AMADEU BAPTISTA
Por Rosa Alice Branco
É sempre bom começar pelo óbvio para não nos esquecermos dele e podermos passar adiante.
Deste modo, cabe dizer que Amadeu Baptista parafraseia Saramago quanto ao título, O ano da morte de Ricardo Reis. Neste novo livro, intitulado O ano da morte de José Saramago, o autor evoca sumariamente alguns outros títulos e temas do escritor, como o tema da cegueira e o da jangada. Embora nos dois livros, o de Fernando Pessoa e o de Amadeu Baptista, a Pátria seja assolada pelo mesmo mal, no primeiro assiste-se ao crescimento do fascismo e no segundo à aceleração descarada da mudança de perfil da Pátria, seja ela o Porto, ou outro lugar no universo. E estas evocações constituem-se como variáveis que servem de referência, à maneira de um refrão que obriga a voltar ao tema.
E o tema, ah, o tema: neste ano e porque foi aqui (neste ano) que Saramago morreu, este ano emerge do anonimato da sequência dos anteriores, como o ano de todas as mortes.
Porquê o ano de todas as mortes? Na verdade, as mortes foram-se sucedendo, mas estavam cobertas pela tinta invisível da comodidade e inércia, temperadas com o molho da comunicação social. Eram fáceis de esconder, porque podiam tomar o aspecto de mortes avulsas e ocasionais escondidas pela nossa cegueira colectiva instaurada como um reinado de sombras.
Mas a morte de José Saramago condensa em si todas as mortes, vai torná-las visíveis e, portanto, contemporâneas. Para Amadeu Baptista a morte de Saramago vem dizer “chega de cegueira”. O poema é a escrita do olhar lúcido que dá a ver, põe a nu o que, até então, recusávamos enfrentar, embora não fosse a esperança que nos mantivesse cegos.
Porque acerca da esperança, diz uma das máximas deste livro, em que existem máximas tecidas no corpo do poema:
A desgraça de um país mede-se na distância que vai das instâncias do poder/à esperança dos seus habitantes (p.12)
Como sendo uma, de entre as muitas mortes, este poema fala do exílio. O exílio não é tanto estar longe da pátria – a 125 quilómetros desta, para sermos mais exactos – mas a pátria se ter esfumado até à última esperança.
E não se pode simplesmente ficar a cuidar do que ela era e já não é, porque a pátria não deixou de ser. Justamente, a pátria agora é: outra coisa. As memórias mais inocentes estão contaminadas. O ano das mortes é o exílio como exílio perene do sentido da pátria.
– governa-nos uma desolação de alta finança,
rouba-nos à falsa fé a parte íntegra de nós,
fomos só trabalho
e cegamos, de repente
e estávamos perpetuamente cegos (p.38)
Este livro funciona por metonímia do exílio e das mortes, porque tanto o centro do Porto, como o centro do mundo, são uma loja chinesa
o centro da cidade é uma loja chinesa na ordem geral do mundo
(p.13)
ou
mas decididamente fomos crismados,
e vieram os chineses ocupar os nossos tesouros mirabolantes,
as nossas chagas (p.8)
As lojas chinesas ocuparam a nossa identidade e mesmo as nossas feridas, mudaram-nos o nome. Então é importante que a introdução à infância no poema seja através de uma palavra que nos é doadora de identidade. Escreve o poeta:
E é então que a saudade se expande como palavra portuguesa
e eu volto à infância (p.12)
É por isso que a loja chinesa, o exílio e a morte, se multiplicam até ao infinito. É como o contrário de um Aleph, porque o Aleph permite o acesso a todos os acontecimentos- espaços-tempos, e o centro do mundo-loja chinesa condensa todos os mundos diversos num só bazar de quinquilharia que é a caricatura das nossas cidades e dos seus habitantes: iguais a si próprios e a todos os outros.
Este ano é o ano da morte de todas as coisas que se confunde com o ultraje chinês à nossa infância, às lembranças sagradas de todos os lugares. A única jangada que permite sobreviver é a cumplicidade e a amizade, as únicas ainda não transformadas no imenso bazar que povoa a cidade e todas as terras e terrinhas. Agora, em vez de columbofilia, há quinquilharia com o inconfundível cheiro nauseabundo dos cadáveres.
O ano da morte de Saramago não é uma obra de Antropologia, mas de Antropopoesia, já que a única ciência é criada pela cadência dos pombos e é destruída pelo desaparecimento destes. Os pombos-poetas que sujam os beirais do sistema e corroem a tinta invisível da cegueira.
Este livro evoca e convoca os lugares antropológicos, que são os na Saramago é uma enumeração e um inquérito ao fracasso do futuro, como uma das mortes mais perversas, na morte de todas as coisas.
Este livro faz de Saramago o último resistente, aquele cujo olhar é insustentável no meio da cegueira. Há uma evocação da condição humana nos livros de Saramago, como A Jangada de pedra e o Ensaio sobre a Cegueira.
Neste tempo em que Saramago morreu, as pessoas, os poetas ficam cegos porque não têm objecto de olhar. Ficam cabisbaixos porque não têm objecto pelo qual sonhar. E o poeta descreve este estado:
Vejo-me como um homem calado, vejo assim os poetas,
vemo-nos como homens calados que não podem estar calados,
ou que estão cegos e não podem estar cegos,
ou que não podem deixar de deambular pela cidade,
porque há uma pedra a levantar do chão,
um povo a levantar,
uma infância a levantar (p.13).
Assim, é dito que estes homens vivem a tortura do paradoxo entre o que são e, simultaneamente não podem ser, porque apesar de tudo ainda há o que cuidar: um povo a levantar, uma infância a levantar.
A infância do poeta é cumplicidade e partilhada como quem o autor partilha também o exílio: o Nuno do K3, o Dempster das Irlandas.
O exílio literal é, evidentemente, estarem os dois longe do Porto. Não do Porto chinês, mas do Porto de que diz o poeta:
Onde tu e eu fomos descalços à loja do homem careca para cortar o cabelo (p.5)
Neste livro enlutado, existem lugares intocados e, por iss, portos de ancoragem, como o Nuno e, com este, a barbearia do homem careca, a procura dos moluscos, o olhar cheio de búzios miúdos, e o facto de terem pertencido ao mesmo Porto columbófilo. O Nuno que se cruza algures entre os 125 quilómetros que separam o exílio do lugar abastardado onde outrora foi a infância dos dois.
É interessante que tendo os mitos fundadores um lugar maior na poética de Amadeu Baptista, e sendo o cruzamento o lugar arquetípico do acontecer, esta ligação indissolúvel entre o autor e o Nuno se dê no livro através do cruzamento entre os dois:
faço eu o trajecto para lá, vem o Nuno ao meu encontro (p.42)
Neste país em que as passadeiras vão de uma loja chinesa a uma outra, em que o poeta se sente como se fosse outro, em que os poetas são pombos, como também Saramago é um pombo, os três partilham a câmara ardente, o sofrimento do povo, este país de luto. em que todos já estavam mortos. E depois virão as cinzas de Saramago e as cinzas de todos os pombos poetas.
Mas no fundo do bolso de uns calções de infância, o poeta possui um outro lugar intocado, de que diz ser a única metafísica em que acredita – os anjos:
e em todas as vielas há um anjo que espera (p.41)
é de uma beleza terrível estes versos que começam numa das muitas enumerações de Amadeu Baptista. Poeta de verso longo, quebra-os às vezes em pequenos fulgores de nomes, e alguns parecem escapar á lógica dos outros. Não porque estejamos num universo borgiano, porque o poeta voa pelos versos em associações livres.
Mas, peremptoriamente, os anjos continuam intactos e a viela deles:
Eu era menino
e do que melhor me lembro é da Viela do anjo,
onde o mundo é intacto,
se o mundo é o que por lá se vê
– os anjos são a única metafísica em que acredito,
comam ou não comam chocolates, (p.41)
Amadeu Baptista afirma a sua crença na existência de uma metafísica mais poderosa do que a da “Tabacaria” de Álvaro de campos.
E em alguns dos seus versos mais impressionantes deste livro, anuncia:
Os anjos somos nós no espavento de sermos
(…)
e se alguma transcendência há que seja essa,
a que dos anjos vem, (p.42)
No centro do luto da morte das cinzas, que perpassa a narrativa poética que nos coloca no centro do mundo, e coloca o centro do mundo numa loja chinesa, o poeta está partido num adulto que está morto e num menino que ficou ileso, porque se deixou ficar nas asas do anjos e uma infância assim não tem remédio.
O adulto está espalhado em cinzas pelo nome das pessoas que teceram esta narrativa e por nomes tão belos como a Fonte da Colher, A Viela do Anjo, Miragaia, O Palácio das Sereias. A verdadeira morte vem de que quando recordamos o passado, as coisas continuam a ser, e nós, é que já não somos. Porém, em O ano da morte de José Saramago, o poeta-pombo continua irremediavelmente o mesmo e são as coisas que já não são e mostram ao poeta um rosto diferente e irreconhecível.
Ontem vi essa cidade como se não fosse minha (p. 25)
Por essa razão, a cidade- pátria só existe perante o olhar intocado do menino. É que, como escreve Amadeu Baptista:
A infância é um comboio de janelas largas onde tudo se vê (p.39).
Rosa Alice Branco
Revista Triplov . Dezembro de 2024