RICARDO DAUNT
Tributo
Organização: DERIVALDO DOS SANTOS
Narrador repórter
Por JORGE DE SÁ
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 7 de julho de 1979.
As três narrativas que compõem o Grito Empalhado não se enquadram facilmente no gênero conto ou novela. Mais próxima do texto teatral, elas se assemelham também a um roteiro especialmente preparado para televisão. De câmera em punho, o narrador-repórter acompanha o desenrolar dos fatos, cortando, montando e desmontando sequências a fim de tornar o todo mais dinâmico e interessante. Neste caso, o enredo deixa de ser o elemento mais importante. O que importa aqui é a maneira de contar, é o jeito bastante pessoal de Ricardo Daunt Neto passar da realidade à ficção.
O conteúdo em si também não pesa muito. Os ingredientes sociais estão espalhados ao longo das histórias – problemas estudantis, a atuação dos Diretórios no âmbito das Faculdades, engajamentos políticos, greves, operários, torturas – mas a História é somente pretexto. Na verdade, o que Daunt procura, e o faz com segurança, é a possibilidade de construir com palavras um ser de carne e osso e sua abstrata verdade: Os Autos de Beatriz se desdobram em O Último Comercial de TV e A Última Morte de Huaina Cápac. Mas é nos Autos que toda a busca se concentra: “Beatriz é uma ideia forte, que está além de mim e que busco materializar; é sondagem de tipo, tipo nunca concluído, facetado, mediano pelos contingências físicas do próprio momento ‘Beatriz’ na terra; ando há dias tateando, juntando os seus pedaços: é figura abstrata que se despeja sobre o real; é foco opaco, náusea personificada do momento, ponto de fuga neste quadro em que o espaço exterior é meu mestre e meu triste condutor”.
Os pedaços de Beatriz, neste caso, são os fragmentos de outros textos jornalísticos que irão fornecer a matéria do Grito. Juntando-se as partes (notícias publicadas nos principais jornais do Rio e São Paulo), chega-se ao “diário” da personagem e a seu fluxo de consciência: as frases incompletas (o efeito visual do papel rasgado, dificultando a ação da polícia), as linhas pontilhadas (indicando que a universitária está morrendo) e as notas de rodapé projetando os acontecimentos para além de 1980 completam o efeito dramático. Estabelecido o confronto de caracteres e de situações, Ricardo Daunt Neto recobre tudo com uma boa ironia, assumindo a gratuidade do discurso de propaganda.
Nessa mesma linha de deboche constrói-se o comercial do sabonete Lilly e reconta-se a luta entre Ataualpa e Huaina Cápac.
As três narrativas, portanto, são uma só, pois o Grito Empalhado é um conjunto formado por três maneiras diferentes de enfocar o mesmo processo histórico.
RICARDO DAUNT . TRIBUTO