos historiadores romanos que deram uma atenção privilegiada à história de Roma, excluindo não só os outros povos da literatura histórica mas   também os infiéis e a plebe (5).Detentora da totalidade da identidade feminina, assinalamos na imagem da mulher morta a acção dos valores sensuais da pintura que,  achando a sua correspondência na emoção poética de Amadeu Baptista, nos  desvendam uma dualidade: a da sua realidade propriamente visível e a da sua idealidade. A realidade imediatamente visível é de uma mulher do povo, sem outra identidade que a dos passos e episódios de uma vida igual a tantas patente nos sinais de decrepitude do seu corpo  enquanto  a  idealidade invisível é a de uma concepção edificante e diferenciadora de uma  mulher simultaneamente mãe  e virgem, tal como foi concebida pela Igreja. Esta reversibilidade em que  as duas mulheres podem ser tomadas uma pela outra , permitindo nas suas sucessivas transfigurações várias leituras aos espectadores , levava-os  a intuir as realidades que se esbatiam por detrás das aparências, dando-lhes ao mesmo tempo a noção de que  o indivíduo e, com mais imperiosa razão o artista, podem impor a sua perspectiva perante o despotismo e a tirania. Caravaggio  exprime igualmente  nesta tela a sua oposição à concepção  de  uma história «oficial» ligada aos progressos políticos, aos progressos dos príncipes e das cidades pois a Idade Clássica reservou a História para os povos eleitos pelo progresso. A simpatia do pintor vai a par  da  curiosidade dos que na época se  dedicavam à exploração do campo etnográfico: atrás dos três apóstolos, está disposto o mundo dos que vivem do trabalho. Posto que certa há-de estar sempre a morte, mas, também, o trabalho que aguarda pelas nossas mãos, na oficina, nos campos ou em casa, a mulher morta prefigura  a noção de que sendo o   futuro   tão inamovível como o passado, através do trabalho, o homem, vendo o futuro no espelho do presente, pode  actuar sobre ele. A temporalidade não lhes sugeria apenas a natureza perecível inerente à condição humana; a temporalidade era um campo de acção onde o homem, apesar de mortal, pode revelar a sua autêntica divindade pois pode criar-se a si mesmo, pode tornar-se  senhor do seu destino. Compreendendo a visão profética do pintor, o poeta empresta-lhe a voz da  verdade poética, essa verdade que é  absoluta porque é estática na dimensão do tempo enquanto a outra verdade, a do conhecimento, é relativa porque é cumulativa na dimensão do tempo. Na visão profética as duas modalidades de apreensão acham-se nela reunidas.    O poema  sugere a calma sonolência do quotidiano, a luz discreta que dimana dessa Via justa que é a vida quotidiana. A santidade não está, afinal,  na singeleza com que qualquer Mãe e a Virgem Mãe de Cristo se cumpriram  no mundo? No poema de Amadeu Baptista, na identificação  da mulher morta, há  a passagem de uma  poesia das mulheres  para uma metapoética da mulher  enquanto essência feminina.

Poemas de Caravaggio é uma obra de grande maturidade plástica e rigor temático . Em Poemas sobre Tela, o poeta aborda algumas das obras mais significativas de Caravaggio: Sete Obras de Misericórdia, O Martírio de São Mateus, A Incredulidade de S. Tomé, A Degolação de S. João Baptista, David com a Cabeça de Golias e o poema acima   estudado, A Morte da Virgem. Em Sete Obras de Misericórdia, não encontrando a caridade em parte alguma onde está institucionalizada, o pintor foi observar na rua se a havia entre o povo anónimo. Na rua viviam  os que por imprudência ou infortúnio tinham resvalado para  a mendicidade, a vagabundagem e o crime. Na Idade Média, o louco e o pobre eram considerados peregrinos de Deus. A explosão demográfica, a alta dos preços, a pauperização salarial, o desemprego crescente e   as devastações provocadas pela guerra lançaram  muita gente  na  vagabundagem  e na errância . Michel Foucault em Histoire de La Folie  à  l’Âge Classique (6) escreve :«afirmando-se como uma necessidade da Ordem, a modernidade europeia dessacralizou a loucura e os pobres, a pobreza passou a ser considerada uma falta contra a boa marcha do Estado». Pleno da vibração da cor e da pulsação da vida e do labor que na rua tumultuam,  Caravaggio  pinta  a cristandade fechada  no grande internamento da miséria, do desemprego e da loucura :

        •    de modo que o que faço

é da rua que vem,

para que se transfigure em dom de imanência

e a alma e o espírito se cumpram nos pigmentos

para que tudo seja obra compassiva,

como um enigma de arrebatamento.

Só posso pelo sonho exorcizar-me;

mas o facto é que na rua é que anda tudo

– abrindo bem os olhos, em lida

extenuante, mas de grande prazer,

basta só olhar em volta e ver:

e ver é uma arte que faz toda a diferença.

E assim foi que vi os anjos nesta esquina,

e uma profusão de personagens

a perfazer o périplo das obras

misericordiosas:

Eis o meu quadro, a que juntei,

sobre a multidão,

uns anjos

para que se saiba

que não são dos anjos as tarefas dos homens,

e que o que é possível pode até tocar-se

se estendermos a mão ao nosso semelhante

– mesmo que ninguém veja,

mesmo que fique no segredo dos anjos a nossa acção,

mesmo que a partilha seja, apenas, nossa

e que nada, nem ninguém, nos agradeça

o gesto,

o acto.

Chamo-me Michelangelo Merisi Caravaggio

e ignoro

se sou cristão, ou não.

Juntou sobre a multidão uns anjos para que se saiba que não são dos anjos as tarefas dos homens. Como herança das controvérsias teológicas anteriores acumuladas durante séculos e de que é testemunho o tema desta tela, sucederam-se, no século das Luzes,  as polémicas em torno do tema da Religião Civil proposto por Rousseau e o da Religião do Homem sustentado por Diderot. Em Du Contrat Social (7), publicado em 1762 — obra que sofreu tais condenações que o seu autor  se viu obrigado a fugir de França, Jean-Jacques Rousseau escreve que o objectivo da Religião Civil seria o de estabelecer os sentimentos de sociabilidade e igualmente o de garantir o respeito da obrigação  na medida em que  A Religião Civil é a que leva a banir tudo o que tenda a prejudicar o laço social que une os homens. A Religião do Homem, segundo Diderot,   corresponderia à  sociedade geral do género humano em que o laço da sociabilidade se estenderia a todos os homens. No artigo Direito Natural que Diderot publicou na Enciclopédia, punha no mesmo plano «os princípios do direito escrito» entre as nações policiadas e as «acções sociais dos povos selvagens e bárbaros», ao mesmo tempo que  pensava que se podia fundar a obrigação na vontade geral que, na sua opinião, é, em cada um de nós, a voz da Humanidade. Diderot sustentava que   a sociedade em questão não seria a sociedade civil mas a sociedade geral do género humano na qual o interesse do indivíduo e o bem da espécie se confundem. A actualidade do pensamento de  Diderot  deveu-se ao facto de estar   profundamente ligado à  redacção da obra de Raynal, Histoire des Deux Indes,  obra considerada uma máquina de guerra  pois  levava a que no século das Luzes muitos filósofos  começassem a descobrir os vícios da moral e da legislação na construção das sociedades europeias no confronto com os povos recentemente descobertos. O poeta colheu com enorme felicidade a convicção firme que a tela exprime: a convicção de que o Bem ou a Virtude só podem ser exercidos através da mediação do corpo, o que se traduz numa linguagem pictórica que  recusa o controlo das instâncias políticas e religiosas vigentes na  sociedade do seu tempo. A caridade não está no gesto que automático cumpre um preceito, mas na dádiva de si perante uma necessidade  específica que a razão e o coração são  capazes de discernir nos outros. E pinta vários exemplos , sendo um deles o da   mulher que cumpre  não apenas uma função social como se torna no anjo bom do homem, permeável à piedade : essa representação  é-nos dada por uma jovem mulher oferecendo o seio a  um velho preso da sua miserável condição, matando-lhe a fome  e aliviando-o do desgaste do castigo. Gente  comum e santos acodem nesta tela  às necessidades humanas mais prementes como a fome, a nudez, a doença, em suma, a todos os insultos da miséria.

Não se sabendo  que género de morte sofreu o evangelista,  em O Martírio de S. Mateus, o poeta  envolve o santo num manto  de treva dando-nos  um retrato físico do Mal: o carrasco, sombra torcionária,  torna-se-nos  visível pelas marcas que a dor infligida  provoca  na vítima. A vítima, no sistema vitimário ali vigente,  polariza  os germes da discórdia  espalhados na comunidade, daí o  exigente sacrifício da sua vida. Nesta  obra, a interpretação do poeta  dá voz ao lúcido pensamento do pintor no seu retrato da política do príncipe:  o triunfo da política afirmou-se rapidamente  na Itália graças ao nascimento das senhorias que instalaram um  autoritarismo que sacralizava as autoridades e a um sentido hierárquico que privava os homens da capacidade de escolha e de decisão. A sombra torcionária não é a de um único homem mas a de uma legião. A vítima restaura a harmonia e a prosperidade numa comunidade, o sacrifício de uma vítima reforça a unidade familia e  social ou, dentro das estruturas de um  poder  arbitrário como o que  vigora  na corte de Herodes  patente em A Degolação de S. João Baptista,  com um objectivo mais : para que a cegueira dos homens nunca se interrompa. A Degolação é o retrato da paixão cortante do corpo e, na  alma humana, a paixão cortante, o que corta é pelo sofrimento e pelo isolamento que a perseguição e a difamação provocam. O Mal não é nomeado e  só se torna visível pelos  vestígios que imprime na paisagem humana de ontem e de hoje.

O paralelo entre a literatura e as artes visuais nasceu no período barroco em que a poesia e a pintura convergiram num ponto essencial que não era  o da imitação ligada aos conceitos de verdadeiro e verosímil mas o da simbolização destinada a transmitir valores morais ocultos nas aparências do real. O real é aparência de uma verdade oculta que urge decifrar para que seja possível descrever  a relação do visível com o invisível transcendente.  Assim, sob a claridade matinal de Nápoles, o pintor, através da voz do poeta, ergue à vastidão do espaço e do tempo, do céu e do mar, os poemas de amor que são, simultaneamente, poemas de despedida —  as Elegias. Celebração do amor e  lamento pela morte da amada, o poeta   não desce  como Orfeu aos Infernos  para de lá trazer de volta a sua Eurídice. O poeta,   seguindo os passos do pintor, como nos é dito  em  A Morte da Virgem, vai ao mundo para, caminhando pela exigente mão do seu ofício,  a encontrar:

«O mundo, pois.

Onde esteja a morte

É bom que um pintor figure o mundo,

Para que no jogo de sombras fique incluso

Esse jogo mais duro do confronto

Com a realidade

Onde o próprio veludo tem cores cruas.»

Na 1ª Elegia, É em manhãs assim que não sei escrever, o poeta, perante a mudez da tela,  nada nos diz dos mortos que poderiam ser da peste, das guerras ou de um auto-da fé e que descreve amontoados nas praças onde além do artista só deambulam cães. Nesta paisagem cruel, como um anjo que  regressa da morte, aflora à  sua memória dorida a visão da rapariga camponesa e com ela a evocação do amor, substância sempre em flor, pois  é como «se o amor fosse não só uma essência mas todos os jardins do mundo.» É com a memória dela  sempre presente que a evoca quando a encontra, «um pouco acima do céu, um pouco abaixo da terra, onde Nápoles se olha no escuro e onde tenho a boca em fogo para pronunciar o teu nome». Recolhida pela mão do artista no mármore tumular, perene está a amada,  oferecendo à sua memória tudo o que viveu de forma inteira e simples no seu quotidiano .

O primeiro de  Últimos Poemas intitulado   Não é ainda verdade, a mão está sobre o seio,  é um poema de amor carnal  : «um surto de luxúria nos atinge / Para que resista o amor ao extermínio / E sejamos terríveis e divinos», canta o poeta.

A liberdade de espírito implica um laço interior com a verdade própria. O criador apaga-se perante o verdadeiro mas nesse apagamento sente-se , como o matemático, um mestre que, consciente da sua liberdade, se inclina perante a evidência . Assim, nos derradeiros poemas deste conjunto,  como a preocupação do pintor não foi a glória ou a fama —  pois que o pintor já havia deixado escrito que «No caso, interessa pouco quem eu sou. Sei é que deixo nesta terra uma pequena herança de luz , movimento e cor» — ,  Amadeu Baptista, inseparável de Caravaggio,  em poemas como Em Busca da Escura Retribuição dos Brilhos e Hás-de Chegar ao Destino de um Lugar, parando para reconhecer quem é e procurando uma integração num mundo que se lhe afigura estranho pela morte dos que amava e conhecia, debruça-se   sobre a solidão vastíssima e a crua desolação de que o pintor sempre fugira,  perscrutando  no obscuro horizonte dos dias, aquele homem desconhecido que tanto o pintor como o seu poeta lhes resta descobrir em si mesmos,  porque algo deles se havia perdido na turbulência da vida: «A vida é turbulência — e é assim que chega às minhas telas, e é assim que o que pinto, entre claros e escuros, me proclama ». Poemas de angústia do criador no fim de um caminho intensamente percorrido para que uma nova forma surja da escuridão e do informe , vertigem do nada e esperança  de uma nova plenitude,  surgem na pergunta final que nos é posta e que nos revela o quanto os homens daquele  e do nosso tempo temem o futuro porque só o passado se nos torna  visível:

«alguma coisa está para acontecer?»


1 Amadeu Baptista, O Bosque Cintilante
Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama-2007

2  Stendhal, Histoire de la Peinture en Italie ,Autour de Michel- Ange

3. Gottfried Wilhelm Leibniz, Escritos en torno a la libertad, el azar y el   destino

4 . Emmanuel Lévinas, Difficile Liberté, 1963

5. Cf. Jacques Le Goff, Il Meraviglioso e il Quotidiano nell Occidente Medievale,19

6.  Michel Foucault, Histoire de la Folie à L’Âge Classique

7. Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social

JOANA RUAS

 


Revista Triplov . Dezembro de 2024

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