Na gravitação da palavra

 

MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL
Tributo
Org.: Luís de Barreiros Tavares


“(…) … Sou o Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela… (…)”
Fernando Pessoa, no poema: “Hora Absurda

“O tempo é a imagem móvel da eternidade.” Platão, Timeu 38a

“El hoy fugaz es tenue y es eterno”  J. L. Borges, no poema: “El instante

“Quando Fa-ch’ang estava a morrer, um esquilo guinchou no telhado.
‘É apenas isto’, disse ele, ‘e nada mais.’” Watts, A., W., O Budismo Zen.

“esse ofício. fulcral. o de escrever. ainda aflora.” Motta Cardôzo

           Há um trabalho de pensamento na prática da escrita em Motta Cardôzo: “esse ofício. fulcral. o de escrever.” No ‘assentamento’ da letra sobre si mesma, mediante o acto e fruição da escrita: “o de quem isto escreve”, na sua força de gravidade, ou no seu peso, algo de imponderável emerge. E os contrários refluem uns nos outros. As antíteses servem precisamente para trans-formar antíteses: “será a eternidade que morreu.” (poema IV), ou:“ignoro porém o futuro puro dos instantes. Flutuantes ou extáticos.” (X).

          Deste modo, pode-se falar de um ‘assentamento’ no acto de escrever: “luar de letras consentidas” (V), percussão material da escrita, do punho, da caneta, da tinta e do papel: “aliso a plácida página”, marcado por uma certa dureza da letra que traça: “e literadura”. Pela pontuação: “. e.” Ponto em contraponto com a letra-palavra. Eis o punctum da palavra poética (1).

           A escrita como sensação. Jogo de intervalos, do «intervalo» e da «contenção da palavra» (Motta Cardôzo). Numa invisibilidade especular e luminosa: “na luz crua da tarde antiga.” (IV). De transparências metafísicas. Ou de uma metafísica de sensações, como escreve José Gil acerca de Fernando Pessoa (2). E, como que num duplo ressalto, num duplo solavanco, outro momento de flutuação ocorre: “a nudez então irrompe/ essa transcende a eternidade.” (II). A tensão do poema no seu jogo com o tempo: “é o solstício dizias. o de um verão recuado./ penso eu. ou recente. como sabê-lo. e o amor.” (V). Estes momentos não se sucedem. Antes se imbricam.

           Quadratura de duplo assentamento e de duplo emergir. Forma e fundo. Quadratura do círculo? “até à circulação da eternidade. suponho eu” (II). “e os/ instantes também circulavam. Agora matemáticos e morosos./ mansos./ como os de um verão. que eterno retorno.” (VIII). O eterno que eclode, assim, magicamente, no cerne da tensão do poema. Seja escrito, seja lido. A reversibilidade do eterno no efémero…

            Escrita pautada e entrecortada. Como os misteriosos traços que tecem uma cifra. Numa costura secreta. Num balbuciar inaugural do som e do traço… do significante… Eis o signo poético. Da palavra, do sentir e do movimento do pensamento: “após o coito. começara/ a eternidade do prazer. efémero. longos haustos./ de atmosfera translúcida. e. como o instante./ duradouros.(VIII) “ o outono ainda vem todos os anos. outonos suaves./ como a mãe gostava./ eternos e não duram muito. circulam no interior do corpo. invioláveis” (III), “assim começa a tarde. como acaba./ eis a eternidade. nua.” (XIII). Num gramado ’rizomático’, usando um conceito caro a Gilles Deleuze (3). E a letra minúscula na sua filigrana após o ponto final: “. e.”… Génese originária do pensamento e dos sentidos. “A poesia é a essência do ser”, disse um dia Motta Cardôzo. E a rima não deixa de espreitar, subtil: “sangue. langue”. Ou: “ocultava as cicatrizes. e os dias felizes.” (XV).

        Escrita em filigrana; algo hermética; algo iniciática… tessitura… Contudo, capaz de respirar a amplidão do mundo solar e apolíneo dos antigos gregos: “era como um verão. que se abrira. recente. como um clarão rubro de inocência.” (VII); “na luz crua da tarde antiga.” (IV). Onde eros também fala: “é um refúgio recôndito. o da eternidade efémera. como o amor./ como o pranto da feminina ausência.(XI); “iniciava-se um olfacto de húmida/ primavera. límpida. e em vão mastros erectos. ou/ sereias ciosas. circulavam” (VIII); “templo antiquíssimo. o de um corpo.” (XI) e “ocidentalíssimo”. E os mitos: “também o templo erigido aos deuses antigos. aqui perto.” (X). Clássico… Ou de uma insondável Atlântida… “gostaria que o mundo começasse hoje”.

Luís de Barreiros Tavares, posfácio a A Duração da Eternidade
Alverca, 27/1/2007


 Notas:

(1)  Lembrando o punctum na fotografia segundo Roland Barthes em A Câmara Clara, Lisboa, ed.70.

(2) Gil, J., Fernando Pessoa ou a Metafísica da Sensações, Rel. D’Água, 1987.

(3) Deleuze, G., Capitalisme et Schizophrénie 2, mille plateaux, Paris, Minuit, 2004.


MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL

Série Gótica . Verão 2020