O bosque do amor

 

MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO


Por HENRIQUE DÓRIA

Henrique Dória/Henrique Prior. Poeta, novelista, dirige a revista Incomunidade, a Rádio Transforma e associado canal no YouTube onde faz o programa «Política impura».


Apresentação da obra «De Amor Ardem os Bosques», de Maria Azenha, na IV Bienal de Poesia de Silves, 22-26 de Abril de 2010.


Somos um bosque. E um bosque dentro dos bosques. Bosque de folhas caducas e perenes, do castanho da terra ou do alto verde, das árvores erguidas mas também das árvores queimadas ou cortadas, derrubadas. Árvores que fazem a união entre a terra e o céu. Árvores debaixo das quais nos abrigamos ou recebemos a iluminação, ou árvores através das quais recebemos o relâmpago da morte. Árvores da crucificação.

Escreveu Bernardo de Claraval, o grande impulsionador da Ordem dos Templários:

“Acredita em mim, aprenderás mais lições nos bosques do que em livros. As árvores e as pedras ensinar-te-ão aquilo que não poderás aprender dos mestres.”

E revelava Lamartine, em “Imortalidade”: “Deus escondido… a natureza é o teu templo.”

Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro, é o destino a que cada homem, cada mulher aspira. E aqui estamos perante um livro, um filho, uma árvore do bosque de Maria Azenha.

Neste bosque tudo é simbólico, porque simultaneamente imaginário e real. O símbolo é um esforço do homem para conhecer, fixar e, em última análise, determinar o mundo.

Não são símbolos os instrumentos e as palavras que os magos usam para contactarem com os espíritos?

E a verdadeira poesia, como a que escreve Maria Azenha, não é mais do que uma aspiração à magia.

Por outro lado, conhecimento, fixação e domínio são os fins das ordens iniciáticas e, por isso, e porque aspiram ao conhecimento de que só os iluminados e os magos são portadores, as ordens iniciáticas são também ordens simbólicas e filosóficas. Através dos símbolos, os obreiros das ordens

iniciáticas evocam e invocam o mundo. E Maria Azenha é uma obreira que evoca e invoca o mundo através do simbolismo do bosque das palavras, através do poema.

“de amor ardem os bosques” é o título desta obra poética de Maria Azenha. Com letras todas minúsculas, em sinal de humildade da obreira.

A palavra amor é a chave da obra. Porque o amor é a chave que nos abre o mundo, a palavra secreta que nos permite penetrar no bosque que se encontra dentro de nós mesmos e no bosque do mundo.

Como escreveu Dante na sua COMÉDIA, e já tinha escrito Boécio em A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA, só o amor une o universo.

O amor está intensamente ligado ao fogo, símbolo da destruição e também da criação. O fogo é o símbolo da presença de Deus junto do homem. Foi através da sarça ardente que o Deus dos judeus se manifestou a Moisés. E Deus é o Amor, que como diziam Boécio e Dante, une o sol e as estrelas.

O fogo é ainda o símbolo da sabedoria, da iluminação. Foi através de línguas de fogo que a luz de Deus entrou nos doze apóstolos. O alquimista cria a imortalidade no fogo do seu fornilho.

O fogo que ilumina “de amor ardem os bosques” é o fogo alquímico do amor que transforma o interior do homem, o seu bosque.

Esta obra de Maria Azenha inicia-se com uma citação do nominalista Guilherme de Occam: “ O homem só muito lentamente aprende o seu nome.”

A citação é também simbólica. Guilherme de Occam, o grande, talvez o maior nominalista, foi o filósofo que libertou as palavras das coisas a que Platão e o cristianismo platónico as tinham aprisionado. O monge franciscano de Occam teve a humildade e a pobreza como princípios de vida e a liberdade como ideal sagrado e único caminho que leva o homem a conhecer-se a si mesmo como estava escrito no frontão de Delfos, a conhecer o seu próprio nome. A viagem através dos bosques é penosa, assustadora.

Mas só através dela poderemos conhecer o nosso próprio nome.

Maria Azenha divide a sua obra em cinco partes, que denomina folhas, porque as folhas são as partes do bosque que simultaneamente são um ente em si, símbolo do reino vegetal, mas também a parte de onde o ramo, a árvore e o bosque retiram o seu sentido e prosperidade, pois que é das folhas que à árvore vem a vida, através do ar, esse elemento essencial ao fogo.

São cinco essas folhas, porque cinco é o número daqueles que iluminam o templo.

Cinco é também o número do amor, o número nupcial, como ensinava Pitágoras, o número da união do princípio masculino, celeste, o três, com o princípio feminino, terrestre, o dois. O símbolo do homem, como o conhecemos do desenho de Mestre Leonardo e do ensinamento de Hildegarda de Bingen. Cinco é também o conjunto dos sentidos que nos ligam ao mundo e através dos quais o mundo se nos revela.

A primeira folha, intitula-a Maria Azenha “da inteligência dos bosques”

E, no primeiro poema, diz-nos que estamos aqui como num templo iniciático, onde o que se passa “À luz da lâmpada do anfitrião da casa” não pode ser revelado, e é objecto de um voto de silêncio. É também em silêncio, como em todos os templos, que devemos entrar com o coração cheio do vinho do amor. Em silêncio se contacta com a inteligência dos bosques, com tudo o que nos bosques há que, como dizia Bernardo de Claraval, nos pode ensinar muito: as aves, o vento, a água que nos hão-de ensinar a “ciência da respiração”.

Maria Azenha trabalha “na lavoura do alfabeto”. A “centenária árvore” ensina-lhe a subtil “fonética dos insectos.”

A acácia é a árvore que está no coração deste bosque, a acácia, árvore de folha perene de que era feita a arca da aliança que se encontrava no Santo dos Santos, do Templo. A acácia árvore que no dealbar do solstício de Inverno nos anuncia a luz de inúmeros sóis, a acácia com que se cobriu o corpo morto de Mestre Hiram que a ciência dos bosques fará renascer nos nove mestres seus sucessores.

Por isso a segunda folha se intitula “da ciência dos bosques”, porque bosque e amor são inteligência e ciência, lugar onde aprendemos, o que aprendemos, e como aprendemos no ritual sagrado. Mas o bosque é também o lugar de sombras, porque tudo no homem é simultaneamente luz e sombra, branco e negro, e a variedade infinita de cores entre o branco e o negro. Por isso a terceira folha se haveria de intitular “das sombras dos bosques”.

Esse é o espaço da solidão, da tristeza, da noite.

“Vem pela noite um bandido

com uma mão cheia de cinzas

para nos cegar”

Escreve Maria Azenha no terceiro poema dessa folha. E interroga-se Maria pensando nesses mendigos que aguardam apenas “a tigela de sopa” esmagados pelo cinismo:

“«quem é que reponde por isto?»”

Ao lado do negro está o branco, ao lado das trevas está a luz, ao lado das sombras estão as clareiras, lá onde o céu se abre límpido para homem, lá onde o homem pode receber a luz em contacto com o céu. Lá se encontram “os roseirais do tempo”. Lá se poderá dialogar simultaneamente com o azul do céu e o verde das árvores.

“E a árvore disse: «criei em ti o verde.

Porque me amaste

teci em ti a ilusão da sede.

Depois,

 

para que me conhecesses

entreguei-te

às luminárias do solo.»”

É o diálogo com a divindade, como o praticou Alain Bosquet, simultaneamente tormentoso e sereno, porque, como bem sabemos, o próprio Deus deseja a sua finitude e intimidade, Ele próprio deseja as coisas simples do homem: o calor do sol, a chávena de chá, o caderno, os lírios. E assim termina essa quarta folha, “das clareiras dos bosques”:

“Escreve:

No alto da manhã

prepara-se o sol

para uma chávena de chá quente. 

caderno e lírios surgem mais tarde 

entra,

fecha a porta. 

agora precisamos de paz.”

Finalmente, “do coração dos bosques” é a última folha.

Na sua viagem através dos bosques, Maria perdeu o medo, porque toda a viagem é uma luta contra o medo, um modo de ir ao encontro da sabedoria, da força e da beleza.

Os bosques existem porque no seu centro está o coração. Chegados a Dezembro, ao frio, o que dos bosques resta é o coração.

“Meu coração fugiu das coisas vãs

venceu as pedras o ar o espaço

para cantar disse manhã 

criança

de

água 

ave branca”

Maria Azenha chegou à essência das coisas, à irmã criança, à irmã ave, os seres que dão sentido ao mundo. Dá-se nela o renascer das coisas. Depois de Dezembro surge a Primavera, o “ sopro livre”, “o domínio das cores.”

Perto do fim, ela, a criança, olha para trás, para o Outono, para a ceia de Natal, e descobre:

“O amor é o que nos resta de mais sagrado”

Da memória da viagem, o amor é, sim, Maria Azenha, o que nos resta

de mais sagrado no coração dos bosques.


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