Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal

 

Tributo a ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO


António Cândido Franco

NOTAS PARA A COMPREENSÃO DO SURREALISMO EM PORTUGAL

2012


Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós,
do que Fernando Pessoa.
MÁRIO CESARINY, 1973

A expressão poética deve ser considerada, não como outro modo de expressão do mundo não poeticamente expressável, mas como a de outro mundo que, precisamente por ser outro, do mesmo modo se não pode expressar. EUDORO DE SOUSA, 1973


SUMÁRIO

Nota de Abertura……………………………………………………………….

Notas sobre o Surrealismo em Portugal

1 Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes………………

2 Das Experiências de Além Mundo ao Supra-real…………………………….

3 Formas do Automatismo Psíquico no Livro Duplo Passeio………………….

4 Os Sonhos de Pascoaes e o Automatismo Psíquico……………………………

5 O Bailado de Pascoaes lido por Mário Cesariny.………………………………

6 Duplo Passeio e o Surrealismo Português…………………………………….

7 Alguns Sonhos de Mário Cesariny…………………………………………….

8 Formas do Regresso ao Paraíso……………………………………………….

9 Sobre uma Frase de Mário Cesariny……………………………………………

10 O Hiper-Édipo e o Anti-Édipo vistos por Cesariny………………………….

11 Sobre as Relações do Abjeccionismo e do Surrealismo………………………

12 Nota sobre o Abjeccionismo dum poema de Pascoaes……………………….

13 O Marão de Pascoaes e a Imagem da Pirâmide em Cesariny…………………

14 O Marão de Pascoaes e o Monte Análogo de Daumal……………………….

15 Um Passo Gnóstico de André Breton……………………………………….

16 Ossóptico de António Maria Lisboa………………………………………

17 O Dispositivo Imagético em António Maria Lisboa…………………………

18 O Homem Imagem ou o Morto Vivo de Cesariny……………………………

19 Outros Sinais do Osso e Operação do Sol……………………………………

20 António Maria Lisboa, Sarmento de Beires e o Jogo da Saudade……

21 As Posições Políticas do Surrealismo e o Testamento de Pascoaes……

22 Sobre um Poema de Fernando Alves dos Santos………………………

23 Uma Colagem de Cruzeiro Seixas com Pascoaes……………

24 Violette Nozières e o Rei Ghob……………………………………………

25 Para uma História do Surrealismo em Portugal………………

26 (Estudar) Hoje o Surrealismo………………………………………

27 A Experiência da Morte e o Automatismo Psíquico……………

Notícia bibliográfica……………………………………………………………..


NOTA DE ABERTURA


Editei em 2010 um livrinho chamado Teixeira de Pascoaes nas Palavras do Surrealismo em Português, seguido depois por um longo subtítulo de que aqui me abstenho, pois pouco ou nada acrescentaria ao que no osso interessa. O núcleo do trabalho, que não me parece que se possa chamar ensaio, e daí a tentativa de o definir ou indefinir naquele copioso subtítulo que aqui passo, era constituído por duas peças: uma entrevista que fiz em finais do ano de 1997 a Mário Cesariny, bisada depois em 2002 com o pernambucano Alípio Carvalho Neto, e uma carta de Cruzeiro Seixas, de 2009. As duas tomavam por sujeito de interesse ou de observação – e observação vai aqui de forma certeira, pois parti para as peças com o mesmo espírito com que o investigador parte para os casos – as relações de Teixeira de Pascoaes e da obra dele com cada um dos inquiridos, Cesariny e Seixas, e com o surrealismo a que eles aderiram e se entregavam.

Com as indagações pretendi tirar a limpo o papel do Zaratustra do Marão junto de dois protagonistas centrais da aventura surrealista portuguesa e que eram ao tempo os dois únicos sobreviventes, tirando Henrique Risques Pereira, que faleceu em 2003, da formação inicial. Como se pode ver o resultado é surpreendente, o que aliás não é bem assim, quero eu dizer tão inesperado quanto aqui digo, pois desde 1972, altura em que Cesariny antologiou por duas vezes a obra de Pascoaes, uma delas com a ajuda de Cruzeiro Seixas, que se percebia que o surrealismo em português estava a abrir ou a fazer caminho por um lado novo, o de Pascoaes, e isto numa época em que Cesariny não tinha ainda meio século de vida e estava empenhadíssimo em alargar e aprofundar para dentro e para fora o movimento, como desde o Verão de 1947, altura em que tratou com André Breton em Paris, sempre estivera e sempre continuou após até ao fim, em Novembro de 2006.

Sempre me quis parecer que os historiadores da literatura e os críticos de poesia com tal matéria revolutiva – relações do surrealismo com Teixeira de Pascoaes – não se puderam no meu tempo queixar em Portugal de falta de trabalho, pois tal relação arriscava-se a baralhar todas as certezas com que a História da literatura portuguesa do século XX fora construída desde os inícios da geração da Presença, e solidificada depois já na segunda metade do século XX dentro dos mesmos princípios, e ainda a perturbar muitas das suas adjacências e subúrbios, em primeiro lugar aquela capciosa sobreposição entre Vanguarda e modernismo, em que Espanhóis e Franceses nunca se deixaram cair.

Isto digo com alguma ironia, pois tudo a que chegaram historiadores, críticos e académicos depois de sopesarem a matéria foi aquela minúscula ideia do pai tardio, formulada por Osvaldo Manuel Silvestre, que vê na escolha de Pascoaes um disfarce para a luta corpo a corpo de Cesariny com Pessoa, essa, sim, a única que para ele conta e a única em que o autor de Pena Capital estaria empenhado até aos cabelos e unhas dos pés. Teixeira de Pascoaes seria assim para Cesariny uma forma de apoucar Pessoa, como quem diz: – Tomai lá do Pascoaes e vede como é superior a Pessoa. E continua a dizer: – Se até Pascoaes, tão-só o maior dos poetas menores, é superior a Pessoa, quanto mais eu, Cesariny, que já estou na classe dos poetas maiores! A tese, para poeta surrealista, que dá de barato e até de muito bom grado o lugar ao Sol da História da literatura, é irrisória de tão leve ou de tão dura.

Para se começar a entender a chamada de Pascoaes ao surrealismo português é indispensável avaliar a convocatória fora de qualquer esquema viciado pelas certezas que construíram, pelo menos desde o jovem Régio, o campo poético português do século XX. Só deixando de lado – e pôr de lado não é tomar partido, é deixar tudo em aberto – a noção feita de que antes de Fernando Pessoa, em termos de moderno ou de modernidade, tudo era um deserto, ou um lugar tão despiciendo que não merece mais do que uma nota de rodapé, e depois dele tudo se lhe refere, e outras congéneres, ainda tão correntes e arreigadas, me parece possível tomar em mãos com um mínimo de seriedade a questão do lugar de Pascoaes no surrealismo em Portugal.

Foi isso que tentei no trabalho saído em 2010, picando os surrealistas portugueses a retomar o fio da conversa sobre Pascoaes e procurando nesse curso trazer à superfície, com renovada clareza, as intenções deles, isto sem nunca pôr em causa a autenticidade da escolha deles, como fez Silvestre, e sem querer sobrepor a minha à leitura deles. Quis que o livro fosse mais deles do que meu e daí me parecer que aquilo que em verdade nele importa, de forma enxuta, diz respeito à entrevista com Cesariny e à carta de Cruzeiro Seixas, apesar do resto que é palavreado meu e até de muita adesão a Pascoaes, como não podia deixar de ser, e não fica mal, em quem o lê há mais de trinta e cinco anos e sobre ele escreve há cerca de trinta.

Um dado me parece seguro depois de estudado o núcleo essencial do material que deu o livro: se Pascoaes fosse apenas uma questão estratégica, um dado pessoal da angústia de influência de Cesariny, como quer a bisca do pai tardio, não faria sentido a adesão ao mesmo por parte de Seixas, adesão de resto já presente no recuado ano de 1972, o que torna ainda mais nula e vazia a ideia dum braço de ferro entre Cesariny e Pessoa na ânsia do primeiro se sobrepor ao segundo; Pascoaes e o seu legado estão por direito nas mãos dum movimento e não apenas dum dos seus membros, Cesariny, e será neste pé, em termos colectivos, que a questão, para dela não se perder o que mais importa, e até a espessura mínima, há-de ser filtrada e trabalhada de futuro.

Importa pouco saber por que razão Cesariny decidiu eleger Pascoaes como seu directo antecessor, deixando cair Pessoa; faz muito mais sentido, se perspicácia houver para tanto da parte do leitor, perceber como o poeta do Marão funcionou como um catalisador para a permanência, a solidez e o desenvolvimento dum movimento, cuja derradeira fase, a da maturidade definitiva, a partir de 1968, aparece marcada pela conversa com Pascoaes, casa, lugar, pessoa, obra escrita e pintada. Isto sem deixar de lado, em termos de campo poético do século XX português, as ilações gerais da chegada em força do surrealismo a Pascoaes depois de 1968 (primeira carta conhecida, e essa de inteira adesão, de Mário Cesariny para a casa de Teixeira de Pascoaes).

O livro de 2010, que teve edição de algumas centenas de exemplares, talvez quatrocentos, entretanto esgotou. No meu espírito, fruto de novas voltas, o livro evoluiu, ou nem tanto, apenas de forma natural, fruto da espiral do mesmo ponto, sem nada se forçar, cresceu. Surgiu agora a ocasião de editar um livro sobre o surrealismo. Tinha de entrada duas possibilidades: ou reeditava o livro esgotado ou fazia um livro diferente. Para fazer um livro diferente tinha ainda dois caminhos: ou reeditava o livro de 2010 juntando-lhe os seguimentos que entrementes surgiram, e alguns foram, ou dava apenas estes. Por razões só de volume, não outras, escolhi esta última hipótese, e não sem pena, grande e muita, pois tenho o livrinho de 2010 como um talismã das coisas que fui dando a lume; é talvez entre todos, e vários são, pelo que diz e como diz, pela companhia das vozes que convoca, pelo que nele há de pesquisa e até de experimental, o meu preferido.

Por esse motivo, caso reeditasse o livro de 2010, só ou acompanhado das notas, e assim se fará porventura um dia, optaria por dá-lo na íntegra, sem lhe alterar porém quase uma vírgula, a não ser na bibliografia, que apuraria e acrescentaria, como se aceita em lista sempre sujeita a crescimento, e no título particular, de que guardaria o principal mas limparia o guarda-roupa do subtítulo, demasiado preso àquelas ilações gerais da chegada em força do surrealismo a Pascoaes e que são agora, nesta fase, não sei se final, o que menos me chama. Se ninguém está interessado em reler a poesia portuguesa do século XX à luz da entrada do surrealismo em Pascoaes, questionando no reajuste o campo literário português, das periodizações às noções, tão raquíticas, a começar pelo primeiro e segundo modernismos, então boa-noite, passem bem, adeusinho. Asnices assim, digo comigo, não trazem grande mal ao mundo; tanto se dá uma coisa como outra, quer dizer, Pessoa, o maior vate, ou Pascoaes em lugar dele, ou ainda, senhores, qualquer outro em vez dos dois.

Na verdade tenho mais do que fazer do que ser jurado nos jogos Olímpicos das letras portuguesas; quem queira, que fique e que lhe faça bom proveito se puder. O que me interessa hoje, sem ligar a quadros e contextos, é a conversa do surrealismo com Pascoaes e o que nela há de perigoso mas também de exaltante. O perigo, diga-se, não é o do funâmbulo, tão em moda desde que Genet lhe bateu o pé, mas o de aprendiz de feiticeiro, muito mais grave e letal, porque toca a alma num fio, a tremer, e não apenas as habilidades do corpo. Dito doutro modo, o que me convém é a noite escura, sem a qual qualquer fotismo está condenado a bater em retirada.

Foi pois por este último ponto que me apeteceu, ou aconteceu, seguir nas espiras em que o livrinho anterior foi crescendo sob a forma de notas e que são as que aqui vão agora dadas a lume. Aquilo que me sucedeu serem as notas de aprofundamento do livro de 2010, notas para uso pessoal, feitas sobre um livro que tinha muito de panfletário (como alguém notou em recensão na revista Os Meus Livros), nada por nada teórico (como um amigo sombriamente decepcionado, Joaquim Domingues, me fez notar em carta), acaba agora a ser o novo livro.

Nesse sentido o que por ora apresento pode ser encarado como um formulário de iniciação ao surrealismo em português ou até ao surrealismo em geral, sem fronteiras de língua, e assim esteve ele para se chamar até que o título actual se impôs, menos didáctico, mais livre e pessoal, apesar do cruzamento com as notas de Álvaro de Campos para a recordação do mestre dele. Se nas minhas costas alguém o baptizasse com uma brincadeira parafrástica – notas para a recordação dos meus mestres Pascoaes e Cesariny – não esperneava muito. É porém com o título actual que quero o livro, bem distinto de Campos, que nem me acudiu quando o levei a registo, e longe, muito longe, de Caeiro, que suporto mal, com a secura do raciocínio e o ar de falso analfabeto, e de Reis, que de todo detesto e a quem desejo, se ainda andar por este mundo, uma longa estada no Acre a ver se perde por lá e de vez aquela tesura de goma europeia clássica. E depois apareça, de preferência descalço e calça rota, chapéu de palha roído na cabeça, livre de paulistas e cariocas, para um bate-papo e um bafozinho de cachaça e hortelã.

Um derradeiro apontamento nesta nota de abertura: se a peça que ora se entrega levasse dedicatória, ela seria reconhecidamente para o autor de Luz Central, Ernesto Sampaio (1935-2001) – um dos que nunca se conformou com o Paraíso ser dado por perdido. O livro não vai oferecido, mas ainda assim, em intenção, aqui quero deixar o esboço duma oferta. Não pode, nem podia, ser doutro modo. Nunca encontrei cara a cara Ernesto Sampaio, mas tenho a certeza que noutro plano, que não este onde no curso das gerações temporais se tipografam livros em papel, ele leu e lê comigo, anotando-a até, nem sempre com assentimento, mas sempre com gosto e interesse, esta tessitura de notas. Para lhe retribuir o favor, que é para mim de monta, para lhe agradecer essa conversa de estrelas, que sempre em tudo foi dele, aqui deixo registado o propósito desta dedicatória, que não podia aliás seguir doutro modo.

A pintura está demasiado fresca para sobre ela dizer mais; acabei agora mesmo de pousar o pincel e de voltar costas à tela. Vou respirar fundo, dar uma volta, mirar as estrelas. Dou por seguro o seguinte: a peça há-de levar outra de mão. Falta lá tanta malha, que não me atrevo a considerar as tinturas actuais senão um acto de abertura. Se entretanto eu não regressar do passeio, o que pode muito bem acontecer, alguém tomará o trabalho em mãos por mim.


NOTAS SOBRE O SURREALISMO EM PORTUGAL


1 Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes

Encontro em Freud, que estou a ler por acaso, um passo que me pode interessar e muito. Está na Autobiografia escrita em 1924, numa altura em que a psicanálise já chegara à idade adulta, ou mesmo madura, e em que era fácil ao autor rememorar em sinopse, sem explicações demoradas e sem recurso à descrição pormenorizada de casos empíricos, tão comuns na fase inicial, os passos do aparecimento e do primeiro desenvolvimento da teoria psicanalítica. Ao tratar do período relativo à colaboração com Breuer, Freud aponta o momento em que formulou a noção de inconsciente psíquico como decisiva para a passagem do método catártico tal como Breuer o praticava a partir da hipnose – libertação dos sintomas patológicos da nevrose através da rememoração verbal deles – ao método analítico.

O que aqui me interessa não é o que pode haver de específico neste, quer dizer, a etiologia sexual das nevroses tal como a análise as detectou, mas muito mais o espaço intervalar entre os dois momentos. No intervalo, como ponte de passagem, encontro a teoria do recalcamento, em que conteúdos manifestos, até aí admitidos na consciência vigilante, são expulsos desta, retraindo-se num segundo compartimento, onde permanecem latentes e sem existência aparente. O facto desses novos conteúdos latentes resistirem ao recalcamento, procurando forçar caminho para se voltarem a manifestar à superfície, levou Freud a formular a ideia duma segunda consciência, interdita à primeira, pelo menos de forma aberta e livremente reconhecida, mas não por isso menos viva, actuante e consciente. A noção de inconsciente psíquico, crucial ao nascimento da psicanálise, foi deduzida desta ideia duma segunda consciência, onde actuam, vivem e se desenvolvem os conteúdos latentes, desconhecidos da primeira consciência.

Retenho pois a ideia duma segunda consciência, que existindo com realidade própria, inexorável, é porém um território defeso e desconhecido à primeira, aquela que tem lembrança e noção de si, pelo menos como se entende de forma vulgar esta noção de si. A ideia duma dupla consciência, desconhecida ao pensamento do dia-a-dia, uma consciência inconsciente para usar a expressão de Freud, interessa-me muito para abordar um livro de Teixeira de Pascoaes dado a lume em edição magra de autor no ano de 1942, Duplo Passeio.

Mas antes de falar do livro talvez valha a pena dizer que em Platão, de resto citado na Autobiografia de 1924 como o primeiro elo de Freud, ou em textos dele, como o Fedro, o composto humano resulta da sobreposição de dois planos distintos, que nunca se fundem por inteiro, corpo e alma, o primeiro pertença absoluta da natureza terrestre e o segundo chegado de paragens distantes ou ignoradas. Em Platão estes dois planos, o da alma e o do corpo, aparecem referidos ao mundo das ideias, luminoso e esplêndido, e ao da caverna escura, onde as coisas materiais surgem como apagadas sombras das ideias. Camões glosou em vários passos esta visão duma alma alienígena aprisionada num vaso de argila que não lhe corresponde. Na glosa camoniana a Terra é uma estação que fabrica vestes materiais ao fogo luminoso que receberá, mas vestes desajustadas, já que opacas, à natureza translúcida da essência imaterial. Daí a noção de exílio que a alma vive na Terra junto do corpo, quer dizer, a incomodidade, a estranheza e a dificuldade que ela sente num meio tóxico e corruptível que não é o seu.

Onde este platonismo me parece ter tido o seu florescimento mais avançado foi num autor como Sohravardi (sec. XII), que no seio da filosofia árabe fundiu Platão com antigas tradições persas. O que daí resultou foi um entendimento distinto da manifestação dos dois planos de conhecimento, o das ideias e o das coisas. Por um lado o corpo, embora permanecendo um vestuário desajustado à alma, capaz apenas de focar um conhecimento sensível, perde algo da oposição tenaz com a alma e que logo se verá o quê e como; por outro lado, a alma, se bem que mantendo a sua natureza de alienígena, adapta-se o seu tanto ao corpo, podendo até perder de todo a memória do lugar de origem. No platonismo de Sohravardi a alma quando chega à Terra para encarnar no corpo que esta lhe fabrica deixa um duplo no lugar de origem. Da relação entre a alma encarnada e o duplo que nunca abandonou o mundo original resultam situações distintas: se o diálogo existe, a memória da pátria original não desaparece, antes se desenvolve, arrastando nesse encontro faculdades próprias ao corpo ou ao que neste há do mundo sensível; se a alma perde o contacto com o duplo, a memória da origem apaga-se e em vez de ser a alma a sublimar o corpo é o corpo a condensar a alma.

Um dos artigos mais notáveis deste platonismo é a forma como ele concebe o diálogo entre a alma e o seu duplo. E talvez mais do que diálogo seja adequado falar aqui em conhecimento, já que a alma ao encarnar conhece o corpo e perde parte do conhecimento que antes tinha; essa parte perdida é o duplo que não a acompanha no momento da encarnação. Para reconquistar o que perdeu, para voltar ao convívio daquilo de que se separou, a alma humana precisa de desenvolver um modo próprio de conhecimento. Se os sentidos corporais conhecem o mundo empírico da realidade material e o intelecto racionaliza em leis esse primeiro e imediato conhecimento, a imaginação é o órgão da alma encarnada capaz de activar o contacto com o duplo. É pela imaginação que a alma encarnada pode regressar ao contacto com o mundo original donde veio. Se não quiser perder a ligação estabelecida, se quiser aprofundar as relações com o duplo, a alma precisa de valorizar a imaginação, tornando-a cada vez mais activa e presente.

Isto quer dizer que o lugar de origem das almas tem um estatuto análogo ao da imagem ou é ele mesmo uma imagem. E por ser nem mais nem menos do que uma imagem é que o duplo se deixa apreender ou conhecer pela imaginação. A imagem não se confunde com a ideia mas está dela muito mais próxima do que a realidade sensível. Na gnoseologia de Platão há o exterior da caverna com o oceano de luz das ideias e há o seu interior com as pálidas e apagadas sombras que são as coisas. A ponte entre estes dois mundos é quase inexistente; só a reminiscência, a memória residual que toda a sombra tem no fundo de si da luz exterior de que é afinal a última projecção, cria uma ténue linha, que não chega a ser passagem, entre as ideias e as sombras, o interior e o exterior da caverna. Em Sohravardi em vez de duas realidades antagónicas, há pelo menos três realidades em jogo: as ideias, as imagens e as coisas. A alma não chega directamente do mundo das ideias, do extra-mundo se assim posso dizer, mas do mundo das imagens, que está intimamente referido ao das ideias mas dele se distingue por uma corporeidade subtil. É um plano intermédio, um entre-mundos, por contraponto ao extra-mundo das ideias e ao intra-mundo da matéria, um plano que tanto participa pela encarnação na realidade sensível das coisas como pelo duplo, que nunca abandona o plano subtil das imagens, na realidade luminosa das ideias.

Regresso agora ao livro de Teixeira de Pascoaes. Logo no título encontro a ideia de duplo ou de desdobramento, que tanto me traz à lembrança, até por dentro da obra de Pascoaes, em primeiro lugar essas sombras do livro de 1907, que abro agora e onde deparo ao acaso com estes versos, quarta estrofe do poema “A Sombra do Passado”: Sou como vós, ó árvores! A sonhar,/ Desço aos seios da Noite, a ver se encontro/ Algum veio de luz, onde matar/ Esta sede infinita em que me abraso!/ (…)/ Ai, tendes fome e sedes! Assim eu/ Tenho sede de luz. E depois, ainda ao acaso, com estes, no poema “Além-Mundo”: (…) além desta carne contingente,/ Que nos cobre estes ossos de miséria,/ Outra existe, mais bela e transcendente,/ Para onde foge e emigra a nossa alma. Nestes quatro versos deparo com o desdobramento da realidade material tal como o encontro em Platão e nas glosas platónicas que se lhe seguiram; é aquilo que o sujeito chama de outra carne, nem contingente nem miserável, e que por sua vez não anda longe da segunda consciência elaborada por Freud. Uma nota: esta outra carne diz respeito à totalidade do mundo natural, a tudo o que existe em matéria, da pedra ao homem, da bactéria à mulher, da formiga à criança, e não apenas à esfera humana. O antropomorfismo não tem aqui lugar; seria irrisório ver sob este aspecto o homem separado da natureza. Por isso o sujeito destes versos pode gritar que é árvore. E por isso num poema desta mesma época, publicado em Vida Etérea (1906), “A Uma Ovelha”, o sujeito foi capaz de ver num animal de rebanho um ser faminto dessa relva que enverdece/ Os outeiros e os vales do Outro Mundo. Essa ovelha mostra que todo o corpo corruptível e denso recebe um sopro alienígena, uma alma incorpórea; qualquer corpo material, do mais ínfimo ao maior, é uma sombra projectada por uma ideia. Tudo na Terra reflecte o seu arqueu ordenador; tudo na Terra se projecta no infinito; tudo na Terra tem uma alma e aspira a entrar em contacto com a parte dela que não encarnou. A anima mundi é terrena e não apenas humana.

O tópico do sujeito como árvore, com raízes, leva-me à primeira citação, na qual muito me toca a acção aí referida, sonhar. Dito doutro modo, o sujeito é como uma árvore mas só quando sonha, pois sonhar é fazer da noite um húmus onde se bebe a luz. Se levar adiante o raciocínio obtenho: o dia, sem sonho, traz o corpo material e a noite, com o sonho, traz a alma ou a segunda consciência de que fala Freud. O veio de luz que o ser a sonhar procura é o extra-mundo platónico. Convém perguntar: mas por quê a sonhar? Com certeza porque o sonho faz parte daquele órgão da alma encarnada que a põe em contacto com o lugar de origem. Isto traz à colação, quer dizer, cola, o que atrás se disse sobre o papel da imaginação em Sohravardi. A imaginação tem natureza análoga a partes próximas do extra-mundo; por esse motivo pela imaginação a alma encarnada pode regressar ao lugar de origem. O sonho é pois parcela importante da imaginação e não apenas pelo tempo que ocupa na vida de cada um mas pela natureza contínua e real das imagens em que o sonhador mergulha. Não admira pois que seja a sonhar que o sujeito do poema de 1907 procure o veio de luz do extra-mundo.

Recordo que a propósito de Sohravardi alertei para a necessidade de valorizar a imaginação. Sem isso o contacto com o além mundo perde-se ou quebra-se. Isto quer dizer que a alma necessita de tornar cada vez mais real, cada vez mais presente, cada vez mais sentido o mundo das imagens que lhe é aberto pela imaginação. O que se vê em imaginação não pode ser degradado pelo intelecto, ou desvalorizado por ele, como em geral hoje acontece. A civilização da imagem é um sofisma, uma impostura descarada, porque ninguém acredita hoje na imagem, nem os que a fazem nem os que a vêem, nem os que a vendem nem os que a compram. A imagem está na civilização da mercadoria ao nível duma simples brincadeira inconsequente, duma imbecilidade triste. É a Disneylândia do espírito, sem espessura de realidade, a não ser a facturação da indústria cultural ou da do entretenimento. Mesmo uma criança, para quem a imaginação parece ser a única força actuante do espírito, porventura porque a alma acabou de encarnar no vaso, fica apática ante a cinemática de Hollywood; nem uma beliscadura, nem um grito, apenas a ruminação interessada, o estalar na boca da pipoca com a calda de açúcar refinado. Quão longe vão os tempos, sem cinema, sem animação de bonecos, sem electricidade, em que as meras histórias da carochinha, contadas boca a boca, entre analfabetos, ou transpostas por actores anónimos, providos de máscaras, para um simples tablado de madeira carunchosa, podiam produzir no ouvinte ou no espectador, fosse pequeno ou grande, homem ou mulher, um suor lívido de terror ou mesmo um grito de pavor.

Nos antípodas da desvalorização da imagem está a experiência do autor que escreveu As Sombras. Leia-se a realidade que ele empresta ao sonho, fruto de muito convívio tomado a sério com ele: O Sonho e o amor/ são tão reais que, às vezes, nos parecem/ tangíveis e palpáveis; podem ver-se! (em “A Sombra da Vida”, décima estrofe) As imagens no caso dele tocam-se; são tão sensíveis e tão verdadeiras como a realidade material. Não são um simples passatempo, para entreter tempos mortos, que só por ironia se chamam também livres, como sucede na Disneylândia moderna, mas um mundo real no qual o ser se pode instalar com todas as bagagens para viver e para se transformar.

 

2 Das Experiências de Além Mundo ao Supra-real

Digo comigo mesmo que não devo voltar a página sem associar o ano de 1924, em que Freud publicou a Autobiografia, ao aparecimento do primeiro manifesto do surrealismo, da autoria de André Breton. É o momento crucial da fundação do movimento, com um texto fundador, se bem que desde 1919 se possam detectar e em larga escala os trabalhos preparatórios de grupo. No magma em que estou a trabalhar esse texto interessa muito pelas relações com a teoria freudiana – os trabalhos preparatórios acima referidos, com textos automáticos e anotações de sonhos, foram todos concebidos e desenvolvidos debaixo do influxo das técnicas psicanalíticas que Breton conhecia desde o meado da guerra de 1914-18 – e pelo que nele se encontra, ao menos em estado embrionário, relativo a Platão e aos seus desenvolvimentos.

Começo pela designação do movimento que aparece no letreiro do primeiro manifesto, surrealismo, manifeste du surréalisme. O nome, que na portuguesa língua teve hesitações várias – O’Neill numa carta a Cesariny de Setembro de 1947 diz por exemplo: passo a expor os meus projectos quanto a um possível movimento super-realista (creio ser este o vocábulo a adoptar) português (in As Mãos na Água a Cabeça no Mar, 1985: 294) – antes de se fixar naquela que acabou por vingar e que hoje é corrente, adaptação directa do francês, surrealismo, tem informes vários no manifesto de 1924, de modo a explicitar o seu sentido, ou o que com ele pretendia Breton, o que se entende pela novidade muito recente do vocábulo e o seu pouco ou nenhum uso, já que havia sido criado em 1917-8 por Apollinaire para classificar em subtítulo, drame surréaliste, sem mais, um livro seu, Les Mamelles de Tirésias. Significativa nesse capítulo é a aproximação que Breton faz entre o que pretende dizer com a palavra e aquilo que dois autores do século anterior, Carlyle em 1833-4 e Nerval em 1853, disseram quando usaram a palavra super-naturalismo, o primeiro no oitavo capítulo de Sartor Resartus e o segundo na dedicatória das Filhas do Fogo. Em relação a Nerval, Breton chega mesmo a dizer que ele possuiu no seu tempo, não a letra da palavra, que cabe a Apollinaire, mas o seu espírito.

O prefixo tal como Nerval o usa em supernaturalisme quer dizer acima de, o que de resto coincide com o prefixo da palavra escolhida por Breton, o que dá no primeiro caso acima do naturalismo e no segundo acima do realismo. Entende-se assim a escolha de O’Neill ao procurar adaptar a palavra à língua; super-realismo como aquilo que excede ou está acima do real. Posso ainda aceitar que o elemento de formação inicial da palavra pode ser traduzida pela ideia que está num outro prefixo da língua, supra, o que dá, e talvez melhor, que o super-realismo é também o supra-realismo, e digo melhor já que super-realismo se pode confundir, o que desastroso seria, por via da hipérbole, com hiper-realismo. Neste caso tenho simplesmente um realismo grande, no outro um além do realismo; a diferença é como se poder ver abissal. Nada de tão estranho pois ao realismo, seja hiper ou mini, ou apenas médio, como o surrealismo.

Nesta pesquisa sobre o valor da palavra no momento da sua criação vale a pena trazer aqui um outro parágrafo do manifesto, que reputo talvez o de maior alcance em todo o conjunto. Breton abre o manifesto com considerações sobre o sonho, o que se entende dada a importância do sonho na vida geral e nos trabalhos preparatórios a que o autor e os seus amigos se entregavam desde há anos. Demais o sonho fora o instrumento de que Freud se servira para justificar a presença autónoma da segunda consciência e a pressão da sua lógica junto da primeira. Se os conteúdos manifestos recalcados conseguiam furar o interdito do esquecimento que a primeira consciência lhes impunha isso se devia em primeiro lugar ao sonho. O sonho era a solução de compromisso que a primeira e a segunda consciência estabeleciam entre si; nesse pacto, a primeira consciência abria a porta aos conteúdos recalcados desde que estes procedessem por deslocamentos de sentido, quer dizer, desde que recorressem a metáforas ou símbolos de disfarce para se manifestarem; pelo seu lado a segunda consciência, para furar o bloqueio a que estava sujeita, acedia em disfarçar os seus conteúdos, criando tramas desconexas e sem sentido. O trabalho da análise era assim deslindar os símbolos de disfarce, peneirando ou revelando os conteúdos recalcados que sob forma simbólica a primeira consciência acedera em receber.

Depois de tecer algumas considerações sobre o sonho, de permeio com outras sobre a realidade e a consciência acordada, que com o sonho contrasta, o autor tem a seguinte exclamação: Creio na resolução futura destes dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer. Espantoso, não posso deixar de exclamar! Antes mesmo de falar de surrealismo Breton fala de surrealidade, quid do surrealismo, se assim posso dizer. E que diz ele? Que a surrealidade é uma realidade absoluta, que resulta da conciliação entre a realidade sensível, da primeira consciência, e o sonho, que é a realidade, mesmo que disfarçada ou travestida, da segunda consciência.

Novalis falou dum real absoluto; Frederico Schlegel dum real autêntico por contraste com o real sensível. Como não ver essa espécie de realidade absoluta de que fala Breton, resultante da conciliação entre a realidade dos sentidos e o sonho, como o real absoluto de Novalis, de resto citado no texto de 1924 a partir do paralelismo, mas não da homologia, entre séries ideais de acontecimentos e séries reais. E já agora como não ligar, ao menos por um cordão de luz, essa surrealidade ao mundo das ideias platónicas e à topografia do extra-mundo, com um litoral próximo e bem demarcado e um oceano distante e indefinível, tal como a regista um platónico como Sohravardi? A ligação é por demais evidente, para precisar de insistir nela. Ainda assim paga a pena acrescentar que a surrealidade está referida ao surreal e que este se entende como supra-real, quer dizer, o além mundo tal como o encontrei nas experiências do sujeito lírico de Teixeira de Pascoaes no livro Sombras.

Sombras, noto agora? Sim, espera do entardecer do dia, anseio crepuscular, e exaltação febril da noite escura pelo autor que pouco depois, por certo no seguimento deste livro de 1907, escreveria Senhora da Noite (1909). Quer ver o leitor um exemplo desta exaltação? Pois aí o tem no poema “A Sombra de Deus”, que continua “A Sombra da Noite”: Noite maravilhosa que, em seu ventre,/ Dilatado, sentia germinar/ Um braseiro de sóis, donde saíam,/ Como extintas faúlhas a voar,/ Grandes lágrimas de água e terra escura.// A Noite anterior, primeiro estado/ Fluídico e invisível da Matéria;/ Um sentimento apenas, desmaiado/ Sopro de sombra, errando no Infinito…/ A Noite originária, espectro enorme,/ Que em si continha a estranha Natureza;/ (…)// Aquela Noite universal de outrora,/ Donde tudo descende; e em nosso corpo,/ Humanizado e vivo, grita e chora/ E em nosso coração é sombra pálida!// Ó resíduos da Origem, do Princípio!/ (…)// Ó Noite universal, Noite de horror;/ Mas Noite criadora e maternal!/ (…)// O tempo é noite; o espaço é noite; a luz/ É noite; o som é noite… Ó Noite imensa/ Feita de sóis, de pedras, de alvoradas!/ (…)// Ó Noite criadora! Ó Noite escura!/ Ó tenebrosa mãe de Satanás!

A noite apaga a realidade sensível e revela o além mundo, o supra-real ou o real autêntico e absoluto dos românticos alemães; a noite é o lugar origem, um mundo de anti-matéria, de vazios ou de fogos estelares. Experiências de além mundo só de noite se experimentam. Sem essa câmara escura, exterior ou interior, impossível contemplar as estrelas ou as ideias. As viagens ao supra-real são nocturnas, quer dizer, a resolução da oposição entre a realidade sensível e o sonho necessita dum estado crepuscular, translúcido, em que as tinturas profundas da noite se misturem ao brilho de esmalte, opaco, do dia. Vejo agora que esta resolução a favor dessa nova realidade absoluta que é o supra-real tem tradução em linguagem freudiana. Assim: resolver a oposição entre o sensível e o sonho imaterial, chegar ao estado translúcido crepuscular, é permitir e incentivar o pacto e a ponte entre as duas consciências. É a mascarada dos símbolos a invadir a primeira consciência, a poesia a tomar conta da vidinha, a noite a beber o dia.

O bailado dos símbolos fica já a um passo de distância deste mundo; a atmosfera onde eles dançam é rarefeita, perdeu espessura e gravidade. Que baile de máscaras! Que corso carnavelesco! Que fábula! Dito doutro modo: a mascarada dos símbolos que a segunda consciência tece para invadir a primeira, trabalho fabuloso, pertence já ao mundo das imagens, ao inter-mundo, essa superfície exterior e perceptível do extra-mundo platónico, e não ao chão material, grave e denso, da Terra. Posso daqui tirar um novo fio: a terra do inter-mundo, mesmo não sendo ainda a das ideias, é a terra das imagens ou dos arcanos. Terra? Porventura não. Se quiser um símile adequado, direi mais nuvem que terra, mais éter que pedra, mais sublimação da matéria que condensação ou solidificação dela.

Não posso fechar sem associar o bailado dos símbolos que aqui se intrometeu, e que em linguagem freudiana é a possibilidade contratual que os conteúdos da segunda consciência têm de aceder à primeira, ao manifesto do surrealismo de 1924. Às tantas, no momento em que dobra o meridiano do texto, Breton define, como um dicionário o faria, de forma sintética, o surrealismo. E a definição que apresenta para esse nome masculino (n.m.) é a seguinte: automatismo psíquico puro pelo qual se exprime, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento. E ainda: Ditado do pensamento, na ausência de qualquer controle exercido pela razão, à margem de qualquer preocupação estética ou moral. O automatismo psíquico puro que o autor aqui apresenta como sinónimo de surrealismo implica o contrato das duas consciências, pois não pode haver funcionamento real do pensamento, ou captação deste fora de qualquer censura, sem a possibilidade de dar lugar aos conteúdos da segunda consciência. E pouco interessa a natureza destes para aquilo que aqui se explicita. Na verdade pergunto-me se em Freud os conteúdos sexuais da segunda consciência, tanto ou nada valorizados, não são afinal homólogos daqueles que se agitam no extra-mundo de Platão, em cujo centro está o Amor.

Não importa! Importa, sim, para já reter o quanto a poesia como trabalho de imagens analógicas, construção de metáforas, é idêntica ao sonho e ao automatismo psíquico puro. Talvez o leitor ainda não tenha alcançado o sentido deste. Tente-se uma derradeira aproximação. O automatismo psíquico é o que permite a mascarada dos símbolos; sem ele não há baile de máscaras.

E já agora a propósito de símbolos paga bem a pena recorrer a Pítágoras de Samos e a um tempo anterior a Platão. Consciente de que as coisas sensíveis são mensuráveis, Pitágoras viu na expressão dessa medida a possibilidade de contactar com a alma de cada coisa. Formou-se assim nos eleáticos, a ideia de que conhecer é encontrar um número e que o número, revelando aspectos essenciais do mundo das coisas, participa já da alma oculta dessas mesmas coisas. Não deixa de impressionar a possibilidade de traduzir ou até de decalcar o pitagorismo em linguagem freudiana: o número é o símbolo que a segunda consciência produz se para poder manifestar no nível básico da consciência ou do mundo sensível.

 

3 Formas do Automatismo Psíquico no Livro Duplo Passeio

Como é que tudo isto encaixa no livro de 1942, Duplo Passeio? Foi este que me fez afinal vibrar com a passagem da Autobiografia de Freud, que por sua vez me fez remontar à gnoseologia de Platão e à dos seus comentadores e me remeteu ainda para o nascimento do surrealismo nesse mesmo ano, que por sua vez me levou a Novalis e à revista Athaneum. E sobre o livro de 1942 ainda nada disse. Que me perdoe o leitor a desatenção e me siga agora sobre ele.

Duplo Passeio é de forma literal o livro dum sonhador; pelo menos em parte, o livro podia chamar-se livro de sonhos. O conjunto é constituído por duas partes, sendo a primeira o relato dum passeio de automóvel (um Lancia) entre Amarante e Chaves, com ida por Vila Real, e regresso por Salamonde, Póvoa do Lanhoso, Fafe e Lixa, e a segunda o relato dos sonhos que o narrador autodiegético tem na noite do seu regresso a casa. São centenas e centenas de imagens oníricas que aí se acumulam, numa metamorfose alucinante e selvagem, que não tem qualquer paralelo na literatura portuguesa do tempo. Digo comigo que se quiser encontrar um paralelo digno para esta febre de imagens oníricas é preciso ir buscar livros como Confissões dum Comedor de Ópio de Thomas de Quincey ou Os Paraísos Arrtificiais de Baudelaire, e aqueles que decorrem deles, como A Refeição Nua de Burroughs ou outros do mesmo autor. Com livros mais dóceis, menos crus e menos vigilantes, as ligações não se chegam a estabelecer ou, engatando um tanto, são sempre largamente desfavoráveis ao termo de comparação.

Outra hipótese para entender o furor onírico, a cavalgada de imagens selváticas, a razão enlouquecida que constitui a segunda parte do livro, é recorrer ao diálogo final do Fedro, onde se discorre sobre a loucura. Aí se distinguem, pela voz de Sócrates, dois modos de loucura: o primeiro, humano e fisiológico; o segundo, inspirado e divino. Este segundo modo, a loucura da alma, que nasce por sopro divino, divide-se por sua vez em quatro tipos: o profético, tutelado por Apolo; o místico, associado a Dioniso; o amoroso, tocado por Afrodite; o poético, inspirado pela mãe de Orfeu, a musa Calíope. Uma coisa me parece segura ao falar da segunda parte de Duplo Passeio: só a loucura de segundo nível, tal como Platão a explicita na boca de Sócrates, pode servir de ponto de partida para entender o que se passa no plano desdobrado do livro de 1942.

De qualquer modo, impõe-se a pergunta; a qual dos quatro tipos platónicos de loucura inspirada pertence este livro? Em nenhum deles se fala do sonhador – seja ou não comedor de ópio. Em verdade a loucura do narrador de Pascoaes é a do sonhador, simples mas vigilante. Se a quiser enquadrar na tipologia de Platão, a loucura que ele diz mística, inspirada por Dioniso, surge-me como a mais adequada. Parece que nos Mistérios de Dioniso, o neófito descia às profundidades da Terra, olhos vendados, em plena escuridão, para uma larga estadia em solidão. Seria nesse momento que o neófito sofria o processo de iniciação – iniciação à loucura mística. Como? Desconheço mas adianto uma hipótese: a sós, o neófito, através da escuridão interior e exterior em que estava, recebia contacto com a noite originária, a noite do incriado, de que fala, em sugestão, uma das Sombras de Pascoaes, acertadamente chamada “A Sombra de Deus”.

Esse contacto de que falo só se entende ainda através duma poderosa corrente de pensamento interior, que sou forçado classificar como simbólico. Aqui retomo o que antes disse sobre o automatismo psíquico como sinónimo de surrealismo. Trata-se do pensamento sem censura, quer dizer, da possibilidade de deixar operar, ao vivo, no espírito, através da tessitura de tramas simbólicas, a segunda consciência. É difícil aceitar que possa haver delírio de segundo nível, não derivado de causas fisiológicas, mas inspirado e momentâneo, tal como Platão o concebe, sem que se instale este processo de comunicação entre os dois mundos, o das coisas e o das ideias, ou entre os compartimentos das duas consciências, a dos conteúdos manifestos e a dos conteúdos ocultos.

Acrescento agora um ponto que há pouco me parece que escapou: a trama simbólica, aquilo que Breton chama supra-real, é tecida pelo tear da imaginação. Os símbolos são imagens, mas imagens activas, animadas, vivas, com valor arquetípico ou geral; só a imaginação tem a faculdade de as criar e de as dar à alma para ela poder conciliar as duas consciências ou transitar do círculo das coisas para a esfera dos arcanos. E aqui tenho de convocar de novo a imaginação tal como um platónico como Sohravardi a concebe, órgão da alma encarnada capaz de activar o contacto com o duplo.

Deixo pois à disposição do leitor outra aproximação para entender o alcance da significação do automatismo psíquico puro tal como o entende Breton em 1924: é a imaginação em exercício, criando, desfazendo e recriando, sem cessar, o baile de máscaras das tramas simbólicas. E para que o trabalho se faça como deve ser, sem que nenhuma outra faculdade mental se sobreponha, desvalorizando as imagens, ou mesmo imbecilizando-as, como acontece na indústria cultural moderna, nada deve impedir a imaginação de se nutrir e desenvolver em pleno. É o que Breton a seu modo diz num dos parágrafos iniciais do manifesto: Não é o medo da loucura que nos forçará a pôr a meia haste a bandeira da imaginação.

Retomo a ideia de que a loucura delirante do sonhador se faz de acordo com a tipologia platónica sob o influxo do mesmo génio que inspira a loucura mística. Já se viu como o neófito dos Mistérios mergulha numa escuridão que é idêntica à daquele que mergulha no sono de Morfeu. A venda à volta dos olhos é o sinal de que o mundo das coisas se apagou e de que uma nova realidade pode tomar lugar. Apagam-se as coisas e deslaçam-se as voltas da censura. O fluxo imaginativo interior toma lugar, põe-se a correr, a princípio num fio ténue, pois o momento em que se pôs a venda ainda está próximo, e depois numa corrente grossa, poderosa, exclusiva, que se torna a vida, vida sensível e inexorável, do iniciado. É aí então que surge a iniciação à loucura mística, através do contacto com a noite do incriado. Como não ver nesta experiência de iniciação, a experiência mesma do homem que dorme e sonha? Dormir é ser iniciado, leio não sei onde. Basta substituir a venda pelo crepúsculo do entardecer, o interior da Terra pelo leito, para se perceber a homologia flagrante dos dois casos. O delírio dum é o delírio do outro; num e noutro, pode o curso interior do automatismo psíquico tecer os enredos simbólicos do entre mundo, para que o primeiro se veja como auriga do carro celeste a caminho da noite do incriado e o segundo em qualquer outro lugar oculto da segunda consciência.

O que surpreende no narrador de Teixeira de Pascoaes é o grande domínio dos processos oníricos que ele tem. A facilidade com que ele regista no papel ao longo de mais de cem páginas as imagens do sonho duma única noite mostra alguém muito habituado ao convívio com a corrente interior do pensamento tal como ela se manifesta na ausência das censuras próprias do primeiro nível de consciência, esse que Freud dizia não suportar certos tipo de desejos, antes de mais o do incesto com os pais, o que o levou a formular um trauma geral e nunca por inteiro resolvido para a civilização humana tal como a conhecemos desde que do sílex e do cobre se passou ao bronze.

O sonhador de Pascoaes é alguém que tem o hábito de cavalgar sem sela, sem freio e sem cair, por cerrados e montanhas, por florestas e por caminhos de poeira, o cavalo selvagem do pensamento enlouquecido, que a razão temperada ou mesmo fria do intelecto não modera nem recalca. Essa razão nada pode neste caso, pois tal como o Sol se apagou no horizonte no final do entardecer também ela, quando o homem se deitou para dormir, perdeu a luz. O que se chama adormecer não passa afinal dum apagão da razão fria do intelecto, isso que no dia-a-dia é o bom senso. Na verdade na dobra do texto pascoaesiano de 1942 o que se encontra é nada menos do que este corte da energia eléctrica da razão em escala total; o que em seu lugar fica, na noite escura do pensamento, na noite anterior, primeiro estado Fluídico e invisível da Matéria, é uma das mais livres e soltas formas do automatismo psíquico puro tal como Breton o formula no manifesto de 1924 e tal como foi possível a um homem de raro génio, quer dizer, a um homem altamente habituado ao convívio com a segunda consciência, registar primeiro com pormenor na memória e depois passá-lo – com retoques, mas retoques que se destinaram, assim confessa o narrador, a restituir os sonhos à presumível nitidez da sua representação originária – a escrito.

Uma última nota: aquela noite anterior em que a matéria regressa a um estado de fluido, a uma corrente sem formas visíveis, solvendo-se no incriado, é também, vejo agora, o estado original do verbo, que tem em cada um de nós um paralelo com aquilo que Breton chama de funcionamento do pensamento real. Este funcionamento só pode ser verbal e este pensamento supõe a existência dum outro menos real ou menos verdadeiro, dependente apenas dos sentidos e da sua experiência, que por sua vez engendra uma expressão, pobre, à sua medida. Regressando a Pitágoras que anda por certo muito próximo de tudo isto, direi que o funcionamento do pensamento real é o número, a medida tirada na alma, e o funcionamento do pensamento menos real é a coisa; o número é o verbo do pensamento real; a coisa é a expressão do pensamento sensível, o verbo degradado em código e sinal. O Número do número será o incriado, o estado original do verbo, o Deus ateu de que Pascoaes fala num outro livro, Santo Agostinho. Em todo o caso, original, sim, talvez, pode ser, mas não originário, pois este é criador e o outro incriado.

 

4 Os Sonhos de Pascoaes e a Fonte do Automatismo Psíquico

Aqui chegado já percebeu com certeza o leitor que aquilo que solda a segunda parte do Duplo Passeio ao automatismo psíquico é o sonho. Mas que sonhos são afinal os deste livro? Que tramas tece este sonhador? Que baile de símbolos dança afinal no seu delírio? Garanto desde já uma coisa: mais do que sonhos eróticos, estes são sonhos místicos; mais do que estimulados por Afrodite eles são provocados por Dioniso e Orfeu. Em Freud a segunda consciência é o depósito original, o único compartimento existente no momento do surgimento do ser; a primeira consciência, por muita importância que venha a tomar na vida adulta, só se forma em contacto com a pressão do mundo exterior, antes de mais com a necessidade de recalcar muito cedo o desejo de incesto com os pais. A segunda consciência, aquela que guarda os conteúdos ocultos, não é pois constituída apenas por materiais da experiência pessoal mas também por todos os resíduos arcaicos que formam a herança colectiva anterior e que são o único ponto de partida da sua formação como instância psíquica. É o que Freud chama os materiais filogenéticos do inconsciente psíquico.

Os sonhos de Pascoaes, não fugindo à elaboração simbólica e ao funcionamento próprio da segunda consciência, que desconhece quaisquer regras lógicas, são muito ricos em materiais colectivos arcaicos. Alguns dos seus elementos não parecem pertencer nem à experiência do sujeito em tanto que criança ou em tanto que adulto mas afiguram-se fruto de elaborações simbólicas de conteúdos gerais que resultam da experiência da cadeia dos antepassados. Veja-se um exemplo, dos muitos que posso encontrar. O pretexto da trama onírica está no passeio acordado do dia anterior. Não é de admirar que assim seja. Recordo que os conteúdos da segunda consciência só podem aceder à primeira por um pacto de compromisso, que implica a mascarada simbólica e o recurso a elementos próprios do primeiro patamar. É com esses dados reconhecíveis à primeira consciência que a segunda elabora os símbolos que lhe dão ensejo de se manifestar de forma consciente.

O pretexto em causa é o seguinte: na viagem de automóvel a caminho de Chaves, ao passar por Vila Real, na margem da estrada, num alpendre, o narrador vê um Cristo crucificado sem um braço, Cristo mutilado, preso à cruz por um braço, diz ele; depois, já no caminho do regresso, antes de Salamonde, numa aldeia à beira estrada chamada Travassos da Chã, onde o auto por breve instante pára, o narrador entretém-se a contemplar nova escultura de Cristo crucificado. No primeiro caso, em Vila Real, tem um diálogo com um rapaz, pastor da serra, sobre a forma como o braço se perdeu; no segundo, na Chã de Travassos, é interpelado por uma gaiata de dez ou onze anos que antes de se sumir lhe aponta com o dedo o crucifixo e lhe diz: – Aquele é o senhor… Esta frase ingénua impressiona de sobremaneira o narrador, que, já no carro, na estrada de Braga, de regresso a Amarante, antes de anoitecer, discorre em monólogo ensimesmado mas racional, tocando Tomás de Aquino, Francisco de Assis e Nietzsche, sobre o sentido do Cristianismo e de Cristo.

Com estes dois pretextos, que no fundo são a recorrência dum mesmo conteúdo, o de Cristo crucificado, construirá o narrador a seguinte trama onírica: a caminho de Vila Real encontra na margem da estrada o Cristo mutilado. Não tarda a dar-se conta a princípio com alguma indignação que este Cristo está a cair de borracho. Quando o narrador lhe mostra a sua revolta, o Cristo bêbado encolhe os ombros e responde com a maior naturalidade: – É que eu bebo o meu sangue, esse bastardo, esse moscatel… Uma delícia! Inicia-se a partir daqui uma longa conversa entre os dois, primeiro sobre o sentido do vinho (as cinco Chagas são cinco fontes de licor inebriante) e depois sobre o sentido de ser Cristo. Na transição dum para o outro, o Crucifixo transforma-se em estátua, a de Vénus de Milo, sem braços, a tocar pandeiro andaluz e a dançar no pedestal. Quando a metamorfose regressa ao estado natural, o Cristo continua o seu discurso, interrompido aqui ou ali por alguma exclamação enfiada do narrador. Que diz esse discurso? Dou um exemplo: Confesso que me enojam os fiéis. Têm uma tal seriedade na cara que me provoca a hilaridade. (…) Que anemia! Tudo é medo ao Demónio. Quem aquece a minha divindade? O lume do Inferno. Se ele se apaga, estou perdido… Prefiro os descrentes, a sua atitude solitária e desolada, o seu perfil de camelo no deserto. O único ponto de contacto entre mim e o homem não é a fé nem a caridade: é o sentimento da infinita solidão. E eis a dignidade humana e a divina – a mesma dor. E, por isso, os que sofrem estão comigo. Mas isto é já letra do Evangelho –, um lugar-comum. Amai-vos uns aos outros…, que velharia de Cristo! É uma frase que sabe a pastéis de Santa Clara. Que doçura arcaica! Enjoa. Porque não faço eu o elogio do ódio em puro estilo apocalíptico? Matai-vos uns aos outros! Matai-vos uns aos outros!

O funcionamento da segunda consciência desconhece quaisquer regras lógicas. Os princípios aristotélicos da identidade, da não contradição e do terceiro excluído não têm aí cabimento. São-lhe também desconhecidas quaisquer indicações de bom senso ou conveniência. O funcionamento real do pensamento, para retomar Breton, pressupõe a abolição de boa parte das censuras que modelam a primeira consciência e delimitam o seu discurso verbal. Na segunda consciência estes mesmos conteúdos estão em estado virgem, selvagem, por domesticar e desflorar. O sonho constitui um dos raros momentos em que a primeira consciência baixa guarda, abre portas e deixa as ruas e as vielas da sua tão vigiada cidadela serem tomadas pelos loucos conteúdos da segunda consciência. Não admira pois que, fruto de cruzamentos vários, que tanto vêm dos conteúdos mnésicos pessoais como ascendem dos filogenéticos, este Cristo chegado da segunda instância psíquica surja bêbado e traga com ele um discurso antitético ao da superfície do Evangelho. Cristo na segunda consciência não se diferencia como na História do Anticristo; na segunda instância os contrários não existem, estão unidos numa mesma realidade que os significa ou identifica aos dois. O Cristo é pois o Anticristo e o amai-vos uns aos outros quer na realidade dizer matai-vos uns aos outros.

Pergunta o leitor se uma tal loucura é para ser levada a sério? Em primeiro lugar, antes de qualquer juízo, note o leitor comigo a ousadia do narrador de Pascoaes; não fui exagerado com certeza quando lhe disse que o livro de 1942 não tinha qualquer paralelo no tempo. Ainda hoje, tantas décadas depois, a maior parte dos livros que se dão à estampa em Portugal fazem figura de artefactos inócuos ao pé desta perigosa bomba. Quanto à pergunta, digo, sim, isto é para ser tomado a sério, como verdade, com uma única condição: saber que se deixa de lado o plano da História, produto da modelação da primeira consciência, e que se cuida aí apenas do segundo nível. A questão da História e da sua modelação pela primeira consciência tem muito que se lhe diga. Não se nega o seu interesse nem mesmo a sua necessidade no plano da realidade sensível. O problema está que uma excessiva fixação neste patamar acaba por obstruir os canais da alma encarnada com o inter-mundo onde vive o duplo. E esta linguagem pode ser traduzida em linguagem freudiana, de forma bem mais acessível: as resistências da primeira consciência, se forem inexoráveis, não dando saída de nenhuma espécie aos conteúdos de segundo nível, produzem os sintomas nevróticos e em termos colectivos conduzem à neurose social.

Não ignoro que um sonho deste tipo pode merecer uma análise freudiana. Basta atentar no pormenor da metamorfose do Cristo mutilado no torso da Vénus de Milo para o analista lhe encontrar um interesse sexual de largo alcance. A análise leria aí, primeiro na mutilação e logo na metamorfose, o momento em que o rapaz recalca a fase edipiana da sexualidade através do medo da castração. Não ignoro pois a possibilidade duma tal leitura, que me abstenho porém de desenvolver. De qualquer modo o sonho não me interessa apenas nesse ponto, onde o analista focaria toda a sua atenção, mas em todos os restantes, em que o analista se arriscaria a ver apenas materiais despiciendos, destinados tão-só a introduzir ou a fechar o núcleo duro do trauma edipiano, e que podem por isso ser deitados fora. Toda a construção onírica me interessa, independentemente dos momentos privilegiados pela análise.

O trauma edipiano tem com certeza uma larga importância na formação do psiquismo pessoal e até colectivo. A prática do incesto e o seu abandono é demasiado recente na História da humanidade para assim não ser. Na história pessoal de cada um de nós, na baixa infância, há por certo um dado momento em que o desejo de incesto, como memória recente da espécie, se manifesta para logo depois, vítima do medo da castração, quer dizer, do castigo, aceitar ser recalcado. De qualquer modo, e qualquer analista o reconhecerá comigo, a segunda consciência não traz apenas do passado o desejo de incesto com os pais. O continente de que aqui se fala é muito vasto e os seus materiais muito largos, talvez infindáveis. Vêm de muito longe e não começam apenas no momento intervalar que está entre a prática e a proibição do incesto, qualquer coisa como dez a quinze mil anos na História da humanidade. É possível pensar que alguns desses materiais são anteriores à formação da espécie, há quatro ou cinco milhões, e até da vida tal como hoje a conhecemos, no cenozóico, com cinquenta a cem milhões.

Demais, atendendo à natureza profunda da instância de que falo, em que os contrários não estão separados, é possível postular a hipótese de que esse materiais não dizem apenas respeito ao passado mas também ao futuro, não sendo apenas resíduos, sedimentos, vestígios, mas também indícios de sucessos futuros – que se situam no plano da segunda consciência como se já tivessem sido, ainda que em imagem apenas, ainda descarnados de realidade sensível. Se isto for assim, qualquer um, sem necessidade de nenhuma faculdade especial, por constituição ingénita, pode afirmar como num mistério órfico: – eu já morri, sem ainda ter morrido.

É isto que permite ligar com tanta facilidade o inconsciente psíquico da análise ao extra-mundo de Platão e ao mundo das imagens tal como Sohravardi dele falou. E é isto que deixa também a liberdade de associar o automatismo psíquico, que põe a descoberto o funcionamento do pensamento real, ao trabalho simbólico da segunda consciência e ao fluxo da imaginação em estado puro. Já se viu que a embriaguez onírica da segunda parte do livro Duplo Passeio de Teixeira de Pascoaes é uma captação soberba deste baile de máscaras ou de símbolos, deste jorro em estado bruto da imaginação. É porventura impossível encontrar em toda a literatura portuguesa de sempre materiais de segunda consciência em estado tão depurado e puro como os que se encontram no livro de 1942.

Dou mais um exemplo: nas metamorfoses do sonho, o carro onde o narrador segue vai dar a uma praça desconhecida, povoada de vultos e que tem no centro uma estátua de Colombo. O narrador sai do carro, mistura-se na multidão e vai dar a uma catedral. Entra, depara com uma larga escadaria, que desce, degrau a degrau, vendo nas paredes, onde tremeluzem brandões acesos de cera, estátuas de mártires. Por fim chega a um subterrâneo fundo, que pode evocar as antigas catacumbas paleocristãs. Ao fundo, uma cortina vermelha a arder. Curioso, afasta-a, dando de caras com uma orgia desenfreada. Segue-se o diálogo com uma bacante nua, que se afirma uma católica romana e lhe dá de beber um cálice com o sangue dos mártires, convidando-o a bailar. Nisto repara em duas telas que existem nas paredes do dancing (a expressão pertence ao narrador), uma de S. Jerónimo a escrever num pergaminho diante duma caveira e outra de S. João a compor o Apocalipse, tendo o mar aos pés e uma águia sobre a fronte. Não tarda que Jerónimo e João saltem da tela para a orgia, o primeiro a bailar, agarrado ao esqueleto duma mulher (essa cortesã absolutamente nua, despida duas vezes, dum impudor que ultrapassa as raias da morte), o segundo libando com uma taça de oiro (cheia da ira de Deus), na mão direita. A cena acaba de seguida na apoteose dos loucos ou no bacanal dos místicos. Assim: E baila o Cordeiro morto, com a espada a sair-lhe da boca. E baila o dragão vermelho, com sete cabeças e os anjos das sete pragas. E outras figuras baixaram do tecto ou do infinito: meretrizes de Jerusalém, efebos da Grécia, pitonisas e mártires das Catacumbas… Que multidão ressuscitada e delirante!

Podia multiplicar os exemplos, desde uma procissão religiosa em Amarante, com andor, pálio, sacerdote, dalmática, hissope, tudo, mas tendo no centro o culto dionisíaco dum casal de Diabos negros (os dois monarcas das Trevas), até ao automóvel a deslizar à superfície dum mar cheio de espuma multicolor. Mas não é preciso. O leitor já entendeu a realidade fantástica deste mundo de segundo nível e as riquíssimas e singulares formas de automatismo psíquico que ele supõe.

Acrescento apenas um ponto para melhor explicitar a natureza real deste mundo onírico. Recordo “A Sombra a Vida” e as imagens que se tocam como se fossem tão sensíveis e tão verdadeiras como a realidade material. É aqui que quero chegar, para chamar a atenção para o aspecto criador com que a alma encarnada, humana ou não, trabalha. O narrador do livro, antes de mergulhar no relato dos conteúdos da segunda consciência diz por esse motivo que a Psicologia é uma Super-zoologia, quer dizer, o psiquismo tem em si uma fauna fantástica, de segundo nível, que um dia será preciso conhecer e cartografar com a mesma precisão com que as ciências físicas estudaram e catalogaram as espécies animais do mundo sensível. Atrás falei do aspecto criador da alma terrena quando se liberta de censuras e trabalha no plano do automatismo psíquico. Duas notas finais: primeiro – o automatismo psíquico não é exclusivo ao surrealismo; já Breuer no final do século XIX, através de estados hipnóticos, punha os seus pacientes a verbalizar interditos, o que análise freudiana herdou, trocando apenas o estado hipnótico pelo semi-adormecimento do divã; segundo – em vez de dizer que o psiquismo é criador de realidades novas, essa Supra-zoologia, melhor se diz que ela é descriadora, já que a fonte que a alimenta, se fonte existe, na derradeira margem do extra-mundo, que não é já margem, é o incriado.

 

5 O Bailado de Pascoaes lido por Cesariny

Troco agora por um instante o livro de 1942 de Teixeira de Pascoaes por um outro do mesmo autor, O Bailado, dado à estampa em 1921. A propósito desse livro chegou a altura de convocar Mário Cesariny e o surrealismo português. Até aqui mantive-me calado sobre este. Preferi um caminho diferente: pegar no surrealismo geral e suas adjacências e mostrar como ele tem uma afinidade electiva com Teixeira de Pascoaes. Não pode agora espantar que se revele uma passagem, a propósito de O Bailado, em que pela mão do mais surrealista dos poetas portugueses o autor de Duplo Passeio é considerado um precursor do surrealismo em geral e do português em particular. Nem Gomes Leal, nem Pessoa, nem Almada, nem mesmo Sá-Carneiro e Ângelo de Lima, para não falar em Eugénio de Castro ou em Camilo Pessanha, estão no seu nível. Julgo que se o leitor me seguiu até aqui, e conhece as obras destes autores, compreende bem o porquê da afirmação. Recordo o que atrás disse e que importa sempre ter presente: é impossível encontrar na literatura portuguesa de sempre materiais de segunda consciência em estado tão desenvolvido e tão elaborado como os que se encontram no livro de 1942.

Leia-se então Cesariny em 1973 a escrever sobre Pascoaes: O seu livro O Bailado, impresso em 1921 e não mais reeditado, pude eu já defini-lo como “rimbaldiano sem Rimbaud e surrealista sem o surrealismo”, tal o encontro interior com as teses de Breton. (“Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”; rep. em As Mãos na Água a Cabeça no Mar, 1985: 261)

A pergunta que apetece fazer é porquê, nas palavras de Cesariny, O Bailado e não O Duplo Passeio? Desconhecia Cesariny este segundo livro? Ou o primeiro, de 1921, é ainda do ponto de vista do automatismo psíquico puro ainda mais importante do que o segundo? Que Cesariny não ignorava a existência de Duplo Passeio não tenho dúvida. Passagens do livro – o encontro com o Cristo borracho e a chegada dos Diabos a Amarante – foram por ele incluídas na magna antologia que fez de Teixeira de Pascoaes e deu à luz com o nome Poesia de Teixeira de Pascoaes (1972; reed., 2002). Quanto à natureza do livro de 1921 não sei que diga. Abro, leio e releio. Encontro lá o seguinte: O dia em que renasci, é o único facto curioso da minha História, em mil volumes, que principia na Nebulosa e findará no Terramoto universal. (“Prólogo”, XXV) O livro é a fala dum espectro, de alguém que perdeu a carne e universalizou a alma; é a assumpção do mais inesperado a desfavor do nome próprio. Por isso as suas páginas, quando não são reflexivas, despejam uma saraivada de símbolos, de metáforas, de imagens, e até de pequenas e sugestivas tramas, que ficam a bailar suspensas no entre mundo, sublimando numa leve cinza em região já etérea o incêndio da realidade espessa; é o trabalho do espírito, ao ar livre, na dança das palavras e dos fragmentos que organizam o livro. E organizar quer dizer, aqui, noto, desorganizar o mundo, esse mundo ajustado e sustido pelos sentidos físicos e pela razão mental. Daí os fragmentos e daí a leve cinza que ascende ao céu.

Nesse sentido O Bailado comunica com o livro de 1942. Atendendo a que foi o segundo livro em prosa que o poeta deu a lume – o primeiro foi Verbo Escuro (1914) – é possível ver nele o ponto de partida das experiências de supra-real do livro de 1942. É esse, julgo, o entendimento de Cesariny, porquanto no ponto em que o deixei ele continua: Data de 1897 a sua primeira publicação. Até 1951, data da última, não deixa de acrescentar-se repetindo-se, obsessivamente, possessivamente, sem concessão ao cuidado ou à organização do literário, numa obra que pratica a iluminação poética como os alquimistas teriam praticado a pedra filosofal. (1985: 261) Nos dizeres de Cesariny retenho a obra de Pascoaes como um contínuo poético ininterrupto, em que por isso os livros de 1921 e 1942 comunicam por estreitos vasos, e o modo como isso se faz, por possessão. E aqui Cesariny toca Platão, o Platão do Fedro ou do Theteto que vê a loucura dividida em duas espécies distintas, sendo a segunda não fisiológica, fruto de inspiração por uma voz desencarnada e imaterial, o daemon ou génio que instila os quatro tipos de furor divino atrás referidos. Já se sabe que isto tem na linguagem freudiana uma tradução: são os conteúdos da segunda consciência a soprarem o seu vento proibido, mas sem toxinas, limpo e fresco, se vivido e respirado por dentro, sobre os muros altos e protegidos, as janelas fechadas, as portas aferrolhadas da cidadela racional.

Ainda assim o livro de 1921 tem paralelos reconhecíveis, ao invés do livro de 1942, ante de mais Húmus, de Raul Brandão, vindo a lume em 1917, e que Pascoaes deve ter conhecido bem, publicado que foi no Porto pelas edições da Renascença Portuguesa. São dois livros que me atrevo a ver como afins e que muito devem ter contribuído para a aproximação dos dois autores, que poucos anos depois davam à estampa um livro escrito a quatro mãos, Jesus Cristo em Lisboa (1927). Não foi por certo à toa que Brandão escreveu sobre o livro de 1921 (Seara Nova, 14-1-1922), vendo nas palavras dele a dança ignorada do espírito. A leitura de Brandão apela a uma última aproximação: foram as palavras como dança ignorada do espírito que levaram por certo muitas décadas depois Herberto Helder a pegar no Húmus de Raul Brandão e a escrever com as palavras dele um poema sobre o terror da morte.

Muito bem! Mas porquê O Bailado e não O Duplo Passeio? Por certo porque o livro é um ponto de partida da prosa da maturidade de Pascoes, incluindo para o que há de bailado de símbolos ou de corso carnavalesco e folião no livro de 1942. Ainda assim a resposta não satisfaz por inteiro. Para o restante, avanço isto: o livro de 1921 ofereceu a possibilidade de falar em Portugal dum texto surrealista quando o surrealismo no mundo ainda estava por ou para nascer; por tal precedência, por tal afinidade involuntária, entre Pascoaes e Breton, entre o ano 21 e o 24, podia Cesariny escolher sem hesitações e de forma indiscutível aos olhos de todos o antecessor imediato do surrealismo histórico português.

 

6 Duplo Passeio e o Surrealismo Português

Regresso ao livro de Pascoaes de 1942. Em Duplo Passeio as experiências de além mundo são experiências de supra-real; estas são tão constantes e vivas que o conjunto é tomado por incursão supra-zoológica. O automatismo psíquico, tal como ele começou a ser entendido no estudo de certos casos de histerismo, é levado nesse livro a um grau muito elevado e sem paralelo nos contemporâneos da língua e até fora dela. Uma das surpresas do livro é que não tem linhagem nem dentro nem fora, a não ser a própria escrita de Pascoaes. Já se viu que o único paralelo possível para ele é o do Quincey opiómano e o que dele derivou, mas nunca Pessanha, cujas visões, se as há, são clássicas. A obra corresponde ao que Breton pediu do automatismo, quer dizer, a expressão do funcionamento real do pensamento, livre da razão do intelecto e solto de preocupações morais ou artísticas.

Por curiosa coincidência numérica, e em tais casos nem tanto por coincidência, alguns estudiosos da literatura portuguesa do século XX, e dos melhores, como Jorge de Sena, apontam o ano de 1942 como aquele que viu surgir em Portugal, na língua, a primeira grande obra de cunho surrealista. Transcrevo, um pouco ao acaso: Apenas uma Narrativa (1942), do poeta António Pedro, livro que é a mais perfeita realização de novela surrealista da literatura europeia. Isto no texto “A Literatura Portuguesa Contemporânea de Ficção” (1960; rep. em Estudos de Literatura Portuguesa III). E ainda, desta vez por paralelo ao também poema de Pedro Proto-poema da Serra de Arga, este de 1949: Posto ao lado da prosa magnífica de Apenas uma Narrativa, (não sem razão é dedicada a Aquilino esta obra) de ambos os trabalhos sobressai, curiosamente, um surrealismo regionalista, que corrige com salutar brutalidade, a visão predominante lírica do Minho de um Pedro Homem de Melo. Isto no texto “Surrealismo (a propósito de uma exposição e de algumas publicações conexas)” (1949; rep. em Estudos de Literatura Portuguesa III). E de novo: Em 1942, António Pedro publicou Apenas uma Narrativa uma bela e poética novela que permanece uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua. Agora em “O Surrealismo em Portugal” (1974, inédito; em Estudos de Literatura Portuguesa III) E por fim o seguinte: E, no entanto, António Pedro nesse mesmo ano publicava uma das grandes obras-primas da prosa e da ficção portuguesas, e sem dúvida uma das mais admiravelmente conseguidas tentativas de novela surrealista em qualquer língua, Apenas uma Narrativa. (“Notas acerca do Surrealismo em Portugal”, 1978; rep. em Estudos de Literatura Portuguesa III)

Tiro pois de Sena o seguinte e por ordem cronológica: Apenas uma Narrativa em 1949 é surrealismo regionalista em prosa magnífica; em 1960 é a mais perfeita realização de novela surrealista da literatura europeia; em 1974 é uma bela e poética novela que permanece uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua; por fim em 1978 uma das mais admiravelmente conseguidas tentativas de novela surrealista em qualquer língua.

O juízo de Sena é forte e sem margem para dúvida: o livro de 1942 é uma das melhores obras em prosa do surrealismo mundial. Se assim é em relação ao mundo, e tanto é que o chega a tomar como a mais perfeita realização de novela surrealista da literatura europeia, superior pois a qualquer outra, francesa, espanhola, inglesa, húngara, checa, e por aí fora, o que não é nada pouco, não sobra dúvida em relação ao Portugal dos pequeninos: a novela baterá aos pontos qualquer tentame de prosa que por cá se fez no domínio do surrealismo. Nem vale a pena tentar comparações, já que a humilhação do contendor seria completa. Sena é perentório; ainda assim fica-me uma dúvida, a de 1949. Então o surrealismo de Pedro é regionalista? E que coisa é essa de surrealismo regionalista? Sena não explica. Pergunto: também haverá um cosmopolita? E outro bairrista? E outro cineclubista? E outro náutico? E outro verde e azul? Há qualquer coisa que não bate aqui certo, digo comigo. Esta do surrealismo regionalista é suficiente para me deixar de pulga atrás da orelha. O melhor é ir ver ou rever o livro de 1942.

Vou reler. Que se encontra lá? Um livrinho magro, engraçado, de algumas dezenas de páginas, dividido em dez capítulos (ele assim diz), e que é a imitação descarada não da novela surrealista francesa, que não me parece que o surrealismo alguma vez tenha pretendido criar novelas, mas dos processos narrativos em prosa a que o surrealismo deitou mão para descrever a projecção de fenómenos psíquicos na dita realidade. Sena era bom crítico, excelente até ao que se diz, mas pelo que se vê também patinava. Esta do texto de Pedro de 1942 ser a mais perfeita realização de novela surrealista da literatura europeia e uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua é deslize dos grossos, que nem pintado se papa. Ao lado da Nadja de André Breton, o textinho de Pedro faz figura de Zé dos Anzóis. Para bem dizer, nem se dá por ele; apaga-se de todo. Se tiver hoje de fazer o balanço crítico do livro direi o seguinte (passando ao largo de Sena): o livrinho de 1942 está para os processos narrativos do surrealismo da época como certa pintura da mesma época está para a de Dalí; vê, lê, percebe e copia de forma aplicada. Apenas uma Narrativa de Pedro é um livro bem comportado, uma aula de desenho com modelo à vista, um exercício escolar, concedo que conseguido; é aquilo que eu já vi ser designado de surrealismo copista e que neste caso nem precisa do surrealismo nem do copismo, já que se lhe pode deixar o apodo de regionalista. Apenas uma Narrativa é uma obra regionalista, ponto final. Em termos críticos fica classificada, sem precisar mais, e fica até a favor do autor, que troca um exercício de ginásio por uma intervenção local.

Sena porém acertou num ponto: 1942 foi ano crucial em termos de narrativa surrealista em Portugal, como de resto foi ano cheio em termos internacionais ou não fosse o anagrama do ano do primeiro manifesto – 1942, ano dos prolegómenos a um terceiro manifesto, é igual a 1924. O único senão de Sena foi o engano de livro: em vez da insonsa narrativa de Pedro, tão decepcionante (para não dizer nula) em termos de expressão do pensamento real, sem censuras ou preocupações exotéricas, pois não é possível captar a singularidade dos conteúdos da segunda consciência numa aula académica de desenho com modelo à vista, ou numa memória descritiva duma região da geografia terrestre, o livro que na verdade marcou na língua portuguesa um passo importante e mesmo decisivo na conquista e no conhecimento dos processos do automatismo psíquico tal como Breton o formulara em 1924 foi Duplo Passeio de Teixeira de Pascoaes.

Não precisa por certo o leitor que eu regresse às pontas que ligam o livro de Pascoaes ao surrealismo; foi artigo tratado com alguma atenção nas notas anteriores. Não obstante, paga o trabalho adiantar o seguinte: é quase certo que ao invés de Pedro, que vivera em Paris e em Londres na década de trinta, ligando-se a grupos que professavam o surrealismo, então no pico do favor jornalístico, Pascoaes ignorava em parte, ou mesmo no todo, as teorias de Breton e seus desenvolvimentos ou as extensões do surrealismo internacional. A bem dizer Pascoaes nunca saíra de Portugal, desconfiava o seu tanto do espírito das Vanguardas, que vira passar com indiferença, e ao que se sabe não tinha a mínima preocupação em estar à la page. Mas tal como o facto de não haver surrealismo em 1921 não obstaculizou que um livro como O Bailado fosse nas palavras de Cesariny surrealista sem o surrealismo, também a ignorância em que Pascoaes vivia no ano de 1942 em relação ao surrealismo internacional em nada obsta a que Duplo Passeio seja um livro muito mais interiormente surrealista do que a obrinha de Pedro, que só no exterior e de forma académica o é.

Um livro como Duplo Passeio, castelo encantado em pedra cúbica, pode ser tão expressivo para o surrealismo português como a obra do facteur Cheval o foi para o surrealismo francês, enquanto a obrinha de Pedro, traçada e retraçada a régua e esquadro, representa para ele o que certas imitações galopantes de Dalí, só formais, quase meros decalques, representaram na década de trinta para o francês.

Um último ponto ainda sobre António Pedro. Diz Jorge de Sena no derradeiro texto que escreveu sobre o surrealismo português: Quem nos anos 30 mantivera, com vários “ismos” inventados e experimentados por ele, algum do fogo sagrado da Vanguarda pela Vanguarda, havia sido António Pedro (1909-66), que veio a ser mais tarde o catalisador essencial do movimento surrealista português, quando ele se conglomerou em 1947, na corrente do efémero renascimento do surrealismo internacional que ao final da Segunda Grande Guerra sucedeu.

Não me admira que quem tomou o exerciciozinho escolar de Pedro em 1942 como a mais perfeita realização de novela surrealista da literatura europeia e uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua tome agora o seu autor como o catalisador essencial do movimento surrealista português. Um dos erros grossos do Sena crítico foi a avaliação destemperada que fez da narrativa de Pedro. Cheira esta, no que diz respeito a surrealismo, e à distância, a imitação em segunda mão; não é preciso muito faro para o palpar e só espanta o entupimento de Sena, que tinha obrigação de ter nariz crítico para muito mais. A obrinha de Pedro não merece nem sombra dos encómios que Sena lhe serviu, a não ser por puro gozo, o que não parece ser o caso. Esses ditirambos a ficarem no ar melhor vão ao Duplo Passeio, por muito selvagem e involuntário que seja o surrealismo do seu autor. Mas ao estar longe de modelos e de escolas, ao deixar de lado qualquer preocupação de ser surrealista, ou de parecê-lo, tão óbvia no Pedro de 1942 que até dá dó, Pascoaes atinge sem querer, através da observação e captação de imagens oníricas em estado virgem, uma pureza surrealista ímpar, mostrando como ninguém o fizera até aí na língua o funcionamento real do pensamento. E lembro, se preciso ainda for, que foi a este que Breton em 1924, na entrada lapidar para futuros dicionários, chamou surrealismo.

Ora com um tal grau de automatismo psíquico, ao lado do qual o exercício de Pedro é corpo frio e morto, a obra pascoaesiana de 1942 bem merece ser tida como uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua, para usar as palavras boas do Sena crítico. Quando se tratou de começar a escrever a história do surrealismo em Portugal, o que sucedeu a partir da segunda metade da década de sessenta do século XX, Cesariny viu bem. O catalisador psíquico do movimento em Portugal, o vedor das forças ocultas, o batedor que teve asas para abrir as primeiras sendas e sondar os primeiros abismos, não podia ser um bicho escolar como António Pedro, que para cúmulo envergara por volta de 1933-4 a camisa azul dos fascistas portugueses; apenas um pobre tolo como Pascoaes, que nunca saíra da ponte de Amarante, tinha orelhas de burro, uivava à Lua, nunca vestira fardamenta nenhuma, nem a de militar nem a de académico, e escrevia livros tão inaceitáveis e ilegíveis como O Bailado e Duplo Passeio, podia ter direito a esse papel.

Demais em vez de fazer desenhos académicos à Dalí, como os de Pedro e de Cândido Costa Pinto, esse mesmo Pascoaes deitava ao papel uns borrões psíquicos, arrancados aos arcanos da alma, em que os anjos apareciam com pés fendidos, cornichos de cabra e rabinho negro torcido e os demónios se angelizavam com asas de luz e sorriso infantil, tudo num bailado entre o infernal e o etéreo, que vinha do tempo dos lobisomens e ia direito ao do Apocalipse, e que era surrealista por direito próprio sem precisar de surrealismo nenhum, ao contrário dos outros todos, que não podiam nem conseguiam ser surrealistas apesar de tanto e tão bom surrealismo. Destes todos o Pedro de 1942 vai à frente mas Sena – desta vez o Sena que pretendeu passar por precursor do surrealismo em Portugal já que tinha nos primeiros livros de versos, vede lá ao que chega esta corrida, epígrafes de Éluard e de Breton – também vai por perto.

 

7 Alguns Sonhos de Mário Cesariny

Aceite-se a ideia de catalisador para o trabalho de Pascoaes em 1942. E aceite-se que esse primeiro desenvolvimento se deveu à capacidade de verbalização de imagens oníricas em estado puro. Não posso deixar de recordar que para André Breton a surrealidade é a resolução da contradição entre o sonho e a realidade. Este papel dado ao sonho por Breton mostra que uma parcela significativa dos estados de supra-real só pode ser estudada, observada e até verbalizada a partir da atenção dada à prática do sonho. É isso que o texto maior de Teixeira de Pascoaes ilustra. Ele pode ser tido como um dos raros momentos em que o verbo poético resolve a favor da surrealidade os estados contraditórios das duas consciências. Por esse motivo o livro de Pascoaes está ao nível de receber aqueles altíssimos encómios que Sena tão mal distribuiu.

Tudo isso está visto. O que vale agora é desenvolver esta percepção num livro de Mário Cesariny, 19Projectos de Prémio Aldonso Perdigão seguido de Poemas de Londres (1971). Está lá um poema, “Passagem dos Sonhos”, que segue a linha de observação dos primeiros surrealistas ao mundo onírico e por afinidade a capacidade de verbalização e de captação pura que Pascoaes sobre o sonho testa.

Nesse poema Cesariny conta em verso e prosa uma sucessão de metamorfoses oníricas sem indicação de datas e de lugares. São micro-narrativas que se tiram umas das outras, pondo a nu o jogo e o curso do pensamento e expondo as imagens simbólicas que resultam do acordo entre as duas consciências. Para estas notas, interessa-me muito um momento dessa corda metamórfica a que passo a chamar o “sonho com António Maria Lisboa”. A narrativa resume-se ao seguinte: o sujeito do sonho duma escada que está descendo, e no final da qual está colocado um penico, vê um quarto branco, onde está António Maria Lisboa morto, meio apodrecido, mas em pé, firme, estendendo os braços para o sujeito que desce, implorando com os olhos a sua presença. À medida que este se vai apercebendo do conjunto para o qual se dirige, todo feito de horror, e no qual o penico põe uma nota de insuperável repulsa, sente-se incapaz de transpor o derradeiros degrau que o separa da cripta onde Lisboa reclama a sua presença. A impressão que tem é que se transpuser esse degrau em falta, não mais regressará ao mundo dos que vivem à superfície da Terra, entrando para sempre no mundo dos mortos.

Transcrevo de Cesariny: Outro é o pesadelo que pode matar, como tive pouco depois da morte de António Maria Lisboa: uma escada subterrânea, branca, entre paredes de azulejo branco. Um cheiro a desinfectante, como num urinol, ou de hospital votado às mais cruéis doenças. No fim da escada, um aposento em forma de rectângulo, fechado, não muito espaçoso, de azulejo branco também as paredes, talvez o tecto. Utensílios grosseiros, como um bacio colocado no fim da escada, aumentam a brancura de casa mortuária ou de enfermaria sem esperança. Naquele ambiente cruelmente esquematizado pelos humores do meu cérebro, pairava, digo bem pairava porque podia deslocar-se no espaço, sem peso, como um (… impossível escrever a palavra adequada!), olhava-me, medonhamente decomposto, descarnado, podre, erguendo os braços na minha direcção, esperando que eu descesse, fosse ter com ele, atravessasse o último degrau, o “cadáver” vermelho negro e branco do António Maria Lisboa. Ao acordar, o coração batia-me tão forte, o descontrole era tal, que percebi com o próprio corpo que se tivesse descido o último degrau, aceite em mim a visão pavorosa, decerto não teria regressado. (1971: 31-2)

Este sonho interessa-me por vários motivos, o primeiro dos quais já se disse. Ele faz parte dum continente próprio, distinto do mundo empírico dos sentidos e do universo abstracto do intelecto. Esse continente, o do supra-real, é como o leitor já sabe o das imagens, ou o dos símbolos, onde os conteúdos da segunda consciência afloram, para se manifestarem, deixando o esquecimento a que estavam sujeitos pelo recalque. Labora aí, nessa parcela, uma faculdade intensa e altamente poderosa, que é a responsável pela criação das imagens ou dos símbolos e que nada tem a ver nem com as percepções sensíveis, embora se saiba servir delas na esfera que lhe é própria, e por isso no sonho se sente com os sentidos, nem com os conceitos do entendimento intelectivo, apesar da fulgurante capacidade cognitiva que mostra. Essa faculdade é a imaginação, que deve ser encarada enquanto faculdade psíquica, não intelectual, que põe a alma encarnada em contacto com o além-mundo ou em linguagem freudiana com o mundo da alma.

Ora no sonho com António Maria Lisboa aquilo que começa por impressionar o leitor é a realidade que o sonho mostra. É o primeiro ponto digno de nota deste nó onírico. O sonho existe e nada tem de irreal. O sonhador não está diante dele como a criança que trinca pipocas numa sala de cinema; neste caso as imagens virtuais são inofensivas, no outro não. Ao invés a realidade deste sonho é de tal ordem real, de tal modo crua, ofensiva mesmo, que o sonhador se sobressalta a ponto de saber que vai morrer se der no sonho o passo seguinte. Este sonho tem pois isto de notável: é um sonho que pode matar! Isto quer dizer que o poder da imagem é levado nele a uma temperatura tão fundente e elevada que iguala ou supera as próprias determinantes fatais da realidade. É o grau ou o momento em que, como sucedia na arte mágica, a imagem se sobrepõe à realidade. A imagem pode ser então comutada com a realidade que representa sem que se perca o princípio vital que anima esta. Por isso no sonho de Cesariny se pode morrer se o sonhador der mais um passo e transpuser o umbral da cripta.

Não posso deixar de associar este tipo de sonho a um segmento da mística árabe ismaelita. Passa-se aí o seguinte: sempre que alguém sonha com o Imame escondido, o décimo segundo, não se pode aproximar dele. Caso se aproxime e entre no círculo próximo em que ele se encontra fica impossibilitado de regressar a este mundo, assistindo no sonho à sua própria morte. O que está em causa é a impossibilidade de entrar em contacto directo com o Imame escondido sem desencarnar. O sonho de que falo é muito desejado na mística xiita mas raramente realizável, pois são poucos ou nenhuns os que estão preparados para pisarem vivos, antes da morte física, o mundo da alma, que é a Terra dos Arcanos. Por esse motivo o sonhador acorda sempre antes de dar o passo decisivo que o levaria a ficar fechado no círculo do Imame. O resto da sua vida é passado a tentar suprir o espaço, o pouco espaço, que no sonho não foi capaz de deixar para trás, de modo a que no momento da morte física possa abraçar o pneuma imanológico.

O mesmo se pode dizer do sonho de Cesariny. António Maria Lisboa é como que o décimo Imame da mística xiita – e já se verá o que isto em linguagem freudiana quer dizer – e os degraus que o sujeito onírico não foi capaz de transpor, para dar ao morto as mãos, foram aqueles mesmos que Cesariny teve de descer até ao momento da sua morte física em Novembro de 2006. Posso aceitar que este sonho teve lugar no ano de 1953, ano da morte de António Maria Lisboa, e que ao longo de cinquenta e três anos, tantos os que vão da morte de Lisboa à de Cesariny, o mais importante da vida deste foi a preparação que teve de fazer no sentido de descer os poucos degraus finais que ele não foi capaz de descer no seu sonho.

Que quer isto dizer? Antes de adiantar uma resposta à pergunta, importa revelar que este é um sonho com pretexto fisiológico imediato, o que de resto é muito vulgar e conhecido. Comem-se alhos e sonham-se com alhos; vai-se à praia e sonha-se com a praia. Em termos freudianos isto é a forma que a segunda consciência encontra para respeitar integralmente o pacto que fez com a primeira. Recebe dela os materiais inofensivos com que elaborará as imagens simbólicas com que chegará à consciência do sujeito. Por isso os alhos ou a praia do sonho nunca serão os mesmos da realidade; eles são apenas os materiais de primeiro nível de que a segunda consciência se serve para embrulhar e despachar os seus conteúdos próprios, muito menos inócuos do que os primeiros.

Qual então o pretexto fisiológico imediato do sonho de Cesariny com António Maria Lisboa? Sei de fonte segura o seguinte (a ser confrontado com o que Cesariny diz no prefácio da edição de 1977 da Poesia de António Maria Lisboa): Cesariny e Lisboa amuaram nos tempos finais da vida deste. O motivo do desentendimento entre os dois desconheço-o mas não terá sido de monta, porventura a edição do manifesto “Afixação Proibida”, que só veio a ser publicado por Luiz Pacheco depois da morte de Lisboa e que chegou a motivar repreensão deste àquele. A certa altura, Cesariny sente um desejo irreprimível de voltar a estar com o amigo. Vai ter com ele ao quarto em que ele vive – no bairro da Graça, na Travessa das Beatas – e quando lá chega depara-se com um estranho e chocante espectáculo: António Maria Lisboa acabara de falecer poucos momentos antes, aos vinte e quatro anos, e estava deitado, voltado para a parede, de costas, sem que ninguém ainda lhe houvesse tocado.

Percebe-se o choque da situação e como ela afectou ou mesmo traumatizou a primeira consciência de Cesariny. Não surpreende que estes materiais se tenham tornado solução corrente da segunda consciência na construção das imagens e dos símbolos com que se manifesta. O próprio Cesariny confessou algures que a morte de Lisboa se tornou motivo recorrente de devaneio onírico. Subsiste porém a pergunta que há pouco fiz: que quer um sonho com António Maria Lisboa dizer? Dito doutro modo: que conteúdos da segunda consciência aproveitaram o cenário desta morte para se manifestar? Para responder a esta pergunta é importante saber que o acidente sensível ou substracto real que está na origem dos símbolos oníricos é independente do que se passa no sonho. O que interessa neste já não é o cenário material que a primeira consciência fornece mas o símbolo que a segunda elabora. O que isto quer dizer é que o Lisboa que Cesariny viu de costas, morto, na Travessa das Beatas, não é o mesmo que depois viu no sonho de que nos ficou o espantoso relato. O primeiro é o corpo volumoso, no rigor mortis, que antecede a inumação; o segundo é um símbolo.

Mas um símbolo de quê? Já lá vou. Repare-se primeiro que no sonho Lisboa está morto mas em pé, firme e activo. Ele implora com os olhos e estende as mãos para o amigo, pedindo a sua presença. É pois um morto vivo ou um morto que ressuscitou depois de morrer. A segunda consciência desconhece a contradição e pode por isso elaborar estes paradoxos. Aceitando esta ideia dum morto que passou a viver depois da morte, que é o que sucede ao Lisboa do sonho de Cesariny, posso então dizer que este Lisboa é o símbolo do Duplo ou da alma, mas daquela parte da alma que não chega a tomar matéria. Dito doutro modo: o Lisboa que Cesariny viu no sonho era o daemon de Lisboa, o veículo do incriado, e não o Lisboa que ele conhecia do dia a dia, o Lisboa com quem se zangara nos últimos tempos. Todo o daemon é um Eu em imagem, quer dizer, uma alma sem carne, que pode ser visualizada pela imaginação enquanto órgão de visão psíquica interior. É este Lisboa psíquico, desencarnado, este Lisboa em corpo astral, que Cesariny encontrou nas imagens do seu sonho.

Entende-se agora melhor a certeza que o sonhador tem de que morre se der o passo decisivo em direcção a este morto ressuscitado e a sensação de pânico que se lhe associa. É que se der esse passo, o próprio sonhador encontra o seu Duplo, o seu Eu em imagem, mudando de plano. O Lisboa do sonho de Cesariny é um daemon que vive na Terra das Imagens, um corpo que desencarnou, perdendo volume e espessura material, um corpo que é já só uma imagem; por isso quem for ter com ele, quem lhe der as mãos transforma-se ele próprio num Eu em imagem. O terror que o Lisboa desencarnado suscita deve-se ao seguinte facto: para ir ter com ele é preciso perder a matéria e ser apenas uma imagem.

O corpo de Lisboa que Cesariny vê no seu sonho é o que está destinado a caminhar por dentro da morte até à reabsorção no incriado; é o corpo astral de que atrás falei, que pode ser equiparado ao Imame oculto da mística xiita. E aqui valia a pena abrir um parêntese, que não abro, mas indico, para perceber a equivalência deste Duplo com o Encoberto da poética cripto-judaica do sapateiro de Trancoso, Gonçalo Eanes de Bandarra. Este Encoberto, que não é o outro senão o daemon, foi pintado, posso dizer até realizado, com esse nome, pelo Cesariny pintor. O que se encontra na imagem pictural é um símbolo fálico, uma seta a que falta o alvo ou uma vagem, uma espada a que falta a bainha.

Por tudo isto a dramatização onírica de Cesariny pode passar por ser a narrativa da ressurreição de Lisboa no outro mundo, o instante da sua passagem para o mundo da alma. Ele é o corpo astral; ele é o daemon; ele é o Eu celeste; ele é o Imame oculto; ele é o Encoberto. Na realidade da matéria, Cesariny viu pela derradeira vez o corpo de Lisboa no rigor mortis; no sonho ele vê o Eu interior de Lisboa, a sua alma, a acordar do lado de lá da realidade material no mundo da alma. O que Cesariny vê pois no seu sonho é a primeira vida que o Eu psíquico de Lisboa tem depois de morrer, o princípio da sua viagem pela Terra das Imagens ou pelo Paraíso dos Arquétipos. É caso para dizer, recordando o que se disse sobre Duplo Passeio, que a morte liberta tanto a alma como o sonho. Essa morte foi o limite que Cesariny viveu e de dois modos a viveu: no verso e no reverso. O verso foi o rigor mortis que lhe entrou pelos sentidos como uma violenta descarga eléctrica que o abanou todo e o reverso foi o espectáculo onírico que ele viu na entrada do mundo da alma, quando encontrou o Eu imagem de Lisboa, sem no entanto ter a coragem de entrar no novo círculo em que o amigo já se encontrava.

Trata-se pois dum sonho de iniciação com algum paralelo com aquele que se desenrola no final de Duplo Passeio. Em ambos o sujeito desce uma escada, para aceder a uma cripta, onde terá a revelação da vida do espírito, no caso de Cesariny através do encontro com o daemon de Lisboa e no caso de Pascoaes por meio da orgia iniciática, imagem da liberdade plástica do espírito. Ambos os casos permitem aos sujeitos da narrativa a visualização do mundo da alma, embora no caso de Cesariny ela seja feita cautelosamente à distância, sem a ousadia de transpor o umbral decisivo, mergulhando de cabeça no entrançado metamórfico do mundo da alma, como acontece ao sonhador de Pascoaes quando não hesita – recorde o leitor comigo – em afastar a cortina vermelha, entrando na dança orgiástica do espírito ao lado das bacantes, das prostitutas de Jerusalém, do autor da Vulgata a bailar com uma mulher duas vezes nua nos braços e doutras imagens que só no entre mundo se podem conceber como tendo lugar.

O sonho de Cesariny de que aqui falo tem ainda uma curiosa interpretação à luz dos princípios da análise freudiana e que em nada contradiz tudo o que antes se disse. O motivo analítico mais impressivo do sonho com António Maria Lisboa é por certo o penico. Esse penico, pela repulsa que inspira, tem na descrição de Cesariny uma importância crucial, se bem que na leitura corrente passe por ser um pormenor sem relevo aparente; faz parte do decoro do cenário onírico, nada mais. São pormenores desse tipo, quase despercebidos, que chamam a atenção da análise, permitindo-lhe detectar os invólucros nos quais os conteúdos da segunda consciência se manifestam à luz do dia; tais pormenores são o papel inofensivo em que a segunda consciência embrulha os seus explosivos de modo a passá-los pela guarda fronteiriça que vigia e protege o território do Eu social.

O penico é pois no sonho um objecto que resulta da apropriação por parte da segunda consciência dum elemento inócuo da primeira e no qual é instilado um significado novo. Tem por certo um antecedente fisiológico – o escarrador que o tuberculoso, e Lisboa morreu tuberculoso, tinha ao pé de si – e tem uma componente oculta, própria à segunda consciência, que só a análise pode traduzir ou esclarecer. O funcionamento simbólico do objecto parece evidente; ele representa, como de resto qualquer outro vaso, o útero materno. Em termos analíticos isto dá o seguinte: Lisboa ao morrer cometeu incesto com a mãe, realizando a mais desejada das fantasias sexuais infantis masculinas; ele é a espada que reencontrou a bainha, a seta que furou o alvo, o Encoberto descoberto e revelado. Cesariny, por sua vez, chamado a cometer a mesma fantasia, recusa apavorado, tomando como repelente o símbolo do útero materno e recuando ante o derradeiro degrau que o levaria ao mundo incestuoso do amigo.

Não se julgue que esta leitura freudiana do sonho de Cesariny bloqueia as anteriores. O complexo de Édipo foi um nome que Freud encontrou no presente para os desejos que uma humanidade arcaica recalcou. O recalcado aqui é um outro nome para esquecimento e por isso este feixe de tendências que Freud auscultou no mais íntimo da alma humana coeva acaba por cobrir linhas inesperadas e que na aparência pouco teriam de afins. Uma fantasia sexual é sempre na linguagem de Freud ela própria e o seu símbolo. Veja-se o caso do incesto. A cosmologia masdeísta para a criação do homem e da mulher conta a seguinte história: Spenta Armaiti, um anjo feminino, emanação do Princípio luminoso, concebe o homem primordial, Gayômart. Une-se sexualmente a ele e tem dele o primeiro casal humano, Mahryag e Mahryang. Na base da genealogia humana está pois o incesto da mãe e do filho.

Isto quer dizer que as fantasias essenciais, de tipo sexual, que Freud detectou na alma humana são parcela importante dos materiais com que a humanidade original, ainda sem condição e situação histórica, construiu as suas primeiras narrativas. Fazer corresponder o Eu imagem, o Eu interior, o daemon, ao Eu que satisfaz a fantasia sexual mais cobiçada e recalcada desde a entrada da humanidade na condição histórica nada tem de forçado; ajuda até a compreender como uma cultura humana já com mestria verbal mas ainda sem História se viu a si mesma em larga escala como não terrena. E isto é muito simples de entender – em termos freudianos ou outros: o processo histórico significou em termos da alma o recalque do incesto, com a consequente formação duma primeira consciência muito activa, cuja principal missão passou a ser vigiar, limpar e reprimir os desejos sexuais, e donde saiu o Eu exterior ou Eu terreno e social; por contraste, o tempo em que a humanidade viveu fora da História significou que só a segunda consciência orientou o comportamento humano, que assim satisfazia todos os desejos que o Eu terreno e social veio mais tarde reprimir. O Eu que dependia desta segunda consciência é aquilo que lá atrás designei como Eu interior, Eu imagem, daemon ou corpo astral.

Vale a pena agora gastar papel para associar o plano onde vive este segundo Eu ao supra-real? Poupe-se o papel; o leitor já lá chegou. Como por certo já percebeu que o sonho de Cesariny com Lisboa significa o encontro, cara a cara, dos dois Eus, chamem-se super-ego e id ou Eu terreno e Eu celeste – ou até neófito, Imame ou Encoberto.

 

8 Formas do Regresso ao Paraíso

Falei há pouco do Paraíso dos Arquétipos. Não é difícil perceber que tal Paraíso é a segunda consciência, onde habita o Eu imagem ou daemon. Enquanto não se formou na humanidade arcaica a primeira consciência, a instância repressora, que apurou e afinou o Eu social, aquilo que existia era apenas a Terra mítica ou o Paraíso dos Arquétipos. A partir do momento em que se formou a primeira consciência, a da História, esta Terra mítica onde a humanidade vivera anteriormente passou a ser tida como um Paraíso perdido. Diante desta perda houve dois comportamentos distintos. O primeiro, o mais generalizado, carreou o esquecimento, pelo menos aparente, do que anteriormente fora vivido fora da alçada repressora. Essa parcela da humanidade, mesmo perdendo a satisfação das suas fantasias mais essenciais, adaptou-se às novas condições de vida psíquica, deitando mão do mecanismo de recalcamento, por vezes de forma tão violenta que acabou vítima de patologias nevróticas graves. O segundo grupo, muito mais raro, não se quis conformar com a saída do Paraíso, tentou guardar ciosamente consigo a lembrança do que por lá se passara e animou como uma chama que não se podia extinguir o desejo de encontrar formas de recuperar aquilo que tão estultamente fora perdido.

Não deixa de ser curioso colar aqui a narrativa bíblica inicial relativa ao Paraíso. Quando se deu a expulsão dos primeiros pais e a sua chegada à Terra tal como hoje a conhecemos, os filhos de Adão e Eva vão ter comportamentos distintos quanto ao que os pais antes tinham vivido. Todos, com exclusão de Seth, se adaptam às novas condições de vida terrena, sem quererem saber nada do que se passara no jardim do Éden. É matéria já esquecida e arrumada em definitivo; mesmo aos mais piedosos só lhes interessa a Lei que o Senhor deu aos pais para viverem na Terra. Pelo contrário, Seth não se satisfaz com tal Lei, que dará mais tarde as religiões reveladas, sobretudo do Livro, e procura reconstituir com pormenor o que se passou no tempo em que os pais viveram no Paraíso com um corpo não sujeito à corrupção material. Em paralelo a esta reconstituição mnésica, Seth procura deslindar os fios, conhecer os trilhos, revelar os vasos pelos quais o homem pode regressar ao território acabado de perder. Dada a proximidade temporal em que Seth trabalha, recolhendo os testemunhos directos dos dois que lá haviam vivido em corpo de luz, é aceitável que Seth tenha obtido bons resultados.

Percebe-se que Seth é o pai da alquimia, da gnose, dos mistérios iniciáticos e de todas as restantes formas de conhecimento, incluindo a análise freudiana, que fazem da imaginação o órgão da alma. É por certo a ele que se referem ainda os primeiros estados de supra-realidade conhecidos. Foi ele que sentiu pela primeira vez a saudade do Paraíso e o desejo de a ele regressar; é o primeiro saudoso do Paraíso da história da humanidade e o primeiro inconformado com as imposições da instância repressiva e as limitações terrenas. Ele não se resigna diante da perda de qualidade do corpo e a degradação psíquica do Eu imagem, do Eu interior, em Eu social, em Eu impostor. Ele alimenta a esperança de reinstalar o mundo na frescura da sua origem e cria para isso toda uma arte de desocultações, que tanto procura localizar o que se perdeu como presentificar o que se esqueceu e que não passa, como acontece no sonho, sem a mediação simbólica das imagens. Por isso na alquimia a pedra pura do solve et coagula, o oiro final, é apenas um símbolo do Eu interior, do daemon capaz de ver no que o rodeia o Paraíso perdido.

Talvez agora se perceba melhor a imagem de Cesariny sobre a obra de Teixeira de Pascoaes que atrás deixei. Recordo: numa obra que pratica a iluminação poética como os alquimistas teriam praticado a pedra filosofal. A frase não é simples lugar- comum; é realidade estudada ao pormenor e significa que a obra de Pascoaes só teve por meta o encontro com o Eu interior, o Eu imagem, o daemon que nunca saiu do Paraíso dos Arquétipos. Pascoaes, aliás como Breton ou Cesariny, é um dos que descende de Seth. Duplo Passeio é uma narrativa de iniciação ao que está perdido, à procura e ao encontro do lugar da alma, que é afinal o lugar do Jardim.

Se os que assumiram primeiro em Portugal o surrealismo – penso em Cesariny e Lisboa, não em Pedro e Sena – não puderam tomar em mãos esse livro, verdadeiro catalisador oculto da sua actividade, foi só porque o livro nunca chegou a ter distribuição livreira, circulou em restrito círculo de amigos e foi apenas lido pelos destinatários a quem Pascoaes ofereceu o livro – livro que não foi a censura prévia, nem interior nem exterior, e se tivesse ido em nenhuma delas teria passado. Mas não tomando nos momentos iniciais esse livro em mãos, porque o não conheciam, nem mesmo O Bailado, que também desconheciam, os surrealistas portugueses vão dar no início das suas actividades, entre 1949 e 1950, uma recepção entusiástica a outro livro de Pascoaes, dado a lume trinta anos antes de Duplo Passeio, e que era talvez o livro mais conhecido de Pascoaes naquele tempo e aquele que maior número de edições conhecera. Falo de Regresso ao Paraíso, publicado em 1912, reeditado em 1923 e 1930, e ainda vertido para espanhol (1920), para francês (1931) e para checo (1936). A adesão que os primeiros surrealistas – aludo ao grupo em que pontificaram Cesariny e Lisboa – deram ao poema de Pascoes, teve logo seguimento num Ernesto Sampaio, que na estreia, com Luz Central (1958), toma o poema como imagem da alquimia.

Não preciso de aprofundar as relações do livro de 1912 com tudo o que tenho vindo a dizer, tanto mais que Ernesto Sampaio já em 1958 fizera a aproximação decisiva. O leitor já percebeu a rede de relações que tenho em mente. Basta recordar que nesse livro Pascoaes se mostra um inconformado com o decreto de expulsão de que o homem foi vítima na terra original da sua criação, tomando lugar decidido nas fileiras daqueles que procuram coar na terra impura da primeira consciência a pedra filosofal ou supra-real da segunda. E juntar que o primeiro contacto que Cesariny teve com Pascoaes e a sua obra foi por meio desse livro, que lhe foi emprestado por Eduardo de Oliveira, um velho amigo da casa de Pascoaes. A impressão do livro foi tão forte que Cesariny decidiu de imediato passá-lo aos amigos do grupo surrealista, em primeiro lugar Lisboa, que lhe chegou a dar eco entusiástico em carta da recepção e da leitura do livro, mas também Cruzeiro Seixas que muitos anos após ainda dele diz longos passos de cor. E decidiu ainda conhecer cara a cara o autor de tal poema, Teixeira de Pascoaes, então com setenta e dois anos, o que veio a acontecer em Março de 1950, no cineteatro de Amarante, onde Pascoaes proferiu uma comunicação sobre a poesia de Guerra Junqueiro, o Junqueiro da Velhice do Padre Eterno, seu maior, e Cesariny com vinte e seis anos se apresentou na companhia de Oliveira para ouvir as palavras do Velho da Montanha que advogava como Seth o regresso ao Paraíso, quer dizer, ao supra-real da pedra filosofal, e receber no final das mãos do Velho um exemplar autografado da conferência passada a livro opúsculo, com o título Guerra Junqueiro.

Como coroa desse momento, Eduardo de Oliveira levou-o por certo a pé, ou talvez não, até São João de Gatão e à Casa de Pascoaes, onde todavia não encontrou o Poeta que de momento, depois de perorar em fogo no cineteatro sobre o incêndio da Igreja, se ausentara para os campos, num lapso muito a propósito, pois o que não pôde ser tocado nesse instante foi depois procurado obsessivamente ao longo da vida toda. E aqui parece que bato de novo no sonho de Cesariny com António Maria Lisboa, pois também nele há um degrau não transposto, que faz com que Cesariny regresse ao mundo dos vivos mortos e Lisboa desapareça por dentro do mundo dos mortos vivos ou ressuscitados em Eu imagem ou daemon.

9 Sobre uma Frase de Mário Cesariny

A frase encontra-se no texto já citado “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português” – escrito e publicado em 1973 e reproduzido hoje no livro As Mãos na Água a Cabeça no Mar (1985) – e é a seguinte: Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa. (1985: 261) Servi-me dela, ao lado de três outras, para abrir o livrinho Teixeira de Pascoaes nas Palavras do Surrealismo em Português (2010) e volto agora a pegar nela, desta vez isolada, para a tomar como epígrafe solitária deste que ora entrego ao leitor. Pela importância que lhe tenho dado, pelo que apresenta de tão inaudito e de tão inesperado, ofensivo mesmo, a frase fica a merecer da minha parte um excurso interior de comentário ou um tentame de esclarecimento.

A primeira pergunta a fazer é a seguinte: que quererá Cesariny dizer com ela? A afirmação não tem na aparência sentido obscuro ou dúbio. A resposta é pois imediata – mas não é mansa: Teixeira de Pascoaes é para Cesariny um poeta mais importante do que Fernando Pessoa. Posso deixar de lado o sujeito singular da afirmação, que não a restringe a si, universalizando o sentido: Pascoaes é poeta mais importante do que Pessoa. E posso, sem trair, traduzir a expressão por uma nova, que a alarga e esclarece: Pascoaes é um poeta superior a Pessoa.

A segunda pergunta, tendo em atenção a direcção do significado encontrado, no mínimo surpreendente, não pode deixar de ser: a afirmação é a sério ou a brincar? Nada me leva a questionar a seriedade da frase, nem o que vem antes nem o que vem depois. Não posso esquecer o quadro em que ela aparece, um dos mais sérios em que Cesariny se meteu: um texto que ensaia ser um contributo avantajado à história do surrealismo português, “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”. A afirmação vem no primeiro capítulo, na zona dos precursores, e abre os períodos dedicados a Teixeira de Pascoaes, aqueles que o leitor já conhece e onde se fala dum livrinho rimbaldiano sem Rimbaud e surrealista sem o surrealismo, O Bailado (1921), e dum homem que praticou ao longo de mais de meio-século a poesia como pedra filosofal.

Não parece pois que seja de tomar a brincar a afirmação de Cesariny, como fez Osvaldo Silvestre ao falar do pai tardio de Cesariny. Até se aceita a ideia de relação filial entre Cesariny e Pascoaes, mas sem querer aplicar nela qualquer estratégia de luta edipiana entre Cesariny e Pessoa. A luta edipiana com o pai situa-se no plano chão da primeira consciência e resulta da interdição do incesto; não é mais do que um contra-investimento traumático da líbido, penalizada que esta foi pela impossibilidade do incesto parental. Quando a prática do incesto era corrente, em pleno matriarcado, num período de promiscuidade sexual sem limite, como aquele que se vê em todos os mamíferos, a luta do pai e do filho pela posse da mãe, ou da filha pela posse do pai, não fazia qualquer sentido, já que essa posse estava ao alcance de qualquer um. No plano do surreal ou do sobrenatural, onde se situa por exemplo a cosmologia masdeísta da criação incestuosa do homem, a luta edipiana não existe, pois o conflito psíquico originado pela interdição do incesto nem sequer se apresenta. Ora Cesariny, mesmo sem incesto, que a liberdade dele não chegou aí, e o sonho com Lisboa é em tal ponto revelador, não é homem nem poeta para ser visto no plano comezinho e apertado da primeira consciência, onde vive e escouceia qualquer careta de colarinho branco; ao fazer profissão de fé no surrealismo, ao manter-se-lhe fiel até ao fim da vida, é à (ou para a) segunda consciência que Cesariny se dirige e é à luz dela que o intérprete, se quiser entender algo desta experiência, o há-de ler.

Fica pois afastada a possibilidade analítica de ler a frase em causa como uma estratégia da luta edipiana entre Cesariny e Pessoa. E já agora pai tardio porquê? Haja mais atenção, senhores! Cesariny leu um livro marcante de Pascoaes aos vinte e seis aninhos, no princípio das suas lides, e foi tocado por ele; disso até registo ficou em carta de António Maria Lisboa, que na segunda metade do ano de 1953 já cá não estava. E tudo fez na época em que o seu grupo surrealista estava activo, e bem, com peixinhos de vinte anos, para conhecer cara a cara o Poeta, não hesitando mesmo em se deslocar a Amarante e em subir a Gatão, à Casa de Pascoaes. Pascoaes, pai de Cesariny? Aceite-se! Serôdio? Nunca, nem por sombras. Bem temporão foi ele; basta ver com um pouco de atenção a questão.

Passado este cabo, faça-se a terceira e última pergunta: que significado tem para Cesariny Pascoaes ser um poeta superior a Pessoa? É a pergunta decisiva, aquela de cuja resposta depende o descascar a frase, dando a provar o interior do seu miolo. As hipóteses são tão variadas que os caminhos, se bem que cheios de piada, com tanta silva, se fazem labirinto. Pascoaes é superior a Pessoa porque fumava tabaco de enrolar e Pessoa cigarros de pacote? Pessoa é inferior a Pascoaes porque bebia no Vale do Rio e Pascoaes na pipa de Gatão? Pascoaes é superior a Pessoa porque comia castanha pilada e Pessoa se ficava pela batata de Caneças? E por aí fora, até ao Tâmega e ao Tejo, dois rios que começam pela mesma letra, chegam do mesmo país e vão dar ao mesmo mar. Pessoa inferior a Pascoaes porque não tem onda em Cascais para surfar com tanta altura como Pascoaes tem em Matosinhos? Pascoaes superior a Pessoa por causa da asa delta do Marão? Os trilhos são infinitos e quase sem enfado de tão piadéticos.

Uma coisa é segura para mim na frase de Cesariny: tenho de afastar a leitura mais vulgar e imediata em que qualquer leitor cairá quando a lê. Qual é ela? Pascoaes é superior a Pessoa porque tem mais talento literário do que ele. Não! Concedo desde já que não era esse o significado que Cesariny emprestou à frase e que não é nesse sentido que a uso. Concedo até mais: no plano da literatura o inverso parece-me mais certo; Pessoa é mais talentoso que Pascoaes. A habilidade linguística, a capacidade de manobrar palavras, o virtuosismo do instrumento literário é em Pessoa imbatível e sem paralelo à altura. No estrito plano da literatura Pessoa bate qualquer outro.

Sobrevive pois por resolver a questão: de que modo e onde Pascoaes é superior a Pessoa? Note-se que Cesariny não diz que Pascoaes é um literato ou mesmo um letrado superior a Pessoa; diz antes que é um poeta. É pois no campo da poesia que Pascoaes é superior a Pessoa. A poesia não é apenas feita de palavras e de emoções vividas; a poesia para ser inteira e ter largo alcance precisa de algo mais. Não lhe basta ser virtuosa no plano da literatura ou da vida (deste mundo). Uma poesia feita apenas de palavras e de emoções não chega a ser uma arte real; não vai além, no melhor dos casos, duma gramática. Esse algo em falta é a imaginação. Só com esta faculdade a poesia se faz criação da segunda instância e trilho de acesso ao supra-real; só com ela se pode falar de automatismo psíquico e de criação simbólica ao nível do poético. Em última visão, uma poesia constituída apenas por palavras e por emoções está ao nível dos conteúdos da primeira consciência, ou das ambições do Eu social, e não chega sequer a entrar em contacto com o mundo da alma.

Ora Pessoa, pela extraordinária habilidade linguística que tinha, fez uma poesia de palavras e de emoções – mesmo que estas muitas vezes mentais. A sua capacidade imaginativa é medíocre ou só sofrível; está muito longe de atingir a luminosidade lapidar, a cristalização mágica, que se encontra em Pascoaes ou até em Sá-Carneiro. Ele próprio confessa em certos momentos a pouca apetência que tinha pelo imaginar, que lhe parecia forma de expressão confusa, incómoda, embrulhada. Quando se quer exprimir, ele prefere de longe o raciocínio do intelecto à imagem da imaginação, que se lhe apresenta sempre um grau abaixo do juízo lógico. É a raciocinar que ele se encontra à-vontade e não a imaginar, e isto até quando escreve versos. Tome-se como exemplo Alberto Caeiro. É a secura raciocinante em exaustão, levada ao extremo, recusando através da tautologia em bruto um mínimo residual que seja de imagem metafórica ou de aproximação analógica. Uma tal poesia obtém-se, como revelou o seu criador, virando do avesso Pascoaes; é pôr em acção um anti-Pascoaes através duma anti-imaginação.

O antídoto da escaldante imaginação pascoaesiana é pois o intelecto descarnado do raciocínio pessoano. E o pouco que há em Pessoa de imaginação deve-se mais à possibilidade de intelectualizar a imagem do que em imaginar esta em estado virgem. O intelecto de Pessoa é tão poderoso, foi tão musculado momento a momento, praticou tanto e de tão variados modos, que o seu possuidor tenta mesmo suprir com ele as falhas que percebe nas faculdades sensitivas e psíquicas. Pessoa faz por isso de conta que imagina, organizando e esclarecendo com o intelecto algumas imagens que vai buscar por via erudita aos poetas imaginativos. Parecem-me raras e pobres as imagens que se coam na poesia de Pessoa por contacto directo da alma.

Faz agora mais sentido a frase em causa. Vede. Pessoa interessa menos Cesariny do que Pascoaes, já que a força da expressão não reside nele na imagem mas no raciocínio; Pascoaes interessa mais do que Pessoa, já que a esfera da imaginação se sobrepõe nele ao mundo empírico dos sentidos e ao universo abstracto do intelecto. O bailado simbólico da imaginação de Pascoaes, mesmo sem o talento literário-sintáctico de Pessoa, importa mais do que tudo o resto; um tal bailado equivale ao automatismo psíquico que um poeta surrealista deve exigir da poesia. Ao invés o talento literário de Pessoa, mas sem o génio imaginativo de Pascoaes, tem irrisório valor, pois não chega sequer para ou a descolar da realidade empírica dos sentidos ou da abstracção do intelecto. Para um poeta surrealista a poesia sem o automatismo psíquico, a poesia sem contacto directo com o mundo da alma, a poesia feita apenas de palavras ou de emoções, a poesia amassada com a terra da primeira consciência, é apenas literatura e esta tem uma importância tão nula como qualquer outro material do Eu social.

Pascoaes, como batedor da imagem, como vedor dos veios interiores que levam ao perdido continente alma, é pois um poeta para Cesariny mais importante do que Pessoa. Entende-se. A inferioridade dum em relação a outro é apenas a diferença de grau que para um poeta surrealista existe entre a imagem fulgurante, a ferver, que põe o ser em contacto com o Eu interior, o daemon do mundo da alma, e o raciocínio frio, que um ser de invulgar inteligência sabe brilhantemente, sem mais, ordenar em palavras. A literatura é esta letra dura que não descola do mundo, a palavra sensível ou abstracta, mas sem rasgo de supra-real, enquanto a poesia é aquela imagem que voa num lugar livre do entre mundo, onde a palavra fogo não é apenas a palavra fogo mas o arquétipo, a labareda que queima a boca.

 

10 O Hiper-Édipo e Anti-Édipo vistos por Cesariny

O trabalho de Cesariny sobre a obra escrita e pintada de Teixeira de Pascoaes é público e conhecido, pelo menos desde 1968, momento em que organizou uma pasta de materiais do poeta do Marão, ainda não assinada, para o Jornal de Letras e Artes (nº 261, Maio de 68); um tal trabalho teve seguimento imediato, em 1972, vinte anos depois da morte de Pascoaes, em duas antologias, organizadas por Cesariny, Aforismos, a primeira, e Poesia de Teixeira de Pascoaes, a segunda.

Ao contrário, os contactos de Cesariny com a Casa de Pascoaes em grande parte se mantiveram na sombra até hoje. Mesmo a sua primeira visita em Março de 1950, no dia da palestra de Pascoaes no cineteatro de Amarante, passou por despercebida, o que levou aos dislates do tardio, apesar do autor de Pena Capital a referir por várias vezes, uma delas, se bem que só ao de leve, por sugestão, no exórdio introdutório da antologia geral de 1972. Tenho hoje à disposição um conjunto de materiais que me permitem perceber como evoluiu a relação de Cesariny com a Casa de Pascoaes e até fazer a história da relação dele com a Casa, o espaço, a biblioteca, o Poeta, os herdeiros. São cinquenta e três cartas escritas por Cesariny para a Casa de Pascoaes entre 3 de Março de 1968 e Novembro de 2004, que atestam ao longo de trinta e seis anos um convívio directo com os herdeiros da Casa, João Vasconcelos e Maria Amélia Vasconcelos, uma atenção a tudo o que diz respeito ao Poeta e um entendimento por dentro do espaço natural que envolveu a Poesia deste e ao qual será ainda necessário, mais tarde, nestas notas, regressar.

Uma das cartas mais curiosas desse acervo trata, por contraste com a de Pessoa, da sexualidade de Pascoaes, um tema surpreendente, nunca tratado, mesmo para os estudiosos mais colados ao autor de Regresso ao Paraíso, para quem a sexualidade de Pascoaes ou não existe, já que se trata dum solteiro que escreveu a vida inteira e não deixou descendência física, ou se resume, no que resumir se pode, e que pouco é na largueza que tem, aos poemas de ardente paixão amorosa que na primeira fase da sua poesia em verso escreveu. Falo da “Elegia” de Vida Etérea, de “A Sombra do Amor” de Sombras, do poemeto Senhora da Noite ou da complexa construção mítica e narrativa que é Marános.

Sobre estes e outros poemas, na verdade muitos outros, pois desde a estreia de Belo em 1896 que Pascoaes afina o verso pela paixão amorosa, paga o trabalho dizer que aquilo que deveras interessa o poeta é menos o que de carnal e de sensível possa haver na paixão erótica e mais o impacto psíquico, interior, que esse contacto produz. Daí as sublimações da “Elegia”, que se repercutem depois em círculos cada vez mais largos, cada vez mais atentos ao que de si cresce, nos restantes poemas, até entrarem pelo céu dos arquétipos em Marános. Falar da paixão amorosa em Pascoaes é pois falar do trânsito do Eu ao daemon ou da passagem da primeira à segunda consciência. Eis o que os mais adiantados intérpretes da poesia de Pascoes têm até hoje adiantado sobre a sexualidade que nos seus versos se encontra, de resto numa linha próxima daquilo que os estudiosos constatam no platonismo camoniano, que é de resto, pelo menos em parte, o de dois outros contemporâneos, imediatamente anteriores, João de Deus e Antero.

A carta é hoje pública e regista as palavras que Cesariny escreveu em Junho de 1977, a propósito dum filme homenagem então feito por Dórdio Guimarães, a João Vasconcelos, sobrinho do Poeta. Transcrevo: Do Fernando Pessoa, conhece-se o comportamento sexual: teve ele o cuidado de pôr isso em escrito. Pôs  que, se tivesse algum, seria homossexual. Do Pascoaes, nada se pode escrever, ou filmar, mas, pensando por cálculo de probabilidades, e segundo ouvi dizer – não sei se alguma vez lho disseram a si – há bastas mais hipóteses de histórias com um antigo caseiro. Invenções, como temos de dizer agora, porque a noite, nisso também é generosa, e a morte dos poetas, não o é menos, nisso também. Quanto à chamada à mãe (no final do filme) isso sim está certo: a parca que nos pare e nos deixa sós, queixa-se o poeta. Tive o privilégio de conhecê-la, quando estive em Pascoaes (em 1950?) (não posso confirmar agora) e a imagem do filme, embora com muito longe, resulta certa. A Mãe o Amor, o Filho a Morte – os Grandes Esponsais do Minuto Terráqueo.

Começo por Fernando Pessoa, que Cesariny dá como não tendo comportamento sexual. Dizer que Pessoa se algum instrumento sexual tocasse seria o homossexual e dizer que nenhum tocou é a mesma coisa, com a diferença do primeiro ser capaz de intelectualizar a esfera da sua insensibilidade, escolhendo para si uma hipotética vida sexual, que no plano sensível não tem, e o segundo, fora do complexo instintivo, nem da paralisia se dar conta. Não tenho à mão a afirmação de Pessoa que Cesariny reporta. Demais, nem à letra, de forma radical, a tomo. Algum instrumento Pessoa há-de ter tocado, de Durban a Campo de Ourique, mais que não fosse, a espaços, o de Onan. Fugiu ainda assim a confessar-se onanista e preferiu intelectualizar, vendo do alto, do plano abstracto do intelecto, o mundo dos sentidos e desse plano, mas só dele, viu-se ou escolheu-se homossexual.

Se isto não foi sempre assim, foi-o quase sempre e no geral a vida sexual de Pessoa foi vivida por mediação estrita do intelecto. O papel do raciocínio tem nele uma tal importância que até na vida sexual de Pessoa ele se intrometeu, para ordenar, esclarecer e orientar. O acto sexual em Pessoa nunca é um acto sexual, é ele mais, no intelecto, a sua matematização raciocinada; a coisa chega a tal ponto que se pode ver, como viu Cesariny, que o acto sexual em Pessoa já não é acto nenhum mas só a linha de intelecto que o substitui.

Mesmo sem ter à mão a citação que Cesariny refere, tenho outra que vai no mesmo sentido. Está numa carta a Gaspar Simões e diz o seguinte: Uma explicação. Antinous e Epithalamium são os únicos poemas (ou, até, composições) que eu tenho escrito que são nitidamente o que se pode chamar obscenas. Há em cada um de nós, por pouco que se especialize instintivamente na obscenidade, um certo elemento desta ordem, cuja quantidade, evidentemente, varia de homem para homem. Como esses elementos, por pequeno que seja o grau que existem, são um certo estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes, eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente. É nisto que se baseia o que será para v. a violência inteiramente inesperada de obscenidade que naqueles dois poemas – e sobretudo no Epithalamium, que é directo e bestial – se revela. Não sei porque escrevi qualquer dos poemas em inglês. (carta de 18-11-1930) Ele não sabe mas eu sei e à frente se dirá.

Assinale-se para já o processo de substituição, o transfer do instinto para o poema, dando razão à ideia de que em Pessoa a linha do intelecto é tão forte que elimina o acto sexual em si, mais que não seja pela operação conceptual a que o sujeita e que tão bem se conta na carta a Gaspar Simões. A forma de eliminação da sexualidade em Pessoa passa pelo processo catártico que Breuer pôs em prática na hipnose e Freud desenvolveu no processo analítico das associações verbais livres. O processo de exprimir intensamente os elementos obscenos da consciência é em Pessoa um processo verbal e não vital; ele, Pessoa, não exprime na vida, pois não precisa, a sexualidade que em si existe, por menor ou por maior que ela se apresente, antes a transfere para o plano verbal, naquele tipo de poesia sopesada pelo intelecto, em que as imagens não surgem da alma mas da tradição erudita. Em Epithalamium – o Antinous não chega sequer aí – a descrição metafórica do acto sexual é disso um bom exemplo: The fortress made but to be taken, for wich/ He feels the battering ram grow large and itch.

Por aí, pelo plano verbal, se percebe o motivo que levou Pessoa a escrever estes dois poemas em inglês e não em português; pelo esforço exigido, a língua inglesa era muito mais verbal do que a portuguesa. Destarte, em Pessoa, quanto mais artificioso, tanto mais purgativo. Deixo assim de lado a questão do pudor, que se pode sempre brandir contra o Pessoa que se esconde atrás duma língua quase desconhecida, até pelo arcaico clássico dela. E assim procedo porque qualquer poema erótico de Bocage é muito mais escandaloso e obsceno que os dois de Pessoa; tivessem sido escritos estes em portuguesa língua e ficariam sempre ao lado dos de Bocage a fazer figura de anjinhos constipados. Fica-me pois alguma dúvida diante de a violência inteiramente inesperada de obscenidade, um deles até bestial, com que ele os caracteriza na carta a Gaspar Simões.

Não posso deixar de ligar este comento aos versos com que Cesariny abre um poema de O Virgem Negra (1989), logo na abertura, e em que encontro Seth associado a Rimbaud, o da alquimia do Verbo, que por sua vez nada tem a ver, daí o alheio, com a operação conceptiva de Pessoa e aqui merecia uma nota que agora passo: Alheio ao céu e à luz/ De Seth e de Rimbaud/ No Antínoo depuz/ O paneleiro que sou// E no Epithalamium fiz/ Que pudessem saber/ Que feliz ou infeliz/ O sou como mulher// As costas do meu ser / Deixei em inglês/ Por isso em português/ Não o podia escrever. E isto, que é a deposição de Antínoo, pelo menos do Antínoo vivo, que havia no rapaz das meias pretas de seda que veio de Durban para Lisboa, tem por sua vez a ver com a tautologia paradoxal com que Pessoa tantas vezes se apresentou e que Cesariny no mesmo livro, poema “Introdução ao Volume”, aproveitou para, na boca do próprio, traduzir a sexualidade pessoana: Quando não fodo é que fodo/ E quando fodo é a mim.

Custa a crer que no meio de tanto pessoano e ao longo de tantos e tantos anos de escava na arca pessoana nunca ninguém tenha notado, até à chegada de Cesariny, que os heterónimos, que eram para ser gente a sério, de carne e osso, além de intelecto e alma, nenhuma vida sexual tenham. O seu criador até lhes arranjou horóscopo, com hora e local de nascimento, mas nunca cuidou, ou nunca se lembrou, ao que dou nota, de lhes arranjar um comportamento sexual qualquer. Têm horóscopo; pilita não. Até o engenheiro, que era para ser o menos entupido de todos, o mais modernaço, se retrai naquela historieta amorosa em Barrow-in-Furness com uma rapariga do liceu local, quando a relata por escrito a Ferreira Gomes, e onde há tudo – mesmo a série de cinco sonetos com o nome do local lá está – menos um beijo que seja. Não é pois por acaso que ele começa o relato dizendo que não costumo pôr à arte a canga da sexualidade. Nem à arte nem à vida, digo eu.

E que bem ficaria ao criador dos heterónimos, ao lado das inúmeras notas que deixou para a sua gente, ter escrito sobre a sexualidade de cada um deles. Cesariny viu a falha e tirou com muito gozo uns apontamentos no livro de 1989 para suprir o espaço: O Álvaro gosta muito de levar no cu/ O Alberto nem por isso/ O Ricardo dá-lhe mais para ir/ O Fernando emociona-se e não consegue acabar. A coisa continua no poema e pode sempre seguir fora. Assim, por exemplo: a primeira masturbação de Caeiro ao pé do Tejo e o seu pasmo ontológico (e tautológico) ante o acto; Reis e a sodomia numa sacristia do Chiado, com uma selecta de latim aberta por acaso num poema de Catulo; Mora e um bacanal em São Lázaro, no Porto, em noite de São João com luar e muita gritaria; a ejaculação triunfal de Soares num recanto escuro da velha Biblioteca Nacional ao pôr mão na primeira edição de Os Sermões de Vieira; o infinito cansaço de Campos depois de ter pago numa pensão do centro de Londres o serviço de dez prostitutos.

E que dizer das cartas de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz? Que são as cartas dum homem que pensa e não dum homem que ama? Que são as cartas do Nininho à Ofelinha? Que chupam no dedo? Que ainda não saíram do primeiro estádio da sexualidade? Que a sexualidade oral infantil é nelas dominante? Que o subscritor faz beicinho? Que tem obstipação? Que é virgem? Que ainda não entrou na fase adulta da sexualidade? Que o subscritor tem oito meses de idade – como diz de resto num requerimento que dirige à bebé? Tudo isso e mais qualquer parcela que aqui me escapa mas que parece sempre reiterar, por qualquer lado, que este sujeito não tem, nem quer ter, mesmo podendo, sexualidade alguma.

Talvez o mais curioso disto tudo seja por isso aquela saída no passo da carta a Gaspar Simões atrás transcrito e em que o autor confessa que escreveu os poemas ingleses para se livrar do estorvo que a obscenidade é para alguns processos mentais superiores. E obscenidade é aqui um sinónimo de sexualidade. Assinale-se ainda que Pessoa não diz processos da alma mas processos mentais superiores, quer dizer, operações do intelecto descarnado. O mundo abstracto das intelecções opõe-se aqui em absoluto ao mundo empírico dos sentidos. Pessoa tinha de se libertar deste para se entregar ao outro. Não creio que o mundo da alma e do sonho, o plano do supra-real, pedisse dele tal sacrifício. Ao invés é mesmo de crer que um tal mundo não exista sem tomar os sentidos como termo de equivalência. O corpo astral sente tudo da mesmo forma que o corpo terreno, com uma só diferença: as sensações neste são corruptíveis e no outro indeléveis. Por esse morivo o Paraíso dos Arquétipos no Islão iniciático é muitas vezes representado sob a forma de Harém. E foi sob o império do êxtase erótico mais intenso que a mística visionária duma Teresa de Ávila ou dum João da Cruz tocou ou entrou no outro mundo. Deus não é neles um conceito ou uma abstracção mas o Amado que instila no coração da alma o Amor.

É altura agora de pegar em Pascoaes. Que diz Cesariny a João Vasconcelos sobre a sua sexualidade? Que Pascoaes, ao contrário de Pessoa, que falou para o seu caso de transfer verbal, se calou. Apesar do autor nada dizer, Cesariny adianta ter ouvido histórias dele com um antigo caseiro, daí lhe tirando a homossexualidade. Esta, se existiu, diga-se, reporta-se à velhice, pois outros amores heterossexuais, e bem ardentes, se dão ao Poeta na juventude. O caseiro da carta de Cesariny não pode ser senão Zé Cobra, pai da Adelaidinha, que Pascoaes no fim da vida perfilhou como afilhada. Também eu, e de variadas fontes, ouvi histórias idênticas, mas também eu direi como o subscritor diz, invenções, que a noite é generosa e o tempo ainda mais. Invenções ou não, o que se diz, para o poeta, tem valor de realidade; a palavra fogo, recordo, é nele escaldante e queima os lábios. Cito de cor, decerto dos seus primeiros livros: Acreditai num nada que não exista/ E esse nada existirá.

Que Pascoaes cantou, e com alto e apaixonado ardor, o que há, em mim, de lírio e de donzela, e que a brancura do lírio enche meu ser de neve, cantou, sem ponta de dúvida, pois isso se lê na Senhora da Noite e na “Elegia” de Vida Etérea. Também Eugénio de Andrade afirmou na abertura do curto prefácio à reedição de Senhora da Noite (1988) esta sibilina coisa: sabemos dele coisas que vamos calar. Calar o que se sabe, aplaude-se, mas sem que isso equivalha a soterrar e soterrar a recalcar. Nestas notas sobre o surrealismo português nada é tão contrário ao que procuro, o mundo da alma, mundo que ignora censuras morais e preocupações exteriores, como querer esconder, em nome do Eu social e exterior, o Eu formado pela primeira consciência, o universo plástico e livre da sexualidade interior.

Uma coisa é certa, a escrita de Pascoaes está cheia de beijos e até de perversões, num grau que a do Pessoa vanguardista desconhece. Até Campos ficou em dívida –  mas que Cesariny pagou já com juros. Veja-se este beijo necrófilo no poema “Idílio” de Terra Proibida (1900): Ó Virgem da Tristeza/ Ouço-te os passos… Vejo/ Impresso na minh’alma,/ O talhe dos teus pés…/ Vens, de longe… Lá vens,/ Sorrindo, dar-me um beijo,/ Com uns lábios que a terra já desfez. Eis um beijo dado com uns lábios que a terra já comeu. A carne que nele beija faz lembrar a do António Maria Lisboa do sonho de Cesariny, o que desde já me leva a tomar esta Virgem da Tristeza como um daemon ou um Eu imagem. As imagens de Pascoaes e de Cesariny têm ainda assim diferenças, para além do denominador comum: primeiro, o sonho de Pascoaes é um devaneio acordado, não resultante do sono, como acontece no caso de Cesariny; segundo, Pascoaes aceita, na alma, como diz, e com êxtase, o beijo que o daemon lhe propõe, apesar dos lábios comidos pela terra, ao contrário de Cesariny, que recua em pânico ante o apelo dum Lisboa carnalmente decomposto.

Não se pense que esta fantasia sexual de Pascoaes com o mundo dos mortos se fica por aqui. Ela perpassa quase toda a poesia amorosa que se conhece do primeiro Pascoaes. Está em poemas do Sempre, de Sombras e em muitos versos de longos poemas como Senhora da Noite, Marános ou O Doido e a Morte. Neste último um maltrapilho que anda ao deus dará pelo mundo, cruza por acaso o espectro da Morte e dela se enamora. Ao ouvir do doido amante os apodos, a Morte não resiste e rende-se, por momentos se transmutando em vida. A transfiguração da gelada caveira em donzela fremente é uma das mais exaltantes manifestações eróticas do verbo criador de Pascoaes. Diz assim (cap. II): Era a Parca fitando Apolo; a noite/ Abrasada de estrelas, invocando/ O sol  esplendoroso… E delirante,/ O Doido vagabundo em suas mãos/ Tomou, beijando-a, a fria mão da Morte./ Mas, em vez – que milagre! – do contacto/ Duma ossada, sentiu tocar-lhe os lábios/ A carne viva, quente, apetecida!/ Caiu aos pés da Parca a negra túnica./ E a repentina luz dum corpo em flor/ Deslumbra os olhos ávidos do Doido,/ Onde o desejo ardia e fumegava. Que fabuloso beijo num cadáver gelado! Que contacto miraculoso! Nunca a erotização da Morte foi tão real como na terra verbal deste poema.

Será ainda de ver como este ponto se desenrola no momento da exumação da Maria do Adro por Camilo na biografia que em 1942 Pascoaes deu a lume sobre este escritor e que proporciona ao narrador alguns dos excursos mais exaltantes do livro. Traslado o seguinte (cap. VI): Os artistas têm uma mulher no sangue, exceptuando-se um Alexandre Herculano ou um padre António Vieira. Camilo tinha um esqueleto de virgem na fantasia. Outros, têm a sombra de Proserpina, como Antero, ou a de Maria Magdala, como Frei Agostinho, ou duma Oceânide, como Camões e Prometeu. Às excepções de Herculano e Vieira, podia Pascoaes nesta prosa sublime, gémea da de Duplo Passeio, ter acrescentado Pessoa. Tudo isto está muito próximo daquele platonismo amoroso de que atrás falei e que vem de Camões e de Bernardim. O que Pascoaes lhe introduz de novo é a ousadia necrófila, em que a morte é redimida na Terra da Alma pela loucura do amor.

Mas há outros segmentos sexuais na obra de Pascoaes, que até agora não têm sido atendidos pelos intérpretes e que têm basta matéria para uma hermenêutica da sexualidade em Pascoaes. Veja-se a zoofilia deste beijo num texto final, O Empecido (1950): O pai fuma, pega na sachola por desfastio, passeia, com ela ao ombro, nas leiras cultivadas por um irmão. O seu único cuidado é tratar do penso da vaca, mais do seu amor, muito mais, do que a esposa. Como ele a afaga e acaricia, e lhe anedia o pêlo, com a mão direita só ternura, como a esquerda é só erva…. Ternura e erva, ou erva sentimental e a dos lameiros. Não resiste: beija-a no focinho. Junto da vaca, é uma espécie de homem-boi (já houve homem-cavalo) ou um boi falhado, não no moral, mas no físico, ou sem a anatomia do simpático quadrúpede, condenado a trabalhos forçados até ao dia em que o matam no açougue. (cap. I)

Sem a relação sexual entre o homem e o animal a história de O Empecido não se entende. Neste livro há dois planos de história, o natural, onde acontece o acto sexual de dois adolescentes, Isabel e António, e o sobrenatural ou supra-real, onde tem lugar o amor de Albino pela Ruça. A líbido é a corrente que une os dois planos. Assim: António não se pode entregar por inteiro a Isabel, porque está preso à mãe, Maria, que por sua vez, vivendo interiormente para o filho – morre de ciúme por causa de Isabel –, deixa o marido entregar-se à vaca. Ora o livro fecha no planalto da Abobreira, nas faldas do Marão, com a aparição duma vaca a trinta ou quarenta mil pessoas, o que significa a passagem da zoofilia à zoolatria colectiva. Veja-se a morte de Albino no fim do livro: O Albino, por fim, morreu subitamente na corte. Encontraram o cadáver do homem, muito deitado no esterco, aos pés da Ruça, a espargir-lhe bosta benta sobre a testa e os bigodes… Um acto de estranha liturgia, ou, então, uma prova da inconsciência dos animais; e creio na ironia dos brutos, esse reflexo da luz do sol entranhado no mais profundo da Zoologia. (Epílogo)

As fantasias sexuais de Teixeira de Pascoaes estão ainda em larga medida por conhecer, como de resto está por estudar a corrente sexual, bem mais acessível, dum livro como O Empecido. Esse livro mostra como Pascoaes estava em contacto directo com um mundo arcaico, primígeno, ante-histórico, correspondente a um período que desconheceu em absoluto as condicionantes da formação do Eu social tal como o conhecemos desde a civilização do Bronze e que levou à severa proibição do incesto parental. O mundo de que falo é mesmo em termos humanos anterior à horda pré-edipiana de que Freud fala em Totem e Tabu.

Agustina, que nasceu no Tâmega, e algumas tramóias deve ter escutado, atreveu-se a romancear já depois da morte do Poeta alguns destes mistérios (O Susto, 1958), com muito transtorno e revolta daqueles que ainda por cá andavam. A versão de Agustina por muita água que traga deixa porém muito por conhecer. Cesariny interessou-se pelo caso e deixou aquele parágrafo numa carta a João Vasconcelos, que termina daquela forma simbólica, não mais mas também não menos, A Mãe o Amor, o Filho a Morte – os Grandes Esponsais do Minuto Terráqueo.

Pelo meu lado, nestas notas, abeirei-me dos textos e tentei descortinar neles, de forma explícita, sugestões sexuais. Parece-me fora de dúvida que palpita neles uma sexualidade pujante, fora do comum e que lá está não por efeito purgativo dum Hiper-Édipo, substituindo o mundo das sensações pelo das abstracções intelectuais, como acontece no Pessoa do Epithalamium  e do Antínoo, mas por efeito ou presença em carne do mundo da alma.

Outro ponto sintomático deste novelo é a notícia de que Albert Vigoleis Thelen, escritor tudesco e tradutor de Teixeira de Pascoaes que viveu mais de sete anos na casa de Pascoaes, entre 1939 e 47, terá escrito no final da década de cinquenta um memorial lusitano, biografia romanceada do período português, e antes de mais da vida e costumes de Teixeira de Pascoaes, destruído depois, porventura a pedido de família próxima, por escandaloso. Dessa memória foram ainda assim publicados dois fragmentos que nos permitem aferir da importância dela. O romance, segundo consta, dava continuidade ao romance de estreia, Die Insel des Zweiten Gesichts [A Ilha do Segundo Rosto], que tem como subtítulo das memórias aplicadas de Vigoleis. Sobre os factos que lhe foram matéria-prima, pronunciou-se assim o autor: Beatrice e eu passámos um tempo relativamente calmo no solar do poeta Teixeira de Pascoaes. Vi lá coisas que ultrapassam em termos de grotesco tudo o que está na Ilha. Mas não posso expor em público, porque foi um gesto hospitaleiro do poeta que me pôs em contacto com elas. (Colóquio-Letras, nº 113-4, 1990, pp. 180-1)

Só quem tenha lido a Ilha estará em condições de perceber em toda a extensão a realidade tremenda que estas palavras significam; ainda assim, quem desconheça este livro toma nota através destas palavras da excepcional liberdade que Pascoaes gozou em vida, pelo menos no fim da vida, e que não pode sequer ser contada. Falo dum homem possesso que assistiu em vida à sua transformação em daemon – e daemon não edipiano. Não menos do que isso. E o próprio Cesariny disso se deu conta, com susto bravo, e até com resistência forte, quando João Vasconcelos lhe relatou que viu uma vez no corredor da Casa de Pascoaes o tio a andar, com a cabeça em fogo.

 

11 Sobre as Relações do Abjeccionismo e do Surrealismo

São merecedoras de atenção cuidada, por tão curiosas e singulares, as páginas que Breton dedica à Magia, em particular a Flamel, no Sécond Manifeste du Surréalisme (1930). Nada da adorável ingenuidade lapidar que levara Breton seis anos antes, quase incógnito, a propor aos dicionários do tempo a sinonimia do surrealismo com o automatismo psíquico puro. O nível da pesquisa surrealista atingira já em 1930 outro patamar, mais sólido e mais largo, os dicionários haviam ficado para trás, bem como o público, esse público que no mesmo manifesto se exige que não entre, que não passe sequer da porta, e nenhuma surpresa em perceber Breton na ante-câmara do mundo, ou nos seus subterrâneos, a estabelecer as pontes entre o surrealismo e a Magia, entre o supra-real e a pedra filosofal.

Desses passos, o que mais admirável me parece é aquele em que o autor reporta o momento em que Nicolas Flamel, assistido por um poder superior, recebe das mãos dum anjo, o livro de Abraão Judeu. Mas não menos tocante é o passo em que ele, Breton, confessa humildemente não ser ainda capaz de aceitar que Flamel, nascido no século XIV, continuasse vivo na segunda metade do século XVIII. E já agora que dizer quando convoca Agrippa para saudar de passagem (ou em permanência?) o regresso, pela mão do surrealismo, do furor? Aqui, na ideia de inspiração, tão afim da divina loucura de Platão, se fecha o círculo que começa na descida dum livro por intermédio dum anjo – dum daemon digo eu. Fecha-se sem se fechar, pois será de ver como Mário Cesariny toma em mãos este Flamel e trabalha com ele em 1964 na margem direita do Sena. De Cesariny ficaram felizmente as anotações do “Diário da Composição”, inserto no final do livro A Cidade Queimada, onde de resto cita o Fedro de Platão; nelas interessa muito a torre fálica, ornada dos símbolos da ciência oculta, a torre de Saint Jacques, cravada por Flamel no coração de Paris, como uma outra seta à espera do seu alvo ou um outro daemon encoberto à espera da sua revelação interior.

Aquilo que aqui me interessa é porém outra coisa; as considerações de Breton sobre a magia são apenas colaterais ao ponto que aqui me vai. O fecho desse segmento do Segundo Manifesto recorre a algumas indicações rituais que o praticante deverá ter em conta nas operações mentais alquímicas, antes de mais a nobreza de intenções, a pureza da alma e a clareza do lugar onde tudo se opera. É pois a partir desse fecho que Breton parte para as três ou quatro páginas finais do texto, dedicadas a Georges Bataille, um contemporâneo, e que já nada têm a ver com o segmento anterior. Estas páginas finais, sem o epílogo, interessam-me muito. Leio-as e releio-as com atenção. Fervilha aí, à superfície, a virulência, a paixão do ajuste de contas que caracteriza aqui e ali o manifesto, sob esse aspecto tão diferente do primeiro. Mas também não é esse grau de linguagem, a temperatura do discurso a ferver em cachão, tão próxima do panfleto político partidário, que me interessa. O diálogo entre Breton e Bataille tem outro motivo de ser e não perde nem ganha com a veemência intempestiva da expressão. Por baixo desta, nas entranhas do passo, esgrime-se um diálogo de ideias, melhor, joga-se um jogo muito mais elegante e essencial.

Esse é o jogo que Bataille começou a jogar na revista Documents em 1929, acusando o surrealismo e Breton em particular duma sede de integridade que em tudo lhe parecia, pela anti-sordidez, a verdadeira natureza do sujo. Entende-se melhor agora por que razão Breton escolheu estrategicamente no momento de fecho do segmento sobre a arte mágica passagens sobre a transparência interior e exterior do praticante. É por aí, no trânsito para o excurso final, que Breton começa a dizer a Bataille o que lhe interessa. Não é ainda a carta sobre a mesa, carta de pinta preta, carta sobre carta, carta resposta à do outro jogador, mas um preliminar, uma agulha que serve para mudar de linha e entrar no jogo. Seja como for, a imagem desse preliminar é tão forte que a indicação do jogo de Breton está dada; ele defenderá a todo o custo, e com uma veemência que não põe nem tira ao caso, a integridade ou a anti-sordidez de que é acusado, deixando o sórdido para Bataille.

Bataille nessa época havia já publicado, sob pseudónimo, Histoire de L’Oeil e preparava-se para dar a lume, com o seu nome, um texto escrito em 1927, L’Anus Solaire, texto fundador daquela parte mais característica da escrita de Bataille, que levará no início da década seguinte, 1943, à publicação do livro capital, L’Experience Intérieure, que virá a constituir o primeiro volume da soma ateológica. A ateologia foi a palavra encontrada por Bataille para designar uma via paralela à mística, enquanto experiência do êxtase, mas também da dor e da angústia, e que com ela se não confunde nem nunca se encontra por um motivo de monta: a experiência ateológica não desemboca em nenhum além, não supõe a existência de qualquer outro mundo, não concebe qualquer absoluto nem qualquer diálogo transcendente, não aceita nenhum plano divino. É tão-só, através da exacerbação de certos comportamentos, uma experiência dos limites humanos, com o único fito de experienciar a possibilidade de viver o impossível dos seus limites.

Percebe-se pois a obsessão com que Bataille agitou e sacudiu o erotismo para dele tirar essa aproximação ao impossível. É óbvio que num erotismo vivido sem condicionantes morais de nenhuma espécie, nem edipianas nem outras, o horror e o horrível se fazem a cada passo presentes, sobretudo se esse erotismo supõe como quadro de contexto, como acontece em todas as narrativas de Bataille, o Eu social tal como ele é depois de seis ou sete milénios de civilização. Se o horror dificilmente se imiscui numa narrativa como O Empecido de Pascoaes, apesar da zoofilia de Albino pela Ruça, e até do semi-incesto da mãe com o filho, é que se está diante duma comunidade arcaica, ligada à terra e à pastorícia, que não perdeu ainda no dia-a-dia, pelo isolamento em que vive, memória residual das práticas ancestrais, anteriores à imposição moral da proibição do incesto parental. Nas narrativas de Bataille é o contrário que está em causa, pois todas elas se passam em meio urbano e respeitam à classe alta, a que mais fez e se bateu, talvez por razões de eugenia, pela criação das proibições morais que determinaram o início do actual estádio civilizacional.

Mas é no horror, no horror com que Eu social, o Eu da primeira consciência, se confronta, que o homem segundo Bataille se excede para encontrar uma pureza inominável que o compensa de toda a repugnância sentida. Daí o protagonista de Ma Mère, um dos textos mais significativos desta experiência, dizer, no momento em que tem a certeza que mais tarde ou mais cedo a mãe se lhe entregará por vontade própria, que na fundura do meu desgosto, sentia-me idêntico a um Deus. As lágrimas que então se choram, diz algures o narrador, não são só de terror mas de abençoada alegria.

O jogo entre Breton e Bataille, tal como ele surge nos textos deste da revista Documents, segunda metade do ano de 1929, primeiros meses de 1930, e na resposta que Breton lhe dá nas páginas finais do Segundo Manifesto, não é apenas um jogo entre dois comparsas abstraídos do mundo, perdidos num qualquer recanto do tempo, concentrados apenas no tampo da mesa onde saem as cartas do baralho que está entre os dois, mas uma cena muito mais ampla e complexa que se torna o palco gigantesco onde se representam alguns dos dramas fundamentais da humana condição pensante. Do lado de Bataille está a recusa de qualquer transcendência, a afirmação dum materialismo feroz e um retomar da experiência de Sade, sem no entanto pagar por isso o preço que o marquês teve de desembolsar e perseguindo uma meta de alegria desconcertante, toda interior e solitária, que talvez não existisse no autor de Justine. Seja como for, tudo em Bataille se passa do lado de cá, o único que existe, do lado do corpo e das sensações e mesmo essa alegria superior, essa alegria que tudo alivia e justifica, objectivo de todas as provações do horrível, não é mais do que sensação corporal, que se obtém pela exaustão de outras sensações. Nesse sentido, a linha de pensamento de Bataille é intransmissível, tem um valor pessoal exclusivo e não sofre qualquer possibilidade de socialização. Serei mesmo tentado a perguntar se esta linha não é, pela hiperbolização a que está sujeita, uma experiência destinada apenas a ser vivida por dentro da literatura e até da literatura naturalista, a mais apta a reportar as sensações naturais, que o corpo experimenta. Se assim for, experiência estética, não mais, e por isso inofensiva – por mais perigosa que seja a aparência ou o invólucro intelectual em que é dada.

Em Breton o jogo é diferente. Não lhe interessa a experiência pela experiência e muito menos para atingir uma sensação. Aquilo que o move é o mundo da alma, que ganha uma espessura própria, com as suas leis e o seu funcionamento paralelo. Esse mundo ganha uma tal autonomia em relação à realidade empírica que se pode falar duma outra realidade, muito mais absoluta, que ele chama supra-real e os românticos alemães de real absoluto. Ele não nega a existência do mundo sensível; aceita é a realidade dum segundo plano, onde o sensível é substituído pela imagem, que não sendo uma abstracção do intelecto não tem consistência material nem possibilidade de ser abordada pelos sentidos sensoriais. Só a imaginação está em condições de abordar esse segundo plano, imaginação que equivale assim a um sentido meta-sensorial, capaz de estabelecer o contacto do sensitivo com o mundo da alma.

Ora assim sendo, a actividade humana, e até tão-só natural, desemboca em Breton num além, supõe a existência dum outro mundo, concebe o absoluto e chega a aceitar um plano divino, se por este se entender não um Deus antropomórfico, como o das religiões reveladas, mas uma realidade supra-sensível. O que interessa Breton é o contacto com esta outra realidade; o seu objectivo último não é uma sensação (de prazer, de horror ou de alívio como em Bataille) mas o mundo paralelo da alma, a segunda realidade, o supra-real, a que se acede pelo imaginar, visto a homologia, a da imagem, por ínfima que seja, entre esta faculdade e essa outra realidade. Uma meta deste tipo só tira da literatura ou da pintura ou de qualquer outra arte o necessário para alimentar o seu desejo de além, o seu anseio de absoluto, não mais. Convém até perceber que um tal objectivo pode existir sem passar obrigatoriamente por qualquer arte verbal ou não. O sonho nocturno leva o homem que dorme ao supra-real sem para isso necessitar mais do que o transe do sono. Nenhuma arte, pois, a não ser a maior, a de Flamel, na procura do Eu interior.

Quando se alude à conquista dos conteúdos da primeira consciência, através daquele bailado de símbolos que lá para trás se referiu, fala-se mais duma posição ética do que estética, para usar uma terminologia pouco precisa mas que pode dar a entender quanto a aventura de Breton foge aos terrenos da arte. E de tais terrenos, quando existem, o que se pode tirar na procura do supra-real nunca pode ser, como em Bataille, uma arte naturalista, sensorial, que seja capaz de reportar sensações físicas, mesmo extremas, como as da ponta final do horror, mas uma arte sobre-natural, que seja ela já, como num sonho, uma expressão do mundo da alma. É mais fácil receber assim um livro como Malpertuiss – procuro um equivalente deste livro entre nós sem êxito – do que La Nausée, esse sim com equivalentes e em legião.

Há um momento no jogo entre Breton e Bataille em que tudo se faz claro. É o momento em que Breton comenta uma imagem de Bataille – uma rosa sem pétalas, uma rosa desfolhada não passa dum pedúnculo deselegante com um tufo sórdido e escuro no cimo – e diz que uma rosa mesmo sem pétalas continua a ser uma rosa. Quem não vê aqui a ideia sobre a forma e a forma sobre a matéria? Quem não vê aqui a perenidade da ideia sobre a volubilidade da matéria? O surreal sobrepõe-se à realidade física, perceptível com os sentidos sensoriais, como essa rosa universal de que fala Breton paira sobre a rosa transitória, que desapareceu. Depois disto percebe-se que nas vazas que saem sobre a mesa o empate é o único destino possível para este jogo; tão irredutíveis são os mundos em confronto, que nenhum deles pode gritar vitória. Não admira por esse motivo que Bataille, em texto posterior, de 1931, mas só dado à luz em 1968, acuse Breton dum complexo de Ícaro, sempre à procura de bater asas para o além. Reconheço aqui, nestas asas de Ícaro, não tanto o anseio de evasão do labirinto, que também existe, mas a necessidade de trocar a realidade sensível pelo fluido inefável e luminoso da corrente da alma.

Curioso que ao ver Breton como uma águia sempre desejosa de habitar os píncaros do mundo, e por isso sempre ansiosa de se evadir da realidade, elevando-se para a luz do Sol, Bataille reserve para si a imagem da toupeira ou do rato, que vive nos intestinos da terra e tira dos seus excrementos o alimento e a saúde. É a vitalidade da podridão ou do horror natural, num segmento que a química de Lavoisier já conhecia, contra a ilusão fotista da ideia ou do ultra-mundo tal como um Breton de asas aquilinas e poderosas o concebe sob a forma do supra-real.

Há porém um ponto em que Bataille e Breton coincidem – e não sei se terá sido esse ponto a ponte de passagem para o passo do terceiro manifesto em que Bataille aparece ao lado de Péret e Leonora Carrington, mas também de Callois. Esse ponto de coincidência é o seguinte: do lado de Bataille há o horror, tão dele, e do lado de Breton o desgosto da realidade sensível. A abordagem negativa ao sensível é comum a ambos. Há porém uma diferença de monta: o horror de Bataille, se for exaurido, leva à satisfação, ia dizer à iluminação, ao passo que a realidade sensível, amputada da imaginação, que é a asa da alma, fica para Breton prisão sem saída. A única atitude digna dum homem aprisionado no real de primeiro nível, que por qualquer razão desconhecida não pudesse recorrer à imaginação para viver no mundo da alma a verdadeira vida, seria o desgosto fundo, seguido dum estado de revolta permanente – mas tão desesperada e tão impotente como aquela que se pode conceber para uma alma condenada para sempre, por mandato superior, às labaredas do Inferno. Por esse motivo para Bataille o real sensível pode salvar – apesar de salvação ser palavra desconhecida no vocabulário no autor de L’Experience Intérieure – e para Breton esse mesmo real pode ferir de morte.

Isto não é despiciendo para se entender um dos segmentos mais característicos do surrealismo em Portugal, o abjeccionismo. Ao que se diz passa este por ser uma criação própria do surrealismo português. Cesariny fala dele no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português” (1973), já aqui nestas notas referido. Atribui o seu trilho a Pedro Oom, na viragem da década de quarenta para a seguinte, século de Hiroxima, e de ficou a pergunta final de Erro Próprio de António Maria Lisboa, que Oom sacolejaria em 1962 (que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos), e um poema título do mesmo Oom, “Um Ontem Cão” (1949). Seja como for, a ideia, esta muito de Cesariny, de que num país que vivia amordaçado por uma ditadura qualquer intervenção surrealista colectiva organizada se fazia impossível é também um ponto maior a favor da abjecção. Daí o específico português do abjeccionismo, ou pelo menos o favor que ele teve no único país – com o vizinho do lado, entenda-se – do ocidente da Europa que continuava a viver sem liberdade de expressão, mesmo mínima.

Começo pela noção de que o abjeccionismo foi criação portuguesa. Quando se lê e reflecte sobre a passagem final do segundo manifesto fica-se com a ideia de que se encontra aí um precedente importante para ele; a palavra não está criada, nunca aparece no discurso de Breton, seja sob a forma de substantivo ou de adjectivo, e no entanto ele serve-se de outras próximas (sujo, senil, rançoso, sórdido, estragado), mas o significado está já em movimento. Não é tanto porém na oposição entre Bataille e Breton, entre a águia que se eleva sedenta de luz e a toupeira que se compraz com a escuridão dos subterrâneos, que eu posso ver no passo do livro de 1930 o contraste entre surrealismo e abjeccionismo; é antes na oposição de Breton com ele mesmo, quer dizer, entre o plano sensível e a sua ideia, entre o curso da realidade e o supra-real, entre a rosa desfeita e a rosa perene, que eu sinto a ligação dos dois momentos. Com isto quero dizer que aquilo que pode haver de surrealista no abjeccionismo nada deve ao horror de Bataille; o credor dessa parcela é antes e em exclusivo o sufoco daquela realidade sensível que Breton quer superar a todo o custo e que por vezes, caso a imaginação não compareça, faz a vez de prisão insuperável.

Isto leva ao segundo ponto, o da especificidade portuguesa do abjeccionismo por via da ditadura política que amordaçava o país. A mordaça em termos freudianos significa o recalque sem possibilidade de compromisso simbólico, o que por sua vez leva a encarar a ditadura como uma séria ameaça à comparência da imaginação. Sem esta os portugueses que haviam aderido à demanda do supra-real ficaram apenas com um palco a arder, sem saída, um gigantesco auto-de-fé, onde estavam destinados a torrar antes de todos os outros, e com mais desespero do que eles, já que ninguém tinha como eles a consciência certa de que existia o maravilhoso de outro mundo. Neste quadro percebe-se assim o favor que o abjeccionismo teve em Portugal e como em certos momentos, quando a ditadura apertava o prego e o palco fechava qualquer saída, ele se acabou mesmo por sobrepor ao surrealismo.

Seja como for, é ingenuidade pensar que a percepção da abjecção da primeira consciência – assim digo para que se perceba a extensão e até a universalidade do fenómeno – é um caso circunscrito a situações políticas de ditadura. O abjeccionismo é a face inferior mas necessária do surrealismo; ele está para o surrealismo como a primeira consciência está para a segunda ou o supra-real para o real sensível. Não há supra-real sem realidade sensível, tal como desde há sete ou oito mil anos não há segunda sem primeira consciência – e esta é primeira não por ser primordial ou preceder no tempo a segunda mas porque se sobrepõe hoje, por vezes na totalidade, e quase sempre à bruta, à outra. Na linguagem de Breton, o supra-real é já uma síntese entre o real inferior e o sonho – como este em termos freudianos, que aliás não coincidem aqui na exactidão com os de Breton, é um compromisso entre as duas consciências. A impugnação do real sensível limitado a si, a crítica dos limites do mundo sensitivo material, está sempre presente no surrealismo, como está, no rasto de Dadá, pela valorização do primitivo, a percepção e o processo da toxicidade da primeira consciência.

O perigo do abjeccionismo – presente em qualquer círculo onde as imposições de primeiro nível existam com algum peso, haja ou não haja ditadura política, pois na verdade basta a escolar ou tão-só a familiar – é o da radicalização das exigências de primeiro nível ser tão impositivo que se dê o esquecimento da consciência do supra-real ou do real absoluto e da sua demanda, ficando apenas em seu lugar a dicotomia entre a ordem e a chacota ou entre a norma e o seu retrato caricatural. Quando isto assim acontece, os que caricaturam, presos ao primeiro nível, mais que não seja para fazer dele o traço grotesco, esquecidos do outro mundo, tendem a deslizar para um abjeccionismo que se torna um fim em si mesmo, deixando de ser a contrapartida necessária da demanda do mundo da alma. Nesse momento o abjeccionismo desliga-se do surrealismo, ganha autonomia e, pela perda do plano sobrenatural, aproxima-se da literatura naturalista. Os supostos da nova expressão fazem-se assim afins duma filosofia que tanto pode ter a ver com o sensualismo – todo o pensamento vem das sensações – como com o existencialismo – ser é existir.

Que se passou no caso português, onde o abjeccionismo tomou nome e tanta projecção ganhou? A princípio, naquela transição da década de quarenta para cinquenta, com as obras de António Maria Lisboa, de Mário Cesariny e do Pedro Oom do “Um Ontem Cão”, o abjeccionismo, talvez ainda sem cristalizar na palavra, é apenas a consciência do que se abandona ou do que se troca, a parte de sombra que todo o voo extra-real carreia e pede. Assim Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano de Mário Cesariny, escrito em 1948 e editado em 1952, nada tem para reabilitar como o seu autor fez questão de indicar. O título glosa com catártica ironia a literatura realista da época, muito marcada pelo marxismo, um pouco ao modo do que ele fará mais tarde com o título de O Virgem Negra ou até com o de 19 Projectos de Prémio Aldonso Perdigão. Nem prémio, nem virgem, nem reabilitação nenhuma, mas o contrário disso. De resto a obra de Cesariny é sempre, no mais pequeno sinal, nos títulos ou fora deles, um exemplo modelar de como a parte sombria do real, existindo e comprimindo, magoando e maltratando, não pode nem deve sobrepor-se, menos ainda abafar, a pesquisa do mundo da alma que caracteriza e identifica a aventura surrealista.

E por aqui se percebe como aqueles, e tantos e tão bons foram eles, que tentaram piedosamente recuperar a obra de Cesariny para o realismo, rasurando dela a crucial trasladação para o arquétipo, a pedra filosofal do Eu interior, tomaram entre nós o lugar daqueles sacristães com mandato exterior que tentaram a todo o custo ler Rimbaud do ponto de vista do catolicismo romano – e sabe-se quanto a empresa foi de todo perniciosa para o poeta.

Mais tarde, ao longo da segunda metade da década de cinquenta e da primeira de sessenta, com a perpetuação da ditadura e da vida política do ditador para além daquilo que seria na mais negra das hipóteses de considerar, o abjeccionismo em Portugal tendeu porventura a deslizar para um novo patamar, muito mais autónomo, em que a ligação com o supra-real parece ter, pelas condições em que o país vivia, afrouxado um tanto.

Quando Pedro Oom na entrevista fundadora do abjeccionismo (1962), momento em que glosa e reforma a pergunta final de Erro Próprio de António Maria Lisboa, adianta que a diferença fundamental entre surrealismo e abjeccionismo está em que Breton diz que há um ponto do espírito onde as antinomias deixam de ser contraditoriamente apercebidas e eu digo que, mesmo idealmente, duas proposições antagónicas não se podem fundir sem que logo nasça uma proposição contrária a essa síntese (Jornal de Letras e Artes, ano II, nº 75, 6 de Março, 1962, pp. 1 e 15; Cesariny recolheu-a em A Intervenção Surrealista) é possível, mas não é certo, que o contacto com o real absoluto, com a terra dos mitos, se tivesse já perdido. O que pode existir nesse momento é só o real abjecto, a terra teratológica, a terra dos monstros, em que tanto os carrascos como as vítimas são máscaras desfiguradas do horror. O que existe nesse instante é a estampa de Goya, do avesso, sem pinga de sono, comentando pela imagem dum homem autómato, máquina sem sonho, o mote de o sono da imaginação cria uma realidade monstruosa.

Daí a auto-repulsa e a negação sistemática, tão típicas do abjeccionismo português nessa fase, que é a do suicídio em cadeia (João Rodrigues, José Manuel Pressler, D’Assumpção, Manuel de Castro, José Sebag), mais própria talvez dum mundo negro, condenado em dimensão perpétua à baixa reclusão do real, tal como Bataille ou Sartre o podiam ver sem metafísica surreal nenhuma, do que da pesquisa surrealista marcada pelo oiro solar e quente do contacto com a alma e com o Paraíso dos Arquétipos.

De qualquer modo é preciso ter em conta o retruque que na mesma entrevista Oom deu quando lhe perguntaram qual a resposta para a pergunta que Lisboa fizera (que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos). Nada de desistências, nada de esquecimentos, nada de palcos fechados e sem saída. Ao invés, tudo fica aberto para a paisagem do além. Diz ele: sobreviver livre, possuir a capacidade de lutar contra as forças que nos contrariam não colaborando com elas. Neste caso o contacto com o real absoluto, com a terra dos mitos, não se perdeu; a qualquer momento ele irrompe soberano desta desobediência às forças que algemam. Mais: o surreal é ele mesmo o sinal da não colaboração com estas forças.

 

12 Nota sobre o Abjeccionismo dum poema de Pascoaes

Fica-me pois a tentação de ligar os suicídios e a auto-repulsa que a abjecção em Portugal manifesta na década de sessenta do século passado, já em segunda fase, com certas visões do dualismo religioso. Em formas do zoroastrismo masdeísta, do gnosticismo, do orfismo ou do maniqueísmo de Mani existem, distintos e em oposição, sem qualquer reconciliação entre si, dois princípios activos (luz/trevas; bem/mal). O mundo da matéria foi criado pelo princípio negativo e o princípio positivo não tem sobre a esfera desse mundo qualquer governo ou influência. É o contrário do que se passa nas formas mais conhecidas e exotéricas da religião cristã (e ainda da mosaica e da islâmica) em que mundo da matéria está ordenado e referido a uma inteligência superior, uma causa benévola e agente, que sendo única subordina a si, se existem, os aspectos disfóricos do mundo.

O que isto quer dizer é que no mundo que tem por centro uma inteligência ordenadora benéfica, sem concorrência, tudo tem salvação, podendo ser reintegrado no princípio criador. Ao invés, no caso dos dois princípios distintos, o mundo da matéria está condenado a gravitar sempre na esfera da ignorância e da negatividade, sem qualquer resgate possível. Por isso no catarismo medieval, que foi uma versão cristianizada de gnosticismo radical mais arcaico, com focos pirenaicos importantes, quer no Norte de Aragão quer no condado de Toulouse, uma das metas do fiel, pelo menos em fase adiantada, era o suicídio ou morte voluntária. Ao corpo não era dado o mais pequeno valor; pelo contrário, esse revestimento material era encarado como um obstáculo que só a morte podia em definitivo superar. Ainda hoje, no norte da Índia, uma comunidade zoroastrista, os pársis, abandonam depois da morte em altas e solitárias torres de pedra os corpos aos abutres, sinal do desprezo que por ele sentem, destinado que está a ser reabsorvido pelas forças do princípio negativo.

A pergunta que ora se faz é a seguinte: a auto-repulsa/suicídio na abjecção portuguesa tem ou não tem valor idêntico ao desprendimento material das religiões dualistas? Veja-se o seguinte. O abandono do corpo significa nestas a entrega voluntária dum invólucro que pertence ao princípio negativo; daí a aceitação da morte e até o estímulo ao suicídio, que é visto como um ponto cimeiro de heroísmo e não de desistência. A morte nestas narrativas é o preço da libertação da alma, encarada que esta é como faúlha alienígena, cujo lugar de origem reside ou remonta ao princípio luminoso. É pois pela morte que a alma encontra a possibilidade de regressar ao centro originário da sua emanação, do qual por inadvertido descuido se extraviou. Reencontro aqui o platonismo dum Sohravardi, o que não é para admirar em pensador que fez dentro do Islão a síntese entre a teoria gnoseológica de Platão e o dualismo masdeísta.

Por aqui se verá que o suicídio nas visões sensualistas e materialistas, que fazem derivar a alma ou o pensamento da matéria, pondo cobro àquela com o fim desta, não pode encontrar equivalência com a visão dele, suicídio, no platonismo essencial de pensadores que estipulam a independência da alma e da matéria em dois planos. No primeiro caso a morte desagua no nada, naquele nada que é o simples e salubre pó de que falava Bataille, uma química orgânica que no desenvolvimento progressivo das somatoses é infinita como os números o podem ser; no segundo caso a morte desagua na alma, que por existir num plano distinto, sobreposto e paralelo ao da matéria, sobrevive a esta e inicia depois dela uma nova e dupla vida.

Caso a abjecção em Portugal tenha deslizado para formas extremas de sensismo, o que está ainda por saber ou provar, é seguro então que as modalidades de auto-negação que a segunda geração surrealista portuguesa (aquela que Cesariny classifica como a dos cafés Royal e Gelo) conheceu estão fora de qualquer afinidade com a repulsa dualista pela matéria; ao perderem o contacto com o mundo da alma e com a esfera do supra-real ou do além mundo, os seus membros só esperam da morte o nada, o nada que é pó inorgânico. Caso contrário, caso não tenham perdido o fio do labirinto, então, sim, posso ver nessas modalidades formas afins de certa mística radical gnóstica, pois aquilo que eles esperam da morte é com certeza o mundo da alma ou a luz gloriosa da Terra dos Arquétipos.

Um ponto me parece seguro nesta tentativa de destrinçar o que separa e o que une a consciência do real abjecto e a do real absoluto ou supra-real: Cesariny, que conseguiu um notável equilíbrio entre os dois planos, teve uma fixação em Isabel de Aragão, a neta de Manfredo, a filha de Pedro III de Aragão e de Constança da Sicília, a portuguesíssima rainha santa Isabel, discípula de Arnaldo Villanova (a quem de resto Cesariny dedicou poema em Planisfério e Outros Poemas de 1961), e na qual viu na nota que escreveu para a última edição de Titânia uma cátara ou pelo menos uma herdeira do catarismo. Ao texto de Cesariny e à figura de Isabel de Aragão se há-de mais tarde regressar.

Por ora quero apenas ficar com um poema de Teixeira de Pascoaes. Não deixa de ser significativo que a questão das duas realidades, a abjecta ou sensível e a absoluta ou surreal, se encontre por lá em dinamismo propulsor. Talvez nenhum outro texto seja no tempo e a esse título tão ilustrativo. O poema chama-se “Miséria”, pertence ao derradeiro livro de versos que Pascoaes organizou, Últimos Versos (1953), e é coevo à criação do abjeccionismo, tomando para esta criação a época que Cesariny lhe aponta no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”, a transição da década de quarenta do século XX para a seguinte.

Diz o poema assim: Quando penso que existo/ Como existem as moscas,/ Perco por mim todo o respeito./ Caio na mais terrível humildade,/ Que é o máximo desprezo/ Que a nós próprios dedicamos,/ Uma descida ao fundo vão de tudo…/ Esse ínfimo conceito que fazemos de nosso ser, ante o espectáculo/ Das cousas,/ Redu-las à miséria das misérias,/ E, assim falando,/ Revelo o quer que é/ De superior/ À mísera existência,/ E dependente dela ao mesmo tempo./ Sou quase um ente/ Supra-terrestre…/ Mas este quase me sujeita/ À minha triste condição./ E deste modo se indefine/ O definido… E o ilimitado/ Se limita.

O título do poema é um indicador da abjecção, que não é a de Job frente ao seu Deus mas tão-só a do humano diante de si. O primeiro choque é a presença da mosca na abertura, um dos emblemas mais repulsivos do mundo material e um daqueles que se intrometeu simbolicamente no jogo entre Bataille e Breton tal como ele surge nas páginas finais do Segundo Manifesto. Bataille vê nela o sinal mesmo da corrupção da matéria, o princípio do horror, que é aquilo que em exclusivo lhe interessa; o autor de L’Anus Solaire posiciona-se pois e de forma absoluta no mundo enquanto senhor das moscas. Onde há moscas há podridão e onde há podridão há experiência do horror, sem a qual não há superação e experiência ateológica. Ao invés, Breton, atraído pelas alturas, não liga peva a esses insectos, que toma por insignificantes e irrisórios; o que vai ao autor de L’Amour Fou são as rémiges poderosas duma soberba águia-real, aptas a alcançarem os píncaros das mais altas montanhas, não as minúsculas asas de papel sujo dum moscardo, feitas apenas para sobrevoarem de forma irritante um chão de cadáveres.

Quando o poema de Pascoaes vê agora o existir humano ao nível da simples existência duma mosca parece estar a dar razão a Bataille. Ou então não lhe dá razão, porque de todo o desconhece, mas segue um caminho próprio que é o de colocar o humano ao nível da mosca – o que em Bataille não acontece. Aquilo que uma tal constatação quer dizer é o seguinte: se o homem e a mosca existem da mesma forma então a existência humana nada vale – e em Bataille ainda valia a possibilidade de se exceder como no Sartre de La Nausée ainda vale um acorde de jazz. Por esse motivo a condição do homem é para o sujeito do poema a mais chã – ele usa a palavra humildade. E por ele ainda se constata que a condição ontológica humana vale uma descida ao fundo vão de tudo. Esse bater no fundo é tão fatal que, estando a princípio circunscrito à esfera humana, se alarga depois a tudo o que vive ou está. É a miséria das misérias, com que o sujeito pinta e fecha o teatro das coisas.

Não admira pois o título do poema e nem sofre contestação a possibilidade de o encarar dentro do espírito da abjecção. Ele denota uma atenção meticulosa ao real sensível, que se torna, a partir do motivo da mosca, e de forma progressiva, cada vez mais larga, um real abjecto, sem forma possível de resgate. É a miséria das misérias, nada mais. Trata-se pois duma atenção que arrasa, humilha e conspurca o primeiro nível da realidade a um ponto último de saturação.

Há porém, no momento extremo, um volta-face. Pela fala, pela consciência de tudo ser miserável, a condição humana superioriza-se e transcende a baixa e inferior condição em que existe. Em termos freudianos é o momento catártico da análise, em que o paciente por falar da mosca vai finalmente libertar-se dela. É também o que se passa em Bataille com o horror, mas com uma diferença importante: em Bataille não há sublimação em direcção do transcendente, apenas alívio e satisfação sensitiva, ao passo que em Pascoaes há criação simbólica de segundo nível com o ente Supra-terrestre que vive já no ilimitado e cujo invólucro de simbolia bem pode ser a águia icariana de Breton, que de resto também é a do Pascoaes da revista de 1910 com o mesmo nome.

Com a condição supra-terrestre do humano que fala, quer dizer, do humano que sujeita a miséria do real a um tornado de símbolos, é a supra-zoologia que regressa em força com as experiências de além mundo, tal como se encontram em Sombras ou na viagem de segundo nível de Duplo Passeio, essas mesmas que permitiram a Cesariny ligar a poesia de Pascoaes às visões de Breton e falar no português dum surrealismo sem o surrealismo (entenda-se para este último: histórico). Isto diz que a experiência da abjecção em Pascoaes, tão transparente nas moscas pensadas, supõe sempre o contacto com um real que lhe escapa, o da alma.

Sobre o volta-face que faz a transição do primeiro nível de real para o segundo vale a pena ainda dizer o que se segue. Já se viu que em Bataille não existe tal clique. Isto quer dizer que o facto de o real sensível ser abjecto não traz a transcendência do supra-real por obrigação. Ainda assim a mudança e a percepção dos dois níveis da realidade pode processar-se de dois modos. Ou por sublimação absoluta, quer dizer, o primeiro nível da realidade fica limpo pela mera existência dum nível superior, supra-material, que aqui se identifica à causa agente primeira, benévola e redentora, o dito Deus omnipotente das religiões institucionais; ou então a mudança opera-se por mero contacto, trânsito involuntário, transporte súbito, como sucede no sonho ou no devaneio, sem que o mundo da alma suponha por si a existência duma inteligência de resgate.

É este segundo modo que opera no poema de Pascoaes, onde o supra-real está preso ao terrestre por um advérbio de quantidade. Para o terreno, melhor, no terreno, não há supra-real nem supra-zoologia, há apenas quase supra-real ou quase supra-zoologia. Esse advérbio é o corpo físico com asas de mosca. Enquanto esse corpo se apresentar, existirá sempre uma natureza dupla, a miserável ou abjecta e a supra-terrestre ou maravilhosa. Nem a primeira anula por inteiro a segunda, pois ela é perceptível pelo pensamento, melhor, pelo devaneio ou sonho acordado, pois é na verdade isso que se passa na fala do sujeito do poema, nem a segunda tem qualquer interferência de redenção sobre a primeira, já que o miserável não deixa de ser miserável. Daí o advérbio, que tanto pode funcionar para a primeira realidade como para a segunda. Se o ente que sonha com a mosca não pode ser por inteiro supra-terrestre, também o que por momentos se ausenta não pode ser por inteiro a mosca ou o corpo.

Não me parece neste caso difícil encarar o poema de Pascoaes do ponto de vista da gnose dualista. Os dois princípios coexistem eternamente como os dois planos do real são para sempre paralelos entre si; em nenhum momento se encontram. Chego a duvidar se existe ponte de passagem entre os dois planos. Mas é dúvida de momento, rapidamente superada. A passagem existe, ainda que não para o corpo; só a alma se infiltra por esse passo de comunicação. Na verdade não se infiltra, pois nunca de lá saiu; não esqueça o leitor a homologia entre imaginação (que é o órgão do contacto) e Terra das Imagens ou dos Arquétipos. O que no corpo não é feito de imaginação, o que no corpo é matéria densa e sensitiva, o que no corpo é espessura material não passa para o além mundo; é esse peso, sem resgate, que determina no poema a existência do quase. A passagem dá-se na alma e na fala, acordando aqui um eco do que Sohravardi diz sobre aquela parcela da alma, o Duplo, que nunca chegou a tomar um vaso de carne.

Isto ajuda a perceber melhor os derradeiros versos transcritos. Não é o Ilimitado que se faz limitado ou o supra-real que se faz real sensível mas o corpo de carne que absorve um tanto aquela outra parte da alma que ganhou revestimento material. O ilimitado só se limita na espessura do corpo material, não em si. Creio que é isto mesmo que Cesariny diz num poema de A Cidade Queimada (1965), quando defende a plena autonomia do corpo e da alma, do corpo e da fala. Assim: Nunca estive tão só diz o meu corpo e eu rio-me/ porque o corpo é o corpo/ não tem nada a fazer   não tem para onde ir/ não lembra  não se lembra (…)// Isso o meu corpo quer – o corpo – noite e dia/ ele julga que eu tenho a idade dele. A alma dialoga aqui com o corpo em total independência, a ponto de se saber muito outra – daí o ele e o eu – e muita mais velha (ou jovem) do que o corpo. A idade dos dois não corresponde; a idade dum não bate certo com a do outro. Quem aqui fala lembra; quem aqui fala não está amarrado; quem aqui fala pode voar sobre os píncaros nevados do real em magnificência liberta.

O poema de Pascoaes sobre o existir mosca do humano, o existir abjecto, pode ser confrontado, no mesmo livro, com os versos do poema “Transmigração”, onde se retoma a mosca: Tortura-me esta ideia/ Transmigratória/ De já ter sido ou ser ainda/ Insecto ou mosca…/ E descendente/ Das que pousaram/ Na tua calva, ó mestre Darwin./ Que a origem das espécies/ Está ligada ao Credo de Pitágoras.// Se derivamos/ dos outros animais,/ Que em nós existem/ Como lembranças,/ É bem possível/ Que uma dessas lembranças ganhe em mim/ Tal energia/ Que fique a ser meu próprio ser./ E eis-me a voar, zumbindo,/ E a atormentar a calva/ Dum pedagogo.

É de novo a mosca que surge, agora por metempsicose ou até metemsomatose, numa condenação eterna à baixa condição do real abjecto. Quando assim é, zumbir é zombar. E zombar – atormentar a calva dum pedagogo – é o bailado mesmo dos símbolos pelo qual a consciência humana se pode libertar das amarras do Eu social, fruto da formação aperreante da primeira consciência. Em Freud o humor é uma das vias que a segunda consciência encontra para, sem que sofra em demasia os rigores da censura, se manifestar à luz do dia. É por aí, e nunca por qualquer trilho desviante do realismo, por pequeno que seja, que se entende a sátira da abjecção, em primeiro lugar a dum Pascoaes feito insecto, depois a dum Cesariny a passar um raspanete ao corpo, esse virgem negra, esse Hiper-Édipo em alta haste, objecto abjecto, e depois ainda a de Pedro Oom, com um ontem cão muito afim do agora mosca, a de Luiz Pacheco, que tanto torturou carecas doutorais, e a de João Rodrigues, a que mais rápido meteu no fundo a prisão fixa da fateixa, espero que para o barco se fazer ave e voar, velas pandas, desprendendo-se para sempre da espessura da matéria, ao modo de cátaros e pársis, em magnificência liberta.

E aqui me vem de supetão à lembrança, ao que dentro de mim lembra, e que não é a boca que come e o dedo que agora escreve, a dor, e mais ainda, a estupefacção de Mário Cesariny diante do suicídio colectivo de Ricarte-Dácio de Sousa e família, meninos dentro, parece que até animais domésticos, se é que havia, quando o século terminava e subiam chamas, tanta e tão quimérica estupefacção, que houve de lhe oferecer, in memoriam, como se de admiração se tratasse, a terceira edição de Pena Capital (2004). Que também neles a alma tenha sido sujeito ejectável para o longe é o que aqui quero desejar! Mas deixar escorregar o lugar para o além, indo e vindo de permeio muitas vezes, é com certeza mais certo do que este fazer do corpo bomba de explosão e da alma projecto balístico ou foguetão.

 

13 O Marão de Pascoaes e a Imagem da Pirâmide em Cesariny

Teixeira de Pascoaes, nascido numa viela do núcleo primitivo de Amarante, na margem direita do Tâmega, foi viver para São João do Tâmega ou de Gatão, lugar de Pascoaes, com poucos meses de idade e aí cresceu, viveu, escreveu e morreu aos setenta e cinco anos de idade. O local é despovoado, com um renque de sobreiros célticos, pinhais sombrios, uma ou outra pedra de granito cinzento, vinhas de latada, ventos, uivos e uma casa do século XVII ali plantada no meio. É a casa de Pascoaes, que tira o nome do lugar, e à qual Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos ficou tão ligado que desde cedo mudou o nome para Teixeira de Pascoaes, que apenas quer dizer o Teixeira que vive no lugar de Pascoaes – e por aqui se vê como o poeta sempre insistiu em se ver como o pobre tolo que nunca saiu da ponte de Amarante. O primeiro livro que deu a lume, em 1895, com dezoito anos, traz já na capa o seu criptónimo. A esta casa e a este lugar me referi atrás quando falei das cartas que Mário Cesariny escreveu para João e Maria Amélia Vasconcelos entre 1968 e 2004. Convenço-me que aquilo que faz a ligação do Poeta à casa e ao lugar é a visão que das janelas do nascente se tem do Marão. Essa visão funciona como um íman a que não é possível fugir. O seu magnetismo é altamente concentrado.

O Marão é um maciço montanhoso no norte de Portugal que faz a separação entre o Minho e Trás-os-Montes. O dicionário, no caso o Lello ilustrado, diz assim: serra de Portugal, a sudoeste de Vila Real; comp. 20 km; larg. 8 km; alt. max. 1 149 m. Para Pascoaes o Marão foi sobretudo a paisagem abissal que ele contemplou na infância das janelas e dos terreiros de sua casa voltados a nascente e à qual ficou para sempre preso. A sua obra poética é em vários momentos a tradução escrita deste obsessivo convívio ou desta permanente contemplação. O poema de abertura de Últimos Versos, escrito no final da vida, lá tem pespegada a visão meditada da montanha e Livro de Memórias (1927) revela por dentro a intimidade que o poeta teve em criança e na adolescência com o grande maciço. O Empecido, que já aqui surgiu a propósito da prática sexual em Pessoa e em Pascoaes, ou de como ela se traduz nas respectivas obras, é passado no Marão. E com a montanha, ou dela, qual mineiro, tirou Pascoaes uma personagem, Marános, que protagoniza um dos seus mais enigmáticos textos em verso, Marános, um longo poema em dezanove cantos, com um total aproximado de três mil quatrocentos e vinte decassílabos, dado a lume em 1911 e que o autor numa carta a Miguel de Unamuno chamou de romance em verso. Marános, uma das obscuras hipóteses para a origem do topónimo orográfico, quer dizer em Pascoaes aquele que vive ou habita ou pisa a terra do Marão.

Que conta este romance em verso? A história do habitante do Marão que é Marános. A intriga centra-se na relação que a personagem tem com o feminino, sob figuração tripla: Eleonor, espírito impassível e intangível; a Pastora, corpo inquieto e sensível; a Saudade, alma mediadora entre as duas realidades anteriores. Não será difícil associar estas três figurações a um verso de Camões (canto X, 89) e por via dele à representação clássica do feminino (Selene, Diana e Hécate), se bem que em Pascoaes os compartimentos de cada um destes significados não sejam estanques e tenham entre si vasos comunicantes. O alto espírito impassível de Eleonor recusa por exemplo entregar-se a Marános para que ele possa por sua vez encontrar o corpo sensível da Pastora. Do choque destas duas realidades resultará o surgimento duma terceira, a condensação da Saudade, a quem o poema reserva eminentes sucessos, como conceber de Marános um novo Deus, mas não ainda o fecho final dos sucessos. O poema fecha com a fusão de Marános e Eleonor.

Que tem o Marão a ver com isto? A montanha não é apenas o cenário arbitrário e facultativo onde a história de Marános acontece; ela é o elemento essencial do seu acontecer. Sem a montanha, a história que se conta no poema, a do triplo encontro com o corpo, a alma e o espírito, não podia decorrer. A montanha, enquanto espaço, é solidária de tudo aquilo que acontece no poema. Assim quando se dá a chegada de Marános à montanha dá-se o encontro com a pastora e quando se dá o seu trânsito do corpo para a alma isso é acompanhado pela substituição das baixas pastagens da transumância onde vive a pastora pelos altos cumes da montanha onde paira em bruma a Saudade. É aí, nas regiões altas e rarefeitas, que terá lugar a condensação da Saudade, seguida pela teogonia saudosa do novo Deus; também aí terão lugar alguns episódios laterais ao tronco principal da história, como a reunião de Jesus e Apolo ou a da Saudade e de D. Quixote. Mais tarde, no momento da morte, quando Marános se funde com o espírito de Eleonor, é o pico superior do maciço que é tocado.

É preciso pensar que o Marão teve para Pascoaes, para além da geologia e da orografia óbvias, um elemento psíquico ou além físico de tipo pessoal. Esse elemento terá sido logo apreendido no intenso convívio que se estabeleceu entre a montanha e a criança; mais tarde foi desenvolvido por dentro da escrita, que aqui funciona ao nível duma pictogravura. Escrever sobre a montanha é para Pascoaes desenhar uma imagem dela. O poema de 1911 é o ponto culminante desse trabalho pictográfico que se destina à cristalização imagética do Marão. É o melhor documento que hoje tenho à mão para perceber o elemento psíquico que Pascoaes captou no Marão, já que da infância de Pascoaes me ficou só o livro de memórias que ele deu em 1927.

Que elemento psíquico e além físico captou Pascoaes no Marão? Antes de mais, cabe dizer que os lugares, todos os lugares, além das emoções e dos sentimentos que despertam, bem expressas na escrita romântica da paisagem, inspiram em segundo nível aos que os contemplam ou aos que neles vivem reacções psíquicas – o mesmo acontece com a fauna e a flora. Os lugares agem sobre a psique, criando resistências e acções interiores, que se traduzem na criação de imagens oníricas ou hipnagógicas. É aquilo que se designa por psicogeografia; esta área da geografia, pouco conhecida, pouco atendida, pouco cuidada, merece porém larga atenção, pois as relações entre o plano psíquico e o plano físico são consequência obrigatória, mesmo quando disso se perdeu a noção, do povoamento humano do espaço.

No meu caso posso avançar com o seguinte: a produção das minhas imagens oníricas mais cruas e cruéis, aquelas que me servem para elaborar aquilo que se chama pesadelo, dos quais acordo em estado próximo do pânico, é sempre feita com imagens que se prendem com arranha-céus e com túneis de metropolitano, imagens que a minha segunda consciência vai buscar a experiências remotas de infância – nessa altura ergueram-se em Lisboa os primeiros arranha-céus, num dos quais passei largas temporadas, e se inaugurou a primeira linha do comboio subterrânea, que para me deslocar muito frequentei na companhia de adultos e depois sozinho. Mais: o desconforto que sinto quando tenho de dormir num prédio de mais de dez andares é tanto que se traduz sempre ao adormecer pela sensação de queda no abismo, em trambolhão, que era a assustadora vertigem que me tomava na infância, diante do jardim da Praça de Londres e da Igreja que lá está, em Lisboa, quando me atrevia a chegar à janela envidraçada do meu primeiro arranha-céus (no décimo primeiro ou décimo segundo andar).

Em termos psicogeográficos o Marão de Pascoaes tem uma elaboração própria, que o leitor já conhece. É aquela que vai da infância até à escrita do Marános. Tendo em atenção a natureza da história que se conta neste – uma escalada da montanha acompanhada pela subida do corpo ao espírito pela mediação da alma – o elemento psicogeográfico do Marão de Pascoaes apresenta as características dum axis mundi, onde se desenrolam os sucessos essenciais da criação teo-cosmogónica. É o centro do mundo que permite à natureza ascender ao espírito. O Marão de Pascoaes é nesse sentido o pico da alma encarnada. Que quer isto dizer? Que é nesse ponto físico da Terra ou da matéria que a Terra metafísica dos Mitos ou o Paraíso dos Arquétipos começa: O Marão é psicogeograficamente o ponto de contacto entre este mundo e o outro, entre o mundo físico e o mundo da imagem; tem um valor de ponte entre o alto e o baixo, entre o corpo e a alma, entre a Terra e o céu.

Não é inútil lembrar a este propósito que em algumas cosmologias primordiais, sobretudo de natureza dualista e gnóstica – é o que sucede por exemplo na masdeísta, a Terra, nas convulsões iniciais da criação, faz um derradeiro esforço para não se cindir do Céu. A cisão aqui significa a separação dos dois princípios ou pelo menos o momento em que a Terra enquanto matéria se separa do princípio da Luz e entra na esfera do governo do princípio das Trevas. Na aflição desse momento, percebendo que vai passar de Terra de Luz a Terra de Trevas, o planeta ensaia um último esticão para ficar colado ao céu. Esse esforço é uma montanha, mãe de todas as montanhas posteriores, arquétipo da orografia terrena, o Alborz, que tenta em desespero crescer até ao Sol e às estrelas, para assim manter unida a Terra ao princípio luminoso. O significado da montanha primordial é assim nas cosmologias arcaicas de tipo dualista funcionar como traço de união entre o plano terreno e o plano celeste. O Marão tem na poesia de Pascoaes um estatuto idêntico ao desta montanha cósmica que tenta tocar o céu, ligando o corpo à alma e permitindo a passagem do mundo das formas físicas ao mundo das formas imateriais ou imagéticas e o contacto do primeiro Eu, o social, com o daemon angélico. Doutro modo dito: o Marão na psicogeografia de Pascoaes é a terra da supra-zoologia e o ponto terreno onde a alma encarnada pode entrar em contacto com o Duplo, aquela parte da alma que nunca tomou revestimento carnal e continua a viver no Paraíso dos Arquétipos. É o topo do mundo material por onde se dá a passagem para a base do além mundo; a porta visível do invisível. A fusão de Marános e Eleonor no pico do Marão, e que é o fecho do poema de 1911, não é mais do que a passagem das formas físicas transitórias para as formas arquetípicas perenes ou o encontro do Eu físico com o Duplo angélico.

Ora o surrealismo português apesar de não ter incorporado a psicogeografia de Pascoaes em torno da montanha, antes de mais porque nasceu nas pedras da cidade e o seu contacto com Pascoaes se fez a princípio por meio do outro grande romance em verso que o poeta publicou pela mesma época, Regresso ao Paraíso, trabalhou com imagens de valor idêntico. Veja-se o caso de Mário Cesariny no texto final da primeira edição do Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952), “Poema podendo servir de Posfácio”, dedicado em acaso objectivo a Eduardo de Oliveira, o amigo que levou Cesariny ao cineteatro de Amarante e depois à casa e lugar de Pascoaes, em Março de 1950. Aí afirma peremptório e vertical, sim meu amor a pirâmide existe. O livro tem partes, poucas, que foram compostas antes da adesão do autor ao surrealismo – e disso dá conta a notícia da primeira edição – e outras, muitas, já posteriores. O poema do fecho, que constrói a Pirâmide, pertence por certo à segunda fase. Convenço-me mesmo que o verso da pirâmide – ou versos, porque todo o final do poema segue por aí – pode ser encarado como celebração e fórmula ao encontro de Cesariny com o surrealismo. A pirâmide significa pois aqui o supra-real, a terra da alma, o chão dos arquétipos, a que o real empírico dos sentidos não tem acesso. Daí a necessidade de afirmar, como se isso não fosse perceptível aos sentidos físicos, imediatos, que a pirâmide existe; quer dizer, só se chega à pirâmide de Cesariny pela imaginação.

A pirâmide tem na face o triângulo e na base o quadrado ou outro polígono e evolui para o céu através de plataformas cada vez mais curtas, sete em geral, até tocar o ponto do cume. A relação da base com o cume é na pirâmide a relação que na montanha se encontra entre as pastagens da parte baixa e o pico onde cintila a primeira estrela maravilhosa do supra-real. O que une o ponto cimeiro da pirâmide e a sua base terrena quadrangular é a face do triângulo, imagem geométrica do ternário criador e emblema do fogo gerador. Isto quer dizer que a pirâmide é já uma forma supra-física, uma imagem feita de formas geométricas, que, sendo decomponível em sucessivas montagens racionais, surge porém no seu todo como uma forma da alma a que só se tem acesso por um jacto imaginativo. É possível pois alargar a significação do poema de Cesariny, dizendo que em parte só se chega à imaginação através da pirâmide.

Não posso fechar este excurso sobre a pirâmide num poema inicial de Cesariny sem dizer que esta forma da alma – e assim Cesariny a encara – tomou nos primeiros herdeiros do surrealismo português um lugar de primeiro plano. Eles perceberam que essa forma imagética era o sinal mesmo do supra-real. Assim a única publicação que saiu da geração que fez as mesas dos cafés Royal e Gelo na segunda metade de cinquenta e primeira de sessenta chamou-se Pirâmide (três números, 1959-60; org. Carlos Loures e Máximo Lisboa). Este último no texto orgânico do terceiro número da publicação glosa assim Cesariny: A Pirâmide é Fé, a Fé que trazemos, trouxemos, hoje, ontem. Em todos os tempos, os colaboradores da Pirâmide – a Pirâmide cósmica, reduto instransponível do Amor. E esta é Aquilo que chamaremos o Farol do Mundo, a Religião do Conhecimento – Homero, Dante, Holderlin – perante a qual somos religiosos professos, os únicos crentes, e nós, tradicionalistas, porque a tradição é o Espírito. (Pirâmide, nº 3, Dezembro, 1960, pp. 41-3)

E se procurar bem entre os poetas do grupo, por exemplo em António José Forte, um poeta forte no sentido que aqui me vai, e que não é o das tiragens editoriais, o do prestígio literário ou o da influência em círculos sociais e mediáticos, mas o da criação de imagens e de correspondências inusitadas, convenço-me que a pirâmide volta a surgir numa geração que se não tomou o Marão de Pascoaes por espaço poético e geográfico – e algo tomou pois D’Assumpção, que muito fez escola no Gelo, passava temporadas largas na casa de Pascoaes e isso desde o final da década de cinquenta – teve consigo, por herança do Cesariny prestidigitador, a sua forma interior e a sua alma geométrica. O isomorfismo entre a pirâmide e o Marão é perfeito. Neste sentido não é por certo ocasional que a pirâmide, como sólido, sirva na Índia para descrever a vida ou a forma simbólica em sete voltas do monte Meru, monte sagrado, com surpreendente parentesco fónico, ou talvez não, com o Marão português.

 

14 O Marão de Pascoaes e o Monte Análogo de Daumal

O Marão é o primeiro degrau do além mundo, a terra onde irrompe a fauna da supra-zoologia psicológica de que Pascoaes falou em Duplo Passeio, o sinal mesmo da presença do supra-terrestre. É difícil não associar este Marão e o seu autor a um poeta francês que seguiu nas décadas de vinte e trinta uma metafísica experimental, René Daumal (1908-1944), que Breton cita com simpatia e proximidade, a propósito da revista Le Grand Jeu (1928-30), dirigida por Daumal e Lecomte, no Segundo Manifesto. A metafísica experimental de Daumal e Lecomte assentou na exploração intensiva, sem recuos de espécie alguma, menos ainda diante de eventuais perigos, de todo o continente psíquico que estava à época, nos seus territórios mais imediatos, por via da psicanálise, a ser percorrido e cartografado. O terreno privilegiado pelas experiências de Daumal e Lecomte foi assim a alma humana.

O projecto desta pesquisa geopsíquica, bem como as técnicas de ancoragem apuradas, foi a princípio definido sem conhecimento prévio do surrealismo mas apresenta afinidades electivas com ele. Não admira pois que Breton no texto de 1930 tenha mesmo adiantado que não via qualquer inconveniente à fusão de ambos os grupos. A fusão nunca se deu e que eu saiba Daumal nada chegou a assinar com Breton. Não obstante, a afinidade é transparente, e assim continua hoje, por muito que se queira ver no grupo de Breton a transposição para o plano histórico e até estético do plano do espírito, aí ganhando sucesso, e no grupo de Daumal a estreita fidelidade aos supostos interiores da sua inicial metafísica experimental, nunca dando o salto, por tentação, nem para a História e nem para estética. Nesta visão, que não é a minha, a revista Le Grand Jeu seria como que a alma secreta dum surrealismo aberto em demasia ao exterior.

A respeito de estética porém pouco houve, no caso de Daumal e Lecomte. Este morreu aos trinta e seis anos devido ao abuso de ingestão de psicotrópicos, um dos meios a que o grupo deitou mão para sondar o espaço interior da alma humana, e nem sequer chegou a escrever um livro, limitando ou ilimitando o núcleo da criação dele a um conjunto de fragmentos. Daumal, que viveu apenas os mesmos trinta e seis anos, apanhado por uma tuberculose que lhe limpou os dois pulmões, também pouco publicou em vida, deixando por acabar a sua obra capital, Le Mont Analogue (post., 1952), que tem como subtítulo, romance de aventuras alpinas, não euclidianas e simbolicamente autênticas. O romance, que começou a ser escrito em Julho de 1939, era para ter sete capítulos; dele nos ficaram quatro completos, um quinto por fechar e esquemas de trabalho para os dois finais. Sobrou ainda um anexo com algumas linhas introdutórias, onde se esboça a intriga no seu conjunto e se apresenta um plano de fecho.

É esta narrativa que me interessa trazer a estas notas a propósito do Marão de Pascoaes. Que conta o romance? Dois homens, o narrador e Pierre Sogol, depois de terem estudado a presença da montanha nos mitos arcaicos da humanidade, chegam à conclusão que existe no planeta, escondida pela curvatura do espaço, uma montanha, o monte análogo, que une terra e céu. A base é acessível aos seres humanos vulgares mas o topo, dada a desmedida altura, não. Esse monte existe geograficamente, apesar de nenhum mapa o indicar. Depois de aturadas pesquisas, Sogol identifica com precisão no sul do oceano Pacífico a existência desse sexto continente terrestre e lança um desafio de escalada aos mais destros montanhistas conhecidos. Respondem doze pessoas mas apenas oito aceitam partir na expedição de Sogol, à testa dum barco chamado “O Impossível”, e na qual o narrador participa como relator. A historiografia do evento é o relato que constitui o romance hoje existente e que aqui resumo. Depois dalgumas dificuldades em superar da curvatura do espaço, o que é feito pelo paciente apuramento duma técnica especial de aspiração aérea, cujos resultados só podem ser obtidos com o derradeiro raio de sol, a expedição chega ao sexto continente, o do monte análogo. Na base encontram um povoado portuário normal, que não conhece porém a electricidade e a tecnologia dela derivada, habitada por homens que se dedicam a actividades humanas conhecidas, a pesca, a agricultura, a pastorícia e o artesanato. São levados então a um dos dirigentes locais, um “guia de montanha”, assim dito porque para além do contacto com a base marítima do continente tem um conhecimento pessoal e directo das partes mais altas do maciço, cujos contrafortes laterais logo se avistam do porto; esse guia conta-lhes a história da terra no seu conjunto.

Vivem no monte análogo homens de todo o mundo e que ali chegaram como Sogol, pesquisando os mitos e estudando em pormenor a cartografia terrestre; outros, em muito menor número, chegaram por mero acaso. Se a chegada é difícil, exigindo por vezes meses de espera, dada a protecção natural do impulso da curvatura do espaço, que atira os barcos para o largo, impossível é a saída. Assim o contacto do interior com o exterior ainda é mais raro do que este com aquele. No monte análogo não há dinheiro e tudo se obtém através dumas senhas de jogo sem qualquer valor. A única riqueza reconhecida é um cristal curvo, o único conhecido em todo o planeta, chamado peradam, e que pode ser colhido em zonas de difícil acesso dos contrafortes montanhosos. Em geral os que possuem este cristal conseguem obter com ele tudo o que querem; de qualquer modo as senhas pagam seja o que for. As expedições aos contrafortes do monte análogo a partir da base, a única com povoamento humano regular, são possíveis mas obedecem a requisitos especiais, pois só os guias, pelo conhecimento que têm do terreno, são capazes de passar além das últimas pastagens da base sem por esse motivo se extraviarem. A grande parte dos habitantes dos portos marítimos da base do monte análogo, descendentes de antigos exploradores, não tem um interesse especial em aventurar-se nos contrafortes do maciço, a não ser para tentar obter os cristais curvos. Há assim gente que vive uma longa vida, sem sequer ter passado além dos terrenos das últimas pastagens. Outros, atraídos pelo monte análogo, fazem várias excursões, podendo depois, à força de experiência, tomar a qualidade de guia.

O grupo de Sogol é um dos que não tem qualquer interesse pela base do maciço e está desejoso de trocar os portos e as terras de pastagem pela exploração do maciço. É preparada a expedição para a escalada com a ajuda do “guia” e dalguns bagageiros. Inicia-se então a excursão, deixando para trás as habitações da base. Numa paisagem fria e alpestre, cortada por muitos cursos de água, a expedição atravessa florestas de pináceas, lárices na maioria, um tipo nativo das regiões frias do hemisfério norte, com algumas semelhanças com o cedro, até chegar ao primeiro abrigo de montanha. Estão ainda no perímetro civilizado, pois o abrigo de pedra serve também para recolher os pastores que cuidam das manadas das terras de pastagem.

Aqui termina o texto tal Daumal o deixou – quatro capítulos completos e um quinto por fechar. Do que esquematizou para o que ficou em falta posso concluir o seguinte: depois de deixar as terras de pastagens, a expedição entra num território cuja expressão, em termos botânicos e zoológicos, é conhecida, mas cujo significado é diferente; aí ficam a saber que os quatro alpinistas convocados por Sogol que haviam recusado integrar a expedição, organizaram em segredo uma viagem alternativa ao monte análogo, passaram com sucesso a curvatura do espaço e iniciaram antes deles a escalada do maciço. O sucesso foi nulo e sobreviveu apenas um dos membros, que conta aos antigos companheiros os pormenores do fracasso. Alertados dos vários perigos, iniciam assim a escalada. Para fechar a história, o narrador estabelece diálogo com o leitor sobre o significado da procura.

Das páginas introdutórias que Daumal esboçou, repesco estas linhas relativas ao pico do monte análogo, termo último da demanda: Muito alto e muito longe no céu, em cima e além dos sucessivos círculos de picos cada vez mais elevados, neves cada vez mais brancas, numa ofuscação que o olho não pode suportar, ergue-se o derradeiro cume do Monte Análogo. Aí, em pico mais agudo que a mais fina agulha, ergue-se aquele que preenche todos os espaços. Lá em cima, no ar rarefeito onde tudo congela, subsiste só o cristal da derradeira estabilidade. Lá em cima, em pleno fogo do céu onde tudo escalda, só subsiste a perpétua incandescência.

O monte análogo de Daumal é talvez a melhor expressão daquilo que o grupo da revista Le Grand Jeu chamou metafísica experimental. Baseou-se esta, como disse, na exploração intensiva do continente psíquico. O monte análogo de Daumal é assim um símbolo poderoso, que apresenta a força dum facto vivido, da exploração da alma humana. O monte análogo é afinal o continente psíquico, o espaço da interioridade humana que a cartografia ignora. Ao traduzir este espaço psíquico por uma realidade física, a montanha, Daumal conseguiu materializar num símbolo a alma humana, ao mesmo tempo que consignou o conhecimento desta como sábia e paciente escalada, requerendo o esforço e a atenção do corpo todo, da inteligência aos sentidos físicos.

Para se pesquisar a alma humana, aquele que investiga não pode fazer apenas uma operação intelectual descarnada mas precisa de empenhar o corpo todo. Daí as aventuras alpestres, simbolicamente autênticas, em espaço não euclidiano, que Daumal escolheu para subtítulo da sua extraordinária narrativa. Dito doutro modo: não há imagem que não se apresente com a realidade dos sentidos. Só o estatuto de real análogo da imagem justifica a possibilidade de viver as criações da imaginação como verdadeiras. Essa verdade não é a da cinemática idiota de Hollywood mas a das máscaras do teatro arcaico que faziam berrar de horror e chorar de riso. É esse horror e esse riso que tornam as imagens verdadeiras e os símbolos autênticos. Em resumo: o monte análogo é o sinal de que o outro mundo começa neste e o umbral do além, a porta do invisível, está diante ou dentro de nós; cada um a pode ver e sentir aqui.

Daumal e Teixeira de Pascoaes nunca tiveram por certo notícia um do outro. Ainda assim a afinidade entre o romance em verso de 1911 e a obra vinda a lume em 1952, ano da morte do português, é inegável. Ambos tomaram a montanha como símbolo da alma encarnada e ambos fizeram da escalada física dela uma imagem do conhecimento progressivo que o homem pode ter do mundo do espírito. Também as cosmologias arcaicas que ligam a Terra ao céu através duma montanha cósmica original, que toca as estrelas, como o Alborz, se fazem pertinentes em cada um deles para se entender a significação quer do Marão quer do monte análogo. Do mesmo modo quer o Marão quer o monte análogo são espaços simbólicos, mas autênticos, quer dizer, geográficos, onde o Eu físico encontra o seu daemon por encarnar. É esta a experiência final de Marános e seria esse decerto o destino final da expedição de Sogol, caso Daumal tivesse podido completar os dois capítulos em falta. No pico dos dois maciços brilha a primeira estrela imaterial do além. E aquilo que aqui se diz para o Marão e o monte análogo se poderia dizer para a pirâmide de Cesariny. Também ela pertence já à terra dos imortais.

A terra dos imortais é a terra dos arquétipos, quer dizer, a das formas essenciais que nunca morrem e atravessam incorruptíveis e idênticas o contínuo das gerações temporais. É isso que se passa com as figuras geométricas, os polígonos que dão forma à pirâmide e que já Pitágoras, um pré-platónico, conhecia. E muito antes dele, milhares de anos antes de Pitágoras e da sua escola, já os construtores das Pirâmides do antigo Egipto estavam familiarizados com essas figuras, que ainda hoje são as mesmas. E são ainda essas figuras que desde há e milhões e milhões de anos unem no céu austral os vértices das estrelas. Quer o Marão quer o monte análogo têm o estatuto idêntico a estas formas essenciais capazes de sobreviverem ao curso do tempo.

Para melhor se entender o chão de onde vêm estas formas imortais, ou para melhor se perceber a natureza do meio onde se desenvolvem, recorde-se tópico do masdeísmo tardio com cruzamento bíblico. Existe no planeta uma região separada, com três cidades, Jabarsa, Jabalqa e Hurqalya, chamada a Terra das Cidades Esmeraldas, onde vivem homens que, não sendo imateriais e tendo corpos físicos, são idênticos aos anjos; não morrem, não se vestem, não se reproduzem, não têm entre si diferenciação de sexo. Que cidades são estas? Núcleos que descendem do antigo Paraíso onde Deus criou Adão e que não foram tocados pela ordem de expulsão. Nesta narrativa no momento da saída de Adão e Eva, momento tardio, o Éden encontrava-se já povoado por outros humanos com as mesmas características gloriosas que Adão e Eva tinham antes da expulsão. Também eles não conheciam a morte, a doença, a dor, a reprodução sexuada – o que não dizer que não conheçam o Amor e o Desejo (conhecem-no até estado puro); tinham sido criados imortais. Adão e Eva perdem essa qualidade com a expulsão do Jardim, mas no tópico masdeísta tardio outros humanos não são afectados por esta expulsão e continuam a viver na primitiva terra do Paraíso. A Terra das Cidades Esmeraldas é pois o que sobrou no presente do antigo Éden. Os corpos que aí vivem são os originais, modelados com a argila primordial que o Criador usou para modelar Adão. É uma argila que não sofre corrupção e por isso esses homens sendo os mais velhos do mundo têm ao mesmo tempo o aspecto dos mais jovens adolescentes. Não morrendo nem envelhecendo, não precisam de se reproduzir. Só existe reprodução entre as espécies que morrem; as eternas não se reproduzem. A sobrevivência da espécie está à partida assegurada e nenhuma razão existe para a reprodução ou para a diferenciação de sexo. É o andrógino em todo o seu esplendor primordial, que acorda eco em mim da leitura alquímica que Cesariny fez da pintura de Vieira da Silva no magno livro de 1984, Vieira da Silva, Arpad Szenes ou o Castelo Surrealista, como anamorfose do serafim-alma em serafina-lança.

Faça-se da história das três cidades misteriosas um termo comparativo; com ele se entenderá melhor o que se diz com formas perenes. Tal como estes homens andróginos que não morrem e não precisam de se reproduzir, assim o triângulo onde se contempla uma forma estável e essencial. É o mesmo desde há milhões de anos; é afinal um molde que vem desde o princípio de tudo. Esteve por certo presente no momento inicial da criação e ainda hoje não se alterou; chegará com certeza ao final de tudo idêntico ao que hoje é. É uma forma perene e imutável. Eis então, para além de todo o alegorismo, uma figura que vive na Terra das Cidades Esmeraldas. O seu aspecto é sempre o mesmo, ontem, hoje e amanhã, como o desses homens que vivem nas cidades misteriosas da região separada. É uma figura que foi criada com a argila original, a mesma que na alegoria bíblica criou o Adão glorioso do Éden, argila não corruptível, a garantir a eternidade dos corpos. Tenho pois aqui nesta figura indelével a alma das três formas simbólicas que Cesariny, Pascoaes e Daumal elaboraram: a pirâmide, o Marão e o monte análogo. E nela tenho ainda o desenho astral do grande triângulo celeste do Verão austral constituído por Altaír, Deneb e Vega, três estrelas tão enigmáticas e tão ornadas de lendárias sugestões como as esmeraldinas cidades de Jabarsa, Jabalqa e Hurqalya.

 

15 Um Passo Gnóstico de André Breton

Regresso obsessivamente à leitura dum passo de André Breton. Há anos que a ele regresso, sem perceber porquê, pois o seu sentido há muito que se me afigura claro. São os dois períodos finais do derradeiro texto programático do surrealismo, “Du surréalisme en ses oeuvres vives”, texto tardio, dado a lume em 1953 e que pode ser encarado como o derradeiro sinal programático do movimento – e parece que assim o desejou o autor ao publicá-lo na edição final dos manifestos. Trata-se de momento de monta, em contraponto com os iniciais do surrealismo, que apresenta um evidente cunho de balanço. Foi escrito e dado a lume quando o século avançara já o suficiente para se perceber o que ao longo de décadas, por dentro, no domínio da escrita e da pintura, o surrealismo fizera e o que fora dele, nos mesmos domínios, acontecera.

Significativo deste ponto de vista, e sempre em desafio, é o paralelo próximo, todavia mais pela diferença do que pela afinidade, que Breton faz entre o monólogo interior joyceano, que disparou em direcções várias e alastrou como mancha de propagação rápida por muitos sectores da literatura do século XX, e a escrita automática surrealista. O monólogo interior recorreu a associações verbais livres mas quedou-se porém pela zona mais à superfície da linguagem, aquela que funciona como um teclado ou um puzzle de letras. Daí a arbitrariedade do jogo ou a excessiva impressão de imitação que dele emana; mais do que a realidade do objecto ele é um segundo objecto – por força menos autêntico do que o primeiro. Ao invés o surrealismo fez um caminho diferente. Recorreu também a associações verbais livres mas não se precipitou a dar-lhes curso escrito de modo a evitar os escolhos de superfície e os jogos arbitrários da clave linguística. Ensaiou antes perceber o funcionamento interno do pensamento para aí captar o nó em que se deslaçam as associações. Procurou pois um instrumento adequado para sondar o continente interior e atingiu, em estados de alteração da consciência, próximos do sonho, ou do desdobramento do Eu, esse desdobramento que permite contemplar o corpo e dizer aquele é o meu corpo, a fundura necessária para contemplar em êxtase o ponto do espírito onde têm origem as associações livres.

É o que Breton com a lucidez e a experiência de quem tinha atrás de si cerca de quarenta anos de prática chama o deitar mão à matéria-prima da linguagem verbal e pictórica. Identificado o local do espírito onde esta matéria existia em estado virgem, cartografado o seu território, foi fácil ao surrealismo retirar desse veio importantes parcelas de precioso minério. Essas pepitas chegaram à camada da superfície e mesmo ao exterior através da linguagem verbal e das imagens pictóricas – e isto não tanto por tradução mas por contacto directo. Que quero dizer com isto? Que a matéria mesma que a sonda indagava era de natureza acústica ou de ordem óptica. As imagens sonoras e visuais são a realidade do espírito; fora desta realidade o espírito humano não existe. A duas linguagens, a pictórica e a verbal, não são assim sistemas codificados em paralelo e que sirvam em segunda mão para traduzir um primeiro objecto; ambos os traços fazem parte, ou são, a amálgama do espírito.

Fosse como fosse, essas pepitas interiores restituídas ao exterior faziam a vez de corpos estranhos. Não podia ser doutro modo. Esse ponto do espírito alto e profundo a que o surrealismo subira, ou descera, é indiferente, era o mesmo onde irrompia o desejo em estado selvagem, sem interferência da primeira consciência, o local onde a vontade de incesto ou duma sexualidade sem tabus ditava a sua lei sem lei. Mas esse ponto é vizinho dum outro, muito activo e laborioso, verdadeira fábrica de sonhos, se é que não coincide por inteiro com ele, onde se elabora o bailado dos símbolos com que a segunda consciência expede para a primeira os seus conteúdos. É também nesse laboratório que se combinam os mitos com que as civilizações arcaicas narram a sua origem, quer dizer, a passagem dum tempo homogéneo, sem interditos, pré-civilizacional, ao momento da formação do Eu civilizacional. O mito guarda desse modo no revestimento narrativo com que se apresenta uma memória viva do lugar de origem, da terra dos arquétipos ou das estrelas, ao mesmo tempo que apresenta o momento da sua passagem para um segundo sistema, o do paraíso perdido, o de Caim e Abel, o da entrada na História, em que o passado e a sua memória se apagam. Ele, o mito, desempenha na psique colectiva o papel que o símbolo exerce em termos de indivíduo; o seu papel, tal como acontece com o símbolo, é guardar aquilo que doutro modo já está perdido.

Foi a esse vaso comunicante entre as duas consciências, a essa escada de acesso ao interior do espírito, que Breton chamou automatismo. A sua importância é imensa e não pode ser avaliada apenas do ponto de vista duma ciência que se destina a pesar a qualidade do Belo, a estética, ainda que deste ponto de vista dificilmente seja possível ficar indiferente a essa beleza selvagem e estranha, em estado puro e bruto, uma beleza primitiva, por trabalhar, melhor, por civilizar à força de plaina e lima, beleza que Breton classificou de convulsiva e Dalí de comestível, e que resulta do encontro com essa região do espírito, já na segunda consciência, onde se formam os símbolos e os mitos. É o lugar maravilhoso do espírito, a activa oficina onde todas as noites se fabricam os sonhos. Muitos dos melhores achados surrealistas devem-se do ponto de vista estético a essa prática de salto ou a esse convívio directo e procurado com o lugar que é a fonte de qualquer representação simbólica, a fenda onde se pode colar a boca e beber o jorro original de toda a significação.

Para me ater apenas a dois exemplos que tenho de cabeça, pois escrevo a correr, e não sair do campo verbal, uma expressão como le revolver à cheveux blancs, que Breton usou como título dum livro seu, e que tão pertinente se mostra mesmo do ponto de vista estético, só se justifica como minério sondado em alta fundura, a muitas léguas de distância da lógica de superfície, mesmo com travo a Joyce. O mesmo digo para aquela espantosa expressão de Cesariny que parece ser adiantada de olhos fechados, semi-adormecido, ao acordar, em estado de não saber o que diz, e que ele tomou também como título de obra sua, primavera autónoma das estradas. O que nestas descobertas está em jogo é uma operação de extraordinária envergadura que não respeita apenas ao teclado arbitrário da linguagem verbal; toca-se com elas o ponto onde a matéria primeira da significação, o estado virgem das representações, irrompe na alma humana. É o ponto sem costura que existe dentro de cada homem, espécie de ônfalo ou umbigo interior que liga a alma humana ao cosmos infinito, e no qual é possível encontrar aquele princípio onde, nas palavras de João, reside o verbo original e criador.

É vã qualquer tentativa de imitar este empreendimento de grande pujança – Breton aproximou-o nos prolegómenos de 1942 da procura do Tosão de Oiro na Grécia arcaica – apenas por um trabalho de superfície. Mais: qualquer contrafacção que dele se faça arrisca-se a resultado desastroso. Achados como os de Breton e os de Cesariny não são meros arranhões linguísticos à flor da pele da linguagem; são jogos verbais que se amalgamam com o que de mais íntimo e inacessível há no espírito humano e a que só se acede por um processo de demorada pesquisa. Não é possível pôr mão nessa matéria primeira sem primeiro tornar consciente o que se perdeu – e isto assim é porque o que se perdeu se confunde em parte com a matéria-prima verbal. Tentar imitar à superfície uma frase como aquela que Cesariny foi buscar por um aturado e persistente trabalho de pesquisa interior a estas quase inacessíveis regiões do espírito, as mesmas onde tomam forma e lugar as imagens dos sonhos, é obter como resultado um exercício escolar inoperante como o de António Pedro em 1942 – o mesmo digo da “ode ao surrealismo por conta alheia” de Jorge de Sena – e que não põe nem tira ao que deveras vai ao surrealismo. Um pechisbeque levezinho, caçado no exterior, ainda que brilhante, não deve ser confundido com o maravilhoso e ofuscante minério aurífero, o peredam raríssimo de Daumal, o cristal curvo, que o surrealismo se propôs trazer à luz do dia dos meandros mais recônditos do espírito humano, restituindo aos homens nada menos do que a palavra perdida.

Volto agora ao passo da minha leitura a que sempre regresso no texto de 1953. Que diz ele? O seguinte: Para isto [para conhecer o que o rodeia], o grande meio que o homem tem à disposição é a intuição poética. Liberta enfim no surrealismo, deseja-se esta não só assimiladora de todas as formas conhecidas mas atrevidamente criadora de novas formas – quer dizer, em posição de abraçar todas as estruturas do mundo, manifestado ou não. Só ela nos mune do fio que reconduz ao caminho da Gnose, enquanto conhecimento da Realidade Supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério”.

Para ser sincero o que me surpreende no passo é o último período, que é o fecho também dos textos programáticos do surrealismo. Chave de oiro? É possível que sim. Revelação daquilo que Breton tanto anos escondera? Também sim. E que escondeu ele? Diga-se antes de mais: nunca como nestas poucas palavras, nestas duas únicas linhas, ele abriu tanto o jogo, mostrando de forma explícita o que lhe interessava. Desde os primeiros anos da aventura surrealista, pelas ligações que logo se urdiram entre Nerval, o de Les Illuminés, e o surrealismo, que se sabiam as afinidades entre o movimento e os que se haviam devotado no século anterior ao ocultismo. Mais tarde, nas páginas dedicadas a Flamel, percebeu-se a identidade de propósitos entre a actividade do surrealismo para determinar aquele ponto do espírito onde todas as contradições deixam de ser sentidas como oposição, e que não é outro do que aquele onde se fabricam as imagens dos sonhos, no centro do qual jorra da fonte original de toda a significação a palavra perdida, e a prática dos que haviam feito da pedra filosofal a meta das suas vidas.

Por aqui se quedaram as coisas longo tempo, sem novidades de assinalar, até se chegar ao ano em que Breton escreveu as linhas do derradeiro texto programático do surrealismo, onde o jogo muda de patamar. Que eu dê nota é dos raros momentos em que Breton fala da Gnose, ainda por cima fazendo dela nada menos do que a meta da própria actividade poética como o surrealismo a entendia. Isto quer dizer esta coisa espantosa: a actividade poética, tal como a concebia o surrealismo, não tinha por fim a arte mas antes a Gnose. Não vejo na obra do grande pensador qualquer outro lugar em que ele confesse desta forma a sua adesão à Gnose (deixe-se passar a maiúscula, que não é minha mas do autor). Será isso que me atrai no passo, obrigando-me a regressar a ele vezes sem conta?

Paga pois a pena indagar: que é a Gnose? A palavra surgiu já nas minhas notas por duas vezes. A primeira a propósito de Seth, o inconformado filho de Adão e Eva, que não se quis adaptar às novas condições de existência, as do plano da História, o mesmo é dizer, as da formação dos interditos do Eu social, por contraste com a liberdade anterior do Eu arcano a viver no Éden. Seth alimentou e desenvolveu assim na origem os materiais mnésicos que permitiram depois, na evolução da humanidade, nunca deixar cair no olvido o glorioso Jardim original. Se a questão tivesse apenas ficado ao cuidado do primeiro casal e dos irmãos de Seth o recalcamento do estádio original, seguido em toda a linha pelo esquecimento dele, teria sido inevitável. As religiões reveladas e a Lei implacável que impõe invadiriam todos os recantos da consciência; sobraria apenas, no lugar dos conteúdos anteriores, um imenso buraco negro e vazio, sobre o qual reinaria um silêncio gelado de pavor e morte e sobre o qual nada se poderia dizer.

O absurdo em que a existência para tantos se tornou depois da perda do primeiro corpo, aquele que não conhecia a morte, far-se-ia ainda mais fundo e premente, não deixando no horizonte qualquer hipótese de saída do cárcere. Se é possível conceber um inferno, ele é o resultado da operação de subtracção entre o Eu social tal como existe hoje e a herança que Seth deixou à humanidade e a toda a natureza afectada pela expulsão do Éden. Essa herança é um bálsamo, uma permanente ponte entre os mundos, que alimenta a todo o momento a esperança da natureza traumatizada poder transitar, e até experienciar o transe, ao momento glorioso da criação – e glorioso porque esse é ponto onde o transitório toca o eterno, o visível o invisível e o criado o incriado. Sem essa herança, só existe o “castigo” da expulsão, o trauma da dor, o Eu histórico sem rasto da sua sombra astral. O Eu físico sem nota de sombra é como queria Chamisso a condição de qualquer negócio com o Anjo das Trevas. Negociar com este a sombra é entregar-lhe o corpo astral e ficar reduzido ao reduto fechado do Eu histórico. Concebe o leitor inferno mais pavoroso? É difícil. Por sua vez inutilizar a oficina dos sonhos que põe a natureza ferida em contacto com a palavra perdida é o único alívio do princípio negativo. Cada oficina desmantelada é mais uma sombra no bolso, mais uma alma desfeita e inutilizada, mais um corpo reduzido só à consciência da sua dimensão histórica e material.

Que traços mnésicos foram esses que salvaram do recalcamento o Eu original? Os da Gnose, enquanto conjunto de representações originais de significação óptica e verbal; foi por via dessas representações que os conteúdos do Eu arcaico puderam com relativo à-vontade aflorar à nova camada do Eu, resultado da expulsão do Paraíso e da entrada forçada na História. A pedra filosofal é um desses traços mnésicos poderosíssimos pelos quais os elementos em vias de se perderem puderam ainda ser incorporados na nova sedimentação do Eu. Esses traços representam assim um vaso comunicante entre o ponto original do espírito, onde reside o Paraíso perdido, com o seu verbo também perdido, e o círculo excêntrico, à deriva, cada vez mais longe do centro, em que os filhos de Adão e Caim hoje se esgotam.

A segunda vez que toquei na Gnose foi a propósito do poema “Miséria” de Teixeira de Pascoaes. Pareceu-me claro que era possível associar a abjecção material do poema, e por ela a de parte importante daquilo que se chama abjeccionismo, com as narrativas míticas do dualismo gnóstico. Tomei a palavra enquanto sinónimo de conhecimento, aquele que permite a passagem do plano da abjecção para o do supra-real e que está pela sua natureza nas vizinhanças daquela operação interior que deita a sonda pelo espaço estelar psíquico à procura do ponto sem costura onde se encontra na porta de entrada do Paraíso perdido a oficina dos sonhos.

De qualquer modo, Breton no curto passo a que regularmente regresso, e com uma capacidade de síntese notável para duas linhas, que sempre me toca, apresenta uma definição de Gnose. Diz ele que a Gnose é o conhecimento da Realidade Supra-sensível. Nada disto surpreende, a não ser talvez a substituição do supra-real por uma nova expressão, muito mais antiga, de raiz platónica, e que também pouca ou mesmo nenhuma fortuna tivera em textos anteriores, a realidade supra-sensível. Esta, sendo aquela de que toda a Gnose fala, o mesmo é dizer, aquela realidade anterior à queda da argila original no mundo sensível, é também aqui o supra-real que Breton toda a vida procurou. Resta aquele termo de frase, que aparece entre comas, por ser decerto uma citação, que não sei donde vem, “invisivelmente visível num eterno mistério”, e que indica porventura que essa realidade que importa captar, esse ponto miraculoso onde se toca materialmente o corpo astral, é invisível aos olhos do corpo, mas doutro modo se pode ver, não perdendo nunca como um céu estrelado a sua infinita capacidade de sedução. E aqui me pergunto se não é este mesmo céu estrelado que a última expressão de Breton em mim evoca que perpetuamente me atrai. Se assim é, debruço-me sobre estas palavras como se nelas visse cintilar as estrelas do fogo azul do céu. Lê-las é subir ao derradeiro patamar dum zigurat; relê-las é ter diante de mim a noite infinita e por cima aquele ponto miraculoso em que o invisível se faz visível, em que o amado dá ao amante o amor, em que o criado toca o por criar. É então que as palavras que Daumal escreveu sobre o altíssimo pico do monte análogo se me fazem inteligíveis: Lá em cima, em pleno fogo do céu onde tudo escalda, só subsiste a perpétua incandescência.

Posso encerrar aqui esta nota. O passo de Breton está esclarecido; percebo agora porque regresso a estas palavras. Não tenho sequer ilusões: a elas regressarei sempre. Trata-se duma janela aberta sobre o céu das ideias; isso chega para entender o motivo que me move e moverá sempre para ela com sôfrega e renovada curiosidade.

Quero porém juntar duas sequências. A primeira relativa à visão cosmogónica de Ibn-Arabi. Para este pensador andaluz a levedura de argila que serviu no princípio para criar o primeiro Adão serviu também ao Criador para criar para a sua alma um universo paralelo, chamado a Terra da Realidade Verdadeira. A criação deste universo em correspondência com a alma do primeiro homem fez que na criação posterior, mesmo desapossada já dos seus poderes primeiros, cada alma tivesse na Terra da Realidade Verdadeira um universo correspondente, intocado esse no seu primitivo esplendor. Cada elemento da natureza tem a possibilidade de encontrar e em êxtase contemplar este daemon de si próprio, este real absoluto da sua vida; basta para isso aprender a conhecer a sua alma, pois tocará nela num ponto onde se inicia o espaço desta outra Terra. Como não ver no automatismo que Breton advogou como experiência essencial para o homem criador o fio condutor que cada um de nós tem para tocar e encontrar este outro plano da nossa vida? E como não ver nas palavras de 1953 relativas à Gnose a necessidade de entender este homem criador não como aquele que se entrega à arte ou à literatura, comércio exterior, muito distractivo, mas como aquele que tece em silêncio e em recato, dentro de si, com a paciência e a habilidade das grandes tecedeiras, os trilhos que o põe na senda do plano que o grande visionário andaluz chamou Terra da Realidade Verdadeira? Essa que Breton não se acanhou de designar como Realidade Supra-Sensível.

A segunda para acautelar o seguinte: quando se fala a propósito de surrealismo de ciências ocultas, de pedra filosofal ou de Gnose nenhuma destas realidades é para ser tomada como fumo sem fogo. Quero dizer, nenhum desses segmentos serve para dar ao surrealismo um adorno de qualquer espécie, nada neles existe para encobrir um qualquer vazio de projecto. O facto de André Breton em 1953, o ano da morte de António Maria Lisboa, coar o supra-real do surrealismo como a realidade supra-sensível da gnose platónica não se deve a qualquer impasse da aventura surrealista. Esses segmentos não são areia fina para atirar aos olhos do incauto e desse modo esconder a frivolidade dum movimento que já então passara os trinta anos. Ao invés o surrealismo em 1924, ou mesmo em 1930, é muito mais bisonho, está muito mais longe do essencial, do que o de 1953. Entende-se. Breton tivera nesse entretanto que durou três décadas a possibilidade de cartografar o espaço interior, estabelecendo trilhos seguros de acesso ao surreal. O registo do supra-sensível, fazendo da palavra poética o fio condutor da alma para a fonte do verbo primordial, esclareceu de vez a aventura surrealista, dando-lhe uma consistência e uma solidez que doutro modo, distraída do essencial, que se confunde com a matéria-prima do verbal, podia tremer nos fundamentos mesmos com que se apresentava.

A deriva política do surrealismo ao serviço da revolução social assinala um espaço intervalar que obrigou o movimento a marcar passo naquilo que mais importava, trocando por momentos a sua actividade no interior do espírito humano pelas lutas no seu exterior. Tome-se por aceitável este momento de paragem; aceite-se até que alguma coisa de exaltante houve nisso e que Breton nunca perdeu o pé nesse tremedal cheio de minas e armadilhas; nunca porém se veja nesse segmento o momento crucial da aventura dum movimento que nasceu para fazer a sua própria revolução e não para servir a dos outros, muito menos quando estas eram torpes e criminosas, como a do estalinismo, ou todas as outras que derivavam do leninismo, e nem sequer estavam dispostas a encarar a dimensão interior da natureza, reduzindo o homem, com o desastroso resultado que hoje se sabe, e basta deitar os olhos para a China, anos e anos de retrocesso na libertação do plano terrestre, a um Eu social, um Eu histórico ainda mais garrotado do que aquele que chegara ao cosmopolitismo do século XX ocidental depois de sete mil anos de História e de continuados tabus que bastaram para sufocar a vida interior e já haviam feito da espécie humana, mesmo sem leninismo e derivados, uma espécie amputada e aleijada no meio duma natureza muito mais consciente e autêntica. Daí o inexaurível crédito do passo platónico de 1953.

 

16 Ossóptico de António Maria Lisboa

Ossóptico é, com Erro Próprio, o primeiro opúsculo de António Maria Lisboa. Foi impresso em Setembro de 1952 numa tipografia de Coimbra, a Nova Casa Minerva, quando o autor já estava doente dos pulmões e se encontrava internado num hospital da região, o Sanatório da Quinta dos Vales. Nesse momento e nesse lugar mandou Lisboa imprimir os dois opúsculos referidos acima. Erro Próprio, que traz em subtítulo conferência – manifesto, fora comunicação lida em Lisboa, na Casa da Comarca de Arganil, em 3 de Março de 1950 e relida depois, a 30 de Março do mesmo ano, no Porto, no Clube dos Fenianos. Foi a propósito desta última leitura, de resto patrocinada por Cesariny, que o poeta de Primavera Autónoma das Estradas lastimou não se ter convidado o autor de Regresso ao Paraíso para estar presente, onde segundo ele teria sido o ouvinte mais contente. É no final desse texto manifesto que se encontra a pergunta – como comunicar numa Babilónia que se destrói ao conquistar a ordem e que para o Poeta não tem interesse a sua subsistência – que Pedro Oom na entrevista de 1962 transformou na questão crucial do abjeccionismo, que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos. Quanto a Ossóptico, que Lisboa, sempre escolheu para abrir a sua tábua bibliográfica, é um conjunto de quinze poemas em verso, que aqui quero tomar por sujeito nesta nota.

A primeira questão que o livro me coloca é a do título. Sei que ele esteve para se chamar Osso Exótico e sei-o por um desenho de Henrique Risques Pereira, amigo de Lisboa desde o calção e o berlinde, reproduzido depois na edição da poesia de Lisboa do ano de 1977 (Assírio & Alvim, p. 159), de longe a mais importante das três ou quatro que hoje se conhecem. Tomando aqui como primeira a que apareceu na Guimarães editores em 1962, e deixando de lado as edições originais do poeta, a de 1977 é a segunda; além da exaustão dos materiais, da iconografia, quase nula nas restantes, da organização das matérias, muito mais confusa nas outras, existem as riquíssimas notas de Cesariny, que um dia, pelo que nelas há de pessoal, de poético e de documental, valerá salvar e exumar da letra miúda em que ficaram. A hipótese é dá-las a lume em separado, ou como livro ou como capítulo autónomo de livro do autor já existente, por exemplo edição futura de As Mãos na Água a Cabeça no Mar, com o nome possível, “apontamentos para uma edição da obra de António Maria Lisboa”.

“Osso Exótico” foi o primeiro título que o livro de Lisboa teve. Que significa ele? Não me parece oferecer dúvida que a expressão à letra quer dizer o osso que vem dum país estranho, donde por simplificação se tira, melhor, e mais próximo, o osso estranho. “Osso Exótico” é pois o “osso estranho”. Em última visão pode ser o osso que não parece osso. O título final, que substituiu este, é mais complexo; o acesso ao seu significado é também mais difícil. Trata-se dum neologismo criado pelo poeta, cuja significação não pode ser encontrada em nenhum dicionário, ao contrário do que acontecia com a primeira versão. Não há dele registo em nenhum glossário.

Para abordar o título definitivo é melhor ir por partes. É fora de questão que o neologismo lisboano resulta do acasalamento de duas palavras anteriores, osso e óptico. É a aglutinação destas duas palavras que dá ossóptico. A palavra foi criada por Lisboa por analogia com o processo de formação doutras já anteriores existentes. É o que acontece em aguardente, fruto também da união de duas palavras prévias. Também me parece fora de questão o modo como o segundo elemento da formação da palavra foi obtido. Do meu ponto de vista, a palavra, tendo registo, não foi porém captada em qualquer léxico; resultou antes da evolução do elemento anterior. Por um processo de aproximação fónica, exótico deu óptico. Decomposta a primitiva palavra em dois elementos, ex+ótico, por uma extracção natural do prefixo, Lisboa ficou nas mãos com uma nova palavra, sem qualquer vizinhança semântica com a primeira, ótico, que num segundo momento passa a óptico. A nova palavra, obtida por aproximação fónica, num jogo que Lisboa conhecia muito bem, o da cabala fonética, pois a ele se refere em Erro Próprio (1977: 91), atribuindo-lhe mesmo uma missão, uma cada vez maior assimilação do irracional, descola porém do seu sentido; óptico nada tem ver com exótico, a menos que se queira ver neste, mas já por sugestão do novo elemento, o que está fora da vista. Mas neste caso, a palavra deve ser grafada assim: exóptico. Óptico é tudo aquilo que diz respeito à visão ou ao olho, como ótico é tudo aquilo que diz respeito ao ouvido. Chegado aqui, ao osso óptico, pelo processo acima descrito, deu-se a natural aglutinação dos dois elementos, pela fusão da vogal final da primeira palavra com a vogal forte da segunda, num processo em tudo análogo ao que se passou no caso de água ardente. Da assimilação da primeira vogal pela segunda, chegou o poeta à nova palavra, ossóptico.

Que significa esta? Atendo-me ao processo de formação dela, e recolhendo dele, processo, o momento em que a palavra ainda se desdobrava nas duas iniciais, osso e óptico, tenho, à letra, o osso relativo à visão. Assim, num primeiro passo, posso dizer que o neologismo significa o osso relativo ao olho. Visão e olho, dê por der, são conteúdos de peso na significação da palavra título do opúsculo de Lisboa. Recorde-se que na dinâmica da sua obtenção houve momento em que o autor, pela eliminação do prefixo que há em ex-ótico, ficou com duas palavras à escolha, ótico e óptico, aquela mais fiel ao curso evolutivo e esta já resultado dum arranjo escrito, pois a primeira consoante é muda, não audível. Ótico e óptico são homófonas. Nesse instante Lisboa teve nas mãos duas linhas: a da audição e a da visão, a do ouvido e a do olho.

Isto não pode deixar de me lembrar a teoria freudiana do recalcado, em que os conteúdos rejeitados pela primeira consciência, no seu esforço de circularem, de não se fixarem, recorrem a materiais ópticos e também óticos, em dupla natureza, visual e auditiva, para acederem se não já à primeira consciência, a do Eu social, pelo menos à sua vizinhança, a pré-consciência. É o material mnésico, uma espécie de pré-simbolização a que a segunda consciência recorre para despachar, dia a dia, em plena vigilância feroz da censura, os conteúdos recalcados para patamar mais próximo da consciência. Daí os actos falhados, com a inesperada troca de palavras, em geral por afinidade fónica, e certas surpresas visuais, de tipo alucinatório, que propiciam à luz do dia, nas barbas da censura, de forma quase descarada, a circulação dos conteúdos recalcados para regiões confinantes da primeira consciência. Tanto no caso da troca de palavras como no da troca de imagens, troca sempre involuntária, o que está em causa são formas de assimilação do irracional, para usar aqui a expressiva de António Maria Lisboa a propósito do trabalho do poeta.

Ora Lisboa, posto que consciente dos materiais mnésicos de tipo auditivo, ainda que pondo mão na cabala fonética, tão operativa no caso da obtenção do título do livro, cabala que é afinal a matéria-prima mesmo dos actos falhados de tipo auditivo, preferiu a linha do visual à auditiva, a do olho à do ouvido. Pesou duas homófonas à escolha, uma original e outra derivada, ótico e óptico, pesou duas vias de assimilação do irracional, a auricular e a visual, e acabou por privilegiar esta àquela. Deixou de lado a que mais próxima estava da palavra anterior, ex+ótico, e optou pela mais afastada, pela que havia sofrido mais transformações. Não tiro para já nenhuma ilação do facto. Constato apenas e em definitivo o peso da visão no título. Logo Ossóptico é o osso relativo à visão, o osso relativo ao olho; de forma abreviada, é o osso olho, o ossolho.

Terá pesado na escolha o elemento gráfico, no caso a letra décima quinta do alfabeto português? Se associar esta à decima sexta do alfabeto grego, p, que me remete para a relação da circunferência com o seu diâmetro, posso ser levado a achar que o elemento gráfico pesou e que algum caminho por aí se fará. Não obstante, o trilho é curto. Isto porque caso a letra fosse outra, a opção continuaria a mesma. Mais do que a letra, foi o significado da palavra óptico que cativou por inteiro Lisboa. Ele queria um osso que fosse visão, um osso que fosse olho e não ouvido. A pergunta imediata é: por quê assim? Estou em condições de responder a partir daquilo que adiantei sobre os materiais mnésicos e pré-simbólicos que servem para expedir os conteúdos da primeira consciência para as regiões circunvizinhas do Eu social. Lisboa dava privilégio aos materiais visuais sobre os acústicos, ainda que trabalhasse também com estes como se vê na operação fónica, de tipo temúrico, que faz sobre o adjectivo exótico, e no laço compreensivo com que abraça esses materiais no passo de Erro Próprio já aludido.

Ossóptico é pois, e sem resquício de dúvida, o osso olho. Parte da questão está resolvida, outra parte por resolver. Já se sabe o que é o ossóptico; falta saber o que quer dizer. Na verdade não é imediato identificar com precisão um osso olho; não é líquido saber-se o que seja um osso olho. Veja-se. Osso é palavra que tanto existe no título primitivo como no seguinte; é portanto a palavra de origem, o elemento que transita do primeiro para o segundo título, o definitivo. Se abrir um dicionário deparo com o seguinte: osso, parte dura e sólida que forma o arcaboiço do corpo do homem e dos animais vertebrados. Dureza, solidez, arcaboiço – eis o que posso tirar da definição. Em sentido figurado, osso será a medula, o cerne, o miolo. Cruzando estes elementos digo que o osso de António Maria Lisboa é sinónimo de estrutura. A estrutura do corpo é o esqueleto e o esqueleto é o arcabouço ósseo do corpo. Isto dá que o ossóptico é o esqueleto da visão, o seu arcaboiço ou estrutura. Dito doutro modo: o ossóptico de Lisboa é a essência da visão, pois a estrutura é o que de mais essencial existe num corpo, é o seu plano primeiro, o seu esboço projectivo, a sua ideia, e ao mesmo tempo, por esse mesmo motivo, o que lhe sobrevive. É o esqueleto do corpo vertebrado.

Aqui, na essência da visão, toco em nó da maior importância. É ponto que faz cadeia com outros já tratados nestas notas. Para já esclareça-se o que se quer dizer com a expressão. A essência da visão é a visão essencial, quer dizer, aquele capítulo do olhar que não diz respeito à aparência exterior mas ao miolo interior. Diga-se pois sem medo: a essência da visão é a visão interior; a essência da visão é a visão da imaginação. O olho osso, o ossóptico de Lisboa, é o olho da imaginação, o olho interior que vê além do espaço físico, o olho que não se vê, o olho que espreita o continente psíquico, o olho que contacta com o outro mundo. O ossóptico de Lisboa é o olho do outro mundo, não menos do que isso. É o ponto mesmo onde se fabricam os sonhos, a porta visível de entrada no invisível, a fenda por onde a figura toca o infigurável e o criado o incriado. É o reverso material, o ponto acessível, do cume inominável que Daumal colocou no derradeiro pico do monte análogo. O osso olho, o ossóptico é pois o olho da alma. Osso sinónimo de estrutura; osso equivalente de essência; osso metáfora de alma, por aquele processo de deslocação-condensação próprio do onírico trabalho nocturno de simbolização.

O progressivo trabalho de desmontagem analítica do título de Lisboa não deve encobrir ou calar o extraordinário exercício de automatismo que ele é, recorrendo por um lado a traços mnésicos de tipo auditivo, representações acústicas que sobem ou descem à superfície empurradas pelos mesmos processos que a primeira consciência usa para a pré-consciencialização dos seus conteúdos mais ofensivos ou censurados, e que neste caso levaram à obtenção da palavra óptico, e por outro à reelaboração de significado da palavra osso, cuja significação foi de forma progressiva deslocada em relação ao sentido literal primitivo. Com a deslocação, a palavra amalgamou novo significado. É o que acontece aos conteúdos visuais com que o sonho labora. Uma gaveta não é uma gaveta, uma faca não é uma faca e por aí fora. Assim, neste plano, osso como metáfora de alma. Logo, ossóptico como olho da alma, olho do outro mundo, ponto onde a realidade física sensível toca a realidade absoluta do espírito, rasgão por onde os dois mundos, o exterior e o interior, por meio duma vibração imaterial em forma de escada infinita, comunicam.

 

17 O Dispositivo Imagético em António Maria Lisboa

Os quinze poemas em verso do livro de 1952 não desmentem o título. Eles são de forma definitiva e incontestável o resultado do ossóptico, o fruto exótico que foi possível recolher nas regiões afastadas do espírito e trazer à superfície sensível do mundo. Quem fez a recolha desse lote de imagens supra-sensíveis ou supra-reais foi o olho da alma, o olho do outro mundo, o ossóptico. Ele funciona pois como um projector ou um holofote de luz que varre os confins do ser e desvela o que em geral está velado ou encoberto.

Digo aqui imagens. Já se sabe porém, a partir do que Freud tomou como traços mnésicos de pré-consciencialização, que tais imagens, as imagens que trabalham na alma, podem ser de dois tipos, auditivas e visuais. Em ambos os casos o sentido ou órgão que as capta não é físico, não é exterior, não é sensível; é um órgão interior, impalpável, não físico. O seu nome geral é imaginação. Só esta, pelo isomorfismo que tem com a imagem, pode captar ou desvelar as formas íntimas das imagens interiores. A imaginação é esse imaterial com forma de que falei atrás e que põe em comunicação estreita o mundo exterior com o interior; na verdade, a imaginação não se vê, não se toca, não se sente, posto que seja no corpo sensível que ela reside. Ela faz a vez duma escada que põe em contacto corpo e alma. De qualquer modo, há um órgão interior auditivo, que exerce o seu papel na área acústica, e um órgão interior visual, cujo campo de actuação são as formas visuais. As manifestações do espírito imaterial na alma humana, e por certo em toda a natureza, já que toda ela participa do mesmo anseio de resgate, são de dois tipos, sonoro e visual, e tanto se podem captar por meio dum ouvido interior como dum olho não sensível, um olho apropriado à visão do invisível.

No caso do livro de Lisboa já se sabe que o órgão interior que trabalha quase em exclusivo é de natureza visual. O seu holofote, a sua sonda, o seu olho não pretende tanto captar os traços acústicos que revelam a matéria aurífera e primordial que reside na primeira consciência mas os traços visuais que dão acesso a essa mesma matéria. O seu projector de pesquisa interior não é um osso ótico mas um osso óptico. Em vez dum ouvido interior que capte os sons da alma, ele tem um olho para atravessar as paredes opacas da matéria e captar as imagens visuais do outro mundo. É o ossóptico. Com este olho recolheu Lisboa os materiais da aturada expedição que fez ao outro mundo. Da sua organização resultou o livro de estreia tipográfica em 1952. Pode pois este ser encarado como uma colecção de materiais visuais recolhidos no mundo da alma.

Que tipo de imagens visuais aparecem catalogadas no portfólio de Lisboa? O leitor pode responder comigo: não são imagens visuais deste mundo mas do outro; não são instantâneos da realidade sensível mas surpresas captadas nos confins do mundo interior, onde raros se aventuram à luz do dia. Estas imagens visuais não são registos de câmara fotográfica mas duma outra câmara óptica; o ossóptico, órgão interior, está para a câmara fotográfica como o espaço da alma está para o espaço exterior sensível.

Disse eu que raros se aventuram à luz do dia até às terras lendárias e esmeraldinas por onde António Maria Lisboa andou com o seu ossóptico. É preciso pensar que nem todos têm a faculdade de possuir a ocular poderosa dum instrumento óptico como aquele que ele inventou para visitar as terras do interior; sem um tal engenho não é possível ir e vir à luz do dia a terras tão longínquas, tão distantes da camada estável do Eu social, e muito menos trazer no bolso os registos efectuados. Só a ocular do ossóptico apurado por Lisboa permite essas observações periscópicas, melhor, ossópticas. Mesmo o sonhador nocturno que todas as noites, pelo pacto das duas consciências, seguido pelo natural afrouxamento da censura do Eu histórico, se vê atirado para as proximidades desses confins, raro traz consigo esses registos; de biliões e biliões de imagens oníricas vistas à noite, ele não será capaz de recordar, no fim duma longa vida, mais do que duas ou três, as mais impressivas e ameaçadoras. Não fica dúvida sobre a falta de equipamento com que esse sonhador se adentrou pelas terras interiores. Registe-se pois: o ossóptico é um instrumento de ocular que serve para captar as imagens da alma, o olho do outro mundo, e sem o qual não há registo possível da expedição. Só com um tal equipamento é possível conceber uma excursão acordada, vigilante e vigiada, ainda que de olhos fechados, ao espaço do além mundo.

Regresso à minha pergunta: que tipo de imagens catalogou Lisboa na sua colecção? Já se sabe, imagens visuais de segundo nível ou de segunda consciência. Aqui gostaria de referir a força e a intensidade dessas imagens. O equipamento de Lisboa, herdado de experiências anteriores, do sobrenaturalismo de Novalis e Nerval ao surrealismo, mas afinado por ele, é de boa qualidade e mostrou-se muito adequado à exploração em grande extensão do continente da alma. Os registos são pois do melhor e do mais avançado que se obteve até hoje, e em qualquer língua, no assunto em causa, imagens visuais de segunda consciência. Deixo aqui um alerta: confundir estes registos ossópticos, captados com a potente ocular da alma, com achados de superfície, meras composições ao nível do puzzle linguístico, seria não perceber a natureza do trabalho psíquico com que Lisboa trabalha e que logo no título do livro está presente. Mais: tomar as imagens de segunda consciência que Lisboa entrega ao leitor como registos arbitrários do teclado verbal seria começar por perder o título do livro, cuja riquíssima significação Lisboa trouxe à superfície por uma operação dupla de simbolização profunda.

Também aqui, à imagem do que disse atrás sobre as aquisições de Breton e Cesariny, o que está em jogo é o ponto onde a matéria primeira da significação surde na alma humana, esse ponto inconsútil, ônfalo interior que liga o corpo ao infinito, e no qual se toca o princípio criador, com o reverso do incriado, e que não permite, à superfície, senão pálidas simulações, de imediato reconhecíveis como irrisórias. Não paga o trabalho tornar a falar do António Pedro de 1942. No plano da matéria-prima verbal, seja por via auricular ou por via visual, a imitação de primeiro nível nunca será capaz de se confundir com mergulhos de profundidade ou com voos em altura, pois no campo da significação original o frio plano intelectual nunca será capaz de se sobrepor, a não ser em curteza, ao jogo puro e escaldante da imaginação. Descobertas como as de Breton, as de Cesariny ou as Lisboa nunca são feitas na primeira camada da linguagem; são registos do longe, que trazem para a pele mais imediata do verbo, que todos reconhecem, a língua do Eu social, o que de mais íntimo e desconhecido há no espírito humano. Só por meio de demorada procura e de devotada entrega interior se acede a tais regiões. O caso de Lisboa foi em tudo excepcional pois dispôs dum instrumento de pesquisa e de observação muito apurado, quase miraculoso, que lhe permitiu avançar com um à-vontade raro e com uma vigilância ainda mais rara para parcelas desconhecidas das terras do interior, tocando regiões muito afastadas, que ele foi o primeiro a visitar e a catalogar. Falo do ossóptico, que ele levou no bolso de cotim para esses desertos de perpétua incandescência.

Uma primeira coisa me parece pois segura quando se fala do dispositivo imagético de Lisboa: as suas imagens visuais são captadas com o olho da alma, o olho da imaginação, o olho do outro mundo, e não contrafacções mentais à procura de compor ou branquear um poema com fragmentos verbais de superfície. Lisboa só é poeta no sentido do texto de Breton de 1953, “Do Surrealismo em suas Obras Vivas”; ele toma a linguagem poética verbal como fio condutor que conduz ou reconduz ao conhecimento da realidade supra-sensível. Lisboa não é poeta no sentido vulgar e imediato do termo, o que indica um indivíduo que compõe a todo o custo, seja com que material for, escolas literárias, tópicos clássicos, ar do tempo, cuspo, bebidas com gás, sorvetes, léxicons, um poema. Ao poeta deste tipo, realista e fotógrafo, ele diz bom-dia e volta costas; não lhe interessa.

Um tal tipo de poeta, por desgraça nos dias de hoje mais comum do que devia, autêntica praga, está para a poesia que aqui importa como os actuais realizadores de Hollywood – esses que deitam mão a tudo o que têm por perto para construir um mundo imbecil de fantasias, desprovido da mais ínfima realidade – estão para a imaginação criadora de real vivo. A poesia em Lisboa só se entende como guia de marcha para o além ou cadeia de elos que coloca aquele que se lhe entrega na senda do desconhecido; é o que Lisboa adianta, com um surpreendente conhecimento interno do tremor de terra poético, quando diz, a poesia, como um ataque brusco, depois duma longa fadiga (“Pequena História a Mais Fantástica dos Amorosos”, 1977: 133)

A poesia pois como terramoto interior, em que cada imagem capturada pede por dentro um estado propiciador e vale um abalo sísmico de forte intensidade, e nunca como inócua e fria actividade exterior, com razão e cérebro ao comando das teclas e das alavancas. Ao poeta maquinista, ao poeta de ferro, à testa dum teclado, contrapõe Lisboa o poeta organista, o poeta orfeico, o que desce aos infernos com os traços mnésicos da pré-simbolização, esses sons da lira, ou do osso ótico, para de lá trazer para a luz da vida, para a vigília da primeira consciência, as imagens recalcadas. É o poeta músico que ressuscita os mortos por contraponto ao poeta engenheiro que segue à vírgula o livro de instruções.

Faça-se agora um passeio pelo livro de Lisboa à procura dalgumas disposições imagéticas. Logo no segundo poema, “Sinalização Ossificada”, cujo título por aquele processo de deslocação e reelaboração semântica que se notou a propósito do título geral se pode ler como “sinais da alma” ou “sinais psíquicos”, se encontram quatro imagens tópicas – a aranha-termómetro, o sexo-limbo, a borracha-centopeia e a parede-telefone – que ilustram quer a estranheza destas espécies pescadas em águas virgens quer um dos modos típicos de elaboração imagética do poeta. Pegue-se no primeiro caso, que é de resto a primeira palavra do poema: a aranha-termómetro. Existem duas palavras anteriores, aranha e termómetro, que se justapõem, formando nova palavra. Não se está longe do que aconteceu com osso e óptico, com a única diferença de neste caso a nova palavra resultar, por via das vogais, da aglutinação das duas anteriores e não da sua justaposição. A aranha-termómetro é pois um sinal da alma, uma das sinalizações ossificadas que a ocular do ossóptico captou nas distantes landes psíquicas por onde vagueou. Aranha-termómetro perguntar-se-á? Sim, como o revólver de cabelos brancos de Breton ou a primavera autónoma das estradas de Cesariny. Não se procure com a palavra uma realidade sensível correspondente; não há nenhuma coisa que no mundo da realidade empírica corresponda a uma aranha-termómetro. Esta é uma realidade psíquica, interior, pessoal, captada numa fronteira distante, pré-civilizacional – que digo eu, numa fronteira pré-câmbrica –, que não encontra qualquer paralelo exterior. O poeta, para Lisboa, não é mero fotógrafo de realidades já existentes; é um criador de realidades novas.

Falo mais uma vez das vizinhanças daquele ponto sem costura onde se fabricam as imagens reais dos sonhos e se vão buscar as primeiras lavas do além. Para dizer tudo: a aranha-termómetro é uma daquelas almas mortas, sedimentadas no fundo do esquecimento, recalcadas no pó do Hades, sombra perdida entre sombras vagas, que um Orfeu mistérico e generoso reabilita e ressuscita em precisas formas à luz do dia. De igual modo, a borracha-centopeia ou a parede-telefone.

Veja-se a forma notável como o poema evolui a partir dessa nova palavra: A aranha-termómetro mergulhou no peso do meu nome/ e deixou que ele falasse gota a gota:/ “ – O sexo-limbo é um composto sobrevivente… etc., etc.”

Forma notável, disse eu para o desenvolvimento que o poema tem a partir do neologismo lisboano. E por falar deste, cujo processo e formação já se viu, é preciso dizer que Mário Cesariny pela mesma época, ou talvez mesmo um pouco antes, criou uma vastíssima rede de palavras novas, ainda infelizmente por observar com a atenção que merecem, que deram depois, em 1958, o extraordinário livro Alguns Mitos Maiores alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor. Vejam-se estas três, com alguma afinidade com o processo de formação do título do livro de estreia de Lisboa: a noivadiagem, a grafiaranha, a homosexoalma. Nas três se tem a aglutinação de palavras anteriores num novo neologismo, cuja significação só por um processo de deslocação, que seria moroso aqui analisar, se entende. Em Cesariny o processo de formação de palavras pode ainda seguir trilho inverso: uma única palavra decompõe-se em duas novas. É o que se passa com a palavra soldado, que dá de seguida sol dado. São tais experiências que Lisboa no manifesto Erro Próprio toma, através do jogo da cabala fonética, como assimilação cada vez maior do irracional. Não deixa de ser tocante que um dos neologismos de Cesariny, noivadiagem, tenha tido na sua criação a participação do próprio Lisboa, como se lê em nota da primeira edição do livro. Uma das primeiras e mais generosas preocupações do surrealismo, na esteira de Lautréamont, foi fazer uma poesia colectiva e anónima, sem pessoas e autorias, de que resultou em português a Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito (1961), onde o neologismo do livro de 1958 podia figurar. O que aqui uma vez mais está em causa é um ponto do espírito onde o Eu social, o Eu civilizado, o Eu burguês (de burgo ou cidade, não mais), cioso de propriedade e de nome, é deixado para trás e substituído por um outro Eu, o Eu arcaico, tão arcaico que toca o daemon primordial de Ibn Arabi, o Eu que sempre viverá na Terra da Realidade Verdadeira, em que tais distinções e preocupações, típicas do processo de formação do mecanismo de censura e de recalque da primeira consciência, se apagam e de todo desaparecem. Na Terra imaginada por Ibn Arabi o meu registo de B.I. não sou eu, nada tem a ver comigo; eu sou apenas o ponto onde tudo comunica com tudo, o incriado dum nome.

O trabalho linguístico de Cesariny, deixo passar a autoria pessoal, é nesse livro duma extensão prodigiosa; a inspiração verbal que o possui, para decompor e recompor palavras, criando de ouvido uma linguagem inteiramente nova é imparável. Acredito que Cesariny se tenha feito com esse livro o principal renovador da língua portuguesa da segunda metade do século vinte; porém isso não chega para perceber nem a intenção nem a natureza destas criações, que não estão ao nível da montagem e desmontagem mas descem ou sobem aos processos da alma. O trabalho de Cesariny não pode ser confundido com o do lexicógrafo; trata-se do labor interior, semi-adormecido, para espavorir censuras, do poeta imaginativo. Tais criações mostram como o poeta tocou o ponto psíquico onde a matéria verbal ferve e borbulha em estado virgem. Tocado esse ponto em situação de cegueira, abertas as algemas que prendem a consciência ao Eu social, o dos dicionários, o das gramáticas, o de todas as normas, subidas as comportas, a torrente virgem de lava verbal que reside na vizinhança dos conteúdos recalcados, pré-civilizacionais e pré-câmbricos, põe-se em movimento e aflui à primeira consciência em todo o esplendor e ardência inicial. O milagre do livro de Cesariny é expor à luz do dia essas matérias sonoras e semânticas desde sempre escondidas.

Regresso à forma notável como o neologismo lisboano evolui. Essa evolução processa-se pela passagem do discurso indirecto, típico da poesia lírica, ao discurso directo, da poesia dramática. Lisboa, poeta dramático, pois. Sem dúvida, que sim. Mas também aqui, no caso desta linha evolutiva, uma teoria de superfície, como a dos géneros poéticos, está longe de captar a natureza extensiva e profunda desta operação. Se a leitura ficar por aí, não saio do plano imediato e chão, esse que é ainda o da lexicografia. Preciso aqui, para entender a linha melódica desta parcela, a polifonia das suas vozes, de recorrer a algo diferente ou complementar. Aquilo que me ocorre é a catalepsia. Leio e releio a estrofe – e chamo-lhe assim, mesmo sabendo que esta arte poética nada tem a ver com a versificação – e a única palavra que me ocorre é catalepsia. Trata-se dum estado físico em que a vida sensível exterior e os movimentos voluntários se acham suprimidos; é um sono profundo em que o corpo mergulha, sem que seja possível acordá-lo. Distingue-se da morte, porque nesta tanto se dá a supressão da vida exterior como interior; ao invés no sono cataléptico apenas a vida exterior desaparece, a interior permanece como se nada tivesse sucedido.

É dentro dum sono deste tipo que o poema de Lisboa parece nascer, primeiro com aquela realidade supra-sensível que é a aranha-termómetro. E é dentro dele que depois se parece desenvolver com o teatro dramático duma fala que tem por actor um nome, fala essa que em vez de correr palavra a palavra acontece gota a gota. Que se diz na fala? Capta-se um segundo sujeito ossoptóico, o sexo-limbo, e procede-se de seguida por espasmo sem sentido. Doutro modo dito: o discurso deste teatro, que desemboca na abreviatura latina, etc., faz lembrar o discurso da embriaguez, quando a fala perde a coordenação lógica e se desenvolve por si, pastosamente, segundo uma linha autónoma e inesperada, sem qualquer possibilidade de governo exterior. É um tipo de catalepsia poética, em que a razão mergulha num sono profundo. Todas as outras faculdades interiores e até exteriores continuam vivas e activas, trabalhando em estado de liberdade absoluta – a menos que o sono da razão carreie a paragem dos movimentos exteriores, o que também pode suceder. É um tal tipo de curto-circuito que permite ao pensamento passar a fronteira das terras da noite vermelha e activar a ocular interior do sujeito, trazendo das regiões desconhecidas as formas ossoptóicas, a sinalização ossificada. E é isso que leva a tomar o coma cataléptico por pertinente na compreensão da linha de evolução do poema, fugindo à explicação dele do ponto de vista exclusivo de categorias exteriores – poesia lírica, dramática e narrativa.

Aqui chegado não será escusado apresentar a continuação do poema? Digo comigo que o leitor pode imaginá-lo. Descoberto o processo de chegar às cidades da luz verde, não é difícil fechar os olhos, calar a razão e voltar a ligar o ossóptico. O leitor sabe já, a partir daquilo que aqui se acabou de adiantar, que, ao lado do registo polifónico duma poesia que mistura a voz do sujeito à das personagens, o poema capta uma fala sem possibilidade de governo exterior, uma fala arrancada em estado cataléptico às camadas exóticas da segunda consciência. Por esse motivo lá está o et caetera em forma abreviada, que quer dizer e outras coisas mais.

O que isto quer dizer é o seguinte: a riqueza e a variedade dessas vastas zonas são de tal ordem que é impossível captá-las em toda a plasticidade metamórfica instantânea que mostram. A sinalização ossificada é sempre seguida de outras coisas mais, que se sucedem sem parar, já que são infinitas, ou são o infinito, sem possibilidade real de objectivação total, por mais apurada que seja a ocular do instrumento que aí espreita e labora. Captar uma única forma ossoptóica, trazendo-a dos estratos ignotos e objectivando-a no raio de acção da primeira consciência, é já um sucesso extraordinário, isto pensando que na maioria dos casos estes céus de luz lilás são deixados por inteiro ao abandono e raro é o ser que tem hoje consciência da sua realidade no curso duma longa vida.

A existência da maior parte dos seres humanos, desde que se iniciou a formação do Eu civilizado, com o consequente trabalho de recalque do desejo, acontece só no plano da percepção imediata, o da consciência da realidade empírica exterior. Nunca o Eu social teria podido interiorizar as restrições tão castradoras que hoje o formam e manietam se tivesse continuado debruçado sobre uma qualquer janela aberta para o continente do interior, atentando no por lá sucede. É que nesse espaço borbulham as incandescências da origem, as que Daumal pressentiu no derradeiro pico do monte análogo, e que na filogenia universal têm paralelo com os momentos originais em que as massas gasosas que formaram o primeiro estádio da Terra, há biliões de anos, ainda não tinham arrefecido, permitindo a liquefacção dos gases e o aparecimento das primeiras partículas sólidas de crusta; mas é também no miolo desse oceano sem fronteiras de espaço e tempo que se encontra afinal a fonte virgem onde o desejo jorra sem limite nem freio e que, caso o homem a ele tivesse permanecido ligado, teria impedido por si só qualquer trabalho eficaz de recalque. Para interditar o incesto parental, e com ele o que para trás ficou, até às incandescências via-lacteanas da origem, foi preciso arrancar o homem da varanda que abria para os horizontes interiores da alma, barricar portas, tapar janelas e murar quintais, dando-lhe apenas por espaço a realidade empírica do exterior. Eis então o momento em que o homem perdeu o corpo glorioso da sua primeira criação para se aprisionar no recinto escuro e fechado da História e da Lei.

Retomo o poema de Lisboa. Escusado ou não, deixo aqui aquilo que o leitor já prevê, o crescimento galopante da sinalização ossificada: Daí tirei as conclusões que tudo me permitem:/ – A borracha-centopeia furada ao lado pela parede-telefone/ a invenção dum novo dialecto para falar às formigas/ a auto-fixação dum purificador nos buracos do vento/ uma complicação perfeita/ para objectivada em gesso morder o cio na boca… etc., etc.

O livro de poemas de António Maria Lisboa de 1952 é apenas constituído por quinze poemas, num total aproximado de duzentos e vinte versos, um número quase insignificante, percentagem mínima de qualquer livro de versos seu contemporâneo, e que porém tem uma importância ímpar e ainda hoje inigualável. Isso assim é, já que a sondagem daquele sótão-cave hoje vedado ao olho interior da maior parte dos humanos, como de resto interdito está o acesso a esse mesmo olho, atinge no livro uma pressão tal que o resultado é uma sinalização gráfica duma novidade absoluta. Ossóptico é um dos melhores livros de poesia publicados em Portugal no século passado; bastam na verdade quinze poemas, para Lisboa ser avaliado como um dos quatro ou cinco poetas nucleares do século XX português e aquele que entre eles pelo momento meridiano em que escreve – o livro dado a lume em 1952 tem a data final de mil novecentos e cinquenta/ um pássaro de granito, na exacta transição da primeira metade do século para a segunda – se situa em posição crucial ou central, dependendo tudo da leitura do século em cruz, com duas linhas cruzadas, cada uma cortando em sua metade de século cima/baixo e esquerda/direita, ou em linha contínua, do princípio ao fim, sem rupturas nem cruzamentos.

O único motivo capaz de justificar uma tal apreciação está na ousadia que o Eu poético, esse que o poema “Comutador” chama o Eu abismo, o Eu cratera, mostra em se aventurar nas terras interditas ao homem desde há milénios, as terras sem poente, as terras do metano branco, as terras do desejo em fogo lava, e na capacidade de objectivar à luz da primeira consciência, sem extravio, os sujeitos que por lá viu. Teve para isso um telescópio de longo alcance, o ossóptico, que lhe permitiu tocar e auscultar os recantos últimos do céu, as mais longínquas partes do universo. O que ele mostra no livro é de tal ordem estranho, que diante de tais sujeitos apetece dizer que o espelho parabólico de Lisboa captou gotas da luz virgem do big-bang. É o que sucede no Daumal do pico final do monte análogo, com a perpétua incandescência do derradeiro cristal.

No quadro destas notas é impossível uma leitura autónoma de cada um destes quinze poemas. Convenço-me porém que cada verso, cada palavra, cada sinal merece a atenção da desconstrução simbólica. A sinalização ossificada explode sem parar na progressão do livro; a temperatura mantém-se linha a linha elevadíssima e aquilo que é na aparência um opúsculo insignificante de duas dezenas de páginas, pobre edição de autor, transforma-se num livro que tem treze biliões de anos e triliões e triliões de páginas. Quantas páginas são precisas para escrever estes dois versos do poema “Conjugação”: A construção dos poemas/ é como matar muitas pulgas com unhas de oiro azul? Resposta: alguns biliões. E este verso do poema “Projecto de Sucessão”: Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora. Mais alguns biliões. E ainda este do poema “Recusa”: Eu sou uma errata. Com certeza um trilião. E mais este, que é verso e meio, ainda do poema “Conjugação”: sentir a pedrada e imaginar-se sem pensar de repente/ NUM TÚMULO EXAUSTIVO. Mais um trilião. E por fim estes dois, do poema “Rêve Oublié”: abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala/ e depois ruidosa uma dentadura velha. De novo mais alguns biliões. E só com sete versos e meio, entre mais de duzentos, já vou quase com três triliões de páginas. Captar no papel, na linha dum verso, uma única forma ossoptóica, equivale a biliões de páginas, pois há gerações inteiras de escritores, sucedendo-se umas às outras, que borram milhares e milhares de páginas sem por uma única vez deixarem registo de casos encontrados no poliedro escaldante.

A obscura tipografia de Coimbra que imprimiu Ossóptico não passa da ponta final duma lanterna mágica muito mais vasta e luminosa, um foco de luz que varreu céus e terras e tomou para si todos os hieróglifos, todos os tipos, todos os alfabetos, todas as estrelas, todas as cidades, todos os dialectos, mesmo os mais inconcebíveis, como esse para falar às formigas que o poema “Sinalização Ossificada” assinala. Cada ponto tatuado no livro de Lisboa é um buraco no vento que abre para os horizontes das galáxias mais distantes.

Disse eu que a temperatura do livro é sempre linha a linha escaldante. Há porém excepções – vejo-as bem nos dois versos finais de “Acento”, que arranca porém a torrar de tão gelado, ou nos dois finais de “Z” – que tomo por pausas de aceleração, movimentos em ponto morto, que servem para curvar, no eixo maior, sem perigo, os pontos relativos ao foco da elipse. Nada pois que perturbe o movimento deste projéctil e o impeça de progredir no universo das formas ossoptóicas. Dou de barato essas suspensões momentâneas, esses espaços vazios, esses intervalos negros, se por eles chego a estrelas tão puras e luminosas como aquelas que há pouco mostrei ou a galáxias sem preço, tão irradiantes como “Poema do Começo”, riquíssimo mostruário do labor de observação supra-terrestre que há no livro. Aqui deixo o poema, para o leitor poder examinar com demora alguns dos exemplares mais valiosos das espécies que o livro expõe. E nada de taxidermia; apenas um rasgão, iluminado por poderoso lampadário, para as terras que o Pascoaes de 1906 chamava além mundo. Cito: Eu num camelo a atravessar o deserto/ com um ombro franjado de túmulos numa mão muito/ aberta// Eu num barco a remos a atravessar a janela/ da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de/ escamas// Eu na praia e um vento de agulhas/ com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia// Eu na noite com um objecto estranho na algibeira/ – trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de/ musgo.

Só uma achega ao poema, na tessitura geral destas notas. O Eu que aqui fala não é o Eu social da primeira consciência; é o Eu menino do poema “Vírgula”, o Eu interior das minhas notas anteriores, o Eu libertário, que está em contacto com a fonte virgem do desejo, e diz, gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora. Mas é também o daemon que habita na Terra das Cidades Esmeraldas ou na Terra da Realidade Verdadeira, o Duplo de Soravardhi. É dessa supra-distância que vem o vento de agulhas, o camelo do deserto, o barco a remos que atravessa a janela da pirâmide, o Cavalo-Triângulo enterrado na areia, o copo esguio e azul coberto de escamas. E é dessa Terra ainda que chega o Eu que tem o ombro franjado de túmulos em mão muito aberta. Todos germinam e crescem numa atmosfera psíquica própria, muito distante da realidade empírica exterior; todos residem na segunda consciência e todos fazem parte dos materiais mnésicos que podem ser usados para catapultar, sem consentimento da vontade, conteúdos arcaicos para a vizinhança do Eu social. Todos porém emergiram à luz do dia não como traços mnésicos ou revestimentos oníricos, em trânsito involuntário, mas como símbolos procurados e conscientes da caça poética.

Causa espanto e maravilha, e daí a beleza selvagem do livro, a pureza com que esses troféus chegam de terras tão longínquas, terras ossoptóicas e não euclidianas, terras que só com o olho da alma podem ser examinadas; nem uma parcela em tão demorada viagem se perdeu. São diamantes curvos em estado puro. Por isso nenhuma distância existe neles entre o símbolo que são, imagens iniciáticas à vida da alma, e o que simbolizam. Simbolizado e símbolo podem coincidir aqui por inteiro. Trazidos dos confins dilatados da alma, captados na atmosfera onde os gases se rarefazem, eles são tal e qual o que são sem qualquer esforço ou estranheza. O Cavalo-Triângulo é só este, que aqui digo, mais nenhum. Está aqui, eterno, intacto, igual a si mesmo, no princípio, no meio, no fim, com o corpo miraculoso de todos os duplos que vivem na Terra dos Arquétipos.

 

18 O Homem Imagem ou o Morto Vivo de Cesariny

Quero agora retomar o sonho de Cesariny com António Maria Lisboa. À luz da análise freudiana o sonho põe frente a frente o Eu arcaico, o Eu libertário, sem freios nem censuras, e o Eu histórico, que recua apavorado diante do incesto com a mãe, sinalizado num poderoso traço simbólico do útero materno, o penico. É este que em definitivo assusta o Eu histórico, impedindo-o de abraçar em fusão o Eu primitivo. O diálogo entre Cesariny e Lisboa é pois no sonho o confronto das duas consciências, a primitiva, depois recalcada, e a secundária, produto da quebra da hegemonia anterior, e que acabou por se impor como o único plano consciente do homem civilizado, o plano das normas, das convenções, das restrições e das leis.

Pergunto-me se a elaboração do sonho recorreu apenas a materiais gerais ou se houve pretextos e determinantes pessoais para a dramatização que nele se desenrola. À luz do complexo edipiano, com cerca de dez mil anos, sonhos como o de Cesariny, ou com valor a ele idêntico, acontecem sempre na história pessoal de cada vida. A última fase da sexualidade infantil é marcada pela interiorização da proibição do incesto parental. É um facto que ocorre já num estádio avançado e consciente, que será sempre motivo, compreende-se, de revisita onírica posterior. Muitas vezes a segunda consciência não tem autonomia suficiente para despachar para a geometria plana da primeira tais conteúdos, pois a pressão da censura, mesmo dentro do acordo comum entre as duas, despega pouco nesse artigo particular, o incesto parental, e continua vigilante. É nesse momento que a segunda consciência se socorre de sinais na aparência tão inofensivos como o penico do sonho de Cesariny, criando todo um teatro de diversão co-lateral que lhe permite passar as trincheiras, os muros e os tapumes com que a primeira consciência neste e noutros domínios, avaliados como perigosos de mais, se barrica.

Fica a pergunta: mesmo que o momento do recalcamento do incesto parental seja um dos temas que, por deslocação, o sonhador revisita regularmente ao longo da vida, no caso do sonho de Cesariny com Lisboa isso aconteceu inadvertidamente, quer dizer, por uma finta da segunda consciência, que tanto podia ter ido buscar Lisboa e o penico como outro qualquer revestimento, ou pelo contrário Lisboa foi escolhido para protagonista do sonho por uma razão singular? A resposta é que só Lisboa podia protagonizar o sonho de Cesariny. Ninguém tinha condições tão favoráveis para nele figurar como o autor do Ossóptico; só este para Cesariny podia figurar ou representar em pleno o papel dalguém que havia superado o interdito do incesto parental. Os factos que se associam à morte de Lisboa – amuo de Cesariny e Lisboa, tentativa de reconciliação fora de horas, com Cesariny a deparar com o cadáver de Lisboa na cama do quarto em que este vivia, voltado de costas – não passam dum mero pretexto, quase sem importância, a não ser para engendrar o meio repulsivo de que se serve a primeira consciência, para a elaboração do sonho, todo ele centrado num facto muito diferente e muito mais essencial, a tentativa do Eu social superar as convenções em que foi apertado indo ao encontro sem sucesso do Eu arcaico não edipiano.

Daí a minha leitura anterior, vendo no Eu arcaico o Imame oculto ou o Encoberto; e daí ainda a ideia, de Cesariny, não minha, de que nestes sonhos abraçar o daemon que vive na Terra da Verdadeira Realidade, onde os interditos não existem, é transitar de plano e de vida, é mudar de Eu, é em suma morrer. Regressando à Terra degradada, não resta ao sonhador na vida que ainda lhe sobra com este Eu senão preparar-se para fazer do momento futuro da morte o da fusão com o outro Eu, fusão que não foi capaz de fazer com o sangue quente a circular-lhe nas veias.

Pergunto: porque motivo só Lisboa podia usar no teatro interior de Cesariny a máscara não edipiana, perguntará o leitor? A primeira resposta que se oferece é a seguinte: Lisboa teve um contacto aturado e invulgar com o mundo da alma – até pelas condições em que nos tempos finais viveu, deitado numa cama, sem acção exterior – e esteve por isso mais do que qualquer outro em contacto com o patamar de dentro onde se fabricam as imagens dos sonhos e do desejo. O neologismo que criou para titular o livro dado à estampa em 1952 é expressão dessa aventura interior em que ele insistiu e persistiu mais do que qualquer outro. Arredado da vida prática, sem comércio com o mundo exterior, vivendo em silêncio e retirado entre acamados, Lisboa pôde despir o Eu social de forma natural, sem ninguém se aperceber ou importunar, e entreter-se a construir um instrumento ocular que lhe restituísse a visão por entre o cerrado nevoeiro que oculta hoje o continente psíquico. Abriu assim uma porta para as terras de além mundo. Escapuliu-se por ela e subiu e desceu vezes sem conta a espiral imaterial que atravessa os mundos do interior, a escada infinita que abre a “Pequena História a Mais Fantástica dos Amorosos”. As formas ossoptóicas expostas no livro de 1952 aí estão para provar a extensão da sua exploração dos estratos da segunda consciência. Aos 25 anos estava pronto para voltar costas de vez, à terra do Eu social; a exploração chegara a tal nível que a questão do regresso à primeira consciência era já escusada.

Ora uma tal investigação nos domínios do Eu arcaico não podia senão deixar sulcos não edipianos, ou até mesmo anti-edipianos, na obra de Lisboa. Entende-se que assim seja. As terras ignotas por onde Lisboa andou com o ossóptico no bolso são aquelas onde tanto jorra a fonte do verbo primordial, raiz de toda a significação, como brota impetuoso o jacto do desejo inicial, origem de toda a criação. Um jorro tal, em estado virgem, não conhece limites nem convenções, como de resto se vê em muitos mitos cosmogónicos. Recorde-se por exemplo o incesto na criação masdeísta do mundo terreno. Aquilo que aqui se diz para o primeiro par incestuoso, mãe e filho, que no masdeísmo concebem a Terra pela sua união sexual pode afinal ser alargado a quase todas as genealogias divinas, engendradas por sucessivos incestos. Aí o incesto é o desejo de união com a essência de cada um. Não me dei ao trabalho de observar a esta luz, a dos traços anti-edipianos, os sujeitos lisboanos que apresentei há pouco – por exemplo, aquele ombro franjado de túmulos, aquele copo esguio e azul coberto de escamas, aquele vento de agulhas, aquele Cavalo-Triângulo. É possível que por lá haja algumas surpresas de peso. Não obstante, a necessidade de labor analítico que se faz sentir, desmontando a simbólica dos seus sentidos, enquanto imagens iniciáticas à vida mais lata da alma, mostra que a plana geometria da primeira consciência ainda aí pôs ou deixou o seu discreto contributo.

Há na obra de Lisboa segmentos mais marcantes do ponto de vista que aqui interessa. Falo de sequências onde a presença da censura, onde a pressão da primeira consciência, está de todo ausente. São momentos onde o incesto é vivido e declarado às claras. A obra escrita de Lisboa, apesar de curta, apenas três opúsculos publicados em vida, dois em 1952 e um em 1953, Isso Ontem Único, e uns tantos curtos textos póstumos, tem recorrência pertinente ao tópico. Julgo possível dizer que o incesto parental é uma das linhas sempre em evidência na sua obra. Logo na abertura de Erro-Próprio, que terá sido dos primeiros textos que escreveu (em passo dele dá a data de Dezembro de 1949 como aquela em que o escreve – acabara ele pouco antes de fazer 21 anos), se encontra passagem muito explícita sobre o caso. Transcrevo: Desta aventura guardo unicamente um NOME – SAGIR – A MULHER-MÃE, que unida ao homem realizará um destino idêntico. Insistentemente recordo uma frase que atribuo a possíveis e longas conversas: – “O Mistério afaga com mãos de veludo uma pequena criança adormecida na solidão da Lua.” E insistentemente também uma outra frase me aparece: – Tenho saudades dum Túmulo verde cravejado de lágrimas onde vivi – EU e SAGIR.” (1977: 73) 

Um primeiro esclarecimento: que aventura é esta? Erro Próprio abre com um anúncio, a vinda dos Novos Amorosos, e continua de seguida, no segundo parágrafo, com uma história, a da forma como este anúncio foi feito. A história tem a natureza duma produção onírica: há um parque, um Largo com uma Árvore de Luz no centro, um túnel que tem sinais gráficos nas paredes, uma escada que no fim do túnel vai dar a um Lago, onde arde o Fogo dos Séculos, e tem do lado direito a Lua e do esquerdo o Sol. Da descida das escadas até ao Fogo central, o sujeito que fala no texto guarda apenas a memória do extracto que apresentei. Que memória é essa: um nome, Sagir, e duas frases, uma delas nomeando Sagir. Quem é Sagir? A mulher-mãe, a mulher mãe dos homens, que unida ao homem, seu filho, realizará nas palavras do poeta um destino idêntico, materializando os novos amorosos. Não se perca de vista que a história é contada para esclarecer a forma como o anúncio inicial de Erro Próprio, o respeitante ao surgimento dos novos amorosos, apareceu ao sujeito que fala. E não se olvide que nessa história se percebe que estes são Sagir, a mulher-mãe, e o homem, seu filho. A ideia da união do par realizar um idêntico destino remete para aquilo que há pouco apresentei para o incesto parental como prorrogativa das genealogias divinas, a união do Eu com a sua essência. Dentro desse espírito posso entender a segunda frase que o sujeito recorda, tenho saudades dum Túmulo verde cravejado de lágrimas onde vivi – EU e SAGIR.

Associo de imediato este túmulo verde cravejado de lágrimas à Terra da Realidade Verdadeira de Ibn Arabi e às três cidades esmeraldinas, Jabarsa, Jabalqa e Hurqalya, onde vivem os homens que, à imagem de Adão e Eva no Jardim do Éden, não morrem, não se vestem e não se reproduzem. Este Eu que aqui se coloca ao lado de Sagir não é pois senão o daemon, o Eu arcaico, o Eu imagem, do sujeito. Não é este mesmo Eu lisboano que é o morto vivo do sonho de Cesariny, o Lisboa podre e descarnado que tanto assusta e repugna ao sujeito onírico de Cesariny? Com certeza que sim! Este que aqui está em Erro Próprio até tem por morada um túmulo verde. O autor de Pena Capital ouviu a leitura da conferência-manifesto em Lisboa – A. Maria Lisboa dá a informação da presença de Cesariny na Casa da Comarca de Arganil na carta aberta a Casais Monteiro – e no Porto, no mês de Março de 1950, no clube dos Fenianos, esta organizada pelo próprio Cesariny; leu-a decerto inúmeras vezes na altura da publicação, em 1952. Não admira que depois da morte de Lisboa a segunda consciência tenha recorrido ao passo para reelaborar a parcela onírica em que o cadáver de Lisboa lhe aparece, de pé, pairando no espaço, erguendo para ele os braços, num lugar que se não é túmulo é casa mortuária ou enfermaria sem esperança.

Sagir, a mulher mãe, regressa em força no livro de 1953, Isso Ontem Único, o derradeiro. Na tábua bibliográfica do autor inserida no livro, ele, o livro, é assim apresentado: poema e outros textos. O poema é o de abertura e chama-se “Isso Ontem Único”; é um composto de prosa e verso, que se desenrola por invocação directa da Mulher-Mãe. Isto quer dizer que o sujeito do poema exalta a mulher mãe, ou a mãe tão-só, no quadro dum poema de escaldante temperatura amorosa.

Eis a primeira passagem relativa à mãe no terceiro parágrafo: até ao infinito onde estão os teus olhos de Mulher-Mãe, Magnífica na tua veste cabelos! (1977:163) E a segunda, no décimo parágrafo: Mulher-Mãe! a afirmação exaltada que nos queima os dedos entrelaçados. Mulher-Mãe tumulada! sem sabermos um do outro nos procurámos no labirinto, Nós Amor!, que existes porque existo e existimos assim para além das montanhas de mar que nos cercam, para além da noite, para além de ti, de mim, do corpo que formamos, síntese de toda a poesia feita. Depois, tendo pelo meio o refrão que de novo se repetirá, raomomar, anagrama de amor repetido, vem o metal exortativo que aqui escalda: Mulher-Mãe sabemos!/ Magnífica a misteriosa sedução do nosso amor/ Magnífica que as palavras não dizem e tu dizes e eu digo/ com os nossos corpos exageradamente trémulos e ferozes apesar de meigos/ Magnífica que decorei de ponta a ponta na memória/ (…)/ Nós Mulher-Mãe sobreviventes!/ Raomomar/ amor confuso, amor repetido, amor esotérico, amor mágico/ – MAR.

O poema permanece neste ritmo, subindo de grau, até à explosão final do Amor como único baluarte da realidade real. Sagir, nome da Mulher-Mãe, comparece no sétimo parágrafo: Procura-me quando a morte for impossível e já não seja possível viver – quando já nada for possível SAGIR! O nome da mulher mãe, sempre escrito em maiúscula, por exaltação máxima, não deixa dúvida sobre a ligação do poema com o passo anterior da abertura de Erro Próprio. “Isso Ontem único” é o poema da chegada dos novos amorosos, Eu e Sagir, cuja vinda fora anunciada na palestra de 1950. Observe-se o título: “Isso” e não “Isto” – “Isso” é quase “Osso”. Tal como o osso é a alma também aqui o isso é o que está lá. Lá, onde? No ontem, esse que faz saudades. Logo: no túmulo verde cravejado de lágrimas, onde o Eu primordial viveu com Sagir. Daí o único, pois no túmulo só houve um, a união do mesmo com a sua essência. O incesto parental só pode pois ter acontecido no isso ontem único – no lá do passado uno.

Fica, depois disto, no meu espírito, e por certo no do leitor, a pairar uma dúvida: como fazer coincidir Lisboa com o Eu de Erro Próprio e com o sujeito que invoca a mulher mãe no poema de abertura de Isso Ontem Único? Desta sombra posso tirar uma linha de combinação de significados. Não será o Eu da conferência pública de 1950 apenas o Eu duma figura dramática, duma personagem textual, máscara de tragédia ou teatro? E o sujeito que fala no poema de 1953 não será apenas um disfarce lírico?

A leitura é possível e tem lastro para assentar. Não obstante a ponta final dela será sempre fazer coincidir a persona textual ou especular dos textos de Lisboa com esse outro Eu primordial, que não conhece as imposições da primeira consciência. Nunca aqui se disse que o Eu da primeira consciência, o Eu exterior, o Eu civil, que possui nominalmente, à luz da Lei, os direitos autorais sobre as obras que bem ou mal assina, era o Eu que as criava. Ao invés, desde a primeira linha destas notas, tudo aponta para que só um outro Eu, o da segunda consciência, aquele que comunica através do olho da alma com o espaço onde vivem as imagens dos sonhos, as possa conceber, desenhar e criar. Uma obra poética goza duma liberdade excepcional e tem uma natureza imagética real que a primeira consciência por si só nunca conseguiria assegurar nem tão-pouco aceitar. Assim o Eu que fala nos poemas assinados por Lisboa, seja por enunciação lírica seja por disfarce dramático, é o Eu de Lisboa, só que o seu Eu interior, o Eu arcaico, o Eu imagem, livre das censuras e dos ditames exteriores do Eu social e civilizado.

De qualquer modo, Lisboa, como autor empírico, como identidade social estável de primeiro nível, talvez pelas condições especiais de reclusão e afastamento em que viveu, que lhe facultaram e facilitaram uma repescagem do Eu arcaico, não deixou de tentar na própria obra escrita uma fusão entre o Eu social, o Eu da realidade exterior, e o Eu interior. O ensaio é raro – tão raro que o sonho de Cesariny com o morto vivo tem o desenlace que tem – e mostra o nível de avanço a que a experiência interior de Lisboa chegou em vida, nesta vidinha chã tutelada pelo Eu da primeira consciência. A dramatização deste passo está num dos textos póstumos de Lisboa, O Senhor Cágado e o Menino, e pode servir de resposta à pergunta que abriu este excurso: como fazer coincidir Lisboa com o Eu de Erro Próprio e com o sujeito que invoca no poema de abertura de Isso Ontem Único?! O texto foi publicado em 1958, em livro póstumo, edição de Mário Cesariny, colecção “A Antologia em 1958”, junto a um outro importante texto também inédito, Exercício sobre o Sono e a Vigília de Alfredo Jarry.

Que diz Lisboa nesse texto e em especial na parte final, aquela que aqui mais me interessa? Que o senhor Cágado é um menino e que o menino é o António Maria Lisboa. Note-se para já a coincidência do símbolo ou da imagem, o cágado, fruto da não premeditação da consciência, arremesso automático, e do Eu social, o nome civil do poeta. Cito: O snr. Cágado (…) é um menino. É um menino de bronze e chamar-se-á RAA. O que traduzido para português quer dizer: é um menino nascido a 1 de Agosto às 8 horas tem 25 anos e o seu destino será completo. (…) O Menino de bronze repousa na solidão da Lua, nasceu-lhe um olho de chacal (…) e o coração é de Leão. E esta é a sua Lealdade e o seu Amor como o Destino e o Sentido seu que tem e chama-se António Maria Lisboa. FIM DO PRIMEIRO DIA – Seus pais são SAGIR e IGASI. Do extracto tira-se a identidade entre o cágado e Lisboa, quer dizer, entre o Eu simbólico e o Eu social, entre o Eu menino e o Eu civil (de facto nasceu a 1 de Agosto, tem 25 anos no momento em que escreve e se chama A.M.L.). Mais do que isso: não se teme dar ao Eu civil por mãe Sagir, a mulher mãe, cujo ser vem do anúncio inicial de Erro Próprio, relativo aos novos amorosos, e cresce depois, em elevadíssima temperatura, no poema “Isso Ontem único”. Isto quer dizer que à luz dos textos é possível adiantar que Sagir, a mulher mãe, a magnífica que o Eu textual decorou de ponta a ponta na memória, aquela que incita ao amor repetido, o raomomar, ao amor sem nexo e contínuo, ao amor insolente, é a mãe de António Maria Lisboa. Chocante mas inconcutível!

Uma última pergunta: a mãe deste António Maria Lisboa é a dona Michaela do Céu Dias da Silva (socorro-me do nome que Cesariny fornece na edição de 1977, p. 395), que figura no Registo Civil como ascendente materna de Lisboa? O mesmo que se disse para o Eu simbólico e para o Eu civil de Lisboa se dirá aqui para sua mãe. Dona Michaela e Sagir são a primeira e a segunda consciência, o Eu social e o Eu primordial da mesma realidade. Ora no plano em que hoje se vive, depois da cristalização do aparelho interno de censura, que recalcou para a distância do inominável certos conteúdos do desejo, fazer coincidir no mesmo momento e no mesmo ponto as duas consciências é obra de excepção. Assim posso afirmar o seguinte: a mãe de António Maria Lisboa é Sagir – é-o pela liberdade extraordinária que o poeta foi capaz de conquistar dentro de si; mas o filho de dona Michaela não é com certeza este António Maria Lisboa. O seu filho é o Eu civil que tem por mãe no registo a senhora dona Michaela e não Sagir.

Está por fazer o estudo biográfico do poeta; convenço-me que no momento em que for feito, e existindo ainda materiais disponíveis, um dos nós cruciais em jogo será a relação do poeta com a mãe. Basta recorrer aos traços mnésicos que a sua poesia conservou para perceber que essa relação foi tensa em extremo e ao mesmo tempo apaixonada e magnetizante. Com isto não quero dizer que a construção poética e simbólica de Sagir se tenha devido tão-só à ligação que o poeta teve com a sua mãe. Longe disso. Tenho noção que o rasgão que um Lisboa acamado, isolado do mundo, fisicamente doente, abriu nas camadas visíveis da consciência, governadas pelas imposições civilizacionais, atingiu uma tal largueza e à-vontade que ele pôde contemplar a terra dos mitos e dos Arquétipos, a terra das genealogias divinas, quase todas incestuosas, donde lhe veio uma parcela importante da matéria-prima com que depois amassou a mulher mãe, Sagir, dos seus textos. Não deixo porém de acautelar que em paralelo a isto a sua experiência empírica, pessoal, aí teve também quota-parte. E basta ler o que Cesariny, que alguma coisa ou mesmo muita conheceu do assunto, deixou escrito no prefácio da edição de 1977 (pp. 9-10), sobre a relação entre a mãe e o filho, entre dona Micaela e António Maria, para se perceber o importante volume que esta parcela teve na construção simbólica de Sagir. Cesariny adianta aí que a visão por telepatia era fenómeno vulgar entre os dois e que só a força de amor doido, recíproco, e as palavras são dele, Cesariny, entre mãe e filho puseram a correr os versos do poema “Isso Ontem Único”.

Haja ou não contributo da ontogénese para a construção simbólica de Sagir, e por certo há, e seja ele que parcela for, maior ou menor, o tópico do incesto é obsessivo na escrita de Lisboa e é isso que aqui importa. Ele regressa de novo num dos textos finais do livro de 1953, “O Amor de Isadore Ducasse Comte de Lautréamont”, agora já fora da alçada, pelo menos aparente, de Sagir. Leia-se a abertura desse texto: Aqui ama-se sem leis, sem regras, no leito, em quartos abruptos e selvagens, ama-se na angústia, em seios de mãe, (…). (1977: 185) Era inevitável na imagética de Lisboa associar este amor sem regras e sem leis, típico do Eu arcaico, ao amor em seios de mãe.

Depois deste passeio – abertura de Erro Próprio, parágrafos e versos de Isso Ontem Único, passos de O Senhor Cágado e o Menino –, é altura de perguntar: admira que Cesariny, que tão bem conhecia a escrita e a criação de Lisboa, que tão próximo estivera da relação que ele estabelecera com a mãe e que mais tarde narrou na introdução da edição de 1977, tenha escolhido a sua figura para elaborar e construir um sonho sobre o trauma edipiano? Havia entre os amigos de Cesariny algum outro que se pudesse prestar a figurar dramaticamente, no cenário onírico, a posição do Eu arcaico anti-edipiano? Depois do que se leu é difícil conceber que alguém tenha levado tão longe, mesmo que só em termos escritos e poéticos, quer dizer, verbais, a transgressão do incesto parental como António Maria Lisboa. Nenhum como ele estava pois em condições de ocupar lugar no sonho de Cesariny; ninguém tinha tanta situação para ser convocado a desempenhar no teatro deste sonho o papel do Eu encoberto, do Eu recalcado, do Eu aprisionado, do Imame superior, que espera em ânsia, há milénios, o momento em que a porta do cárcere se abrirá, o momento da libertação, que será também aquele em que ele voltará a abraçar o Eu revelado, o Eu solar e exterior, o pobre Eu de primeira consciência que vive no cimo das escadas do sonho de Cesariny e se toma a si mesmo como o senhor absoluto da razão e como o rei da criação, o Eu que um dia se decidiu separar dum pedaço de si mesmo, deixando-o encarcerado em cela escura, enquanto ele se entronizava, bem rodeado duma guarda pretoriana, como o único Eu.

 

19 Outros Sinais do Osso e Operação do Sol

Liberdade extraordinária que o poeta foi capaz de conquistar dentro de si, disse eu há pouco a propósito da experiência poética de Lisboa. Disse-o para justificar a criação da mulher que ele exalta nos seus poemas, a mulher mãe, Sagir, um símbolo poderoso do incesto, enquanto união do homem com a sua essência, algo que só se pode aceitar fora do domínio do Eu civilizado e exterior. Isso implica a existência de outro Eu em Lisboa, muito activo, e capaz de navegar pelo oceano do inominável ou do recalcado. Tem aí lugar o ossóptico, também um issóptico, e que o leitor já conhece.

Toda a obra de Lisboa, aquela que uma curta mas excessiva existência de vinte e cinco anos lhe permitiu, é fruto da ousadia de rasgar a parede opaca que a primeira consciência ergueu em volta de si, proibindo ao Eu o contacto com as zonas mais distantes das terras interiores da alma. A experiência poética deste rapaz corresponde por inteiro ao sonho de Cesariny: também ele precisou de abandonar o patamar do Eu exterior; também ele se aventurou pelas escadas da alma à procura do seu Eu encoberto; também ele teve de enfrentar a doença e a podridão. Só que ao invés do que se passa no sonho de Cesariny, Lisboa desceu o último degrau e fundiu-se com o seu Eu interior. O seu génio foi o de derruir muros e deitar baixo tapumes – isto o disse no texto “Algumas Personagens” de Isso Ontem Único – e não o da literatura; preferiu, de olhos fechados, como sucede num sonho, libertar o horizonte, arredando e derrubando proibições, a entregar-se de olhos abertos, máquina de calcular ligada no primeiro plano de consciência, a uma carreira de sucesso público, fazendo render o talento. Lisboa foi um aventureiro do espírito, um corsário dos últimos oceanos, um solitário que viveu para o sonho, não a personificação do fura-vidas.

De qualquer modo a obra poética de Lisboa, mesmo desinteressada da literatura, mesmo empenhada numa aventura de libertação interior, ou por isso mesmo, é uma daquelas obras de excepção, onde se contempla um mundo novo, sem paralelo, que arrepia, emociona e faz tremer. Está lá uma beleza virgem e desconhecida. Não se encontra talvez na sua obra um talento de versificador exímio, nem ele o procurou excitar, ou de malabarista da sintaxe, apesar da frase sempre reveladora, mas em seu lugar estão imagens poderosíssimas que só alguém com a sua experiência no domínio do Eu interior, do olho da alma, estava em condições de deitar mão e restituir à luz do dia. É esse o valor extraordinário da sua lição poética. Versificadores talentosos, ou mesmo exímios, por geração, numa língua, há uma boa meia dúzia deles; poetas, que ponham mão nas fontes originais do Verbo e ajudem o homem e a natureza a abrirem caminho para horizontes novos, derribando muros e tocando terras ignotas, duma beleza inesperada, há por século, se tanto, dois ou três. O mestre do ossóptico foi um deles.

Lisboa teve por inteiro consciência da sua missão de poeta e do lugar que era por volição o seu. Escolheu de livre vontade um caminho e entregou-se a ele, assim se pode dizer por uma vez com propriedade, de corpo e alma. Em termos simbólicos esse trilho é o do sonho de Cesariny: libertar o Eu interior da prisão escura e húmida, do esquecimento miserável a que seis ou sete milénios de civilização o remeteram, aproveitando dele os poderes maravilhosos que outrora foram atributo duma humanidade paradisíaca. Sagir, a mulher mãe exaltada enquanto mulher amorosa, a mãe tomada como amante, é um dos grandes símbolos deste outro mundo não civilizacional a que Lisboa aportou. É o decalque verbal, criptomnésico, da sua imaginação em estado puro, tal como é possível concebê-la nos sedimentos arcaicos da segunda consciência. Não há dúvida que Lisboa teve inteira percepção da sua aventura e da sua viagem, fosse para descer aquela escada repulsiva que sete milénios de História cavaram de modo a esconderem nas voltas do intestino o Eu interior, fosse depois para subir nele e com ele ao céu dos Arquétipos.

Há momentos da obra de Lisboa onde se sente o diário de bordo, a notação dos passos e dos exercícios a que ele se entrega para chegar ao que lhe interessa. A obra de Lisboa não é apenas a restituição das formas ossoptóicas a que ele enquanto corsário do além teve a felicidade de deitar mão; é também em muitos passos um trabalho de reflexão sobre os processos a que é preciso recorrer para poder voar nos braços do Eu interior até aos oceanos de luz. Algo se pode já concluir sobre estes processos. No campo das observações supra-sensíveis, os caminhos com que Lisboa trabalhou passam muito pelas operações do sono e da vigília. Não é a vigília que lhe interessa; é o sono. Não obstante, não é qualquer sono que lhe interessa; o que lhe vai é um sono que seja capaz de conciliar em si a atenção própria do estado de vigília. Lisboa trabalha assim o sono como uma via de acesso ao abrir do olho da alma, o único que pode dar um sentido desperto à hipnose do sono.

Assim no texto “Exercício sobre o Sono e a Vigília de Alfredo Jarry” apanho o seguinte: Jarry sabe que o sonho é este que vivemos da forma mais sábia: dormir acordado, estar acordado quando dorme, viver responsavelmente o sonho, não desculpar, não se desculpar, não ter razões, nem dar razões, e acontecer com a precisão sucessiva do que acontece é o Traço-de-união. (…) Assim é necessário adormecer e ficar acordado. (1977: 184-85) A lição do Pai Ubu é a mesma do Pascoaes de Duplo Passeio; Paris não é muito diferente de Travassos da Chã. Nunca ninguém dormiu tão acordado como o Pascoaes que fixou no caudal da memória verbal as imagens fluidas do seu sono.

Perceba-se este dormir acordado – ou este estar acordado quando dorme, este viver responsavelmente o sonho, este adormecer e ficar acordado. O que nele está em jogo não é o trabalho do ossóptico pelas zonas obscuras do xisto onírico mas a construção ou o ajustamento da ocular do equipamento de pesquisa; é um trabalho preparatório e anterior à expedição, ainda no plano da realidade exterior. Outra possibilidade é encarar o trabalho prático sobre Jarry como o primeiro registo feito no momento da chegada do Eu interior à terra da realidade sensível depois de demorada estadia e expedição pela Terra da Realidade Verdadeira. Seja para ajusta o órgão da imagem ao trabalho que está para chegar, seja para tirar conclusões depois de o ver longamente trabalhar, a consigna do dormir acordado, atentando com a consciência sensível nas formas que passam no além, é a verdadeira ocular capaz de observar a luz original.

Se o leitor quiser tocar o segredo da construção do ossóptico é por aqui que tem de ir: a consciência de tipo vibrátil e sensível, usada pelo corpo material para captar no estado de vigília a realidade empírica, é posta ao serviço da exploração das zonas proibidas do continente interior. Não é possível embarcar no veleiro que vai para as Índias incorruptíveis, não há hipótese de avizinhar a oficina da criação onírica, sem levar no bolso a consciência que serve para percepcionar a realidade imediata. O Cavalo-Triângulo enterrado na areia sob um vento de agulhas, esse que escarva o chão do “poema do começo” de Lisboa, precisa de ter a mesma verdade ou a mesma realidade dum puro-sangue árabe avistado numa estrebaria deste mundo. Quero dizer que o ossóptico enquanto olho da alma ou porta de entrada na imagem é aquilo que permite captar as formas da segunda consciência com a mesma verdade com que a primeira consciência capta as coisas da realidade sensível. Daí o dormir acordado ou o viver responsavelmente o sonho. Sem a consciência sensível, sem a vigília que afina e concentra a atenção, sem os sentidos físicos despertos, a luz original que palpita nas zonas mais recônditas da alma ficará para sempre aos olhos do incauto viajante obscurecida pela desatenção, soterrada em definitivo numa margem de recuo e esquecimento. Quem dorme a dormir está nesse momento em contacto com o fogo analógico mas só quem dorme acordado é capaz de observar, registar, conservar e até mais tarde estudar essa outra chama.

Regresso à questão do incesto e à expressão verbal que isso tomou em Lisboa. Por quê Sagir? Por quê este nome? Sagir evoca em mim a palavra sagitário. Sagitário contém a palavra Sagir. Que quer dizer sagitário? Aquele que está armado de frechas ou setas (sagitta,ae) e ainda a constelação do céu, que é a do centauro armado de arco e seta. O sagitário é pois o homem das setas. Veja-se a tríade: cavalo, homem e seta. Entre a terra que os cascos do centauro pisam e o céu que a seta toca está o tronco do homem, mediando os dois mundos, o alto e o baixo, o exterior e o interior. A esta seta, que dá o alicerce do sagitário, associo importante passagem do texto de Lisboa “Operação do Sol”, um dos que integrou o derradeiro livro publicado por Lisboa em 1953, Isso Ontem Único. Cito: A Seta já contém o Alvo, mas só percorre a Seta aquele que lhe conhece o Alvo. Assim é de olhos vendados que o Grande Atirador alveja. (1977: 176) A seta de António Maria Lisboa não está separada do centro do alvo. Como podia estar? O Eu arcaico que apareceu a Cesariny e escreveu a exaltante apologia dos novos amorosos não podia separar o falo masculino do útero feminino. O conúbio da seta e do alvo é uma produção simbólica de tipo incestuoso. O Eu interior e arcaico de António Maria Lisboa que Cesariny vê no seu sonho é o Eu que alveja de olhos fechados já que a seta nunca se desprendeu do centro do alvo. Dito doutro modo: o amor repetido nunca deixou de ser único, dizendo respeito desde o princípio do mundo a dois seres que são sempre os mesmos, Sagir e Eu. Sagir e Eu? Sim, o sagitário. A operação do sol é restituir o alvo à seta, dissolvendo a trama do Eu exterior que impede a reunião do andrógino original, o sagitário, um híbrido cósmico, sem interior nem exterior, que tem a seta e tem o alvo.

Mas Sagir, a mãe do António Maria Lisboa que surge no Senhor Cágado e o Menino, é também Ísis, a mulher mãe. No grande poema de “Isso Ontem único”, onde tantos dados se adiantam sobre Sagir, Ísis aparece a dado passo: Ísis a mulher de Osíris – a realidade misturada. (1977: 165) A realidade misturada é o híbrido cósmico original, sem interior nem exterior, que aqui é a chave que o poeta fornece para ler Ísis como Sagir ou Sagir como Ísis. A deusa do Egipto arcaico volta a surgir num outro texto de Lisboa, aquele que ele escreveu para introduzir um romance de Manuel de Lima e que permaneceu inédito até 1966. A relação de Ísis com Sagir é aí assumida sem tergiversação: Mas pode ser mais, ou outra coisa: ser a primeira pitonisa do deus Rá, a que salva Osíris e o ressuscita – o ser que sabe e age em oposição ao ser passivo do mito da virgem. Será o mágico por oposição ao místico: consciência mágica de raízes fundas no CORPO CELESTE. Ísis é mãe! é Mulher-Mãe! (1977: 120) Ísis é a mulher mãe. Logo Ísis é Sagir. Da decomposição da palavra Sagir (ou Saiir) posso tirar duas outras: Ísis e Rá, o centro do alvo e a seta. A junção do alvo e da seta dá a figura do grande atirador como a união de Ísis e Rá dá Sagir. Sagir é o grande atirador que alveja de olhos vendados como Ísis é o centro que ressuscita a seta morta ou quebrada, unindo-se a ela e dela gerando nova vida. Ísis mais a seta ressuscitada de Osíris ou Rá é o sagitário, a tríade que faz a terra tocar no céu, através do ser activo e taumaturgo. Ísis é então Sagir. A operação do Sol é a operação de Ísis, a serpente enrolada ao falo, a serpente em forma de anel ou espiral, que restitui a seta ao alvo ou faz regressar a visão ao olho de Hórus e a vida ao corpo que morreu.

Mas a operação do Sol é também a arte poética, entendida como desmoronar de altíssimos muros. A operação do Sol é assim o exercício sobre o sono, livra o Eu da clausura em que a razão histórica o fechou e leva-o a passear pelos infinitos horizontes das terras arcaicas em que foi criado. No braço duma das árvores desse Éden original brilha o incesto de Sagir, o amor único, sempre o mesmo e sempre repetido, raomomar. O trabalho do poeta, a sua arte verbal, foi tatuar na pele das páginas que deu para impressão as imagens e os traços auditivos deste mundo. Esta arte poética aponta para que cada palavra seja uma seta unida ao alvo, um sinal do osso, de modo a que o poema, rodando até à fascinação (1977: 188), se apresente aos olhos do leitor como o raio dum Sol tão puro e tão deslumbrante que escapou até hoje à condensação, um Sol incriado, sem morte nem nascimento, um Sol que irradia na Terra da Realidade Verdadeira ou na Terra dos Duplos que nunca chegam a tomar a carne.

 

20 António Maria Lisboa, Sarmento de Beires e o Jogo da Saudade

Na edição de António Maria Lisboa de 1977 um dos pontos que sempre me surpreendeu foi a publicação de dois textos de Sarmento Beires dedicados a Lisboa. Chama-se o primeiro “Na Corrente do Rememorar” e o segundo “Serões na Rua Georges Sorel”; foram ambos publicados no Diário Popular (Lx., 29-5-1969 e 14-8-1969) e reportam-se ao período em que Beires viveu em Paris, Boulogne-sur-Seine, rua Georges Sorel, na parte final da década de 40 do século XX. Lisboa é um dos convocados; ele passou pela casa de Beires em Paris e a sua nota é uma das mais escaldantes. Entre as muitas figuras que se evocam, Lisboa é por certo a mais intensa e próxima. Impressiona o fascínio que atrai essas duas figuras uma para a outra, Beires a caminho dos sessenta anos e Lisboa com pouco mais do que vinte. Um abismo de quase quarenta anos não chegou para separar os dois; ao invés parece ter contribuído para os magnetizar. De Lisboa sobre Beires nada sobrou, pelo menos de explícito, mesmo nas cartas que ele escreveu de Paris, aquando da primeira estadia, entre Março e Abril do ano de 1949, e depois na segunda, em Janeiro e Fevereiro de 1951. Beires por sua vez deixou os dois textos já referidos, onde Lisboa joga um papel de primeiro plano.

No primeiro diz o seguinte: Foi ali (na rua Georges Sorel) que contactámos figuras inesquecíveis, como [cita oito nomes] e, finalmente, essa figura extraordinária que foi o poeta António Maria Lisboa. Recordo-o, com aquela saudade que deixou, parecendo-me ainda ouvir a sua voz, de timbre quente, dizendo sem pretensão, com simplicidade quase cândida, os seus poemas estranhos que ele compreendia, e que, declamados por ele, se tornavam compreensivos para nós, os intoxicados da velha poesia dos clássicos. Recordo a sua ternura, a agonia das suas mágoas, os seus silêncios cheios de pensamento, a maneira atenta como nos ouvia. Em Dezembro de 1950 regressámos a Portugal, onde, ao fim de 22 anos, ia eu reentrar numa vida normal. Soubemos mais tarde que António Maria Lisboa voltara a Paris em 1951, propositadamente para nos rever. Perdêramos o contacto e ignorava o nosso regresso. Certo dia, ao princípio da tarde, bateu à porta daquela casa onde vivera horas de descontracção e apaziguamento. Mas ninguém respondeu. A porta da casa, um pouco recuada em relação à fachada, tinha três degraus. Ali ficou sentado durante horas e horas, supondo que teríamos saído mas voltaríamos à noite. Ali, António Maria Lisboa nos esperou, com a ansiedade de alguém que em nós encontrara almas capazes de compreender a sua tristeza íntima, o imenso desgosto que durante a vida inteira – e tão curta foi – sempre o acompanhou. Mas nós estávamos em Portugal. E só à noite, depois de informar-se junto do sr. Roussile, dono de um hotelzito de 3ª ordem que confinava com a nossa casa, ele se foi embora, lento no andar, olhos perdidos no vago, como se ali tivesse naufragado a sua última esperança de sobrevivência. (1977: 325-26)

Se esta passagem não tivesse outro interesse, ainda lhe sobrava o muito que nos dá a saber sobre a vida de Lisboa em Paris nas duas estadias que ele por lá teve. Pelo passo se fica a saber que Lisboa na sua primeira estadia em Paris conviveu com o casal Sarmento Beires e Lucília Guimarães Lima e que propositadamente voltou à cidade dois anos depois para estar com eles. O reencontro não foi possível, pois o casal acabara de regressar a Portugal. Também se fica a saber que um dos convivas que aparecia na casa da rua Georges Sorel era o pintor D’Assumpção, que muito se ligou nesta época e nesta cidade a Lisboa, onde e quando lhe tomou o retrato, um dos mais impressivos e simbólicos que se conhecem sobre o autor de Erro Próprio. Fica no ar a possibilidade de Lisboa e de D’Assumpção terem aberto convívio na modesta casa parisina de Beires.

As perguntas a fazer são as que seguem. Quem é Sarmento de Beires, além de ser o autor dos dois testemunhos publicados no Diário Popular, o segundo logo a seguir ao suicídio de D’Assumpção? Que pode ter ligado o subscritor desses textos a António Maria Lisboa? Como se conheceram? Que afinidades existiram entre os dois? Que importância tiveram na vida um do outro? Começo pela identidade. José Manuel Sarmento de Beires nasceu em 1892 e concluiu no Porto, em 1916, o curso de Engenharia Militar da Escola de Guerra. No ano seguinte frequenta e termina o primeiro curso de pilotos aviadores militares na Escola de Aeronáutica Militar de Vila Nova da Rainha, onde foi instruendo de Sacadura Cabral. Com a entrada de Portugal no conflito mundial, integra com o posto de tenente os serviços de aviação do Corpo Expedicionário Português. Em 1920 realiza o primeiro voo nocturno da História da aviação portuguesa e ensaia a ligação aérea entre Lisboa e a Madeira. Em 1924 faz a primeira ligação aérea entre Lisboa e Macau e decide tomar em mãos o projecto de Sacadura Cabral, entretanto desaparecido no Mar do Norte, duma volta ao mundo em avião. Em 1927 parte no hidroavião Argos para dar a volta ao mundo. Nessa viagem, que não chegou a ser concluída, Sarmento de Beires fez a primeira travessia nocturna do Atlântico Sul. Em 1928 e em 1931 participa em duas tentativas de derrube da ditadura militar. É demitido de funções, preso, privado de direitos e por fim obrigado a abandonar o país. Passa por Espanha, França, Macau, China. Moçambique, África do Sul, acabando por se fixar no Brasil, onde se dedica ao jornalismo e ao ensino da aeronáutica. Depois da guerra vem para Paris, onde Lisboa e D’Assumpção o encontram. Em 1950 é amnistiado pelo governo de Salazar, regressando com a esposa, Lucília, a Portugal, onde veio a falecer em Junho de 1974.

Que afinidade pode haver entre um pioneiro da aviação portuguesa e António Maria Lisboa? Por aqui nenhuma. Lisboa não se interessou por certo pelos problemas matemáticos da aviação nem tão-pouco pela engenharia da construção de aviões. Mas este piloto foi ainda escritor. Talvez por aqui se descubra algum traço de união entre os dois. Além da obra técnica que deixou, em grande parte publicada no Brasil, e que de modo nenhum interessou Lisboa, Beires deu à estampa um livro de versos, Sinfonia de Vento (1924), e dois romances, A Cidade do Sol (1926) e Trajectórias (1930). Os versos foram elogiados por Teixeira de Pascoaes, que sobre eles escreveu na revista Seara Nova. Não me parece porém que um texto publicado em 1924 e nunca recolhido em livro chegasse a despertar o interesse de Lisboa, que o mais certo era nem sequer ter notícia dele. O livro não decepciona e através dele se esboça uma pálida ponte de passagem entre as duas margens em jogo. A poesia há-de ter sido um dos motivos fortes do seu diálogo. Sabe-se que na casa da rua Georges Sorel, Lisboa leu poemas seus e que esses poemas convenceram os anfitriões. Que poemas Lisboa leu a Beires e Lucília em 1949? Por certo os que depois integraram Ossóptico e Isso Ontem Único.

Cesariny diz na edição de 1977 (p. 7) que Lisboa enriqueceu os seus textos ao longo de muito tempo. O seu processo de trabalho era demorado e faseado; procedia por acrescentos e por rasuras até obter o líquido final. Destilava gota a gota o poema, concentrando em cada gota a experiência dum cristal. Uma única distinção é de reter: os acrescentos ou as rasuras que Lisboa ia introduzindo nos seus poemas não eram feitos com vistas a conformar um objecto estético, como aconteceu a tantos e tantos outros poetas do tempo, mas apenas em função da maior experiência que ele ia obtendo no domínio do conhecimento das terras da alma. Daí por exemplo o transe entre o osso exótico e o osso óptico, neste caso funcionando o aprofundamento por passe fonético, ao encontro da palavra mágica que restitui a seta ao alvo ou ressuscita um morto, Osíris. Para poeta tão complexo como Lisboa não há pior caminho do que confundir automatismo e espontaneidade. A espontaneidade é o imediato, enquanto o automatismo é a indagação do universo da alma; a espontaneidade é momentânea, enquanto o automatismo merece ser esticado, alargado, aprofundado. Lisboa foi um poeta que praticou o automatismo, com todas as demoras que ele traz, mas deu de barato a espontaneidade e o seu imediatismo.

Sem pôr de lado o Beires poeta, é todavia o autor de A Cidade do Sol que é preciso ir buscar para perceber o traço de união com António Maria Lisboa. Só essa novela dada a lume em 1926 justifica a proximidade entre os dois. Não se duvida que tal ligação tenha existido. Sem ela não se entende o carinho terno e saudoso com que Beires recorda vinte anos depois o seu convívio em Paris com Lisboa e que deixa perceber uma grande e fraterna amizade entre os dois. Mas por quê A Cidade do Sol? Veja-se o subtítulo: romance metapsíquico. O romance pouco interessaria Lisboa, o metapsíquico era de molde a sobressaltá-lo até à paixão. Que conta o romance? A saga dum grupo de homens que decide formar uma colónia social ocultista, inspirada nas ideias de Tolstói, Helena Blavatsky e Rudolfo Steiner, a oitenta quilómetros de Lisboa. Essa colónia é a cidade do sol. O romance é a história desta Helíopole, cuja manutenção se centra apenas no desenvolver das forças psíquicas dos seus membros. Assim na parte final, quando o governo de Lisboa decide tomar pela força a cidade os exércitos são paralisados pelo raio cataléptico com que a mente dos hipnotizadores da cidade os fulmina. A Helíopole sobrevive sem violência, sem exército, sem armas. Sete anos depois os habitantes da comuna, evoluindo sempre, no isolamento, no trabalho e no estudo, dispunham das faculdades psíquicas do yoghi mais avançado, servindo espíritos que ascendiam para o Nirvana. A trama dos eventos fecha com a libertação espiritual do seu principal visionário, Sérgio de Castro.

A história do romance tem os ingredientes necessários para magnetizar Lisboa. Se no poema “Recusa” de Ossóptico ele diz que é Zanoni de Bulwer Lyton, o Bulwer Lyton de romance ocultista sobre magos, e Cesariny vê aí o ponto orgiástico do Eu interior de Lisboa (1977: 397), esse que lhe aparece no grande sonho iniciático do morto vivo, então tudo aponta para que tenha sido este romance metapsíquico a ponte de passagem entre Lisboa e Sarmento de Beires. Também aqui Lisboa podia dizer com a mesma liberdade interior o que disse da personagem de Lyton: eu sou Sérgio de Castro. Nas andanças do exílio, batendo grandes superfícies do globo, subindo e descendo a Ásia, a África e a América, ao longo de quase duas décadas, uma delas de guerra mundial, não sei se Beires teve condições para conservar consigo exemplares do livro editado em 1926. Uma coisa é segura: guardava dele memória e os interesses teosóficos que estavam na sua origem não se haviam perdido. Nos encontros da rua Georges Sorel a questão das forças psíquicas devia pois regressar momento a momento nas conversas que tinha com os convivas. Ora António Maria Lisboa, tocado pela obra do criador da psicanálise, inspirado por trinta anos de experiência surrealista no domínio do oculto, com André Breton a catalisar os sobressaltos do desconhecido e a identificar uma genealogia espírita para a escrita automática, terá sido por certo neste domínio o mais interessado e atento interlocutor do autor de A Cidade do Sol. Só essa trave no meio dos dois justifica a relação de proximidade que se destaca das palavras de Beires publicadas em 1969.

Isto me faz pensar que Beires, até pelo lastro que levava, com cerca de quatro décadas a mais, teve um papel crucial no desenvolvimento de Lisboa no momento em que ele esteve pela primeira vez em Paris. A adesão de Lisboa ao surrealismo era então recente e a sua participação num grupo surrealista organizado ainda mais; no momento em que esteve pela primeira em Paris, na Primavera de 1949, e participou nos serões da rua Georges Sorel, tinha apenas 20 anos. Compusera já alguns dos seus poemas – e disso se sabe pelo que Beires deixou escrito – mas estava ainda à espera de prosseguir, de expandir, de aprofundar em outras direcções uma experiência que estava apenas no início. Além dos contactos que levava para fazer com os surrealistas históricos, e fez, sobretudo Péret, e que se prendiam com as agonias do grupo de António Pedro, Lisboa esperava de Paris um inefável por saber, que funcionasse como um rasgão que lhe abrisse mais a alma às estrelas do infinito. É possível que essa novidade tenha vindo por via da teosofia do Beires de A Cidade do Sol. Mesmo a Ísis que tanta pujança veio a ter na construção simbólica de Sagir, porventura aqui o momento mais complexo da elaboração poética de Lisboa, pode ter sido encontrada na casa de Beires, um dos fundadores da Sociedade Teosófica Portuguesa (1922). Já no romance de 1926 se cita o livro de Blavatsky, Isis Unveiled: a master-Key to the mysteries of ancient and modern science and theology (1876), que algum sal deve ter deitado na massa que deu a fabulosa estátua da mulher mãe primordial. Em carta escrita de Paris em Março de 1949, Lisboa diz assim: A grande notícia é talvez a minha iniciação Mágica-Espírita-ocultista-cabalística-ista-ista-ista-ista (…). (1977: 251) Na carta seguinte retoma o caso, juntando que ele o obriga a passar as noites em claro (1977: 251-52). Não vejo na cidade de Paris, no apertado círculo das suas relações, Dacosta, Vieira da Silva, Arpad, e poucos mais, outro, sem ser Beires, que pudesse ser responsável por uma tal iniciação. Sabe-se como no caso de Lisboa a experiência foi decisiva. Sem ela talvez o poeta não tivesse podido percepcionar com clareza a porta de saída do mundo sensível. Dito doutro modo e na linha das notas anteriores: caso não tivesse existido uma dimensão iniciática na vida do poeta, o osso exótico nunca se transformaria no olho da alma ou no olho do outro mundo, no ossóptico final que ele deu a publicar a uma ignota gráfica de Coimbra. Esse terceiro olho começou a abrir em flor no chão de Paris na Primavera de 1949, com Beires por perto.

Com o autor de A Cidade do Sol é o assunto da saudade que se intromete nestas notas e por dois motivos. Primeiro, pela saudade com que ele fala em 1969 de Lisboa; segundo, pela curta obra poética que deixou, tanto em verso como em prosa. Esta só pode ser abordada no quadro criativo duma segunda geração saudosista, em parentesco próximo com Florbela e Américo Durão. De resto a questão da saudade já se intrometera aqui quando atrás falei de Pascoaes, o criador e mentor do saudosismo como movimento poético. Furtei-me então à questão; não o farei agora. Sobre a saudade direi o seguinte: a partir da experiência de Pascoaes, por exemplo nos dois grandes poemas atrás referidos, Máranos e Regresso ao Paraíso, a saudade tem o poder de criar um plano ideal, uma dimensão transfigurada da realidade, fruto dos materiais mnésicos da memória. É desse modo que no Marános se dá no pico da montanha cósmica a fusão final do sujeito com o espírito e no Regresso ao Paraíso se torna possível a Adão e Eva transporem de novo o portão de oiro do Éden original. Com a saudade avança-se um passo, sobe-se um degrau e muda-se de real; já não se está no real sensível mas no real supra-sensível, que apetece aproximar do real absoluto de Novalis, do real autêntico do grupo do Athenaeum ou ainda do surreal de André Breton.

E se apetece aproximar o real supra-sensível a que a saudade acede em Pascoaes da surrealidade de Breton, não cativa menos nem faz menos sentido lembrar que tanto um como outro são parentes próximos do mundo das ideias, quer do platonismo original quer do que se lhe seguiu. Por isso Camões, no momento em que glosava a prosa de Samuel Usque nas redondilhas de Babel e Sião cruza a saudade com a reminiscência – ó tu, terra de glória/ se eu nunca vi tua essência,/ como me lembras na ausência? – e aponta à beleza geral, não à particular. E isto que se diz do plano saudoso e da surrealidade pode dizer-se do real autêntico dos românticos alemães, a que eles aspiram através da Sehnsucht, porventura o único lexema que toca aspectos essenciais da saudade de Pascoaes ou da saudade divina de Usque, Camões e Agostinho da Cruz.

É como forma de delírio ou de possessão que se deve entender a saudade; ela põe o ser em contacto com um plano sublime, que tanto pode ser o pico da montanha cósmica como o jardim do Éden. A musa que inspira o delírio dos poetas, Calíope, é filha da Memória, essa que tanto põe para que a saudade possa criar uma dimensão ideal do real. Só essa dimensão justifica que o primeiro casal possa voltar a cruzar o umbral do Paraíso. Também o Eros platónico, cuja seta a saudade não dispensa, fumo que prolonga ao céu o fogo, é um génio que eleva o ser. Só por ele se escala o pico da montanha cósmica e se encontra o daemon ou o Eu que nunca nasceu nem há-de morrer. A saudade em Usque, Camões, Agostinho da Cruz e Pascoaes é memória do plano supra-sensível, quer dizer, um intermediário entre a existência empírica do real e a vida autêntica do real absoluto, para usar a distinção de Novalis.

Nada disto é estranho à poesia de António Maria Lisboa. Pelo contrário sem estas múltiplas associações perdem-se algumas linhas que fazem a força da escrita de Lisboa. A sua poesia gosta de convocar o jogo da saudade em momentos cruciais – o mesmo se dirá para a muito mais pobre criação escrita do amigo mais próximo de Lisboa, Henrique Risques Pereira. Recordo que na abertura de Erro Próprio o sujeito faz esta alarmante confissão: Tenho saudades dum Túmulo verde cravejado de lágrimas onde vivi – EU e SAGIR. Que saudade é esta? A mesma que levou Marános a escalar a montanha primordial; a mesma que impeliu Adão e Eva a cruzarem pela segunda vez a fronteira do Paraíso, agora de fora para dentro; a mesma que empurrou Camões a rever a terra da glória e a mesma que levou Agostinho da Cruz a decompor num decassílabo sáfico a saudade como luz divina. O túmulo de Lisboa é a montanha cósmica, o jardim do Éden, a terra gloriosa, a luz divina. Túmulo ou berço; túmulo ou útero; túmulo ou crisol; túmulo ou memória. Logo, túmulo como memorial do lugar de origem onde vive o Eu astral, o Eu arcaico, o Eu anterior às proibições que deram a morte, o nascimento, a dor e a formação do Eu histórico. Como não lembrar aqui o sonho de Cesariny com Lisboa e como não ver no espaço etéreo, sem gravidade, onde nesse sonho o daemon de Lisboa flutua o túmulo de que aqui se fala? Compreendem-se agora melhor as saudades dum túmulo de que fala a voz de Lisboa. São em verdade as saudades da idade de oiro da Arcádia, as saudades que chegaram à língua com Usque, as saudades que se fizeram reminiscência da terra sem pecado, sem interdições, e que aqui, em António Maria Lisboa, se perpetuam sob a forma dum túmulo verde onde vive Sagir.

Só resta uma pergunta em torno deste túmulo. Por quê verde e por quê cravejado de lágrimas? Pense-se nas cidades esmeraldinas da tradição gnóstica persa, as cidades verdes engastadas de cristais, onde em todo o seu esplendor brilha a presença única do ente incorruptível, o eterno adolescente, que é em simultâneo o mais velho ente criado e o mais jovem, tão velho que toca no incriado, e tão jovem que se projecta num futuro de desmedido horizonte, e logo se entenderá o atributo de cor que António Maria Lisboa pôs no seu monumento.

 

21 As Posições Políticas do Surrealismo e o Testamento de Pascoaes

Em finais de 1924 surge o primeiro número da revista A Revolução Surrealista, tendo como directores Pierre Naville e Benjamin Péret. O projecto da publicação resume-se nesta declaração em primeira página: A actividade inconsciente do espírito parece não ter sido explorada até hoje senão em função de fins duvidosos (psicológicos, médicos, metafísicos, poéticos). A revolução surrealista propõe-se libertar em absoluto esta actividade. É preciso chegar a uma nova declaração dos direitos do Homem. O surrealismo não pedia menos do que uma nova declaração dos direitos do Homem. Nesta exigência que só ele, surrealismo, estava em condições de cumprir se percebe a autonomia do movimento então nascente e o largo horizonte de actuação de que ele dispunha e que ia muito além da actividade típica dum grupo unido em torno da literatura ou mesmo da poesia. As possibilidades abertas pela pesquisa da vida interior, pela descoberta e observação dos sedimentos esquecidos e recalcados, abriam ao surrealismo um campo de acção muito diferente do da arte e deixavam entrever nessa actividade uma verdadeira revolução.

Pouco tempo depois, em 1926, uma outra questão se colocou ao grupo: sendo o surrealismo uma força revolucionária destinada a revelar regiões doutro modo inacessíveis, que ligação devia ele estabelecer com as restantes forças que procuravam revolucionar o mundo? Para responder a esta pergunta o surrealismo oscilou por um momento entre dar o seu aval ao movimento libertário, que apresentava então todos os grandes pergaminhos da luta operária em França, de Proudhon à Comuna de 1871, de Réclus ao anarco-sindicalismo, ou em alternativa ligar-se ao jovem partido comunista francês, consequência da recente tomada do poder na Rússia pelos bolcheviques. Depois dalguma hesitação e mal-estar, que acabou por se traduzir em rupturas dentro do grupo, de que resultou a saída de Artaud, o responsável por um dos mais inspirados exemplares da Révolution Surréaliste, o número 3, a escolha acabou por recair na segunda opção, originando uma violenta guinada, de que só muitos anos mais tarde o surrealismo se recompôs e ainda assim à custa de muitos e penosos rasgões. O mais fatal equívoco desta escolha terá sido identificar como idênticos os objectivos das duas forças.

Ora uma revolução que nascera do mais elementar desprezo pela vida interior do homem, que se tornara enquanto ditadura a mais directa e exaltante fonte de inspiração para todas as aventuras políticas autoritárias, incluindo as da direita mais execrável e sinistra, e que evoluía a olhos vistos para formas cada vez mais criminosas de socialização em que o Eu social, produto dos tabus civilizacionais anteriores, quer dizer, de milénios de acumulação de riqueza, se estava ainda a escravizar mais aos imperativos dessa mesma acumulação, chamasse-se esta riqueza ou progresso, uma revolução assim, dizia, não podia de jeito nenhum coincidir nos seus propósitos com aquela vontade de libertar as regiões humanas recalcadas com que o surrealismo despontara e surgira na vida colectiva, propondo-se nada menos do que uma nova tomada da Bastilha, desta vez para demolir aquela prisão interior que cinco milénios de História se entretiveram a construir e reforçar, para de seguida, sem muros de prisões, proclamar os novos direitos duma humanidade pós-civilizada.

Na verdade o materialismo dialéctico enquanto filosofia não foi capaz de passar no exame prático dos factos; posta em prática, mostrou-se um colossal fracasso, de pesadíssimas consequências para os que se empenhavam com seriedade na libertação progressiva do homem e da natureza. Sob o nome de marxismo-leninismo, mas com uma prática ditatorial que nada devia às piores experiências do passado no domínio do terror político, com um centralismo autoritário que nunca se inibiu de recorrer às piores violências e uma gestão de mercado agressivíssima que está a fazer dele no presente o principal combustível da acumulação do capital no mundo, o materialismo dialéctico foi e é para o movimento revolucionário uma nota de débito tão pesada que serão necessários séculos e séculos para poder liquidar a sua nefasta memória. O que o movimento operário desejou na aurora do socialismo oitocentista foi o falanstério de Fourier ou a comuna livre de Proudhon não o campo de concentração de Estaline nem tão pouco a execrável fábrica de exportação mundial em que se tornaram hoje a China ou o Vietname, para não falar no asilo hospício dos Sung norte-coreanos.

A história das relações do surrealismo francês com o partido comunista, melhor, com o marxismo-leninismo em geral, é pois das mais confrangedoras que é possível conceber, um monumental mal-entendido que pouco ou nenhum interesse apresenta, a não ser para se perceber como de surpresa em surpresa, de desilusão em desilusão, de humilhação em humilhação, cada uma mais feroz do que a outra, se chega no início da década de 40 à ruptura definitiva, com Breton a declarar nefasta para o surrealismo toda e qualquer actividade partidária, mas sem que isso significasse que dava por acabada a luta política do movimento. Resultou daí o manifesto Rupture Inaugurale (1947) e a colaboração regular que Breton e o seu grupo passaram a dar à imprensa libertária. É como se depois de 1940 – e da mudança metamorfose ficaram as soberbas páginas de abertura de Arcane 17 (1945) e o texto “La Tour Claire” (1952) – o surrealismo tivesse necessidade de regressar à encruzilhada dos tempos iniciais, para arrepiar caminho e repensar as suas escolhas políticas. Não podia refazer quinze de História, que tinham sido quinze anos perdidos, mas podia reajustar a rota e partir na direcção certa, posto que com um atraso de década e meia.

Aos que no intervalo haviam ficado pelo caminho, só pagava a pena dizer-lhes bom-dia. De heróis, de estátuas, de medalhas, de fardas, de discursos, de pencas e de meias de nylon o surrealismo conhecera muito e não gostara. Uma coisa era segura: depois do materialismo histórico e da sua chegada em força à História, com a URSS, e de tudo o que dela decorreu, a Bastilha continuava por tomar e estava até mais alta, mais rija, mais inacessível. Por isso ao surrealismo tanto lhe faziam agora as teses de Marx como a púrpura de Lenine ou a do papa. O materialismo histórico era excelente, do melhor que o mundo dera, mas tão-só para subverter com os materiais mnésicos da segunda consciência. E nunca o surrealismo voltou a ser tão ele como quando soube dar esse passo, pondo a jogar o Eu libertário e transformando o materialismo histórico em materialismo histérico. Nas relações do surrealismo com o marxismo-leninismo o Eu libertário demorou o seu tanto a surgir mas quando chegou tirou a gravata com que se estava a deixar garrotar e desarrumou de vez a sala.

O panfleto francês de 1947, e a exposição internacional que logo se lhe seguiu em Julho, “Le Surréalisme em 1947”, na galeria Maeght, com a participação de vinte e cinco países e dois importantes textos de Breton, republicados no livro La Clé des Champs (1953), representam pois na história do surrealismo momentos de grande significado, passos de envergadura gigantesca, que voltaram a pôr o movimento em contacto com a rota perdida, afastando-o daqueles que lhe estavam a roubar o tutano e a sugar o sangue. A exploração do espírito, a viagem pelas terras de dentro, sem porém esquecer nunca o que essa viagem punha para a libertação social, mas desta vez libertação e não sujeição, voltava a ser o itinerário natural dum movimento que nascera para dar ao mundo uma nova revolução, em domínio só por ele pressentido, e não para seguir de mãos atadas atrás das costas as revoluções dos outros, adiando, ou mesmo fazendo prescrever, aquela para nascera. Viajar à procura do ponto fulcral da alma do mundo, onde se originavam as tintas da aurora, partir para os mundos invisíveis do interior, voltava a ser a consigna dum surrealismo que saía de quinze anos de mal-estar político, com avanços próprios e recuos forçados. As espécies dos primeiros contrafortes valiam já o novo passeio; o surrealismo em 1947 ambicionava porém mais, desejava tocar a forja onde se fabricavam as imagens dos sonhos e se fundia o metal de que eram e são feitos os mitos, para de lá tirar a matéria-prima com que pudesse moldar um novo mito, capaz de colocar o homem em etapa superior do seu destino.

O manifesto de 1947, que limpou do surrealismo toda a ligação partidária, e o afastou do marxismo, dando-lhe de novo por espaço natural as paisagens oníricas do sonho e do mito, veio a ser um dos condimentos de peso na criação do surrealismo português. Isso afirma Cesariny nas linhas em que historia e desenha a vida do surrealismo em Portugal. Não podia ser doutro modo. “Rupture Inaugurale” foi dado a público no final de Junho de 1947 e Cesariny esteve em Paris pouco depois, em Agosto, para conhecer André Breton e iniciar os primeiros contactos com vistas à formação dum grupo surrealista em Portugal. Teve aí ocasião de ler e reler o panfleto e meditar, no quadro das campanhas que Sartre movia a Breton na revista Les Temps Modernes, a que se juntou no mesmo ano Étiemble, a sua importância. Mais tarde, na tábua biográfica que organizou para o volume Mário Cesariny (Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, 1977), no respeitante ao ano de 1947, aponta a folha francesa como de ruptura com todo o sistema de obediência marxista-stalinista e faz dela um dos elementos cruciais da formação do surrealismo português, que nasceu tanto por oposição à gravata forca da cultura oficial dominante como por contraponto à laçada prisão do neo-realismo oposicionista, tutelado com mão de ferro pelos activistas do partido comunista português. Nem uma nem outra, gravata ou laçada, interessavam o surrealismo, que queria mãos, pés, pescoço e cintura bem livres para bater as ignotas regiões do espírito, de todo desdenhadas quer pelos da Lei revelada quer pelos da Lei selada, todos filhos dum mesmo pai sem alma e sem sombra, desinteressado de todo do que perdera lá para trás, nada menos do que o Paraíso, a terra gloriosa que não conhecia dor e morte, e muito contentinho até com o solo áspero e seco da História que o querubim da expulsão lhe terá dado para pisar.

O surrealismo português nasceu pois num dos raros picos do surrealismo geral. E neste grande favor não entra tanto a temperatura mediática para com ele, que era só tépida, e nada de novo se esperaria em instante de distracções sartrianas e outras, mas entra muito e só a meta que então com rara lucidez ele visa. O momento em que Cesariny capta Paris, aos vinte e quatro anos, é dos mais cristalinos; só tem paralelo, e mesmo assim à distância, dada a verdura do propósito inicial, com aquilo que se passa em 1924, quando Breton lança o primeiro manifesto e o grupo cria o Bureau de Recherches Surréalistes e edita o primeiro número de A Revolução Surrealista. É o ano da folha volante “Rupture Inaugurale”, da exposição da galeria Maeght, do importante prefácio de Breton ao catálogo desta exposição, “Diante da Cortina”, onde Pascoal Martins e Claude Saint-Martin são a tradição acroamática da cultura que a universidade recalca, e da Ode a Charles Fourrier; é ainda o ano em que Julien Gracq elabora o seu André Breton, que verá a luz no princípio de Janeiro de 1948. E nos arrabaldes deste ano está a publicação em 1945, ainda no exílio, Nova Iorque, de Arcano 17, que se tornou o cadinho de elaboração do caminho ulterior do surrealismo, o do passo gnóstico de 1953, e cujos números, 17, anunciam os do ano capital do regresso definitivo de Breton a Paris, 1947 – chegou no ano anterior mas este foi o da definitiva reinstalação.

Uma das obras que melhor chamou a si a nova situação do surrealismo, dando de barato uma gravata com quinze anos e aproveitando a seu favor a vigorosa lufada de ar fresco que se sentia correr, foi a de António Maria Lisboa. A importância dela no cômputo geral das aquisições do surrealismo está ainda por fazer e não posso nem quero tomar nas mãos aqui o assunto, que merece só por si um estudo em separado. A partir das notas anteriores, que tentam fazer o estudo cerrado dalgumas parcelas da poesia que ele deixou, poderá o leitor ter uma ideia da rapidez com que essa obra atravessou os céus, três curtos opúsculos foi tudo o que editou em vida, mas também do brilho excepcional da sua luz. A obra de Lisboa é como uma daquelas estrelas que morreu há milhões de anos mas cuja luz continua ainda hoje a ser captada pela ocular dos telescópios.

Também no que agora interessa a esta nota, o rasgão na década 40 do surrealismo com o marxismo, a obra de Lisboa tem pontos capitais. Um deles está em Erro Próprio, no momento em que ele toma o acto poético como libertário e amoroso (1977: 78), e outro vem ao de cima na importante missiva que ele escreve a Cesariny na segunda metade do mês de Abril de 1950 e que este toma como manifesto. Formula aí Lisboa, na continuidade daquilo que tomara de empréstimo em Paris talvez a Sarmento de Beires, uma síntese final das artes mágicas a que chama metaciência, outra forma de nomear o meta ou supra-real. No capítulo desta supra-ciência há um conjunto de fragmentos que surgem e se desenvolvem como captações da supra-visão, sinais do osso, e que em alguns momentos estabelecem tomadas de posição política. Por exemplo: A Anarquia e a Poesia são uma obra de séculos e irrompe espontaneamente ou não irrompe. E ainda, de forma decisiva: Politicamente a Metaciência ao pronunciar-se dirá que a verdadeira democracia só será possível quando todos os homens forem poetas. Mas a isso não chama ela democracia – mas ANARQUIA! (1977: 279-80)

É possível que a mais importante declaração política do surrealismo português tenha sido esta última. Não é uma tomada de posição ante factos, não se coloca no plano da realidade, mas tem de outra sorte, ou talvez por isso, um alcance notável. São três linhas delgadas, escritas numa carta, mas nelas se condensa a experiência política do movimento, desde a oscilação inicial entre os dois braços da corrente operária, a autoritária e a libertária, a centralista e a federal, até ao momento do corte com o marxismo, passando pelos estádios intermédios, ligação ao partido comunista, corte com o estalinismo, aproximação ao trotsquismo e ao que dele decorria, sempre porém no horizonte fechado do marxismo-leninismo. A declaração de Lisboa está já fora das quatro paredes do materialismo dialéctico, tal como a actuação de Breton depois do regresso a França em 1946 também está. A fuga ao marxismo em Breton tem talvez o momento inaugural, ao menos como expressão, na escrita de Arcano 17, entre Outubro de 1944 e Janeiro de 1945, misturando na mais auspiciosa carta do Tarot, A Estrela, o décimo sétimo arcano do baralho, os espaços livres da Gaspésia, no Quebeque, com as bandeiras negras do operariado anarquista da adolescência de Breton em Paris (1913).

A pergunta a fazer é a seguinte: que quer dizer a anarquia maiúscula de Lisboa? Entende-se o que o anarquismo significou para Breton – o impulso transfigurador do socialismo operário extra-parlamentar tal como o século XIX o vira acontecer. Com tal tinta se haviam escrito algumas das mais comoventes linhas da História de então, a Comuna de Paris de 1871, a fundação da I Internacional operária, o Congresso de Saint-Imier. Mal percebeu que o marxismo-leninismo não passava a prova de fogo dos factos, e se estava a tornar numa monstruosa impostura, Breton regressou de forma decidida a este primeiro broto, no qual de resto fizera a sua formação inicial de adolescente. Em António Maria Lisboa a questão é outra. Antes de mais ele nada esperou do marxismo-leninismo – ou a expectativa dele, se a houve, foi infinitamente mais baixa do que a de Breton; depois, não é o anarquismo, enquanto movimento, tradição, história e selo que o chama, e que talvez aborrecesse, ou em grande parte desconhecesse, mas a anarquia. Daí a pergunta que comecei por fazer: que quer dizer a anarquia em Lisboa?

Releia-se o passo transcrito de Lisboa. Traduzo por outras palavras: a anarquia é a expressão política duma sociedade de poetas. Que pretende o poeta em Lisboa? Recorde-se: o ofício de poeta não é escrever versos, menos ainda versos perfeitos, pois tal tarefa pertence ao versificador, não ao poeta. O poeta em Lisboa é o expedicionário da vida interior, o batedor dos caminhos que vão florir nas fontes originais da significação, o corsário das estrelas que aspira tomar de assalto o lugar onde estão os materiais de natureza acústica e de natureza visual a que os conteúdos da segunda consciência recorrem para criar os seus símbolos e elaborar as suas histórias. Trata-se de deitar mão a um verdadeiro tesouro, que milénios de civilização soterraram e esconderam e que só um aventureiro intrépido, que se entregue de forma sistemática à sua procura, poderá de novo aproximar e repor em circulação. O acto poético em Lisboa não é assim da natureza dos versos mas do domínio da aventura psíquica e da elaboração onírica.

Logo a anarquia só ganha sentido para os homens que vivem por dentro a aventura das terras interiores. Mais: a anarquia só se percebe como um dos materiais, e dos adiantados, que o batedor encontra na exploração da geografia análoga que pesquisa; a sua expressão só na fonte original da significação se colhe. É uma forma primordial, uma flor rara, que diz respeito às camadas mais arcaicas da consciência universal; como em qualquer forma com essas características, esteve sujeita a um progressivo processo de recalque, que a torna hoje um cristal desconhecido. Fora do jorro da origem tal forma não se capta; ela é exclusiva ao processo da formação do Eu original. Também ela, a anarquia, enquanto palavra, é para ser encarada como um material simbólico, um poderoso sinal da alma elaborado pelos conteúdos da segunda consciência. Boa parte do seu significado pode escapar, como num sonho absurdo, ao entendimento da primeira consciência. Anarquia quer dizer à letra sem princípio. A palavra é formada por um prefixo que indica a negação e por uma palavra tema, arquia, sinónimo de princípio, presente em outras palavras da língua, como autarquia, monarquia, sinarquia, oligarquia, hierarquia e algumas outras. Anarquia é pois o que nega o princípio, o que não tem princípio.

Regresso ao ponto de que atrás falei, esse que na geografia psíquica interior se confunde com a forja onde os conteúdos da segunda consciência vão adquirir forma e ganhar revestimento. Tais vestes são as formas originais, os arcanos, os princípios ou os arquétipos que são ao enxame neste ponto, assaz longínquo, das terras de dentro. Desse chão chegou por exemplo aquele Cavalo-Triângulo que Lisboa colocou no “Poema do Começo”. Ora tal ponto é o lugar onde o mundo das formas respira boca a boca com o mundo sem formas. Por isso as formas que aí estão nesse ponto são as primeiras e esse chão é o dos arquétipos; ele marca uma fronteira entre um mundo anterior sem formas e um ulterior, sensível, onde os moldes originais se degradaram. Dito doutro modo: nas camadas mais puras e mais arcaicas da segunda consciência não há sequer formas; as formas, mesmo as arquetípicas, os princípios, são já fruto dum pacto entre as duas consciências. Os princípios ou arquétipos são a forma original a partir da qual se desenvolveu a primeira consciência, o primeiro nódulo embrionário do Eu social futuro. Por esse motivo o Eu histórico nunca conseguiu dinamitar as pontes de acesso à terra de origem, ao paraíso do Éden onde as formas se originaram sob o desenho de princípios exemplares, mesmo que para isso fosse obrigado a retomar contacto com conteúdos entretanto recalcados e que muito lhe custavam recordar. O paraíso das formas originais tem a liberdade plena do relâmpago original e no mesmo passo condensa já uma memória das cristalizações futuras.

Ora este jardim original, esta forja onde se fabricaram os primeiros moldes, é o ponto superior do monte análogo, onde a terra, qualquer terra com formas, mesmo arquetípicas, bate boca com boca com aquela pura incandescência sem história nem tempo, a que é forçoso chamar o incriado. Os arquétipos que vivem no paraíso são a primeira camada da criação, a mais plena, daí as cidades esmeraldinas da tradição gnóstica oriental, mas o momento anterior a esta criação é a pura incandescência que Daumal entreviu no céu do monte análogo. Antes das formas incorruptíveis, vivendo a sua eternidade dentro do tempo da criação, houve um extra-tempo, sem formas nem criação. Falo dum inimaginável anterior ao relâmpago do big-bang, que dista daqui apenas catorze biliões de anos. Que soma irrisória! Para aquilo que falo nem triliões de triliões! É neste incriado que reside a anarquia mais genuína, a literal, a única que é possível aceitar como plena. Só no momento em que não há realidade nenhuma, sensível ou arquetípica, já que esta é ainda real, real absoluto, a pura abstracção da anarquia pode acontecer em pleno. A anarquia é o imprincipiável, não muito menos do que isso. Essa ordem magnífica que existiu antes do universo, melhor, fora dele, e que nunca morreu, porque nunca nasceu nem existiu, pois é disso que se trata quando se fala do que não tem princípio, do imprincipiável, é talvez o que de mais ideal e de mais sublime o homem pode alcançar e intuir com o espírito.

Aquele que se preocupa em estar em contacto com a terra dos arquétipos, aquele que não olha aos interditos ou às ambições do Eu social e procura tocar o ouro sem mancha da origem, o que dedica a sua vida a forçar a entrada no continente perdido, o que se torna um alpinista da montanha cósmica interior, o poeta, o corsário dos tesouros que ficaram esquecidos no primeiro paraíso perdido, esse, um dia, quando conhecer os raios da forja divina, estará em condições de olhar o céu imponderável do extra-tempo, sem tempo nem criação, e ver lá traçado em luz irreconhecível as letras sem letras da anarquia. Numa terra de imortais, de moldes destinados a durarem o que o tempo demorar a ser, talvez esse vislumbre final sobre o além do que não tem além, o sem princípio do princípio, o respirar boca a boca com a extra-incandescência do que está depois do derradeiro pico, seja o mais grato galardão do homem que tudo alcança e tem. Nesse instante, em que se toca o sem instante, o poeta será poeta e o seu círculo uma anarquia, uma anarquia que não é o imprincipiável, e se o fosse nem palavra teria, mas tem dele, na raiz, boca a boca, um vislumbre de fogo.

Há almas que são originais. Dedicam toda a sua vida a recordar o passado mais remoto, aquele que a entrada na História da civilização esqueceu e recalcou. Tais almas transitam sem dificuldade para as camadas mais arcaicas da vida e da consciência, de todo se desenraizando do Eu social da consciência de superfície. Na verdade tais seres nem se dão conta que vivem na História; para eles a vida do paraíso original continua – ou nunca dele foram expulsos ou o reconquistaram pelo poder mnésico. Essas almas, indo beber à fonte primeira, convivendo tu cá tu lá com os modelos primeiros, acabam por desenvolver uma memória tão extraordinária, que se conseguem lembrar do instante anterior aos protótipos, quando não existia ainda qualquer separação entre a criação e o criador. Esses seres são na acepção de Lisboa os poetas e são eles que têm nos olhos gravados a luz irreversível da anarquia.

Faço um pequeno acrescento ou desvio à frase de Lisboa, recorrendo agora a Natália Correia (1923-1993), que bem merece aqui comparecer e não apenas, se mais espaço houvesse, pela frase de Lisboa. Natália leu a carta de Lisboa, pois Cesariny fez dela um folheto, em 1963, nos dez anos da passagem do autor de Isso Ontem Único, numa colecção sua, “A Antologia em 1958”, que a autora conhecia bem, pois nela se fez editar. Quando se tratou, a partir do surrealismo, de antologiar a poesia da língua, já a Revolução dos Cravos estava quase a entrar, Natália pegará nas relações do surrealismo com a política deste modo: A bandeira negra dos anarquistas é a única que verdadeiramente guia a marcha do surrealismo contra a ordem e toda a espécie de constrangimentos. (O Surrealismo na Poesia Portuguesa, 1973) Neste comento sente-se a mistura de vários metais anteriores; é uma liga de boa resistência que junta o itinerário de Breton e do seu grupo com a sumptuosa síntese mnésica – é disso que se trata, não menos – de Lisboa.

Tudo isto está certo e se encaixa em sucessivos planos ou sentidos, que têm por motivo recorrente a encruzilhada política em que o surrealismo se debateu na origem, aí por volta de 1925-26, e à qual regressou na época da maturidade. Entre a comuna libertária, tal como os primeiros socialistas a sonharam, sem partidos e sem escravos, com homens livres e conscientes, e a caserna cor de cinza do Marx passado à prática, com tudo voltado à farda, os surrealistas não hesitaram e abandonaram a parada militar. Estavam melhor no falanstério. O que espanta deveras é que pela época em que se operava a ruptura do manifesto de 1947 do grupo de Paris e Lisboa escrevia a sua profissão de fé na Anarquia, Teixeira de Pascoaes pudesse estar a escrever os versículos de A Minha Cartilha, que é o seu testamento político. O que lá se encontra é em tudo congénere ao que se diz pela mesma época em Breton e em Lisboa. Veja-se esta declaração: Ser anarco-comunista ou cristão-pagão é defender a justiça espiritual e a económica, o direito à liberdade de pensar em alta voz, e ao pão nosso de cada dia. Tocamos sempre a questão do pão: o do corpo e o da alma. Para os corpos, o mesmo pão; e a cada alma, o pão da sua fome Espiritualmente há várias fomes; materialmente há uma, que a matéria é unidade, e o espírito multiplicidade. Se os corpos são redutíveis a um só corpo, as almas são irredutíveis a uma só alma. (1954: 33) E ainda esta: O homem, como criador e anarquista, exige a liberdade de criar; como criatura é comunista e sujeita-se ao estabelecido. Os corpos são irmãos; as almas não. E por fim esta: Vivamos enfim no: Faça-se a luz! E no Amai-vos uns aos outros! Faça-se a luz é o grito do anarquista. Amai-vos uns aos outros é o dos comunistas. (1954: 40)

Teixeira de Pascoaes era quase vinte anos mais velho do que Breton; sobre Lisboa tinha um adianto de mais de quarenta anos. A estrela que o regia era porém a mesma que governava os outros dois. Como Breton e Lisboa, ele foi uma das almas originais que não se conformou com a perda do paraíso. Aquilo a que ele chamou saudade foi na verdade um caminho de alquimia interior na direcção do lugar, anterior ou ulterior, onde a memória duma ordem superior sem coacção nem sanção fosse muito mais do que uma nostalgia.

 

22 Sobre um Poema de Fernando Alves dos Santos

Desde 1944 que se documentam as relações de Fernando Alves dos Santos (1928-1992) com António Maria Lisboa (1977: 386-87). Colegas de escola, ou até de classe, fizeram uma rápida passagem pelas adjacências do neo-realismo e ambos por causa do surrealismo cortaram com ele. No final de 1947, quando o grupo surrealista de Lisboa se formaliza, mantêm-se à distância, ao que tudo leva a crer pela presença de António Pedro e José-Augusto França. É assim que Cesariny, cujo diálogo com O’Neill parece ter sido o embrião do G.S.L., os encontra, quando uns meses depois, farto do esteticismo duns e do rácio idiota de outros, decide deitar borda fora o grupo. Do encontro, que toca ainda Risques Pereira, Pedro Oom e Cruzeiro Seixas, e mais tarde Mário Henrique Leiria e Carlos Eurico da Costa, nasce um novo grupo, os surrealistas, que Cesariny apelidará anti-grupo. Na palestra manifesto Erro Próprio, Lisboa vai buscar Alves dos Santos assim: Esqueço de momento (…) para me fixar de repente na Mala do Viajante que Fernando Alves dos Santos expôs na 1ª Exposição dos Surrealistas e, ó mais Maravilhoso Avião Interplanetário, ó mais Brutal dos Terramotos, nos incita, de continente em continente, de astro a astro, à Viagem Amorosa! (1977; 91)

Fernando Alves dos Santos publicou em vida dois livros, Diário Flagrante (1954) e Textos Poéticos (1957), e deixou um outro preparado para publicação, De Palavra a Palavra; a esta curta obra acrescentam-se quatro poemas dados a lume em vida e um conjunto de dispersos, manuscritos ou já passados à máquina, em número de vinte e cinco, por publicar. Esta obra foi reunida por Perfecto E. Cuadrado num único volume, Diário Flagrante [Poesia] (2005), onde encontro um poema chamado “A Teixeira de Pascoaes”. Faz parte do conjunto final de vinte e cinco dispersos e diz assim: O ouro impoluto/ na gota de água oculto/ se articula e chama/ o deserto./ Das minhas mãos o mar/ escorre sobre a cama/ devagar/ desperto/ como os sinais das poeiras/ que são do verbo as trepadeiras/ moldando de verde as mágoas/ que adormecem/ ao sabor das águas/ que envelhecem./ Também os anjos na branca rosa/ são vulto do mistério da esperança/ na anímica madrugada/ ansiosa/ mas cansada./ No céu uma estrela dança;/ a Saudade – a grande altura/ – vem nas trevas da Idade/ envolvendo de mística ternura/ a sua irmã Eternidade. (2005: 149)

O poema não tem data mas acredito que foi escrito no rescaldo do momento em que Cesariny antologiou a poesia de Pascoaes em 1972. Não vejo outro momento para o autor de Diário Flagrante se dedicar a ler a obra do autor de Regresso ao Paraíso. O contacto pode ter acontecido por oferta do opúsculo Aforismos (1972), edição de Cesariny e de Cruzeiro Seixas, e da antologia, Poesia de Teixeira de Pascoaes (1972), do mesmo ano, que resultou dum pedido de Natália Correia e foi o primeiro volume impresso a conter trabalhos plásticos de Pascoaes – com excepção da edição póstuma A Minha Cartilha, cujo frontispício apresenta um auto-retrato do poeta. Isto não quer dizer que o poema em causa date de 1972; deixa apenas no ar a possibilidade do convívio, em força, de Fernando Alves dos Santos com a obra de Pascoaes ter aberto nesse ano. O poema será mais tarde, porventura anos mais tarde, o resultado gráfico desse convívio.

Que diz o poema? Antes de mais vale a pena atentar no dinamismo do título, “A Teixeira de Pascoaes”. Aquilo que aqui importa é o significado da preposição inicial. Na verdade o poema podia chamar-se só “Teixeira de Pascoaes”; nesse caso existiria sobretudo a indicação dum retrato. Ao acrescentar aquela letra inicial, com valor de preposição, passa-se do retrato à homenagem; as palavras do poema passam a ser uma oferta, deixando de ser uma simples evocação. O título, tal como ficou, oferece, não retrata. Ele é sinónimo de: para Teixeira de Pascoaes. O poema suporta todavia a identificação da preposição com outras que na aparência lhe estão mais distantes; com, de, em, por, sobre. Sendo retrato homenagem, o poema é também companhia, ligação, presença, defesa, estudo, acto humílimo de amor e conhecimento.

Depois é preciso assinalar que se está ante uma única estrofe com vinte e quatro versos. Nesse único conjunto destacam-se porém quatro núcleos distintos, o primeiro com quatro versos, o segundo com dez, o terceiro e o quarto com cinco cada um. Aquilo que estabelece a fronteira entre cada um deles é o ponto final, quatro na totalidade. Cada núcleo pode funcionar como uma estrofe potencial, com um miolo autónomo de significação. Em cada centro está uma imagem forte, à volta da qual giram os restantes motivos. O coração da primeira sequência está no ouro impoluto, o da segunda no mar, o da terceira nos anjos na branca rosa e o da última no céu onde uma estrela dança. Como se percebe de imediato esta é uma poesia que se organiza por imagens; são os materiais visuais, em sucessão, que fornecem ao poema a significação. O papel dos materiais sonoros, existindo, é de muito menor impacto.

Veja-se o dispositivo visual do poema. As duas imagens de maior pressão são a do início e a do fecho. De entrada é o ouro impoluto. Não será difícil associar este metal assim classificado ao lápis filosofal da alquimia. E já agora ao epitáfio que para si próprio Breton escolheu: je cherche l’or du temps. O ouro é aqui aquele ponto nobre e sem corrupção, ouro sem mácula, indelével, que equivale ao estádio primeiro da matéria. É a imagem da terra dos arquétipos que ainda agora nos veio ao teclado a propósito da anarquia de Lisboa. A propriedade da construção simbólica deste verso é pois imensa; a sua força reside na escolha da substância em causa, o ouro, que dá à experiência poética Pascoaes uma alta perenidade, e na adequação do atributo que lhe é dada, o que não te sujidade. Também o lugar onde ele surge, indicado no segundo verso, e desenvolvido nos dois seguintes, aponta para o dinamismo duma operação que tanto tem a ver com o acto poético como com o labor da espagírica. Para obter o ouro é preciso secar a gota de água até ao deserto; dessa operação, onde a chama é o artigo, se destila então a pepita de ouro. Dito por outras palavras: o arquétipo a que o poeta aspira e que vive oculto só pela sublimação da crusta da matéria se revela e mostra.

Basta esta primeira sequência de quatro versos para se perceber a pertinência simbólica do poema em causa. Sob imagens na aparência desencontradas, ajustadas por uma sintaxe difícil, ele diz o que importa sobre um dos passos capitais da obra de Pascoaes. Passo agora à imagem do fecho. Recordo: no céu uma estrela dança. Céu ou estrela? Céu e estrela, pois a estrela é o céu como a flor é a terra. Também aqui, nesta estrela que dança no pano do céu, reconhece o leitor um segmento já seu conhecido. É o pico do monte análogo, onde ferve o astro da primeira incandescência do extra-mundo, esse ponto onde a realidade dos arquétipos do mundo sensível toca aquilo que já não tem qualquer realidade, nem material nem incorruptível. Estou de novo ante o ouro impoluto do primeiro verso. Uma diferença porém entre a abertura e o final: no início tenho a fórmula química do lápis dos filósofos; no final tenho o termo da operação e já viva e destilada a alma sublime do mundo, a estrela que brilha e dança. O resto consumiu-se na chama do deserto, gastou-se na combustão do fogo, que separa o denso do volátil.

Nova surpresa: este ponto de chegada, a estrela de seis pontas que se destaca do fogo, o astro que baila no céu mais alto, nata que se côa no seio da Eternidade, nas trevas da Idade, junto do verbo original, é a Saudade – e a maiúscula é do poema, não minha. Mais uma vez, nesta palavra, topa o leitor com artigo conhecido. Ainda há pouco tomei a saudade como uma das mediações privilegiadas do supra-real dos arcanos. É pela saudade que em Camões a memória da terra de glória abre caminho, outra forma de dizer a permanência do paraíso dos arquétipos na terra do sensível. E foi com a saudade que Pascoaes escalou o Marão e deu no pico com a fusão da alma com o Espírito em fogo de Eleonor. É pois a saudade que fecha a porta deste poema, para o deixar suspenso sobre o mundo. Apetece perguntar: quem disse que a saudade desapareceu da poesia portuguesa depois de Teixeira de Pascoaes? Quem disse que da saudade na poesia portuguesa da segunda metade do século XX não ficou rasto? A presença dela no surrealismo português é marcante e pelo menos em três momentos o é: o túmulo verde cravejado de lágrimas de Sagir, onde tem abissal dimensão; no céu de Fernando Alves Santos, onde não menos abissal desvão se toca; num poema de Risques Pereira chamado “Saudade”, a ler noutra nota, que não farei aqui e guardarei para mais tarde. E já agora um quarto acrescento: uma carta de Lisboa para o mesmo Risques Pereira, com data de 25 de Janeiro de 1951, Paris, onde se personifica a saudade e se pede para virar do avesso a dama (1977: 285), a mesma que serviu ao protagonista de Marános para mediar o pico da montanha cósmica e que, rijo bicho-de-sete-cabeças, cabra montesa com estrela de luz na ponta do rabo peixe, chegava para pôr um deus sobre a Terra.

Restam as duas estrofes intermédias com as duas imagens atrás notadas, o mar e os anjos na branca rosa. Antes mesmo de avançar por alguma delas, e atendendo ao papel da abertura e do fecho, da fórmula e da estrela, é fácil de inferir que os quinze versos intervalares do poema correspondem ao momento operativo da espagírica. No caso da primeira imagem, encontro um dos pontos em que o trabalho poético de Alves dos Santos se apoia na amálgama sonora, quer dizer, actua por meio daquilo que Lisboa chama, em passagem já tocada de Erro Próprio, das mais vivas, a cabala fonética. Foi este processo de associação sonora que serviu a Cesariny para criar alguns dos mitos maiores que pôs a circular em 1958 e ainda para traduzir com inteira propriedade passos obscuros. Tenho à mão uma nota que tirei da primeira edição do seu Rimbaud (1960), quando ainda vertia o sal por Uma Época no Inferno, em que ele diz assim deste seu método: Verbo mercurial que rouba à linguagem o que devolve à língua. (p. 108) Recorde-se ainda a decomposição fonética da palavra soldado que acaba por dar a expressão ou o mito maior sol dado e que nada tendo a ver com a palavra inicial abre o seu sentido para o focar de luz. E o mesmo Cesariny quando teve de escrever uma nota introdutória ao Carlos Eurico da Costa de Sete Poemas de Solenidade e um Requiem (1952) intitulou-a pelo mesmo método “A Volta do Filho Prólogo”.

Por idênticos processos de associação e reunião, que vezes sem conta destruíam e reconstruíam no tear do verbo a palavra, pondo a nu o seu dinamismo interior, nada complacente com a rotina degradante do uso, roubando pois à comunicação o que era depois devolvido à significação de origem, praticava a cabala judaica a exegese e o comento do texto bíblico. Daí o jogo de sons, a cabala fonética, que Lisboa refere no texto de 1949 e que foi um dos processos de fabricação a que se entregou este grupo de poetas – e apetece fora de qualquer igreja e apenas dentro do segredo chamá-los poetas sagrados.

No caso do poema de Fernando Alves dos Santos tenho o seguinte verso: das minhas mãos o mar. A associação fonética de mar e mão permite-me obter a palavra Marão, que tanta importância tem na leitura de Pascoaes e que no caso deste poema estabelece o ponto de passagem entre a fórmula inicial do ouro impoluto e o termo de chegada, a estrela que dança a grande altura. Ora é nas encostas do Marão que floresce a branca rosa assistida pelas potências angélicas e que aponta ao pico onde está o olho do extra-mundo ou a estrela da Saudade. Outro momento importante do trabalho sonoro deste texto está na palavra chama, no terceiro verso, que joga na ambiguidade entre a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo chamar e o substantivo feminino, chama, enquanto auréola luminosa e quente que se liberta das matérias incendiadas. E apetece pelo mesmo método de distorção fonética pegar em duas ou três outras palavras do texto para com elas obter efeitos de surpresa. A cama por onde o mar da mão escorre pode dar ama ou mama e o adjectivo do décimo nono verso pelo mesmo passe dá galvanizada, gaseada e até ganzada. Se no primeiro caso é a erotização adequada do passo que se encontra, pois doutro modo não há mar que assim se espraie, no segundo é o torpor da euforia que se desdobra para dentro, tão para dentro quanto a imensidade se abre de forma infinita para fora, que se apalpa no anil da carne.

Outros elementos de análise ficam aqui por revelar, como os sinais das poeiras, o verde, o verbo, a anímica madrugada, o vulto do mistério, as águas e as bagas, mas o que atrás foi dito, dos elementos visuais e dos sonoros colhidos de passagem, é o bastante para se ver em mínimo a arejada largueza dos corredores por onde o poema corre, o limpo e desimpedido caminho para a estrela final, o calibre do seu arcaboiço simbólico, que tem um átrio azulejado e um zimbório de planetário. Fernando Alves dos Santos é um poeta de mão aberta, cuja diagnose é das mais compensadoras.

Não largo o poema sem o ajustar a um outro do autor, que me parece ter uma relação indirecta com ele. Trata-se de “Carta ao Cruzeiro Seixas (na oportunidade)”, que foi publicado no catálogo A António Maria Lisboa, libreto da exposição do cinquentenário de nascimento do autor de Isso Ontem Único, ocorrida na Galeria da Junta de Turismo da Costa do Sol, Estoril, Primavera – Verão de 1978, por invenção de Cruzeiro Seixas. Desse poema tiro os seguintes versos, abertura e fecho: Tu sabes que soletro inocentemente/ como as crianças/ o nome de António Maria Lisboa./ Tu sabes que ele trazia na sua longa mão/ um sol extenuante/ que compartilhava com os poetas./ (…) Tu sabes que o António Maria/ foi um guerreiro clássico/ do nosso adolescente desejo de sermos reais e livres./ Tu sabes que ele será sempre um corsário morto/ sem deixar de ser um homem/ perpendicular/ geométrico/ e real como qualquer homem. (2005: 80-1)

Mão longa? Sim, a mão esticada, a pirâmide que toca as camadas mais afastadas da primeira consciência e lá põe, num arrepio sem medo, com o sol da consciência, um foco de luz. À luz desse projector vê-se o Cavalo-Triângulo e outras maravilhas ossoptóicas que vibram no diapasão fixo de Lisboa. Guerreiro de bronze clássico, mas sem dente de ouro; corsário emplumado morto, varado no mais alto mastro do seu galeão de assalto, mas sem olho de vidro e com a visão em febre dos xamãs arcaicos. Cesariny acertou em cheio, quando percebeu a alarmante coincidência no ano de 1950, na sutura das duas metades do século, do velho e do novo. Tinha o ancião de Amarante Joaquim Teixeira de Vasconcelos setenta e três anos e o pequeno António Maria vinte e dois.

 

23 Uma Colagem de Cruzeiro Seixas com Pascoaes

Não preciso sequer de apresentar a reprodução da colagem; as palavras chegam para a restituir. Desse modo é que está bem, pois o comutador verbal permite verter todas as imagens visuais em passes sonoros. É assim então: extraia-se dos sais de prata do passado uma fotografia velha e sépia da casa de Pascoaes, na freguesia de São João de Gatão, concelho de Amarante. Em redor estão os pinhais uivantes, os muros escalavrados, as ravinas, os sobreiros de bronze, alinhados em silêncio numa alameda, os espigueiros de granito com uma Ofélia nua lá metida dentro a tremer num orgasmo. Há ainda pedras e dólmenes por onde escorre sangue verde; lobos de olhos a luzir na escuridão; águas escuras e frias a correr por entre esqueletos; bolores e bacelos. Mas nada disso se vê, apenas se pressente. O único que se vê é a fachada da casa do lugar de Pascoaes com o lance central de escadas bifurcando-se à direita e à esquerda, as três janelas de guilhotina em fieira e as portas nas duas alas, a da direita a única em funcionamento e tendo por baixo a fonte da carranca. Por cima do conjunto está o telhado da casa, largo, cheio, corrido, inclinado, de modo a que as águas abundantes que o céu verte na região não se infiltrem no interior da casa. Nem sequer se vê na fotografia a cerca de entrada, com a estátua do imo de casaca em pedra e os quatro bustos de guarda, o portal alto e amplo, de arco de volta abatida, do centro do qual pende um lampião de vidro, que nas noites de tempestades baloiça no vazio. Nada de nada; nem mesmo a capela lateral; apenas uma parte do terreiro, as escadas, a fachada da casa e o telhado. A obra humana, com tudo nu e cru.

Eis então uma fotografia, tal como a obtém o trabalho de captação visual da realidade exterior. É uma tradução em papel daquilo que se vê no real exterior; o real sensível a reproduzir o real sensível. É a técnica em vez da magia; a habilidade em lugar do sentido; o olho em lugar do espírito. Que pode interessar um tal material de primeiro nível a um surrealista? Para que pode servir uma fotografia a um homem interessado em exclusivo em conteúdos da segunda consciência? Não se esqueça que a meta imediata do surrealismo é tocar a terra dos arcanos, onde se fabricam os sonhos e os mitos e onde estão os materiais de segunda consciência. Ora esta terra tem a mesma realidade da outra. Mais: a realidade de primeiro nível, a realidade imediata e sensível, não é mais do que a evolução continuada, posto que por saltos de desqualificação, da realidade arquetípica. Dito doutro modo: o Eu social, histórico e civilizado, é fruto, ainda que por ruptura, do Eu arcaico. Por isso, no poema de Fernando Alves dos Santos, António Maria Lisboa, ainda que corsário, é tão real como qualquer outro homem. Logo a realidade sensível interessa muito quem está interessado nos conteúdos da segunda consciência. Se a terra dos arcanos se refracta, por multiplicação, na terra das coisas, esta pode, por uma operação inversa, fazer convergir o múltiplo no uno. É por aqui que uma fotografia, enquanto material de primeiro nível, pode interessar um surrealista.

Uma coisa é segura: uma fotografia por si só, sem alteração do nível do real, uma fotografia presa e fixa, imóvel nos seus referenciais, não tem qualquer proveito nas mãos dum surrealista. Conclua-se: só uma fotografia transformada ou alterada pode em verdade trazer benefício a um surrealista. Compreende-se: só ela, alteração, faz o real transitar de degrau, abrindo-lhe perspectivas de tocar os conteúdos de segunda consciência. É preciso retroagir sobre o real sensível de modo a obter o real arquetípico; é preciso intervir no real imediato de modo a revelar o real absoluto; é preciso intervir junto do Eu social de modo a revelar o que nele há do Eu arcaico. Só com um tal objectivo se explicam as intervenções, as colagens, as misturas, as sobreposições, os decalques e outros processos a que o surrealismo deita mão nas artes que recorrem às imagens visuais, incluindo a fotografia. Todos esses actos têm um fito e estão longe de ser gratuitos. Mais uma vez é de dizer: o automatismo não se confunde com espontaneidade sem motivo. O fito é simples: todos esses processos se destinam a operar a passagem do sensível ao arquetípico, pondo a nu os conteúdos da segunda consciência.

Para se perceber a natureza geral desta operação recorra-se ainda à grande arte dos alquimistas. O que me interessa é tirar uma imagem que esclareça aquilo que nas artes visuais surrealistas está em jogo. Veja-se então. As sucessivas lavagens da matéria a que os alquimistas se entregavam tinham um material pobre na origem, o chumbo; essas lavagens visavam separar nesse material as partes terrosas, perecíveis, das partes perenes; as primeiras eram deixadas de lado e só as segundas eram reutilizadas nas lavagens ulteriores. Ao cabo de muitas destilações, o preparador obtinha o ouro impoluto, quer dizer, o que há de incorruptível na matéria. Ora, à imagem desta operação, também o artista que trabalha com materiais de primeiro nível, fotografias, desenhos, pedaços de matéria, pode, recompor com eles uma luminosa unidade perdida. Tudo o que precisa é de actuar sobre esses materiais como o alquimista actuava sobre o chumbo: proceder a lavagens eficazes do material que tem entre mãos. Uma fotografia, enquanto obra humana, nua e crua, ou um traço de giz numa ardósia, para só dar um caso elementar, estão afinal para a pedra bruta das primeiras lavagens como esta unidade de segunda consciência, revelando o supra-real, está para o lápis filosofal das destilações finais.

Uma outra forma de entender a natureza geral da operação a que o artista surrealista submete os materiais de primeira nível é recorrer à teoria freudiana do sonho e da elaboração simbólica. Mais uma vez o que interessa é arrancar uma imagem que seja capaz de ajudar a esclarecer aquilo que o artista plástico surrealista pretende ao trabalhar com materiais de primeiro nível, fruto da actividade básica da primeira consciência. Recorde-se: a construção onírica ou a montagem simbólica são sempre o fruto dum pacto entre as duas consciências. Por um lado a primeira abranda a vigilância, permitindo fugas, por outro a segunda compromete-se a embrulhar os conteúdos mais perigosos em roupagens simbólicas. Os símbolos, que constituem a matéria-prima destas construções, podem muitas vezes não ser aceitáveis às normas da primeira consciência; compensam porém esse estatuto com uma falta aparente de sentido, um grau de absurdo, que facilita ou determina o esquecimento imediato. É por esse processo de revestimento que se pode perceber o trabalho do artista surrealista. Também ele está a braços com um material de primeiro nível a que quer emprestar os conteúdos da segunda consciência. Precisa pois de modelar o material com a mesma habilidade com que a segunda consciência constrói os revestimentos que lhe servem para remeter por via postal os seus interesses.

Sobrevive não obstante uma pergunta: por quê uma fotografia da casa de Pascoaes? Aqui entra o nome do artista que pediu a fotografia: Cruzeiro Seixas (1920). Ora Cruzeiro Seixas começou a frequentar a casa de Pascoaes na década de 60 do século XX e desde aí nunca abandonou até hoje o espaço nem o convívio com a gente que lá mora; nem tão pouco a convivência com os livros do poeta que tomou nome a partir da casa e do lugar, Teixeira de Pascoaes. Ao invés, nessas décadas, desenvolveu, e sempre com acrescida admiração, o conhecimento que tinha do poeta e dos seus livros. Logo, Cruzeiro Seixas pediu uma fotografia da casa de Pascoaes para compor com ela uma homenagem a tudo o que o lugar evoca para ele, poeta, casa, pessoas com quem aí conviveu e que já não existem, árvores, pedras, rio, águas, vinhas, cães, muros, livros.

Que resultou do encontro entre Cruzeiro Seixas e a fotografia que ele pediu? Melhor: como foi possível dizer com essa imagem aquilo que ele desejava apresentar ou dizer da casa de Pascoaes? Na casa convergem muitos significados; ela é um pára-raios onde se concentram as cargas eléctricas que estão dispersas pela região. Como fazer vir ao de cima essa electricidade potentíssima? Como traduzi-la? A descarga é fulminante; o seu rasto imediato remonta à passagem dos franceses pelo lugar. Por quê os franceses? Por que diante da casa e do seu mistério, a única resposta que encontraram foi incendiá-la. Ainda hoje as chamas sobem; são labaredas visíveis, com mais de duzentos anos. E depois vem o incêndio, muito mais potente, de Teixeira de Pascoaes, incêndio interior, incêndio da paixão, incêndio do pensamento e da alma. Dele porém ficaram traços físicos, pois houve quem o visse a sair do escritório, ala esquerda da casa, com a cabeça em chamas, as labaredas a soltarem-se dos cabelos grisalhos. É uma história de fogo, a desta casa; de fogo e electricidade. E a propósito de electricidade é preciso dizer que aquilo que mais impressionava Mário Cesariny no lugar era o pequeno pavilhão em vidro numa das varandas da sacada, despercebido por inteiro mesmo àqueles que conviviam durante anos com a casa, e que servia a Teixeira de Pascoaes para assistir nas noites de trovoada ao desabar dos relâmpagos sobre a serra do Marão.

Sabe-se então que há uma fotografia da fachada da casa de Pascoaes e um homem, Cruzeiro Seixas, interessado em pôr lá aquilo que uma fotografia não pode captar, desde as labaredas aos relâmpagos, passando pelo grito dum esqueleto e pelo bronze dum sobreiro. Que fazer? Antes de mais atente-se no processo de trabalho deste homem. Como nascem os seus desenhos? Segundo ele diz pelo automatismo da mão. Daí ele avançar, com um encolher de ombros, que uma parte dos seus desenhos nasceu ao telefone; enquanto a mão esquerda pegava no auscultador, e a atenção se concentrava na conversa, a direita corria à vontade, sem preocupações, pelo papel metamorfoseando as formas. Observando o mundo destas metamorfoses, sou levado a crer que esse exercício gratuito de automatismo teve porém um trabalho prévio de grande escala. Que trabalho foi esse? Para responder à pergunta, tomo um elemento da história pessoal de Cruzeiro Seixas, que todos aqueles que com ele conviveram de perto conhecem: raramente ele teve sonhos à noite; e isto o confessava ele, sem consternação mas algo surpreso. A partir deste dado convenço-me que o trabalho prévio que o pintor fez em relação aos seus desenhos foi o equivalente aos sonhos nocturnos que não teve. Que quer isto dizer? Que em estado de vigília, durante o dia, ao modo do que se viu com os processos de António Maria Lisboa, ele abrandou as censuras da primeira consciência, levantou comportas e abriu diques, deixando correr em liberdade os conteúdos da segunda consciência. Em consequência desse estado de segundo nível, pôde ele ver nos estratos de superfície o afloramento dos conteúdos da segunda consciência e assistir entre o atento e o maravilhado ao espectáculo da sua dança. Da combinatória alucinante desse bailado de símbolos, autênticos sonhos acordados, extraía ele depois um modelo mental que lhe servia para modelar as metamorfoses que só na aparência saíam do automatismo da sua mão. Se algum artista plástico teve em Portugal um modelo interior, aquele que Breton propôs à pintura logo na primeira edição de Le Surréalisme et la Peinture (1928), esse foi Cruzeiro Seixas.

Que quero dizer com modelo mental ou interior? Recordem-se os processos de António Maria Lisboa; para compor os versos de Ossóptico, o seu autor precisou de construir uma ocular para perscrutar a escuridão do interior e captar formas. Foi com esse olho interior que ele varreu o chão da alma; pescou aí o Cavalo-Triângulo, o Túmulo verde de Sagir, a aranha-termómetro. São tudo figurações do que no real sensível não tem figura. O mesmo fez Cruzeiro Seixas. Fechou os olhos; aguardou que os censores vigilantes da primeira consciência se distraíssem; centrou a atenção no aluvião que galgou as barreiras e viu à superfície, em largo leque, os destroços vivos da segunda consciência. Nesse saibro, pescou ele as metamorfoses que lhe interessavam; adquiriu aí, momento a momento, desenho a desenho, o modelo interior que lhe convinha. Sem a aparição interna duma imagem visual, não se pode conceber o desenho de Cruzeiro Seixas. O automatismo da mão é nele secundário ao trabalho interior. Dito doutro modo: a alma funcionou para ele como a primeira e a mais decisiva tela; era nela que ele via, por relevo e destaque, surgirem os desenhos. Papel e mão eram apenas os termos finais que revelavam ao mundo físico as imagens psíquicas entretanto captadas; era nestas que residia a originalidade da imagem. Cada desenho corresponde assim nele a um sonho acordado, esse mesmo que se encontra como processo de observação no António Maria Lisboa de Exercício sobre o Sono e a Vigília de Alfredo Jarry; cada desenho de Seixas é pois a uma fotografia manual, não mecânica, da corrente irracional do pensamento, uma psico-gravura do espaço interior da alma.

Percebo agora que para alterar a fotografia da casa de Pascoaes, Cruzeiro Seixas precisou de fechar os olhos e ver na escuridão. É o momento em que as comportas da primeira consciência amolecem e deixam passar as primeiras enxurradas do além, do recalcado; é o momento em que se acende o olho da alma e a corrente do irracional se põe a correr. Muito lixo chega na primeira leva, mas logo a ocular se ajusta ao que mais importa. Há porém momentos em que o ajustamento é difícil, quase impossível. Estes instrumentos interiores não têm a mesma mecânica precisa dos exteriores. A sua montagem é doutra ordem; a sua existência é uma pura metáfora. Isto quer dizer que se pode esperar em vão dias pelo aluvião dos conteúdos da segunda consciência; não basta limpar a superfície convexa da lente, ou regular a sua distância, para focar com nitidez uma boa imagem. Em muitos humanos, por falta de traquejo, por excesso de investimento no Eu social, o espaço interior não tem outra realidade a não ser um imenso nevoeiro de cinza morta. Nada se capta por lá. É um espaço que se esqueceu de si próprio, sem porta de entrada, um buraco vazio, sem existência, que sobrepôs aos milénios de recalcamento colectivo anterior décadas e décadas de absoluto olvido pessoal. Não é esse decerto o caso de Cruzeiro Seixas, cujo trabalho para captar modelos interiores é bem visível em cada desenho que fez. O seu espaço interior foi limpo, apurado, aprofundado, dia a dia, ao longo de anos e anos de persistente devoção. Basta fechar os olhos para as formas ossoptóicas lhe saltarem ao caminho; ele é como o xamã que tanto vive na realidade dos espectros que já morreram como na realidade dos corpos que ainda somam no plano sensível.

No caso do preito a Pascoaes, lugar, poeta e casa, Cruzeiro Seixas não terá pois demorado muito com os olhos fechados. Depressa reconheceu na tela da alma, com o olho do espírito bem treinado, o trilho que havia de calcorrear, o modelo interior que fazia a vez duma estrela guia. E que reconheceu ele? Antes de mais, atlantes, homens gigantes, talhados em pedra, parentes de Atlas. Estes atlantes são tão fabulosos como o filho de Júpiter que sustentava nos ombros o céu e o mundo. Donde vêm? Da mitografia, mas também da arquitectura, onde sustentam cornijas e arquitraves, e da escultura, onde repetem o seu modelo. É uma raça de homens anterior à que hoje se conhece, em afinidade com a que vive na Terra das Cidades Esmeraldas. Parentes de Atlas, disse linhas atrás; podia ter juntado: e de Adão. Estes atlantes só guardam todavia dos protótipos o aspecto mítico e colossal. Apresentam em relação a eles uma diferença de porte: os atlantes de Cruzeiro Seixas libertaram-se das suas tarefas; nem céus, nem mundos, nem cornijas, nem arquitraves. Têm os braços livres, os ombros desimpedidos, a cabeça solta; nada os impede de se deslocarem no espaço. Não são atlantes fixos, presos à terra, mas em movimento. Estes galgam montanhas e dançam no céu. Mais: estes gigantes deixaram de estar sujeitos às suas formas; desobrigaram-se delas, por uma lei própria aos conteúdos de segunda consciência. Se for preciso, não têm braços nem ombros mas apenas asas ou outros acessórios inesperados. Logo o lugar deles é no telhado da casa, movimentando-se como espectros de outras eras, plasmas galácticos, formas do irracional em plena liberdade do céu ou da alma.

Tem pois o leitor diante dos olhos a colagem de Cruzeiro Seixas com Pascoaes: sem precisar de a ver, consegue visualizá-la. Ei-la: uma fotografia da fachada da casa de Pascoaes, onde se mostra uma parte do terreiro e do céu exterior. Vêm depois os elementos de segundo nível, fruto da pesquisa interna do mediador e por ele somados à fotografia: são os atlantes, os homens doutra raça, as formas do irracional que passam a povoar o espaço. Deste modo: uma peça de tabuleiro de xadrez, um cavalo, em pleno movimento de galope surge do lado direito do tecto da casa e avança para o centro; no seu focinho sente-se o relinche do coice ou do esticão do seu êmbolo. Logo a seguir está um pião gigantesco, que rodopia na aresta central, por cima da trave-mestra do interior; depois vem um atlante que tem apenas pernas e cujo corpo é uma bacia de metal que tem um olho e, em cima dele, uma larva com cabeça de lua no dorso da qual poisa uma ave. Por entre estes ciclopes, cavalo, pião e composição de pernas e bacia, há um minúsculo casal de amorosos que se abraça e um fala só que aponta o céu. No terreiro, à entrada das escadas, há um molusco, de corpo mole, esparramado, cujo centro é uma concha globulosa e em espiral.

O conjunto, a junção da fotografia e dos elementos de segundo nível, chega para fazer ouvir um grito, perceber o metal das árvores, ver luzir na escuridão os olhos dos lobos. E ainda saber que existe por cima dos pinhais a galáxia de Andrómeda. Pagará depois disso a pena perguntar o que quer dizer uma tal colagem? Ter o modelo interior nem sempre significa saber o que ele quer dizer; assistir, passo a passo, como se fez, ao processo da sua fabricação é destacar, pela análise progressiva das suas partes, a sua significação. Já se sabe pois: a casa é o presente, o real que se sente e experimenta, o palco de pedra, de madeira, de vidro e de telha, onde a fábula arcaica e irracional vem representar o seu teatro carnavalesco de máscaras e luzes e a faúlha mítica irrompe para incendiar as almas com as labaredas da paixão.

 

24 Violette Nozières e o Rei Ghob

A história de Violette Nozière conta-se em poucas palavras: Violette Nozières é uma rapariga de dezoito anos, que vive em Paris, e que nada indicia que venha a ter qualquer notoriedade. Os pais são modestos, vivem num bairro popular, e ela abandonou os estudos, trocando-os por uma vida de boémia nocturna. De supetão, em finais de Agosto de 1933, a jovem de dezoito anos é presa e o seu caso salta para as páginas dos jornais; está acusada de homicídio de pai e mãe. As notícias despertam a curiosidade do público. Os jornais voltam ao caso. Violette envenenou na noite de 21 de Agosto os pais, mas a mãe sobreviveu e denunciou a filha. Dias depois, nova pitada de sal no argumento: a rapariga acusa o pai de violação sexual continuada. Apesar da acusação, Violette permanece presa, o auto policial prossegue, a imprensa relata pormenores escabrosos sobre a licenciosidade sexual da jovem.

É nesse momento que o grupo surrealista de Paris intervém. O que choca os surrealistas é a hipocrisia duma moral social que defende, sem folga, a interdição do incesto e depois faz tábua rasa dele para acusar, livre de obstáculos, uma jovem de dezoito anos. Os surrealistas deixam no ar uma pergunta: Violette Nozières, carrasco ou vítima, criminosa ou inocente? Entretanto o processo judicial segue, com uma opinião envolvente cada vez mais envenenada. O desinteresse pela violação é de tal ordem que o ministério público chega a oferecer à jovem em troca da retirada das acusações contra os pais uma redução da pena. É então que o grupo surrealista decide intervir em força. É preparada uma brochura intitulada Violette Nozières, com uma tiragem de dois mil exemplares e que se destina a marcar a posição do grupo a favor da rapariga. Colaboram nela nove artistas plásticos (Man Ray, Dalí, Yves Tanguy, Max Ernest, Victor Brauner, René Magritte, Marcel Jean, Hans Arp e Alberto Giacometti) e oito poetas (A. Breton, René Char, P. Éluard, Maurice Henry, E-L-T. Mesens, César Moro, B. Péret e Guy Rosey). É uma homenagem à vítima do que têm por um massacre de expiação colectiva.

Quando decidem a impressão do opúsculo, dão-se conta que todas as portas se fecham. As tipografias francesas estão proibidas pela polícia de imprimir o panfleto surrealista. Para contornar a proibição, pensa-se na Bélgica, onde o interdito não funciona. Criam-se para o efeito, com o apoio dos surrealistas belgas, as edições Nicolas Flamel, onde finalmente aparece a brochura Violette Nozières, capa de Man Ray, quarenta e quatro páginas e a seguinte data: 1 de Dezembro de 1933. Alguns exemplares foram apreendidos na fronteira pela polícia mas grande parte da edição – constituída por vinte exemplares numerados e dois mil em edição vulgar – entra em França, é distribuída em livraria e vendida por baixo do balcão. O grosso da difusão coincide com o momento em que o julgamento se inicia, em Outubro de 1934. Apesar da ruidosa defesa dos surrealistas, Violette na barra do tribunal acaba condenada à morte, pena que, atendendo à idade e género, foi comutada em prisão perpétua. Vinte anos depois, em 1953, Breton volta ao caso, com um texto “Réhabilitez-la. Cachez-vous!”. Violette Nozières foi reabilitada em 1963 e morreu três anos depois, no mesmo ano de Breton.

Conte-se agora outra história, esta em Portugal, setenta e sete anos empós. Em 20 de Julho de 2010 um homem de quarenta anos é preso a norte de Lisboa, na zona Oeste, lugar de Carqueja, concelho da Lourinhã, freguesia de São Bartolomeu dos Galegos, já a caminho de Peniche. Chama-se Francisco Leitão; exerce no lugar a profissão de sucateiro. Vai acusado de quatro crimes: o primeiro em 1995 e os três seguintes entre 2008 e 2010. O primeiro recai sobre um colega de profissão, bastante mais velho, e os seguintes sobre jovens da região, Tânia Ramos, Ivo Delgado e Joana Correia. Os corpos estão por descobrir; fala-se vagamente em crimes passionais no que diz respeito aos três jovens. A ponta do caso foi o desaparecimento de Joana Correia, em Março de 2010, o único comunicado à polícia. Ao que parece nesse mesmo dia os pais participavam num programa sobre jovens desaparecidos. Pouco mais se sabe; o comunicado da polícia é parco. O homem foi levado para a Unidade Nacional Contra o Terrorismo, da polícia judiciária, em Lisboa.

No dia seguinte há uma torrente nova de informação. Não é todos os dias que aparece um assassino em série e os jornais e as televisões estão dispostos a explorar o caso. Precipitam-se para a Lourinhã, na tentativa de obterem mais pormenores. Nova surpresa: Francisco Leitão vivia num recinto que ele próprio construíra, sem paralelo com nada conhecido. É uma arquitectura pessoal, misto de palácio encantado em miniatura e de habitação infantil. O recinto de entrada está cheio de estatuária em pedra ou em gesso que evoca o titanismo alado do Aleijadinho. Na região a morada é conhecida pelo castelo. A reputação de Francisco Leitão junto dos conterrâneos é boa. Homem prestável, pronto a ajudar, de boa convivência e boas palavras. Passa por excêntrico, mas não por criminoso. A sua alcunha entre os da zona é Chico do Avião, porque um dia adaptou um volante de avião a um automóvel. A princípio a alcunha ainda fez algum caminho na imprensa escrita e nos telejornais. O assassino em série era o Chico do Avião. Não colou porém. No mesmo dia chegam outras notícias: há filmes na rede que correm em nome de Francisco Leitão, todos captados no interior da casa. O carnaval é patente: móveis do século XIX ao lado de imagens de índios. Numa das sequências anuncia um terramoto para Agosto de 2010, noutra considera-se o rei dos gnomos, o rei Ghob, noutra ainda faz passes de magia. Anuncia o fim do mundo e o início duma nova era. Correm as primeiras fotografias: o homem é baixo, atarracado, espesso e terroso. Pouco lhe falta, dizem, para anão. Está encontrado o nome mediático de Francisco Leitão: Rei Ghob.

No mesmo dia o homem é presente ao tribunal de Torres Vedras, onde vivem os pais de Joana Correia. Tem dezenas de populares excitados à espera. Querem fazer justiça; insultam-no e agarram-no. Ele mostra-se de cara descoberta, indiferente à desordem. Comporta-se como um alienígena; tem mais pressa do que medo. Os pormenores da acusação saltam para a imprensa: deixando de lado o colega de profissão, de que pouco se sabe, a não ser o nome, Pisa Lagartos, os dois primeiros jovens, Tânia Ramos e Ivo Delgado, desaparecidos em 2008, são namorados; Leitão, perdido de amor pelo rapaz, comete assim um duplo crime movido pelo ciúme. O terceiro é uma rapariga, Joana Correia, dezasseis anos, que namorava uma outra paixão de Leitão. O processo usado nos três foi o mesmo: sequestro num subterrâneo da habitação, preparado para o efeito, um simples buraco de pouco mais dum metro no pátio da casa, seguido de homicídio. Mais tarde ocultação dos corpos. O acusado nega tudo e recusa dizer mais.

É decretada a prisão preventiva de Francisco Leitão. Recolhe ao calabouço da polícia judiciária em Lisboa, Nos dias próximos, chovem as imagens do Rei Ghob, extraídas dos filmes que correm na rede e do momento da chegada ao tribunal de Torres Vedras. Entrevistas com os pais das vítimas e familiares do acusado. Tem irmãos, cunhados e foi casado. A mulher deixou-o por lhe ter descoberto casos de homossexualidade. Exploram-se as imagens da casa e dão-se a conhecer pormenores da acusação. Leitão teria os telemóveis das vítimas. Só isso explica que os pais de Tânia e de Ivo nunca comunicassem o desaparecimento dos filhos. De quando em quando, recebiam mensagens escritas, dando notícias do paradeiro dos filhos. Entretanto as novas que chegam da polícia não são animadoras: os corpos, apesar das buscas, continuam por encontrar e Leitão persiste em tudo negar.

Chegam entretanto as revoluções do mundo árabe e por momentos a imprensa distrai-se. O caso arrefece. Quando o primeiro aniversário da detenção de Francisco Leitão passa, em Julho de 2011, aparecem dados novos. Fala-se de dezoito a vinte violações sexuais de menores feitas no castelo. Regressam as imagens da exótica moradia de Carqueja e os pormenores da vida sexual de Leitão. Está descoberto o sentido do Rei Ghob: os gnomos são os miúdos que ele virava do avesso no castelo. Desfiam-se pormenores: drogas, magias, hipnoses, uma actividade sexual desmedida. Novo processo judicial, desta vez no tribunal da Lourinhã, por abuso sexual de menores. Francisco Leitão continua em Lisboa, em prisão preventiva, a aguardar julgamento. Em Novembro o processo de Torres Vedras é marcado para 9 de Janeiro. Os corpos continuam por aparecer e o acusado nega qualquer implicação nos homicídios. Mais não diz. Começa o processo na barra do tribunal de Torres Vedras e o caso volta em força aos jornais e às televisões. O homem recusa dizer seja o que for. Por fim, no final de Março de 2012, quando é condenado à pena máxima, vinte e cinco anos de prisão, sem que os corpos tenham aparecido, faz uma breve declaração de inocência: não matei ninguém! Está tudo por explicar.

É neste momento que Cruzeiro Seixas se lembra da história de Violette Nozières e da tomada de posição do grupo surrealista de Paris. Por que razão se lembrou Cruzeiro Seixas de Violette Nozières? Decerto pelo crime e pelo processo judicial que a levou a ser condenada à morte. Para além da condenação, que outros elementos podem ter feito no espírito de Seixas a associação com o caso de Francisco Leitão? Poucos ou nenhuns. Leitão acabou condenado por três homicídios, sem que seja possível invocar para ele a condição de vítima que os surrealistas franceses pediram para a jovem de Paris. Esta foi vítima de abusos por parte do pai, a quem depois, aos dezoito anos, assassinou; aquele, por ciúme, ao que se deu por provado, cometeu três homicídios, sem que tivesse sofrido qualquer mau trato por parte das suas vítimas. Que levou pois Seixas a associar os dois casos? Não mais do que a força do crime, a violência do acto e a pesada condenação dos acusados nos dois casos.

Seixas foi porém além do que a associação permite; pretendeu intervir em favor do condenado. Entrou em contacto com velhos amigos que na década de cinquenta e de sessenta estiveram ligados à actividade surrealista em Portugal, falou-lhes de Violette Nozières e propôs-lhes um estudo do caso e a feitura dum comunicado à imprensa em que se tomaria a defesa de Francisco Leitão. Ninguém se lembrava de Violette; olharam-no pois com frieza e desconfiança; ninguém se quis comprometer. Reformulou então o projecto, sem todavia desistir dele. Quase cego, com mais de noventa anos, pediu a uma amiga, que o guiasse até Carqueja, na ponta da Lourinhã, para falar com as pessoas do local e montar a história. Demais, queria fotografias do lugar e da casa. Não conseguiu obter um único testemunho, pois todos recusaram falar. Obteve porém as fotografias que desejava. Depois, por problemas de saúde, foi obrigado a afastar-se para Famalicão, Minho, deixando Lisboa e arrumando até ao momento em que escrevo (final do Verão de 2012) o caso.

Que levou Cruzeiro Seixas a tomar a defesa de Francisco Leitão? Começo por outra pergunta: que motivo de interesse viu Cruzeiro Seixas em Leitão? Na verdade foi aquilo que nele o interessou, que o levou a tentar uma intervenção surrealista a seu favor. A única resposta à pergunta é a seguinte: foi a casa do Rei Ghob que lhe despertou a atenção e o atirou para a personagem. Desde Julho de 2010 que ele vira as primeiras imagens da casa nos telejornais da noite. Nessa época, de mistura com as acusações e com dificuldades de visão que se agravavam dia para dia, pouco ligou, pelo menos de forma consciente, ao que viu ou ouviu. Foi preciso esperar pelo regresso do caso, no final do ano de 2011 e nos primeiros meses de 2012, com o julgamento, para reparar nos pormenores do caso (homossexualidade, ciúme, paixão exacerbada, delírios mágicos) e observar com atenção a casa da Carqueja. A surpresa nesta foi enorme. Procurou imagens de jornal para poder atentar nela mais de perto. Nesse momento, o do julgamento de Torres Vedras, todas as noites, as televisões e os jornais passavam notícias do caso; a abundância de imagens era farta. À medida que o conhecimento dos pormenores da casa crescia, mais o espanto subia. Estava diante daquilo que Dalí elogiara como uma arquitectura onde a beleza se fazia comestível, tão rara em época de normalização clássica. Ao tempo que isso acontecia, caía a pena máxima em cima de Francisco Leitão. Foram estes cruzamentos que levaram Cruzeiro Seixas a encarar na Primavera de 2012 uma intervenção surrealista a favor de Leitão.

Como ler esta intervenção? Já se viu que o paralelo entre Violette Nozières – ou até Germaine Berton, que matou a tiro em 1924 o secretário de redacção de L’Action Française e que motivou no ano seguinte a sua defesa pelos surrealistas franceses – e Francisco Leitão não existe. A rapariga foi vítima de atitudes que a sociedade actual condena; actuou pois em legítima defesa. O homem não sofreu qualquer dano; os seus actos, provados em julgamento, não têm atenuante. Logo não será por aqui que passa o caso do português. O trilho de leitura é outro. Também a aproximação deste caso com o de Timothy Mc Veigh, que mereceu de Mário Cesariny uma intervenção plástica em sua defesa, não tem saída. Veigh foi condenado à morte por electrocussão depois de acusação de terrorismo político, pena que cumpriu em 2001 e que está na origem da intervenção de Cesariny. Esta é para ser encarada como protesto contra a pena de morte. Nada de semelhante no caso de Francisco Leitão.

A intervenção de Seixas só pode ter uma justificação (aceitando como provados os crimes cometidos): chamar a atenção para uma situação em que o Eu social tinha pouca consistência. Só uma tal fragilidade explica os delírios proféticos, os furores passionais, os transportes mágicos, os entusiasmos imaginativos. É ela que explica ainda os crimes de sangue e até a falta de arrependimento posterior (aceitando sempre que ele cometeu os crimes pelos quais foi condenado). Este homem tinha um largo e extenso Eu arcaico, sem censuras de qualquer espécie, que se sobrepunha ao seu pequeno Eu social, muito pouco trabalhado e desenvolvido e no qual empenhava apenas uma curta parcela da sua vida, aquela que lhe permitia ter no dia-a-dia uma boa vizinhança com as pessoas do lugar. Mas até aí o Eu arcaico vinha ao de cima, com os delírios arquitecturais da casa. Em tudo o resto, do amor ao entendimento social, na vida privada ou no relacionamento com as instituições, este homem vivia sem Eu social. Ao contrário dos casos em que o investimento no Eu civilizado é total, abafando por inteiro o Eu arcaico, o que aqui se encontra é o caso dum homem que por razões pessoais ou de isolamento geográfico, ou pela mistura das duas, ignorava as restrições do Eu social e vivia segundo os ditames livres do Eu arcaico.

Que quero dizer com isto? E que tem isto a ver com a intervenção surrealista em seu favor? Cruzeiro Seixas percebeu o Eu arcaico deste homem pela arquitectura que dele viu. Tratava-se duma arquitectura muito mais essencial do que todas as que são feitas hoje pelos arquitectos de renome de hoje. Era o caso dalguém que não aceitava a normalização na construção (piscina, relva e rectângulo) e sem nada conhecer de Dalí, de Gaudí, de Breton (escrevendo sobre o Facteur Cheval) ou de Hundertwasser empreendera uma obra que tinha fortes afinidades com as criações e as teorizações destes autores. Foi isso que o atraiu para Leitão. Viu nele a situação dalguém que chegava ao automatismo psíquico sem nunca ter lido uma linha sobre o assunto; tocava por processos seus o que muitos surrealistas haviam tocado doutro modo. Que faltou então a este homem para ser Dalí ou Gaudí, mesmo que só o Dalí e o Gaudí da Carqueja? Doutro modo: que tiveram a mais do que ele Dalí, Gaudí, Hundertwasser ou Breton (que afirmou no manifesto de 1930 que o mais simples dos actos surrealistas era vir para a rua de pistola em punho e disparar ao acaso sobre a multidão)? Tiveram a mais a alquimia do verbo ou a das cores e a das formas. Uma coisa é incendiar o mundo, outra representá-lo. Há pois uma diferença entre um Eu arcaico que se vive de forma espontânea e simples e um Eu arcaico que é vivido em termos de representações simbólicas, de enriquecimentos progressivos de conteúdos. Breton teve sempre o cuidado de avisar que o mais simples não era o mais recomendável. Uma coisa é ser Germaine Berton, Violette Nozières ou Francisco Leitão, outra é ser marquês de Sade, André Breton ou António Maria Lisboa.

É pois muito fácil perceber agora o que Cruzeiro Seixas pretendeu com a sua intervenção a favor do Rei Ghob: é preciso dizer a uma sociedade normalizada, fruto das interdições milenares que criaram a Lei e o castigo, que nem sempre é possível recalcar o Eu arcaico. Há indivíduos que por motivos vários continuam de forma irrefragável ligados a essa matéria primordial, em que os interditos (incesto, pedofilia e homicídio) não existem. Tais indivíduos são naturalmente refractários à formação e ao amadurecimento do Eu social; constituem uma minoria, já que a grande maioria segue o caminho inverso, interiorizar os interditos a tal ponto que sufoca em nevoeiro o Eu arcaico, que se torna assim um Encoberto recalcado. Trata-se todavia duma minoria visível, que se manifesta de forma ruidosa, deixando uma marca à sua volta. A sociedade dos interditos inventou as prisões, os hospícios e os asilos para esconder e castigar essa minoria anormal. Entre essa fauna estão os parricidas, os tarados sexuais, os assassinos em série, os estripadores, quer dizer, todos os que vivem seu Eu arcaico de forma imediata (Breton diria simples), sendo incapazes de lhe sobrepor o Eu social.

O que Seixas quer dizer com a sua chamada de atenção é que tais seres podiam dar saída diferente ao seu Eu arcaico caso houvesse desde a infância outra educação, que não aquela que prepara para a concorrência desenfreada em volta do dinheiro, e que exige a formação dum Eu social sufocante e exclusivo. Francisco Leitão podia ter sido tão-só o Gaudí ou o Bataille da Carqueja se lhe tivessem ensinado, além ou aquém dos processos do recalque, que ele não pôde incorporar, as técnicas da construção simbólica. Que teria sido o poeta de Isso Ontem Único sem tais técnicas? Porventura só parricida e violador da mãe. Em vez de ser hoje um grande poeta exemplar, seria sem tais avanços apenas mais um caso prisional. Assim, com a elaboração simbólica que interiorizou e desenvolveu graças ao surrealismo e ao automatismo, foi um ser discreto, em permanente trânsito, capaz de fazer um equilíbrio complexo mas eficaz entre as suas tendências instintivas mais fundas e pessoais, os desejos irreprimíveis do seu Eu primitivo, e as imposições sociais exteriores. Assim porventura teria sido Francisco Leitão caso lhe houvessem dito ou mostrado que além da dicotomia entre a censura e o acto de satisfação imediata dos desejos primitivos e originais, os mais imperiosos nestes casos de absoluta insolubilidade do Eu arcaico, existia um terceiro termo, o da representação simbólica, capaz de conciliar com eficácia as duas vias.

 

25 Para uma História do Surrealismo em Portugal

A história do surrealismo em Portugal apresenta de forma nítida três pontos de crescimento: o primeiro, relativo ao seu nascimento, na década de quarenta, com arranque em 1942 e fecho em 1949, altura em que têm lugar em Lisboa duas exposições surrealistas; o segundo, relativo à década de cinquenta e sessenta, em que se forma uma nova geração surrealista, que nada conheceu dos anteriores sucessos; por fim, o terceiro, posterior à década de setenta, quando muitos dos protagonistas anteriores já não existem e a actividade surrealista ganha nova situação.

Cada um destes momentos teve os seus sucessos e desenvolvimentos. A história da década de quarenta é conhecida, com dois grupos surrealistas distintos, o primeiro tendo por venerável António Pedro, e o segundo tomando por centro o diálogo entre dois novos, Cesariny e Lisboa. Não quero insistir aqui no que diferenciou os dois grupos; o que se disse nas notas anteriores está muito perto de chegar. Só o grupo de Cesariny e Lisboa parece ter vivido a aventura surrealista com verdade intrínseca. Daí o irrisório, a roçar o nulo, de certas produções “surrealistas” que saíram do grupo de António Pedro, como esse Balanço das Actividades Surrealistas em Portugal (1949) de José-Augusto França. Daí ainda a força singular que cintila nas criações de Lisboa e de Cesariny.

Uma coisa é segura: o nascimento do surrealismo em Portugal beneficiou dos avanços do surrealismo francês, que durante e depois da guerra contra o nazismo se libertou do marxismo sufocante, se recentrou no que mais importava e se livrou de vez do que o podia confundir com doutrina religiosa institucional. Só um tal avanço justifica, para apenas falar de Breton, a importância capital e única na época e ainda hoje dum livro como A Arte Mágica (1957), resultado paciente dessa reelaboração de terceiro nível do surrealismo francês. Ao invés do que se tem dito, a década de quarenta, não obstante o esvaziamento mediático, ou por causa dele, significou para o surrealismo um passo em frente e representou para o aparecimento do surrealismo em Portugal um húmus de excepcional favor. A segunda metade da década de quarenta foi um meio muito mais favorável à formação do surrealismo português do que teria sido a década anterior, marcada pelo esforço, e pelo cansaço, da adesão do surrealismo ao materialismo dialéctico, com o consequente esquecimento aqui e ali daquilo que era específico ao movimento. Caso o surrealismo tivesse chegado a Portugal dez ou doze anos antes nunca porventura teria sido possível chegar à obra dum António Maria Lisboa; o horizonte do surrealismo português não teria ido além porventura de António Pedro, cujo tirocínio foi em grande parte produto da década de trinta. A poética de Lisboa, cuja situação no surrealismo internacional está ainda por entender, mas desde já se afigura de primeira linha, só no quadro dos passos que se seguiram à escrita de Prolegómenos e de Arcano 17 se compreende.

Na verdade a melhor forma de distinguir na década de quarenta os dois grupos surrealistas que surgiram em Portugal é tomar o grupo tutelado por Pedro como um agrupamento típico da década de trinta, incaracterístico e repetido, e ver no grupo de Cesariny e Lisboa um núcleo nascido do choque impressivo do terceiro manifesto e do leito novo que ele abriu. As alusões a Engels, o desprezo pelo esoterismo, que ele escreve com i, o assentimento em nota final a Noël Arnaud no caderno de França não deixam folga de dúvida sobre os horizontes limitados em que o grupo de Pedro se movia. Caso o surrealismo em Portugal não tivesse dado passo além do que se reporta no balancete de França e do que se fez na loja de Pedro, estaria ele na situação irrisória da quase nulidade. Nenhuma obra sua e nenhuma palavra dele teriam interesse para o surrealismo geral. O escoadouro natural seria, como aliás foi, em O’Neill e nos outros, a auto-negação e o silêncio, esse mesmo que Breton pôs nas “Efemérides Surrealistas” publicadas em 1955 como apêndices da edição desse ano dos manifestos, e onde não há qualquer alusão ao grupo de Pedro, o único de que o escritor gaulês tinha notícia, silêncio que se manteve ainda mais frio na reactualização de 1962.

Com a largueza e o adianto de aproximações que Cesariny e Lisboa moveram, colocando Portugal na ponta de avanço do que então se fazia em termos de surrealismo – e nesse ponto a obra de Lisboa é até premonitória do trabalho de Breton para o livro de 1957, e o que hoje se lamenta é que o francês, por razões variadas, em primeiro lugar de língua, não tenha podido aceder à obra do português – , o grupo de Pedro passa a nota de rodapé das actividades surrealistas em Portugal. E se assim é, ainda o deve ao facto de no início, Verão de 1947, esse grupo ter nascido grandemente do empenho de Cesariny e de só a ele e ao círculo dele (Moniz Pereira, António Domingues, Fernando de Azevedo, Vespeira e Alexandre O’Neill) dever existência.

Também a história do segundo momento do surrealismo português, a contar nas duas décadas seguintes, é conhecida. Cesariny dá dela abundância de materiais no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”, de 1973. Ao contrário da primeira década, que aqui trato em várias direcções, metendo mão na obra escrita ou plástica dalguns protagonistas, estas notas não entram nem pouco nem muito, isto com exclusão das rápidas alusões ao abjeccionismo a propósito do final do segundo manifesto de Breton, pela criação desse segundo momento do surrealismo em Portugal, que Cesariny chama nos materiais de 1973, os grupos dos cafés Royal e Gelo, ambos em Lisboa, dando-os por contaminados de existencialismo, o que não surpreende em época de irradiação máxima de Sartre, a caminho do Nobel (1964). Não se nega o enxerto, que levou até à deserção duns tantos para o lado da literatura engajada ou militante, num fôlego de segunda ou terceira geração do neo-realismo indígena, mas ainda sobra um resto de alta qualidade.

Para as bandas do surrealismo conto o seguinte: uma revista com três números, Pirâmide (1959-60), um poeta fulgurante da prosa, Ernesto Sampaio (1935-2001), em que alguns quiseram mesmo ver o mais denso e ágil teorizador do surrealismo português, e um outro não menos ardente do verso, Herberto Hélder (1930). Junte-se um desenhista, João Rodrigues (1936-1967), cheio de verve e sainete; meta-se um pintor, D’Assumpção (1926-1969), avaliado já por superior a Vieira da Silva, e ponha-se lá a deriva do abjeccionismo com a parte mais importante da obra escrita de Luiz Pacheco (1925-2008). E ainda fica por tocar alguma coisa, ou até muita, o bastante para ser pepita ou se entender que se tem aqui, no geral desta constelação, o mais largo alfobre poético desses anos (António José Forte, Virgílio Martinho, José Sebag, João Vieira, Manuel de Castro, José Manuel Pressler, Benjamim Marques, António Barahona).

Depois da última fronteira que o surrealismo conquistara na língua em 1953, ano em que foi dado à estampa Isso Ontem Único e o manifesto colectivo Afixação Proibida, com a obra toda de Lisboa conhecida, não se pode tomar por extemporânea a riqueza poética que se topa na segunda metade da década e na primeira da seguinte no seio desses grupos, a coincidir com a edição de cinco livros de alto voo de Cesariny, que muito devem ter ajudado essa geração a meter no bolso a valiosa pepita que lograram, Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), Alguns Mitos Maiores (1958), Nobilíssima Visão (1959) e Planisfério e Outros Poemas (1961), este do mesmo ano de Poesia (1944-1955), o seu primeiro labor antológico, com admirável intervenção plástica de João Rodrigues.

Sobre o abjeccionismo quero ainda dar uma palavra. Paga a pena ver a sua árvore genealógica e perceber a sua raiz. Já se sabe que o movimento é o resultado da fusão que aconteceu na segunda metade da década de cinquenta no seio dos grupos que frequentaram o Royal e o Gelo e se nutriram da herança do grupo dissidente da década anterior. Também se sabe que quem lhe deu voz pública foi Pedro Oom, que vinha como Cesariny da década anterior. Isso aconteceu na entrevista dada em 1962 ao Jornal de Letras e Artes (6 de Março). É o momento em que a pergunta final de Erro Próprio de António Maria Lisboa é vascolejada em que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos e a aspiração à síntese, tão da estima de Breton, atraído pela subida aos picos do sublime, é substituída por uma saraivada chã de relâmpagos fatais (mesmo idealmente, duas proposições antagónicas não se podem fundir sem que logo nasça uma proposição contrária a essa síntese). Cesariny, não obstante as resistências posteriores, veja-se por exemplo o que ele diz em notas da edição de 1977 de António Maria Lisboa (p. 390 e 391), aceitou na época este novo broto, abrindo-lhe sem receio a porta na antologia imediatamente posterior, SURREAL-ABJECCION-ismo (1963), uma das últimas que fez, se não a derradeira. Mais tarde dirá assim, numa rasura definitiva do caso: aqui e agora e sempre em todo o lado o surrealismo não tem nada a ver com o abjeccionismo ou só terão de comum o haverem-se conhecido na cadeia, onde vai tanta gente por tão diversos cantares e até só por recreio, visita de estudo e turismo (…). (in As Mãos na Água e a Cabeça no Mar, 1985, p. 239)

Metendo na conta a nota de Cesariny da edição de 1977, fica-se a saber que a abjecção passara já pelo grupo dissidente de 1949 e que nessa época, a do poema “Um Ontem Cão”, ou até antes, Oom repetia, sem que Cesariny fosse ao entusiasmo, um preceito tirado de poeta francês (c’est au fond de l’abjeccion que la pureté attend son œuvre), e Lisboa dava corpo a algumas dessas preocupações no manifesto Erro Próprio, talvez na pergunta final, que serviria depois à torção de 1962 (p. 390). Oom levou a abjecção para os grupos seguintes, Royal e Gelo, dando-lhe saída pública e obtendo largo favor junto dos novos [João Rodrigues, por exemplo, em entrevista ao Jornal de Artes e Letras (15-9-1965), declara-se abjeccionista e não surrealista], se bem que o parto da ideia remontasse ao grupo de Cesariny e Lisboa, em especial à conversa nele entre Petrus (nome de guerra de Pedro Oom) e Lisboa, troca de resto anterior à formação do grupo, pois Lisboa e Oom conheciam-se desde 1944.

Que António Maria Lisboa sobrevoou a abjecção, que a incorporou até no seu discurso, vinda de si ou de Oom, nenhuma dúvida, a ponto de se poder dizer que é nos textos dele que está, pelo menos na escrita, a raiz de tudo. Basta ler com atenção um texto de Isso Ontem Único, “Alguns Personagens”, para se provar a presença. Em dado passo diz-se: É no poeta visível a inépcia, que é abjecção, de si perante e numa vida a que foi chegado. O mundo social, o mundo como tal organizado, é o obstáculo que o leva nos desencontros sucessivos com a felicidade e na luta contra ele à mais penetrante percepção do mundo autêntico – longínquo aqui agora e inumano! (1977: 184) A abjecção é pois a falta de aptidão do poeta para o mundo social. Doutro modo dito: a abjecção é o retrato do Eu social do poeta, pouco trabalhado, pouco destro, em tropeções constantes ou paralisias imobilizadoras, por contraste com a pesquisa viva do Eu arcaico, que o leva, pela via da construção simbólica, não pela do instinto, à percepção do mundo autêntico e à vida activíssima do espírito.

Logo o poeta surrealista está obrigado a viver a abjecção, mas apenas como contraponto exterior do seu trabalho interior. Trata-se duma consequência, não duma realidade procurada, e duma consequência nem sequer tão sufocante e absorvente que não possa ser alijada e até integrada na viagem do poeta em direcção do que mais lhe importa, a fonte pura dos desejos e das imagens que jorra na terra dos arquétipos. Um óbolo irreversível nesta consequência: o poeta – não o que faz versos, mas o verdadeiro poeta, aquele que se preocupa em exercitar no dia-a-dia a ginástica de Jarry, dormir acordado e viver responsavelmente o sonho – não tem salvação social possível, e este é aliás o ajuste final do texto de Isso Ontem Único. Adormecer e ficar acordado, assistir ao espectáculo do interior, anotar as espécies da alma, não é compatível com as metas invasoras da dita racionalidade social, as que são avançadas como sendo hoje de concorrência e de optimização, sempre mercantil, entenda-se, com que a sociedade regula, normaliza, civiliza e socializa à força, sem dar saída ou atenção mínima à construção simbólica dos conteúdos arquetípicos, o Eu dos seus membros, o que leva depois aos violentíssimos desajustes dos Reis Ghobes.

Na mesma direcção vai o uso da palavra, ou do neologismo (abjeccional) que por esta época e no seguimento da sua conversa com Petrus Lisboa cria a partir do vocábulo em uso, desta vez sob forma de advérbio de modo, na folha póstuma, Aviso a Tempo por Causa do Tempo, publicada por Luiz Pacheco em 1956 e republicada no primeiro número da revista Pirâmide. Cito: que sendo individualmente e portanto abjeccionalmente desligados das normas convencionais (…). (1977: 110) A individualidade de que aqui fala Lisboa é o Eu arcaico que o poeta tem a obrigação de revelar e conhecer, por aí se afastando do Eu social, que é vivido de forma abjecta, quer dizer, de modo desinteressado e inepto, sem jeito para o negócio e para a vida dita prática.

A consciência que Lisboa tem da inaptidão social que o poeta desenvolve no seu trabalho de mineração da alma – e só este labor por dentro, de olhos fechados, justifica a inabilidade para o lado de fora, o da sociedade – é de tal ordem que não foi preciso esperar pela segunda metade da década seguinte para aparecer cunhado, e até em maiúsculas, um sistema em torno da abjecção. A palavra abjeccionismo, que tanta fortuna virá a ter na primeira década de sessenta, com a obra de Luiz Pacheco, o tratamento de Oom e a declaração de João Rodrigues, já existe em António Maria Lisboa. Leia-se o seguinte passo da carta escrita em Abril de 1950 a Cesariny: Como dizia no meu Manifesto Erro Próprio por outras palavras: não se tratava em mim (em nós) de negar o Surrealismo e os seus princípios, mas ilibava-me eu de tomar lugar na querela do eu sou, tu não és. Serei ou não surrealista de hoje para o futuro com a minha METACIÊNCIA e o NOSSO ABJECCIONISMO – eu não me pronunciarei sobre tal. (1977: 279)

Metaciência e abjeccionismo, quer dizer, real autêntico que o poeta visita com o Eu arcaico e incapacidade de se adaptar a uma sociedade que pede, em nome de novas orientações de optimização mercantil, a determinar o interdito, a decapitação desse mesmo Eu e a formação duma nova e castrada entidade de consciência, o Eu social ou civilizado. Em Lisboa real autêntico e real abjecto são pois como interior e exterior, verso e reverso do poeta: por dentro, com o olho aceso da imaginação, vive a experiência activa da consciência a sondar os mundos da alma; por fora, com os olhos sensíveis meio adormecidos, a paralisia do corpo, a catalepsia dos sentidos físicos, está a inabilidade do social tal como os valores da acumulação de riqueza o entendem. Isto quer dizer que no momento do seu nascimento, só o contacto com a terra dos arquétipos justifica o existir, para o exterior, do abjeccionismo. Deixo este excurso em torno da palavra para que se perceba o sentido original do vocábulo no momento do seu nascimento e se possa assim ter no porvir um termo seguro para aferir da sua evolução semântica posterior até à rasura final de Cesariny.

Resta o terceiro momento da história do surrealismo em Portugal, que abre na década de setenta – a derradeira manifestação dos grupos do Royal e do Gelo, paralisados pelo desaparecimento físico dalguns dos seus mais valiosos membros (José Sebag, José Manuel Pressler, João Rodrigues, Manuel de Castro e D’Assumpção), é a publicação do número único da revista Grifo (1970) – e vai até à morte de Cesariny. A história deste terceiro momento está toda por fazer. Deixo aqui alguns dados que poderão ser aproveitados de futuro num apanhado geral do período. O ponto de partida desse momento, distante o bastante para se ter nele alguma mão, situa-se na actividade editorial que na primeira metade da década de setenta Cesariny e Seixas promoveram.

Que actividade foi essa? Em 1971 a edição de Reimpressos Cinco Textos de Surrealistas em Português, logo seguida no ano seguinte, 1972, de Aforismos de Teixeira de Pascoaes e, em 1973, dum terceiro caderno, Contribuição ao registo de nascimento existência e extinção do grupo surrealista de Lisboa com uma carta acrílica do mês de Agosto de mil novecentos e 66 / número da besta / editado em trezentos exemplares por mário cesariny e cruzeiro seixas no quinquagésimo aniversário da recusa de duchamp em terminar o grande vidro e no do nascimento sempre possível ainda que sempre improvável de sete novos justos ignorados, que teve ainda reedição, no ano seguinte, o da revolução dos cravos, com referência ao 50º Aniversário do Primeiro Manifesto Surrealista. Esta actividade continuada marca o ponto de arranque da terceira fase da actividade surrealista em Portugal, muito mais centrada nos sobreviventes do grupo dissidente da década de quarenta, onde se coara e enxugara a pedra filosofal do movimento em Portugal.

Que novidade há, se novidade há, nesse terceiro momento? Repare-se para já na natureza das publicações feitas. O primeiro caderno, dado à estampa logo depois do número único de Grifo, e daí o salto dum segundo para um terceiro tempo, tem o seguinte material: “A Afixação Proibida”, “Aviso a Tempo por causa do Tempo”, “Surrealismo e Manipulação”, “Para Bem Esclarecer as Gentes que Ainda Estão à Espera, os Signatários vêm Informar que:”, “Não há Morte na Morte de André Breton” “Para Bem Esclarecer as Gentes que Continuam à Espera, os Signatários vêm Informar que:”. Só os dois últimos textos são recentes; mesmo assim o derradeiro em glosa de folha colectiva muito anterior. Todos os outros são textos da década de quarenta, início de cinquenta, fruto da actividade do grupo dissidente. Está lá mesmo o ponto de arranque do grupo, o cadáver esquisito A Afixação Proibida, de 1949, que esteve para se chamar “A Única Razão Ardente” (1977: 273). O terceiro caderno, com duas edições, uma delas no cinquentenário do manifesto de 1924, tem material epistolar também da década de quarenta para se palpar o húmus onde rebentou o chamado grupo surrealista de Lisboa, que depois ficou nas mãos de Pedro e França mas que nada tiveram a ver com a sua criação. O terceiro caderno contém uma recolha de fragmentos de Teixeira de Pascoaes feita e anotada por Cesariny.

De tudo isto, o que se tira? Que Cesariny e Seixas estão preocupados com a história do movimento surrealista português e que tal preocupação incide no que se passou na década fundadora. Daí a necessidade de reproduzirem uma avalanche de materiais que possam esclarecer, ou passar ao crivo, o passado. Esta inquietação com a história do surrealismo entende-se; Breton morrera já, o grupo surrealista de Paris dissolvera-se, as referências internacionais (Jean-Louis Bédouin, 1961) e nacionais ao surrealismo em Portugal, um ser já respeitável com mais dum quarto de século de vida, eram confusas, parciais, erradas. Geravam-se estereótipos perigosos no campo da história do surrealismo em Portugal que era urgente desfazer; caso não, a memória daquele arriscava-se a ficar voltada do avesso. Só tais receios e práticas justificam a publicação da correspondência do ano de 1947, que põe à mostra o terreno cru onde brotou o surrealismo em lusas ruas. Soma-se no mesmo período a feitura do texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”, obra maior de Cesariny, dada à estampa por Edouard Jaguer na revista Phases (1973), e que é a principal peça historiográfica do movimento em Portugal.

Mas a actividade editorial de Seixas e Cesariny na primeira metade da década de setenta não esteve apenas virada para a memória do movimento. Há uma excepção de monta: a publicação dos fragmentos de Teixeira de Pascoaes. Estou agora em condições de responder à pergunta que ficou atrás. Que novidade há no terceiro momento do surrealismo em Portugal, a coincidir com a urgência de Cesariny se dedicar à sua história? A única novidade, a única excepção assinalável à pressão historiográfica do período é o lugar dado a Teixeira de Pascoaes. Paga pois a pena indagar um pouco melhor desta novidade.

A primeira questão pode e deve ser: é o autor de Marános um recém-chegado ao surrealismo em Portugal? Não. Cesariny leu com entusiasmo no final da década de quarenta o poema Regresso ao Paraíso e foi com Eduardo de Oliveira ouvir em Março de 1950 uma comunicação de Teixeira de Pascoaes ao cineteatro de Amarante sobre Guerra Junqueiro, a que se seguiu visita à casa de Pascoaes, em São João de Gatão. Sabe-se ainda por carta de António Maria Lisboa (Março de 1950; 1977: 265) que Cesariny deu a ler o poema a Lisboa, que logo aderiu, lamentando mesmo não ter ocasião de conhecer o autor, personalidade que me é grata e que bastante admiro. O autor de Marános não é pois em 1972 um recém-chegado ao surrealismo em português. Desde o início que ele andava na boca dos protagonistas da aventura surrealista portuguesa. Isto chega para invalidar parte da tese de Osvaldo Manuel Silvestre sobre o pai tardio de Cesariny. Afinal os surrealistas liam Pascoaes com entusiasmo desde o primeiro momento; a apoteose ulterior do poeta no panteão surrealista português decorre deste primeiro circuito, não de qualquer premeditação, visando maior glória literária dos opinantes. E vai por aí nova impugnação da tese de Osvaldo Manuel Silvestre. Os louros dos jogos florais, com as angústias do Eu social não subir ao pódio – também dá dizer ao cânone – é ideia inadequada a Cesariny; ela faz parte da cabeça de quem tem de correr à cátedra, mas não dum poeta surrealista, que volta costas à abjecção do social, como Cesariny voltou e revoltou, tocando pelo menos dois sistemas prisionais, o de Salazar e o de De Gaulle, para se dedicar em exclusivo, ao modo dele, à vida de dentro.

Ler com agrado Pascoaes não significou todavia integrar de imediato o poeta na memória colectiva do surrealismo português. Passando a crivo fino os textos de 1949 e 1950, quer de Lisboa, quer de Cesariny, quer colectivos, nunca lá se topa com o nome de Teixeira de Pascoaes. Comparecem Gomes Leal, Raul Brandão, Fernando Pessoa, Mário Sá-Carneiro, Almada Negreiros, mas não Teixeira de Pascoaes. Será preciso esperar pelo início da década de sessenta, primeiro no prefácio à tradução de Rimbaud (1960), depois em entrevista ao Jornal de Letras e Artes (29-8-1962), para encontrar Cesariny a falar de Teixeira de Pascoaes, o de Regresso ao Paraíso, dando-lhe no segundo momento um lugar de quase isolado. Assinale-se ainda no final dessa década uma pasta dedicada ao poeta do Marão no Jornal de Letras e Artes (Maio de 1968), da responsabilidade de Cesariny, que revela já um convívio por dentro com o espólio de Teixeira de Pascoaes. De qualquer modo nada disto representa ainda a apoteose de Pascoaes junto do surrealismo português. Mesmo com a vida de quase magnífico que Cesariny lhe dá na entrevista de 1962, mesmo com o destaque capital da pasta de 1968, ainda se fica a um palmo de pulso da recepção final que o autor de Marános terá junto dos surrealistas – Fernando Alves dos Santos por exemplo só dedicou em vida de sessenta e quatro anos poemas a dois poetas: primeiro António Maria Lisboa, depois Teixeira de Pascoaes. O palmo, mesmo de pulso, não chega porém para o pai tardio; para tal posteridade era preciso uma légua da Póvoa, se não um continente. E tal ângulo não existe, pois desde 1950 que Pascoaes andava, se bem que discretamente, como quem não quer a coisa, a fazer lugar junto do surrealismo em Portugal e não apenas de Cesariny.

A consagração de Pascoaes na memória do surrealismo português chegará pois em força no ano de 1972, primeiro com o caderno dos aforismos, publicado em Junho por Cesariny e Seixas, e depois, no final desse mesmo ano, com uma antologia maior, de centenas de páginas, Poesia de Teixeira de Pascoaes, cobrindo toda a obra do poeta, incluindo pictórica, que pela primeira vez apareceu em livro, e que mostra no domínio do convívio com o espólio de Pascoaes um destríssimo Cesariny. Basta a colectânea magna de 1972 para se pôr o autor de Pena Capital ao lado do melhor editor do poeta do Marão, Jacinto do Prado Coelho. Aos dois momentos, acrescento um terceiro, de valor extremo: aquele em que Cesariny, de forma sibilina e cortante, no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português” (1973), deixa cair o fragmento (que levou ao desnorte do pai tardio): Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa. Dedicou-se neste estudo toda uma nota à leitura desta frase, trocando por miúdos as palavras oraculares dela. Remeto pois o leitor para ela, nota, e passo.

Se o apoteótico momento de Pascoaes junto do surrealismo português marca a entrada deste numa fase nova, a da maturidade final, tocada também pela necessidade de revisitar a história do passado fundacional, conforme e esperado é que tal idade se desenrole em muitos instantes, todavia não exclusivos, sob o signo de Pascoaes. Em Cesariny, em Cruzeiro Seixas, em Fernando Alves dos Santos segue-se nesse período o rastro do poeta de Regresso ao Paraíso, quer através de contributos editoriais de peso, quer por meio de homenagens pictóricas e poéticas, algumas à espera ainda de leitura. A estes ainda se pode juntar Natália Correia, que chegou ao surrealismo com Dimensão Encontrada, 1957, e tocou o tecto com Auto da Feiticeira Cotovia, 1959, tudo em época de café Gelo e pela mão do editor histórico do surrealismo português, Luiz Pacheco de seu título. Há ainda a assinalar neste segmento próprio a Pascoaes, e no ascendente que ele toma, a sátira anti-pessoana de Cesariny, que dará as edições epidémicas de Virgem Negra (1989; 1996), uma anti-mensagem em que só o lobo do Marão escapa à algazarra escolástico-cartesiana da cultura do Ocidente.

Tal como nos momentos anteriores, também este braço final do surrealismo em Portugal se desdobrou em novos brotos, diversificando as acções e agregando a si gente nova. A mais fecunda ramada neste campo foi a de Manuel Hermínio Monteiro (1952-2001), que nasceu no distrito de Vila Real, recebendo à nascença os raios de bronze do Marão, tudo no ano da morte de Teixeira de Pascoaes e a poucos meses da passagem de António Maria Lisboa. Vinha ele ao mundo, publicava Pascoaes as suas derradeiras obras em vida e estreava-se Lisboa numa pobre e desconhecida tipografia de tipos móveis e manuais. Chegava ele aos vinte anos, em 1972, e dava Cesariny a lume com a colaboração de Cruzeiro Seixas os aforismos de Pascoaes e logo depois, no mesmo ano, a sós, a antologia magna. Este garoto tinha com ele uma estrelinha portátil que o habilitava a pedir para si um papel de primeiro plano nesta derradeira fase do surrealismo. E não tardou a subir ao tablado para o desempenhar com uma fortuna de oiro, que só a sua morte precoce veio tingir de sombra, ou talvez não, que a morte é tirocínio e nunca má sorte. Tomou em mãos a edição dos dois irmãos, António Maria Lisboa e Teixeira de Pascoaes, a reedição de 1977 do primeiro é sua e do segundo pôs em livro milhares de páginas, por aqui se mostrando o mais generoso herdeiro desta terceira idade e um dos que por muitas razões, da edição à criação poética, que Cesariny prezava, pois antologiou com gosto poemas dele, merece ter o nome escrito na história do surrealismo em Portugal. A sua actividade editorial foi tão significativa para o movimento como outrora fora a de Luiz Pacheco, a de Bruno da Ponte, a de Victor Silva Tavares, ou mesmo a de Cesariny, só que desta vez, em sítio de nova extensão, juntando-lhe em força Teixeira de Pascoaes, o que nenhum outro fizera.

Os herdeiros do surrealismo português na terceira fase não se limitam a Manuel Hermínio Monteiro. Outros há. Mas de todos, Hermínio foi aquele que se antecipou e o que mais cedo entendeu que a partir de 1972 os destinos do surrealismo português passavam pelos refúgios montanheses de Pascoaes e estes pela admirável maravilha daqueles. E Hermínio, através duma acção editorial conduzida com mão segura de estratega, foi porventura quem dos novos mais extensamente contribuiu para soldar, ao menos de forma visível, os dois ramos, surrealismo e Pascoaes, que antes de 1972 andavam soltos, desarticulados, cada um pelo seu lado.

 

26 (Estudar) Hoje o Surrealismo

Que resta hoje do surrealismo e em especial do surrealismo português? Eis por certo uma pergunta que o leitor já se colocou a si mesmo no decorrer destas notas. Não me interessa tanto por ora dar uma resposta à pergunta mas muito mais observá-la. A resposta depende porventura dessa observação. Colocar assim a pergunta é ver o surrealismo em Portugal como quem vê uma fogueira. Nasceu, ardeu, morreu. Não posso negar essa dimensão, isto sem querer determinar de imediato se ainda arde ou se já morreu. No exterior, no domínio da realidade sensível, todo o fogo precisa de combustível para arder e todo ele se desmancha ou esfria em cinza no momento em que lhe falta a lenha. Logo, no plano da matéria física, qualquer labareda que um dia se levanta, um dia se há-de extinguir. Mesmo o Sol, fonte de toda a luz, origem de todo o calor, fogo do fogo, se apagará sem remédio no momento em que as reacções no seu núcleo deixem de ter à disposição o hidrogénio necessário, num processo que produz por segundo milhões de toneladas de energia.

Que o surrealismo foi em Portugal uma fogueira, não tenho dúvida. É fácil mesmo determinar o momento em que alguém juntou os primeiros gravetos para lhe chegar lume. Estas notas focaram por várias vezes esse momento e assistiram ao vivo às primeiras labaredas que subiram. Recordo o livrinho de António Pedro de 1942, o diálogo entre Cesariny, O’Neill, António Domingues e Moniz Pereira, na Primavera Verão de 1947, que levou à formação dum primeiro grupo surrealista em Lisboa, e a formação dum novo grupo, com António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, Risques Pereira, Fernando Alves dos Santos, Carlos Eurico da Costa e Mário Henrique Leiria, depois de Cesariny no Verão de 1948 bater com a porta ao grupo anterior. Podia ainda ter juntado a pintura de António Dacosta e a de Cândido Costa Pinto, recusada esta na exposição de Paris de 1947 e que me mereceu rápida alusão, talvez não de todo compreensiva.

Nos anos seguintes a fogueira continuou a arder com aquilo que uns tantos mais novos lá entenderam pôr. São as achas dos cafés Royal e Gelo, com o abjeccionismo, a arder já em António Maria Lisboa, porventura a mais alta labareda desta fogueira. E mesmo depois do esgotamento do novo combustível, o lume não parou, pois dois dos antigos, Cruzeiro Seixas e Cesariny, não deixaram; tinham ainda muita alma para dar ao fogo. Para a história desse período deixei atrás meia dúzia de parágrafos e um nome. Podia ter somado: Mário Botas e Raul Perez, próximos estes de Seixas, como Hermínio de Cesariny. Cesariny partiu de vez em Novembro de 2006 e Seixas, com noventa e dois anos, está retirado no norte do país. A fogueira extinguiu-se? Embora. Não é isso que aqui importa. E se não se apagou ainda, um dia se irá de vez. Aceite-se pois o seu fim à vista, ou já ou mais tarde.

Sobra porém dizer duas coisas. A primeira é que tenho estado a trabalhar nos parágrafos desta nota com a realidade exterior, com o fogo da matéria, com as combustões da História. Ora o surrealismo, se entra no curso dos factos, se joga ou jogou o jogo da realidade, não encontra aí o seu nutriente principal nem o seu motivo de viver. Existir foi para ele viver na História; viver é existir noutro lugar. A História é apenas o plano da realidade sensível, enquanto o outro lugar é o nível da realidade interior À estreiteza do sensível o surrealismo disse bom dia e voltou costas para se poder dedicar, com outro olho, à exploração das terras de dentro. A fogueira que aí arde não tem princípio nem fim, está fora do tempo e do espaço, desconhece o movimento, não se alimenta de matéria inflamável. O fogo é apenas analógico; trata-se duma imagem, com todo o poder duma imagem, mas não duma realidade física, tão-só física. A História que aí sucede não conhece a racionalidade da que decorre no exterior dos factos físicos e por isso tudo o que acontece nesse mundo não começa nem acaba. O arquétipo dos arquétipos é o princípio imprincipiável. Logo neste lugar o fogo do surrealismo é outro. Não nasce, não arde, não cresce, não esmorece, não finda, não morre. É imagem e analogia. Dispõe pois de todos os poderes mágicos. É lume e água, no mesmo momento

Isto quer dizer que o surrealismo, pela demanda com que justificou a sua vida, e até pelas conquistas que depois legitimaram a sua procura, soube encontrar um lugar para além ou para aquém da História, um ponto que vive fora da lógica desta, o nascer, o crescer e o morrer. Só isso cobre que se vá buscar um pintor do século XV, se tome o seu trabalho e se contemplem lá, com cinco séculos de antecedência, todas as premissas vivas do movimento. Estou a falar de Jerónimo Bosch. E o mesmo se dirá para a arte rupestre do final do paleolítico, esta com vinte ou trinta mil de anos de antecipação sobre a entrada triunfal do carro surrealista na História. Não foi por acidente que Breton dedicou parte dos seus últimos anos a estudar e a valorizar a arte pré-civilizacional, dando-lhe destaque no seu testamento teórico, L’Art Magique. Há um surrealismo eterno, que atravessa toda a história do homem, de ponta a ponta, e irá com ele para o infinito, donde afinal chegou, perpetuando-se ou renovando-se em novas e inimagináveis metamorfoses, porque aquilo que é próprio do surrealismo, a sua alma sem morte, faz parte da fonte original da vida, é a curva da voluta, o molde sem forma, por onde correm e deslizam as formas criadas ou a criar.

Uma segunda e última coisa. Cesariny e Seixas abriram a década de setenta do século XX a pedir atenção para a História do surrealismo em Portugal, neste caso a História exterior, a que vive das matérias inflamáveis e do seu esgotamento, a que dá fogo e cinza. Deram a lume os documentos que lhe pareciam necessários para que se pudesse dar sentido e construção à sua cronologia. Este trabalho continua por fazer e a História do surrealismo em Portugal, com fecho de portas ou não, tem muito ainda por desbravar. Do mesmo modo se dirá que a hermenêutica, a leitura compreensiva dos traços auditivos e visuais que as várias gerações do surrealismo português deixaram em legado está quase toda ela por fazer.

Pouco ou nada se sabe da poesia de António Maria Lisboa, que continua a ser um viveiro infindável de símbolos à espera de leitura analítica e de decifração. A poesia de Mário Cesariny não está em melhor situação; para além das chãs banalidades que sobre ela correm, como essa rábula do realismo, e que um trabalho sério terá de dispensar por confusão, nada sobre ela se conhece. Basta dizer que este poeta foi com os neologismos do livro de 1958, Alguns Mitos Maiores, um dos principais renovadores da língua na segunda metade do século XX. Onde os estudos que dêem conta do caso e o desenvolvam? Onde os glossários que os iluminem? E se a poesia de António Maria Lisboa e de Mário Cesariny se encontra neste estado lastimável que não dizer do trabalho poético dos seus companheiros do grupo dissidente e que são hoje pouco mais do que anónimos? Refiro-me a Carlos Eurico da Costa e a Fernando Alves dos Santos, que bem merecem a atenção dos intérpretes. Deixo adrede de fora Mário Henrique Leiria, pois o caso dele, pela singularidade e extensão da obra, é ainda mais grave e escandaloso do que o destes dois. O mesmo se adiantará do riquíssimo e ocluso universo simbólico de Cruzeiro Seixas, em que cada imagem tem a força, a interioridade, o absurdo duma representação onírica elaborada a milhares de anos-luz da consciência do Eu social.

Daqui se tira que um vastíssimo campo de trabalho está ao alcance daqueles que hoje se interessam pelo surrealismo em Portugal. Por um lado é preciso construir a História do movimento entre nós, o que está longe de estar feito, mesmo para os dois momentos principais, o da fundação e o da primeira evolução, com os grupos mais novos do Royal e do Gelo, e depois, por outro, com não menor paciência e atenção, é necessário ir à criação de cada um dos intervenientes, abstraindo de tudo o resto, para estudar e decifrar os hieróglifos. No primeiro campo trabalhe-se numa perspectiva de fundo, geral, do princípio ao fim, se fim há já, o que não é líquido, mas só um historiador probo o dirá, recolhendo os testemunhos, exumando os documentos e com eles elaborando uma cronologia o mais completa e imparcial possível, um pouco ao modo do que Breton fez com as “Efemérides Surrealistas”, primeiro para o período de 1916-1955 e depois para o de 1955-1962. Elaborar essas tábuas só com factos objectivos, está ao alcance de qualquer um que se interesse pelo surrealismo em Portugal e tenha dedo para a investigação documental. Ainda assim essas tábuas terão valor muito meritório no estudo e na apreciação do movimento. No segundo campo, surgirão por um lado as notas de crítica textual, fruto do convívio com a letra dos textos, e que deverão levar num futuro próximo a edições críticas de Cesariny e de Lisboa, que estão à espera dela, e aparecerão por outro os estudos interpretativos, a decifração analítica da construção simbólica, a leitura compreensiva dos hieróglifos visuais e auditivos que constituem o riquíssimo legado poético do movimento.

Um aviso final sobre este segundo campo, o da leitura hermenêutica dos traços simbólicos. Distinga-se para já: uma coisa é inserir na História da Literatura ou da Arte em Portugal as criações pictóricas e poéticas do surrealismo português, outra é fazer a sua leitura compreensiva, aquilo que aqui chamo a leitura hermenêutica dos traços simbólicos, e que é aquilo que mais me importa. Deixo sem aflições a primeira empreitada aos críticos, jurados das olimpíadas da poesia e da pintura; mais tarde ou mais cedo tudo isso será revisto ou reconstruído, a partir de novas premissas ou de novos dados. A segunda tarefa é mais exigente, muito mais crucial, mas também muito mais difícil. O que se pretende com ela? Viver por dentro, se assim se pode dizer, as imagens, auditivas e visuais, verbais ou picturais, que o surrealismo deixou em legado. Que quero dizer com este viver por dentro? Convívio, compreensão e contemplação. Convívio, pois não há contemplação sem ele; entendimento, já que também não há convívio sem ele. Por um lado decifração dos símbolos tal como a análise freudiana a começou por entender; por outro mais do que isso. Não basta pegar num hieróglifo e fazer de Champollion; é preciso passar para o lado de dentro do traço, encarnando-o para o perceber. Para se ser Champollion é necessário, nem que seja por um curto instante, ser egípcio. Ser é conhecer. A contemplação é pois essencial neste segundo plano; é através dela que se convive e que se compreende.

A tentação que aqui se pode intrometer é a da avaliação. Contemplar pode também ser avaliar. Pior: contemplar pode ser apenas avaliar. O crivo judicativo que aqui se intromete é um horizonte de ordem distinta. Enquanto no caso do crivo judicativo o intérprete não necessita de encarnar o traço, permanecendo do lado de fora, no caso do curso hermenêutico, o intérprete precisa de entrar no traço, para se fundir com ele. Conhecer é, neste caso, ser por dentro. O crivo judicativo é útil ao trabalho de inserção das obras na História literária ou artística, ou até à apreciação do estético, mas não pode ser mais do que uma tentação dispensável no caso de se pretender caminhar para dentro dos traços simbólicos. Um tal critério impede o intérprete de viver por dentro o símbolo, deixa-o paralisado num patamar a grande distância do miolo que importa conhecer, desvia-o do curso hermenêutico, dá-lhe a ilusão de ter cumprido a tarefa. Há pois que resistir à tentação judicativa, deixando-a de lado, caso se queira avançar no domínio mais fundo do entendimento. O juízo, é inevitável, até se pode intrometer aqui ou ali; não pode, em caso algum, é manietar as mãos do leitor, ilaqueando-lhe os movimentos e inutilizando-o para qualquer outra tarefa.

A hermenêutica dos traços que o surrealismo deixou, o estudo por dentro desses traços, é hoje uma forma colectiva, à disposição de todos, de continuar o movimento. Não é possível exercitar a contemplação dos símbolos, nem deixar para trás o canto da sereia do juízo, sem encontrar o órgão visionário da alma. A poderosa ocular de António Maria Lisboa, o ossóptico, tanto pode ser construída e afinada através da prática criativa como do estudo cogitativo. É necessário ter no bolso uma ocular psíquica para poder fazer uma especulação final em torno dos símbolos surrealistas. Fazer uma hermenêutica do oculto é estar dentro ou por dentro dos processos de funcionamento da segunda consciência, é saber transitar do plano literal ao plano simbólico, da coisa à imagem. Ora só se conhecem em pleno tais processos de acção depois de os viver em consciência, seja por conhecimento directo, seja por reconhecimento daquilo que já se viveu, mas sempre, em ambos os casos, por participação directa na experiência. Conhecer ou reconhecer o transe da realidade material à realidade dos arquétipos é o clique inicial sem o qual não se pode conceber a especulação que aqui se propõe. A pluralidade dos mundos é que abre caminho à pluralidade dos sentidos.

Entende-se agora melhor porque motivo estudar o surrealismo é encontrar o órgão visionário da alma. O estudo do surrealismo é irredutível quer às abstracções nocionais, na mesma medida em que a vida da alma não pode ser subsumida pela da inteligência, quer às materializações empíricas, já que a realidade sensorial tem na aparência exterior autonomia plena. Num tal estudo não chegam, mesmo prestando aqui ou ali algum serviço, nem as percepções sensíveis nem os conceitos inteligíveis. O intérprete precisa duma terceira via cognitiva. Trata-se do órgão visionário da alma, do olho da imaginação, do olho interior, do ossóptico, sem o qual nunca haverá estudo pleno das imagens do ou no surrealismo. Para captar a significação destas é preciso despertar a imaginação e acender o olho de dentro, o único capaz de iluminar e investigar o espaço onde latejam os arquétipos. A imagem no surrealismo deve ser tratada com uma dignidade tal que só através doutras imagens, com igual força, se assim posso dizer, será possível dizê-la. Estudar hoje o surrealismo é assim a melhor resposta ao desnorte da imagem na sociedade actual, onde as representações, por força da banalização mercantilista, perderam o sangue e o vigor que outrora tiveram. Essa vitalidade foi conquistada no momento do seu nascimento com a arte rupestre, reforçou-se com o xamanismo e as primeiras culturas agrícolas de tipo matriarcal, sobreviveu ao aparecimento das grandes civilizações comerciais, esteve viva e cumpriu de forma geral a sua função até ao momento em que a indústria cultural se aproveitou em seu benefício dela. Está agora titubeante e estonteada, com ar exangue e magreza cadavérica. O beijo da indústria foi-lhe fatal e vampirizou-lhe a seiva. Não assusta nem entusiasma já ninguém; é uma brincadeira hollywoodesca, displicente e pueril. Só no surrealismo, só no estudo deste, a vitalidade original da imagem, a sua chama inicial, hoje mortiça e quase apagada, voltam a ter uma hipótese séria de ressurreição.

Também agora se percebe melhor porque razão, numa altura em que todos se empenham em repetir que o surrealismo saiu de cena há muito, abandonando para sempre o palco da História, se encontra aqui, no mero estudo, uma possibilidade ao alcance de todos, e por razões maiores, de continuar o movimento. Enquanto uma só imagem legada pelo surrealismo se encontrar por compreender, e sempre o ficarão enquanto cada um as não encarnar em si para lhes dar resposta e encontrar tradução, o movimento estará vivo. E não se trata de viver na História uma vida senil, de fim de curso, que aguarda apenas o golpe de misericórdia; não, trata-se duma vida plena, no plano do espírito, sem idade, que tem ainda nas veias o lume ardente bastante para chamar a si e abraçar em cheio o homem eterno, o Adão e a Eva expulsos da terra das imagens, que foi o Éden original e de que só o surrealismo, ao menos no domínio da arte ou da anti-arte, tem hoje, no caótico labirinto da megalópole que sugou a vida da imagem, o fio que permitirá encontrar o caminho de retorno.

E não se esqueça, quando se fala do porvir do surrealismo, o papel inestimável que este poderá ter numa sociedade que não se queira à mercê do instinto carniceiro dos casos de absoluta insolubilidade do Eu arcaico, como se viu em Francisco Leitão. Só o surrealismo e o seu conhecimento permitirão generalizar a todos um terceiro olho, o da representação simbólica, capaz de conciliar com eficácia a via castradora da civilização e a via libertária do desejo original. Da segunda via, hoje maldita, hoje assustadora, só ele, surrealismo, possui a chave e o segredo, como tão bem se vê no bailado incestuoso de Lisboa. Em Erro Próprio, em passo ainda não descriminado, o poeta identifica a Mãe à Noiva Rainha e ao seu desejo de sujeito (1977: 94), sem que daí resulte, para a justiça da sociedade de hoje, qualquer crime. O crime poético, não tem realidade sensível, situa-se em exclusivo num plano simbólico, de representações interiores, e não está por isso nem sujeito aos interditos e às sanções da civilização nem à alçada da Lei e dos tribunais.

Caso o surrealismo venha a ser reconhecido como um bem geral, capaz de fazer progredir a civilização humana em sentido decisivo, nada mais, nada menos do que pôr em contacto o homem de hoje com o desejo original perdido, então é de esperar que no futuro deixe de haver criminosos para passar a haver só poetas. Mas para que tal meta de todo desejável se possa cumprir é preciso deixar de insistir no surrealismo como um movimento em exclusivo situado na história, que nasceu, cresceu e morreu, e tomar em mãos aquele momento eterno, sem tempo ou de todos os tempos, que se contempla desde a arte rupestre e de futuro se verá em tantos outros lugares ainda por nascer.

 

27 A Experiência da Morte e o Automatismo Psíquico

Retomo a morte de António Maria Lisboa. Morreu no dia 11 de Novembro de 1953, na rua das Beatas, bairro da Graça, em Lisboa. O momento da morte ocorreu, segundo Cesariny (1977: 395), entre as 23.30 e a 0.30 da madrugada do dia seguinte. Antes de falecer, voltou-se para a parede, esteve um largo momento assim, de costas voltadas para os presentes, com certeza a irmã e o pai, sem nada dar a entender, e expirou depois. Deste segmento da vida de António Maria Lisboa, quase mítico, num bairro de Lisboa que tem o sublime no nome, Graça, retenho o instante em que ele volta costas aos presentes e olha para a parede. Que quis ele dizer com esse dar de costas? Não é líquida a resposta. Dor? Cansaço? Agonia? Outra coisa? Desconheço. Ainda assim, metendo na conta o que se conhece da experiência poética de António Maria Lisboa, é plausível ver aí um momento simbólico. Voltar costas aos presentes foi dar de costas à sociedade; dar de costas à sociedade foi por sua vez dar de costas ao Eu social. Logo, esse momento é aquele em que o Eu social é substituído pelo Eu arcaico. A parede, lisa, neutra, muda e hierática, com vários sedimentos de cal ou de tinta, escondendo o reboco e a pedra, é o sinal mesmo doutro território, sem fim nem princípio, onde se abria ou tatuava uma liberdade nova.

Que quero dizer com isto? Que António Maria Lisboa pretendeu entrar na morte como quem explora as terras de dentro. Viu na morte um estado tão propício ao Eu arcaico como já antes vira no sono esse mesmo campo propiciatório. A ginástica em torno do dormir acordado, ou do adormecer sem deixar de estar acordado, que foi a marca indicativa que ele deixou no texto sobre Alfredo Jarry, e que constitui uma das chaves de acesso aos poemas de Ossóptico, pode ser alargado à morte. A morte é um campo magnético para a experiência do espírito – eis o que o António Maria parece dizer ao dar as costas aos que o rodeavam. Voltar costas é ficar a sós consigo e ficar a sós consigo é tomar nas mãos o Eu arcaico, é ficar em contacto com o Eu profundo, que se alimenta dos conteúdos da segunda consciência. Aquilo que está em jogo é pois mais um exercício, mais uma ginástica, mais uma volta, que se poderia traduzir assim: é preciso morrer vivo ou entrar na morte sem deixar de estar vivo; é preciso morrer sem fechar os olhos, os olhos de dentro, os que vêem as formas do interior, as formas ossoptóicas.

Isto retoma a seu modo o sentido de qualquer mistério iniciático, desde que o Egipto arcaico o recebeu das comunidades xamanísticas anteriores e o transmitiu às civilizações posteriores, o que foi milagre e grande, se atender o leitor ao processo de acumulação de riqueza que então se abriu, e isto mesmo aceitando o desnível que esses mistérios ao civilizarem-se sofreram, deixando de ser vividos entre iguais, na comunidade, como acontecia no neolítico, para ficarem aperreados em círculos cada vez mais fechados. Vivo fica também o sentido da iniciação do poeta em Paris, quase certo por influxo de Sarmento de Beires, membro da sociedade teosófica logo em 1926, iniciação que ele refere com grande entusiasmo em carta aos amigos de Abril de 1949 (1977: 252). António Maria Lisboa, no regresso da segunda estadia em Paris, que aconteceu nos primeiros meses do ano de 1951, soube-se sem remédio condenado; tinha aos vinte e dois anos os dois pulmões estoirados e nenhum médico lhe deu esperança de cura. O seu horizonte imediato foi a morte. Teve pois também aqui todo o tempo do mundo – um dia é um século em casos destes; e ele teve a largueza infinita de dois anos e meio, toda uma eternidade – para sobre ela meditar. Enquanto os amigos se preparavam mal ou bem para a vida – todos tinham pouco mais do que vinte anos e todos, sem excepção, iam viver longas vidas; mesmo Alves dos Santos, o primeiro a dizer adeus, só se foi aos sessenta e quatro anos (1992) – ele arrumou a vida e iniciou sem sobressalto, longe do social, em enfermarias de sanatório e em quartos de aluguer, a preparação da morte.

Foi nesse tempo, que durou um infinito, que ele enriqueceu os poemas que já havia escrito, através dos exercícios de indagação interior, que o levaram do osso exótico, ainda exterior, se bem que litoral, ao ossóptico, mergulho pleno nas regiões interiores do espírito. Dessas expedições, de que ficou o roteiro de processos e de veículos em textos como Exercício sobre o Sono e a Vigília de Alfred Jarry e A Verticalidade e a Chave, saíram os três livros dados a público nos dois anos seguintes – acredito que Erro Próprio, lido duas vezes em Março de 1950, sofreu também enriquecimento posterior; o texto lido não coincide com o que veio a lume em 1952. Tais empresas não foram porém só acção poética, com tradução em três livros; foram também incursões no território da morte, de modo a antecipar o que em breve estava para vir. Desses contactos ficaram muitos traços nos textos, de mistura com os mitos e as imagens simbólicas. É o rosto visível da demorada preparação para a morte a que Lisboa, a sós, por enfermarias e quartos particulares, entre moribundos e médicos, se entregou, enquanto no exterior o grupo de amigos, a tocar idade adulta, se aprontava para a vida – Pedro Oom emprega-se no Instituto Nacional de Estatística; Risques Pereira conclui o curso de engenharia, para se empregar também; Carlos Eurico da Costa o mesmo; Cruzeiro Seixas mete-se a trabalhar na marinha mercante; Fernando Alves dos Santos faz família; Mário Henrique Leiria parte para o Brasil; Mário Cesariny resiste a família, furos e fugas e continua o diálogo, primeiro com o vivo morto, logo de seguida com o morto vivo do seu sonho, que não mais morre, e sobrevive mesmo à edição cor-de-rosa de 1977.

Que rosto visível é esse? E que preparação para a morte por dentro dele se pode tirar? Tenho duas passagens sublinhadas sobre o assunto na obra (outras, muitas até, há e haverá). A primeira, capital por certo neste périplo, está no final de Exercício sobre o Sono e a Vigília de Alfred Jarry e diz apenas, em caixa alta, linha destacada, como se de verso se tratasse, embutido em texto de prosa, a morte já foi (1977: 195). A morte já foi? Quer dizer: para o António Maria Lisboa de 1952 e 1953 a morte já tinha sido. O vivo morto que andou a deambular de enfermaria em enfermaria, de quarto em quarto, já era à época o morto redivivo. Surpresa. A morte já fora, pois! Afinal o que andava de enfermaria em enfermaria, de quarto em quarto, em vez de estar à espera de morrer, já morrera. A morte já passara por ele! Não era o vivo morto, era o morto vivo! E isto no momento em que escreve sobre Jarry. Quando e como passou a morte por ele, apetece perguntar. Só pode ter sido nos momentos em que se preparou para ela, logo a seguir a saber-se condenado a ela sem remédio. Tais momentos, por aquilo que se tira deste primeiro rosto visível, o texto sobre Jarry, parecem coincidir com aqueles em que andou a trabalhar por dentro o sono. Logo, o sono metáfora da morte e a morte lugar do sono. Não há sono sem sonho, como não há morte sem vida? Sim. Destarte, não há morte. Morrer é ser iniciado, diz um preceito. Perfeito! Mas Iniciado a quê? À vida e ao seu mistério, bem entendido. Não há morte, neófito, pois a morte já foi.

E por aí se chega ao segundo sublinhado, este na carta de Lisboa a Cesariny da segunda metade de Abril de 1950, já citada a propósito do sistema semântico da abjecção em Lisboa. Aí exclama, preto no branco, a morte não existe! (1977: 279) A que junta: – sem sentido religioso nenhum como sabes. Se isto, o não haver morte, era dito sem sentido religioso nenhum, é preciso então saber em que sentido era dito. Atrevo-me a dizer: em direcção poética, porque a poesia para o poeta de Ossóptico era criação no domínio do espírito; sem ela, poesia, não havia experiência por dentro. A poesia não é o verso; é o contacto com o Eu arcaico, aquele que vive na terra dos arquétipos, na terra imortal do Éden sem morte. Logo a poesia conhece o lugar em que não há morte. Mais: a poesia, tal como Lisboa a percebe, transita dum lugar para outro, vai e vem do mundo dos mortos ao dos vivos. Todo aquele que conhece a acção poética pode assim dizer que a morte já foi e não há morte. Eis então o curso e o fim, a seta e o alvo, a pergunta e a resposta, a entrada e a saída, da preparação de Lisboa para a sua morte em vida anunciada, que se metamorfoseou pelo contacto e assunção do Eu arcaico em vida renovada.

Chegado aqui como não lembrar a interpelação do vate que nasceu no dia dos mortos, Teixeira de Pascoaes, e que parece ter sido escrita para o vate que nasceu no dia da luz, António Maria Lisboa? Traslado-a: Renascei para a luz. Ardei no fogo/ Genésico da Origem! Sede a pura/ Flama espiritual, na solidão/ Das cousas acendida! Renascei!/ (…)/ Renascei para a Luz! Tornai a ser!/ Batei, ó meus irmãos, à brônzea porta!/ Batei, batei! Forçai-a sem temor!/ Aparecei de novo, sobre a terra,/ Libertos do Passado… Sede arcanjos/ E deuses ressurgidos. (Cânticos; 1925: 121-22).

De 1 de Agosto, dia da festa de Lugnasad, a 2 de Novembro, dia da festa de finados, e deste àquele, vai o tirocínio da vida como morte e da morte como vida, uma circunferência fechada, a transformar-se por rotação dum ao outro em esfera de fogo, a da poesia portuguesa do século XX. O núcleo desta esfera está hoje nas mãos de Pascoaes e de Lisboa; o seu reflexo pertence à obra de Fernando Pessoa. Aos primeiros compete a iniciação ao mundo interior, aquele que só pela acção da poesia se pode conhecer e dizer; ao segundo cabe gerir o destino exterior e social da poesia portuguesa.

Regresso à morte de Lisboa. O António Maria dos dias de espera, de enfermaria em enfermaria, acorda memória do Sócrates final, que, preso, julgado e condenado à pena capital, recusa a fuga e se precipita na cogitação da morte. Depois purifica o corpo num banho, recebe amigos e familiares, despede-se com avisos sábios, pede o vaso do veneno, bebe, deita-se e cobre o rosto para morrer em sossego. Assim Lisboa diante da morte. Olha, cala-se, volta costas aos vivos, fita os hieróglifos da parede e morre. Nenhuma gesticulação, nenhum desgoverno emocional, nenhum desespero. Nada do Eu exterior; tudo do Eu interior, trabalhado até à rijeza do diamante. Em lugar da pele, a tremer, arrepiada, as vísceras da alma, treinadas e frias. Também ele, Lisboa, parece ter pedido no último instante, à imagem do que se diz do ateniense, um galo para Esculápio, de modo a agradecer com um sorriso de graça o que lhe estava a suceder.

Recordo a noção de automatismo psíquico tal como André Breton a formulou em 1924. Ditado do pensamento na ausência de qualquer governo da razão e fora de qualquer preocupação estética ou moral, diz ele. Se o leitor me seguiu até aqui, sabe que este ditado, como expressão do pensamento real, nu e cru, sem intromissão de factores exteriores, distantes ou próximos, significa a substituição do Eu social pelo Eu arcaico. Dito doutro modo: o ditado em causa é a emersão através da elaboração simbólica dos conteúdos recalcados da segunda consciência. Para assistir ao emergir destes corpos arcaicos que os interditos da civilização inumaram a muitos metros de fundura, não é necessário ser autor de livros como Cesariny e Lisboa foram, ou de quadros como Cruzeiro Seixas ainda é; basta adormecer à noite. E para perceber a natureza deste outro mundo em emersão não é preciso mais do que alguma vigilância consciente, um único olho aberto, esse mesmo que António Maria Lisboa pede no seu exercício sobre Jarry. Que se ganha com isso? Riqueza interior, distância para com o efémero do exterior social, equilíbrio emocional, largueza de consciência. E ainda, como se vê em Lisboa a propósito do mesmo Jarry, preparação para a morte. Quem entra no sono com a consciência acordada, quem capta com as faculdades vigilantes o funcionamento real do pensamento ao adormecer, e assim se mantém por um momento, terá a possibilidade um dia de franquear os umbrais da morte de olhos abertos.

Morre-se uma única vez numa vida; adormecem-se nessa mesma vida milhares e milhares de vezes. Parece que o sono foi feito para o homem experimentar em cada dia um estado próximo da morte, ficando assim com a possibilidade de se preparar dia-a-dia para a experiência única e decisiva que o aguarda. O automatismo psíquico é o mais adequado instrumento ao serviço dessa preparação. Deixe-se ou ponha-se o pensamento a correr à beira do lago do sono; perceba-se como em certo passo ele se desprende do exterior, que é quem está a adormecer, e começa a correr por si só; está aí a estância à beira do lago em que o pensamento se recebe por ditado; ele corre e o espectador, com as faculdades despertas, regista. O pensamento assim ditado é o Eu arcaico, ilimitado e intemporal, e quem assim regista é o Eu físico, configurado pelo corpo e suas faculdades. Repita-se milhares de vezes a operação, até que no momento final, no transe da última experiência, já na margem do Estígio, na agonia, se voltem a separar os dois Eus, o que dita e o que regista. Será então possível ao Eu físico saudar de forma conveniente as tintas imortais da aurora eterna.

 

18 de Agosto

1 de Novembro de 2012


NOTÍCIA BIBLIOGRÁFICA


O texto de Sigmund Freud que foi o pretexto imediato para a redacção destas notas, permitindo-me distinguir entre primeira e segunda consciência, entre Eu exterior e Eu interior, distinção capital para entender o surrealismo, já que o primeiro Eu, o mais imediato à consciência, está no plano do real e o segundo no plano du supra-real, é a versão gaulesa da autobiografia, Ma Vie et la Psychanalyse (1933), da responsabilidade de Marie Bonaparte e revisão do autor. Beneficiei no que respeita às mitologias arcaicas de dois livros de Henry Corbin, nunca citados no corpo do texto mas que é de obrigação aqui assinalar: Corps Spirituel et Terre Céleste. De L’Iran Mazdéen à L’Iran Shîite (1979) e L’Homme et son Ange. Initiation et Chevalerie Spirituelle (1983). Os livros de António Pedro, de Teixeira de Pascoaes, de Mário Cesariny, de António Maria Lisboa, de Fernando Alves dos Santos e de outros não merecem qualquer particularização bibliográfica; o leitor pode com facilidade chegar a eles em qualquer biblioteca pública e muitos estão ainda disponíveis em livraria. As cartas de Mário Cesariny à casa de Pascoaes, onde se encontra o excurso sobre a sexualidade de Pessoa e a de Pascoaes, que me levou a falar dum Hiper-Édipo para o primeiro, são hoje públicas (Assírio & Alvim, Documenta, 2012). “As Efémerides Surrealistas” de André Breton, citadas na nota vigésima quinta, onde não se topa qualquer alusão à acção surrealista portuguesa no período 1916-55, bem como a sua actualização (1955-62), onde também não há Portugal, estão no quarto e último das oeuvres complètes de André Breton (Gallimard, 2008). No volume só se vê Portugal na entrevista em 1958 a Pierre de Boisdeffre (1080-84), através de Fernando Pessoa, citado como preciosa seiva estrangeira ao lado de Georg Trakl e Roger Goossens. Breton terá conhecido Pessoa por um artigo de Nora Mitrani na revista Surréalisme Même (nº 2, 1957) e pelas traduções de Armand Guibert, que começaram por essa época.

Um ponto final para Jorge de Sena. Ao invés do que se pode tirar das minhas notas, reconheço nele um escritor de pulso, ao modo dos grandes, e aqui expresso a minha admiração pelo vigor da sua escrita. Não posso todavia aceitá-lo como um dos que falou do surrealismo com propriedade. Faltou-lhe a experiência, e até a cogitação larga, sem permeio pessoal, como a das epígrafes do seu primeiro livro, para passar além das banalidades históricas que por todo o lado se repetem. O prefácio à tradução dos Manifestos, que passei nas notas, mas merecia aproximação cuidada, e o caso das apreciações da narrativa de Pedro, este nas notas, são dois exemplos do fraquíssimo alcance da sua visão. Por isso a sua teorização no que respeita ao surrealismo em geral e ao português em particular é quase nula. Não obstante, quero aqui deixar sem qualquer derrisão um período seu, que ainda hoje me conforta ler e que serve bem para os que hoje o seguem porem a mão na consciência, tantos os disparates que dizem sobre os “grandes” poetas da transição da primeira metade para a segunda metade do século XX: Creio não pecar por vaidade se disser que, fora dos círculos afectos ao Surrealismo que prosseguia mais ou menos em volta de Cesariny, eu terei sido a primeira criatura não-surrealista a proclamar a grandeza de António Maria Lisboa, há vinte anos. (“Notas acerca do Surrealismo em Portugal”, 1978; rep. em Estudos de Literatura Portuguesa III, Edições 70, p. 258)


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Portugal – Maio de 2023