DANIEL PERRONI RATTO
Existe o tempo, cheio de espaços em multiversos infinitos. Existe o espaço, lotado de tempo em músicas quânticas atemporais. Às vezes, lugares fálicos e belos, outras, frágeis e falhos. Há saturação na urbanidade, carros em demasia, concreto por todos os lados. Muita tecnologia. Todavia, há a natureza existencial, a floresta, pássaros e poesia. E no centro do espaço-tempo, depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música, já dizia Adous Huxley. Resta-me rememorar a musicalidade poética de uma época.
Enquanto Petrúcio Maia tocava piano, meu pai, o “Gordinho”, atrevia na caixa de fósforos e Teti cantava “Lupicínica”, eu, menino “réi”, brincava no alpendre da casa, da festa, do Frank Araújo. Por lá, também, vi Mazé do Bandolim trocar harmonias e segredos do universo em notas musicais com Petrúcio. Era ano de ver novamente, Zico, Sócrates e companhia na Copa de 90. Era um tempo diferente, era um sentimento mais livre.
Comecei a absorver a densidade sonora em que eu estava inserido desde pequeno, somente no começo da fase adulta, quando fui morar em São Paulo e lancei-me aos rabiscos literários e às aventuras musicais. Estudei aquele pessoal que ia em casa e descobri um mundo novo. Identifiquei-me imediatamente com a beleza das composições de Maia, as letras de Brandão, do Fausto Nilo, a destreza virtuosi de Manassés, a força de Rodger Rogério, a leveza de Téti, a versatilidade de Francis Vale, a melancolia das fotografias de Wiron Batista, a irreverência de Augusto Pontes e claro, Fágner, Belchior e Ednardo. Quase todos eles se refugiavam, vez ou outra, lá no sítio do meu pai. Geralmente iam em turmas, apareciam também, Chico Pio, Ricardo Black, Maninha Moraes, Mário Mamede, Antônio José Silva Lima, Sérgio Redes e tantos amigos que me fogem agora. Festejo garantido.
Foi nesse sítio, lá no Gereraú, que fiquei íntimo da obra de Pet. Rodeado pela natureza, ao som do disco “Melhor Que Mato Verde”, de 1980, e da música “Sertão Azul”, letra também de Pet, que escrevi no meio do mato, vários poemas que integraram alguns dos meus livros, como este, do livro “Marmotas, amores e dois drinks flamejantes” (Patuá, 2014):
ÁGUAS DE MARRECAS (Gereraú) | Existe um lugar / Onde a magia existe / Esta é coisa simples / A natureza vai contar // Pássaros voam livres / Flores colorem o verde / É muito verde! / Frutas vivem // No céu o gavião sobrevoa / Imponente / Aqui a lagoa destoa / Intermitente // “Soinhos” pulam da mangueira / Anuns pretos nos cajueiros / A família de raposas, caça / E a coruja espreita // Nas casas de taipa / O fogão à lenha queima sabiá / Para alimentar o caboclo / É madeira que faz estaca // As redes no alpendre / O vento nas folhas / A vida no ventre / A esperança nas chuvas // Como é bom! / Comer caju no pé / Ou chupar manga coité / Colher o milho plantado / e vê-lo feito assado // Tem cururu do tamanho de sapato / De fato, o mel é das africanas / No pé, sandálias havaianas / E o menino leva o recado // As estradas ainda são de piçarra / O povo é daqueles que faz pirraça // Carroças e charretes / insistem em andar / levando vida / daqui para acolá // Esse lugar começou / Com a família Ferreira / Gente guerreira / Bem que se queira / Juntou-se à família Siqueira / Fazendo estória verdadeira // Esse lugar / das Águas de Marrecas / Pelos índios, / chamado Jererahú / Perpetua a magia / das estórias / que aparecem / nos sonhos do Uirapuru.
As canções de Petrúcio falam de natureza, de amor. São composições que experimentam diversas dimensões. Fusões. São viagens em estruturas melódicas explorando a ambiência e simbiose entre culturas e ainda, entre o homem e o planeta. São músicas épicas.
Volto pelo tempo a contar espaços imemoriais. Não me dava conta do ambiente em que vivia, desde que nasci. Era normal. Meu pai era goleiro em um time que eu achava o nome engraçado, o Beleza, criado pelo Raimundo Fágner. Estávamos, as crianças, sempre a jogar nos intervalos dos jogos. Música ao redor o tempo todo. Lá em casa, o disco da Téti, Equatorial, tocava sem parar e eu adorava a música “Passarás, passarás, passarás”, do Petrúcio com o Capinan. Em 1981, no fim do ano, Raimundo organizou um jogo no Castelão para comemorar o disco de platina que recebera naquele ano, pelo álbum“Traduzir-se”, lançado pela CBS. Aconteceu, antes do jogo, um churasco oferecido pelo casal, Amelinha e Zé Ramalho, na casa nas dunas da Praia do Futuro. Jogadores da seleção como: Afonsinho, Zico, Sócrates, Éder, Cerezo, Falcão, Roberto Dinamite, Rivelino, Jairzinho, Marinho Chagas, Cláudio Adão, Paulo Sérgio e Éder, misturavam-se aos artistas e jogadores cearenses ou que jogavam em times cearenses, entre eles, Amilton Melo, Wiron Batista, Mino Carta, Geovane de Oliveira, Neno Cavalcante, Marciano e Serginho Amizade (Sérgio Redes), hoje um grande jornalista do Ceará. Cabe informar que a Revista Isto é, à época, descreveu o jogo como “um encontro etílico-futebolístico-musical” e que “marcaram-se vinte gols, mas ainda não se sabe quem ganhou”.
O doutor Sócrates conta, em uma de suas crônicas na Carta Capital, uma passagem divertida. Bem, para o paisagista Moraes Costa Jr., o “Gordinho”, pai desse que vos escreve, não foi lá muito divertida. O Magrão disse: “O jogo foi fantástico e algumas particularidades merecem ser citadas, como, por exemplo, a verdadeira caçada de Éder ao goleiro adversário – um amigo cearense cujo apelido é Gordinho. Como o Gordinho usava brincos na orelha – algo raro naquele tempo – o maluco do Éder resolveu atazanar a vida dele e avisou que todos os seus chutes teriam invariavelmente o objetivo de acertar um dos brincos de Gordinho. E foi o que fez, com a colaboração da defesa adversária, que a cada ameaça de chute por parte do Éder, se retirava da frente só para ver o que aconteceria. Não foram poucas as vezes em que a bola explodiu no corpo do Gordinho. O bicho saiu até tonto de tanta pancada. Eu, do meu lado, joguei praticamente toda a partida dando toques de calcanhar. A cada toque, a galera ia à loucura. Parecia uma catarse coletiva. Quando olhava para as arquibancadas, o que se via era só alegria. Como foi gostoso poder proporcionar aqueles momentos de alegria para os que estavam lá. Ia fazendo aquela festa com o povão quando o juiz, dos piores com certeza, resolveu marcar um penalti para o nosso time. Corri para a bola, agarrei-a e coloquei-a debaixo do braço. Aquela penalidade tinha de ser batida por mim. Coloquei a bola na marca de cal, esperei que todos saíssem da área e me posicionei para bater de costas: de calcanhar. Vocês não imaginam o furor com que o público reagiu àquele gesto. Foi uma loucura. Demorei o máximo que pude enquanto a manifestação exterior aumentava cada vez mais, e, finalmente, disparei o tiro. A bola saiu do meu pé com tanta força que até me assustei e… Explodiu contra a trave esquerda do Gordinho. Gente, que maravilha! Nunca um penalti perdido foi tão aplaudido. Só me restava gargalhar de felicidade”.
Minhas memórias convergem para esse ambiente repleto de música, poesia e futebol. O futebol arte. Em 1982, Raimundo Fágner e Zico, o Galinho de Quintino, o camisa 10 da seleção brasileira na Espanha, gravaram “Batuquê de Praia”, arranjo e letra de Petrúcio. Um samba que deveria estar até hoje nos carnavais de rua:
BATUQUÊ DE PRAIA (Petrúcio Maia) | Não é qualquer carnaval / Não é qualquer litoral / Que faz a minha cabeça / não Não é qualquer fuzuê / Não é qualquer “não sei quê” / Que vem bater no meu coração / Tem que ter “um quê” / Pode, pode ser / Ba de batuquê / Mel de melar você // Não é qualquer carnaval… / Pode ser você / Que rebola a saia / E faz um fuzuê / Num batuquê de praia…
Aliás, não só o samba deveria estar até hoje. Um artista desse naipe, não pode se perder no espaço-tempo das mesquinharias. É preciso que músicas como: “Cebola Cortada, “Batuquê de Praia”, “Frenesi”, Dorothy L’amour”, “Passarás, passarás, passarás”, possam ser regravadas por novos artistas, novos cantores e cantoras. Imaginem a beleza de ouvir Pet nas vozes, em discos de Nayra Costa, Daniel Groove, Soledad, Daniel Medina, Vitoriano, Lorena Nunes, Ilya e muitos outros. É preciso tira-lo do limbo a que lhe impuseram. É preciso reviver Petrúcio Maia.
Σrevista triplov. série gótica . inverno 2018