Saudade de futuro
MODERNISMO PORTUGUÊS
Organização de Antoneli M. B. Sinder e Daniel M. Laks
MODERNISMO BRASILEIRO E MODERNISMO PORTUGUÊS:
AS SEDUÇÕES AUTORITÁRIAS[1]
Por Silvio Renato Jorge[2]
A ESPINGARDA DE CÂNONE CERRADO é uma arma de fogo portátil que desautoriza novas leituras das grandes obras ou autores canônicos portugueses, especialmente aquelas feitas por membros das comunidades das ex-colônias, estrangeiros ou certos portugueses a viver fora da excelsa pátria. Estes três, que, sem fundamento ou o domínio dos estudos literários, parecem não querer identificar-se com o tratamento social do gênero, da raça, do regalo heteronormativo e do sentimento patriótico das notáveis composições da eloquente terra lusa, pecam por, em primeiro lugar, descontextualizar historicamente o texto e impor valores do presente ao nosso tão vigoroso passado. (Patrícia Lino)
Apesar de todas as especificidades presentes em cada um dos sistemas literários que indicamos no título deste artigo – em termos concretos, o brasileiro e o português –, sobretudo após o processo de independência do país sul americano, quando se procurou de forma mais acentuada o estabelecimento de marcas próprias, de modo a delimitar o que seria a literatura nacional, não é difícil perceber a permanência de um diálogo consistente entre eles. A circulação literária de autores portugueses se manteve marcante no Brasil até, ao menos, o início dos anos 70 do séc. XX, quando a reforma educacional proposta pelo regime da ditadura militar retirou dos currículos escolares o estudo da literatura produzida em Portugal como disciplina autônoma, na busca por reforçar a imagem pseudo-nacionalista do governo que se tentava construir; por outro lado, distintos autores brasileiros, como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado, dentre outros, também eram lidos em terras lusitanas. Não se surpreende, portanto, que tenham ocorrido processos de aproximação entre os grupos modernistas de ambos os países, mesmo que os diversos projetos de caráter vanguardista neles desenvolvidos apresentem linhas próprias e autônomas.
É preciso considerar, em diálogo com o que diz Daniel Marinho Laks, em seu excelente Modernismos em modernidades incipientes: Mário de Andrade e Almada Negreiros, que: “Nesse sentido, o modernismo brasileiro e o modernismo português se apresentam como respostas específicas, dadas as particularidades das respectivas narrativas nacionais, a uma promessa de modernidade muito maior do que a uma experiência dela”. (LAKS, 2020, p. 51) A afirmação de Laks não é gratuita, pois parte da consideração de que tais movimentos ancoravam-se em uma percepção do presente como um período de transição que, necessariamente, se configurava como resposta a uma conjuntura de crise civilizacional (LAKS, 2020, p.12 – grifo nosso) responsável por demandar não apenas uma nova arte como também a problematização das formas de organização social. O Portugal interrogado pela geração da revista Orpheu vivia a transição republicana que, inicialmente liberal, desaguou, todavia, após sucessivos problemas políticos e financeiros, no golpe militar de 1926, que deu origem à Ditadura Nacional e, posteriormente, com a ascensão de António Salazar ao poder, ao Estado Novo. Os artistas brasileiros ligados à Semana de Arte Moderna, de 1922, por sua vez, acompanharam um país recentemente libertado da chaga da escravidão, mas que ainda mantinha em seu interior práticas escravagistas – o que, aliás, decorre até hoje… – e que, não apenas abandonou a mão de obra recém-liberta a sua própria sorte, sem desenhar uma política de efetiva incorporação social dos ex-escravizados e de seus descendentes, como também apostou na imigração como alternativa válida para o alcance de mão de obra qualificada, em nítida busca do que seria um certo “branqueamento” da população e de acordo com o recorrente pensamento eugenista da época. Além disso, o país, vivendo um processo de industrialização bastante inicial, se comparado aos grandes centros europeus da época, por exemplo, também percorreu um circuito de crises políticas que deram origem, já no início da década de trinta do Séc. XX, ao seu próprio Estado Novo, com o advento da ditadura conduzida por Getúlio Vargas. Podemos, assim, dizer que, nos dois países, desenvolveram-se processos literários que buscavam na ideia de modernidade um ponto a se alcançar, mais propriamente do que a efetiva configuração do estágio econômico e social em que se encontravam.
Em continuidade a essa reflexão e diante de muitos elementos da aproximação possíveis, como, por exemplo, a presença do escritor brasileiro Ronald de Carvalho como um dos organizadores do n. 1 da revista Orpheu (1915), seria interessante discutir a forma como algumas vertentes de ambos os movimentos terminaram por se associar ao imaginário próprio dos respectivos Estados Novos, endossando a grande corrente autoritária que circulou naquele momento não só na Europa, mas também em parcela significativa da América Latina. Não me refiro, por óbvio, ao envolvimento de determinados intelectuais com as atividades próprias dos cargos públicos que ocuparam durante a existência dos regimes, muitas vezes contingenciais, ou mesmo à colaboração artística esporádica, como a que ocorreu, por exemplo, no caso português, com a produção de quadros e murais para a Exposição do Mundo Português, realizada em Lisboa em 1940. Nem todos os artistas envolvidos em tal processo poderiam ser considerados defensores efetivos do salazarismo. Penso, todavia, na participação ativa que alguém como o escritor António Ferro teve no governo durante o Estado Novo português e ainda na sua reiterada admiração por ditadores europeus – para além de Salazar, incluiríamos neste grupo Mussolini, Primo de Rivera e outros – ou mesmo, considerando-se o modernismo brasileiro, na presença de Rosário Fusco (de Souza Guerra), um dos mais articulados membros do grupo da Revista Verde de Cataguases, como colaborador fixo de Cultura Política, revista que, nas palavras de Luiz Ruffato, sendo um periódico
oficial do Governo Vargas, diretamente vinculada ao Departamento de Imprensa e Propaganda, tinha caráter doutrinário na construção das diretrizes do Estado Novo. Circulou entre março de 1941 e outubro de 1945, dirigida por Almir de Andrade, a quem fusco dedica O agressor. (RUFFATO, 2022, p. 156, nota 252)
Como escritores que, por iniciativa própria, cerraram fileiras em movimentos que pregavam a liberdade artística e individual, terminaram por associar-se a regimes ditatoriais responsáveis por ações de opressão e controle ativo da sociedade? É importante lembrarmos que António Ferro, para além de ter sido uma espécie de dinamizador cultural do regime salazarista, ocupando o cargo de Diretor do SPN (Secretariado de Propagando Nacional) de 1933 a 1944[3], também esteve presente na direção da nova versão de tal secretariado, o SNI (Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo) de 1944 a 1959, quando o órgão assumiu a responsabilidade pelas ações de censura, sendo diretamente ligado ao próprio Presidente do Conselho de Ministros, ou seja, António de Oliveira Salazar. Antes de tudo isso, entretanto, ainda jovem, Ferro esteve no Brasil em momento próximo à Semana de Arte Moderna, entre os anos de 1922 e 1923, sendo recebido por nossos escritores modernistas como uma voz altissonante do futurismo e importante para a renovação das letras nacionais. Como afirma Márcia Arruda Franco, em “A distópica artificialização da mulher n’A idade do Jazz Band, de António Ferro”, tendo sido relegado a um segundo plano como escritor por Pessoa e Sá-Carneiro,
Tal façanha de ensinar o futurismo às elites brasileiras, incluindo a maioria absoluta de nossos modernistas, lhe garante um lugar na formação do Modernismo brasileiro e na longa Semana da Arte Moderna de 1922, como afirmam os testemunhos de Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Sergio Buarque de Hollanda, entre outros. (FRANCO, 2017, p. 123)
No Brasil, além de encenar peças de teatro, publicou o manifesto “Nós” no n. 3 da revista Klaxon (1922) e apresentou três conferências, sendo a mais aplaudida A idade do Jazz-Band (1923), cuja publicação também se deu como libreto pela Monteiro Lobato & CO Editores. Ou seja, a recepção de Ferro como homem de cultura foi fortemente apreciada pela intelectualidade brasileira, sobretudo no que ele revela como enunciador de estratégias capazes de revelar “o novo”, seja em termos discursivos, seja em termos de concepção artística e social. Não se pode, todavia, obliterar a percepção de que os textos apresentados e representados por Ferro trazem em si, para além do estético, ou mesmo em conjunto a ele, um caráter misógino e patriarcal, bem ao gosto de nossas elites econômicas e sociais, que revelam, ao fim, não uma visão transformadora do mundo, mas a reiteração de elementos conservadores e desumanizantes, bem de acordo com o que seria, em tempos de tentativas de acelerar os processos industriais, o imaginário constante. Por outro lado, o Jazz-Band a que o título de sua conferência se refere é bem pouco referido em termos teóricos no texto, servindo, de um lado, como aparato cênico capaz de gerar o estímulo aos ouvintes e, por outro, como elemento que reitera a visão exótica da música e dos homens negros, que apenas serviriam como instrumentos responsáveis por levar ao corpo branco o movimento:
Nas almas, nos corpos, nos livros, nas estátuas, nas casas, nas telas – há negros em batuque, suados e furiosos, negros em vermelho, negros em labareda. O momento é um negro. O jazz-band é o xadrez da Hora. Jazz-branco; band-negro. Corpos alvos – bailando; corpos de ébano – tocando. O jazz-band é o ex-libris do Século. Que as vossas almas bailem ao ritmo deste jazz-band de brancos mascarados pelo carvão das minhas palavras. (FERRO, 1923, p. 69-72; grifos do autor)
Se aqui a descrição exótica do corpo negro é bastante evidente – “negros em batuque, suados e furiosos, negros em vermelho, negros em labareda” – não resta menos clara a ideia de que o corpo a ser libertado em movimento é o branco, ou seja, mais uma vez demarcando o que é dito: o Jazz é branco; o band, ou seja, o trabalhador, é negro… Voltando agora nossa atenção para determinados marcadores ideológicos próprios do Futurismo, vanguarda que mobilizará a literatura de Ferro em seu momento inicial, bem como vários de seus interlocutores brasileiros, como Oswald de Andrade, Graça Aranha e Menotti del Picchia, é notável o quanto tal movimento, sobretudo em seus manifestos iniciais propostos por Marinetti, apresenta de um lado a defesa da liberdade formal, a quebra da sintaxe, a abertura da pontuação, com o recurso tanto a sinais matemáticos quanto a sinais musicais, mas de outro atém-se a um discurso que valoriza a guerra e se opõe ao feminismo e a tudo aquilo que o italiano chama de “covardias oportunistas e utilitárias”. De certa forma, a defesa da liberdade na literatura se contrapõe, em sua proposta, à defesa da liberdade em termos sociais, enaltecendo procedimentos que serão caros ao fascismo italiano. É o que se pode ler, por exemplo, no fragmento do “Manifesto do futurismo” (1909) que destaco abaixo:
[…]
Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas Ideias que matam e o menosprezo à mulher.
Queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e todas as covardias oportunistas e utilitárias.
[…]
(MARINETTI apud SOUZA, 2022, p. 30)
Claro está que os manifestos de Marinetti não se limitam a isto e que, em muitos momentos, seu ímpeto de violência destina-se a valorizar um processo de renovação da arte que permita a ela dicção capaz de dialogar com o momento vivido, mais do que isso, com o futuro que se almeja. Trata-se, todavia, de um discurso comprometido com uma visão social fortemente vinculada a aspectos conservadores que estarão presentes nas sociedades portuguesa e brasileira estadonovistas, como a já referida negação do feminismo e o patriotismo exacerbado. As peças de teatro representadas por Ferro no Brasil, bem como seus discursos, deixam tal perspectiva bastante clara. Em relação ao patriotismo exacerbado e à vinculação dos intelectuais brasileiros ao pensamento de Vargas, seria o caso de darmos um salto à frente no tempo e verificarmos os números da revista Cultura Política já acima referida e que podem ser encontrados, em cópia digital, na hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Se nos é possível destacar, como já o fizemos, a colaboração rotineira de Rosário Fusco, do grupo de Cataguases, no periódico, em uma coluna na qual basicamente tentava desenhar um arcabouço do que seria uma história da literatura brasileira, sem maiores pretensões em termos de formulações políticas, e se com ele também encontramos a presença esparsa de outros colaboradores que não foram, em qualquer hipótese, ligados ao regime, como Graciliano Ramos, é importante lembrar que a participação de Fusco na revista não se limitou a essa colaboração regular. No n. 2, publicado em abril de 1941, foi ele o responsável por escrever na permanente coluna “O pensamento político do Chefe do Govêrno”, respondendo por um artigo intitulado “A cultura e a vida” (1941), no qual assumia a responsabilidade de explicar aos leitores o que seria a concepção de cultura de Vargas. Iniciando por uma epígrafe em que transcreve as palavras do próprio ditador,
Não tenho, como é de moda, desdém pela cultura ou menosprezo pela ilustração. Acredito que o homem conquista, progressivamente, a Natureza pelo trabalho e pela ciência, e, graças a êsse processo de apropriação, consegue melhorar o corpo e o espírito, elevando a condição humana e tornando a existência mais digna. No período de evolução em que nos encontramos, a cultura intelectual sem objetivo claro e definido deve ser considerada, entretanto, luxo acessível a poucos indivíduos e de escasso proveito para a coletividade. (VARGAS apud FUSCO, 1941, p. 169)
Fusco desenvolve uma leitura na qual, mais do que propriamente estabelecer o que seria o pensamento político do presidente em relação à cultura, discute os termos propostos na epígrafe para, a partir deles, associá-lo a sua própria concepção de arte e cultura, bem como ao escopo de pensadores valorizados na época – e não apenas, claro –, como o francês Henri Bergson e o espanhol Ortega y Gassett, para além de outras referências mais tradicionais, como a Heráclito e a Santo Agostinho. Do que diz Vargas acerca da cultura, o que traz é apenas a epígrafe, que busca desfiar quase que linha a linha, para enaltecer o caráter justo e firme de suas considerações. Já em relação à figura humana de nosso alcaide tropical, sucendem-se elogios, seja à sua capacidade de suportar o peso da responsabilidade própria do cargo que ocupava, “sôbre cuja cabeça pesam tôdas as responsabilidades da época” (p. 175), seja à sua “extraordinária capacidade de previsão” (idem), que lhe permitiria ajustar os passos do Brasil, naquilo que se refere ao aspecto cultural, às exigências do futuro que o aguardava e seria laboriosamente composto no dia a dia de nossas existências. Em sua conclusão, terminar por reiterar essas ideias, afirmando:
Indivíduo e pessoa constituem um todo único, equivalente ao que o corpo e o espírito representam nessa composição de que somos feitos, como a imagem e semelhança de Deus.
Política de humanização das nossas instituições, política de recomposição de nossos valores, o pensamento do Presidente, no que se refere à cultura e à vida, é uma autêntica garantia da nossa segurança, no presente, e do cumprimento de nosso papel, no futuro. (FUSCO, 1941, p. 177)
Há, assim, no texto, uma caracterização de Vargas que remete claramente para a necessidade de sua presença como condutor que tutela a nação, ancorado que está em certa visão de futuro que, sendo humanista, reforça a vinculação do homem à imagem de Deus e alerta “patrioticamente” ao povo para o perigo dos descaminhos trazidos por quem se contrapõe ao seu pensamento. Aliás, a palavra patriota e seus derivados (patriotismo etc) são recorrentes no texto e buscam vincular o pensamento do ditador a um ideal de sociedade que avançasse para sua forma mais adequada de organização, que seria justamente aquela proposta por ele.
Se os históricos de atuação política de Ferro e Fusco não são representativos de todo o conjunto das diferentes concepções de arte que circularam por entre as gerações modernistas de ambos os países – sobretudo se considerarmos o Regionalismo de 30 no Brasil e o Neorrealismo em Portugal como momentos diferenciados que se associam à expansão modernista durante a primeira metade do século –, adquirem, todavia, um caráter bastante sugestivo das relações que se podem estabelecer entre arte literária e as manifestações de cunho fascistas durante o longo período autoritário vivenciado nos dois espaços nacionais. Talvez contribua para isso o arraigado conservadorismo presente em grupos sociais dominantes de lá e de cá. Mas é inevitável considerarmos também o quanto certo discurso de viés nacionalista presente em tais percursos artísticos, para além de postularem uma necessária e importante valorização de traços das culturas populares locais, escorrega para uma significativa idealização de agentes públicos que sinalizam para um futuro de grandeza calcado na ordenação social e na racionalização das hierarquias de classe, raça e gênero. Nesse sentido, para dialogar com Antonio Arnoni Prado e com o seu Itinerário de uma falsa vanguarda: os dissidentes, a Semana de 22 e o Integralismo, é interessante lembrar o que afirma o pesquisador ao destacar que:
A ampliação do campo de ação dos intelectuais, ao utilizar-se da projeção mítica do texto literário como forma de legitimar a força reveladora de uma “nova alma da pátria”, conduz na verdade ao simplismo especulativo das reduções totalitárias que violentam as categorias do pensamento em nome de uma síntese arbitrária que, como vimos, foi a pedra de toque dos manifestos dissidentes. (PRADO, 2010, p. 255)
A adesão ao pensamento e a formas de governo totalitárias resvala justamente na ideia de constituição de uma “nova alma pátria”. Tal alma, projetada no futuro, revela-se, todavia, como ressignificação de um passado que ainda permanece plasmado em estruturas sociais arcaicas e arcaizantes. Em termos formais, enfatizam-se aspectos próprios de uma contemporaneidade transnacional, seja na fragmentação discursiva, seja no recurso a parâmetros gráficos que semeiam nas folhas impressas a busca por uma linguagem literária mais ampla, capaz mesmo de incorporar aspectos estéticos ligados linguagem coloquial. Paradoxalmente, em termos de concepção social, o que se mantém é uma tentativa de ordenação que estabeleça de “cima para baixo”, ou seja, das supostas elites intelectuais e econômicas para as parcelas menos favorecidas da sociedade, um modelo fixo e viril capaz de disciplinar os povos e orientar o “progresso” do país. Claro está que, recorrendo a dois percursos literários individuais, o de António Ferro e o de Rosário Fusco – aliás, percursos que não são apenas literários, mas também políticos e culturais – a imagem que este texto convoca não pretende compreender de forma abrangente os grupos modernistas de Portugal e do Brasil; trata-se intencionalmente de imagem parcelar e que tem por objetivo assinalar a multiplicidade de caminhos seguidos por autores que estiveram ligados a movimentos literários seminais em ambos os países. Justamente por serem muitos, tais caminhos nem sempre mantiveram um pacto ético com a liberdade de expressão ou mesmo com a efetiva renovação das estruturas sociais neles vigentes. Talvez, a sedução do autoritarismo presente em discursos estéticos que tentaram revolucionar a arte e a literatura tenha se sobreposto às reivindicações que afirmavam a autonomia do artista diante de percursos pré-estabelecidos. Talvez, o que aqui se diz seja, no fundo, fruto de uma descontextualização histórica e, portanto, merecedor de tornar-se alvo da “espingarda de cânone cerrado” a que Patrícia Lino ironicamente se refere na epígrafe com que este texto se abre. Todavia, se é fundamental comemorar-se as conquistas estéticas e éticas alcançadas pelos grupos modernistas em nossas literaturas, também se faz importante lembrar que algumas das portas abertas levaram ao diálogo com o que de pior se criou nos dois países em termos de repressão ideológica: a fúria nacionalista do Estado Novo.
Referências:
FERRO, António. A idade do Jazz-Band. 2. Ed. Lisboa: Portugália, 1923.
FRANCO, Márcia Arruda. A distópica “artificialização” da mulher n’A idade do Jazz-Band, de António Ferro. In: TAVARES, Daniel et alii (Org.). Outros lugares. Utopias, Distopias, Heterotopias / Other Places. Utopias, Dystopias, Heterotopias. Braga: CEHUM; Ed. Húmus, 2017, p. 121 – 135.
FUSCO, Rosário. A cultura e a vida. Cultura e Política: revista mensal de estudos brasileiros. Rio de Janeiro: ano 1, n. 2, p. 169 – 180, abril de 1941.
LAKS, Daniel Marinho. Modernismos em modernidades incipentes: Mário de Andrade e Almada Negreiros. São Carlos: EdUFSCar, 2020.
LINO, Patrícia. O kit de sobrevivência do descobridor português no mundo anticolonial. 2. Ed. Juiz de Fora: Macondo, 2022.
PRADO, Antonio Arnoni. Itinerário de uma falsa vanguarda: os dissidentes, a Semana de 22 e o Integralismo. São Paulo: Editora 34, 2010.
RUFFATO, Luiz. A revista Verde, de Cataguases: contribuição à história do modernismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.
SOUZA, Roberto Acízelo de. Revoluções literárias: manifestos das principais vanguardas modernistas. Chapecó: Argos, 1922.
Notas
[1] Este artigo foi divulgado inicialmente na coletânea Modernismo Brasileiro: Prenúncios, Ecos e Problemas, organizada por André Dias, José Luís Jobim, Mireille Garcia e Rita Olivieri-Godet e publicada em 2022 pelas Edições Makunaima.
[2] Professor Associado da Universidade Federal Fluminense. Este texto apresenta resultados preliminares do projeto de pesquisa CAPES/PRINT/UFF “História, circulação e análise de discursos literários, artísticos e sociais”, bem como relacionados ao projeto “Do colonialismo ao salazarismo: literatura, espaço urbano e imaginário”, apoiado pelo CNPq com bolsa de Produtividade em Pesquisa.
[3] É necessário ainda destacar, junto a tais dados biográficos, que Ferro foi o responsável por levar a Portugal figuras importantes do nazismo, como Albert Spper (o arquiteto do que seria a nova Berlim) e Robert Ley (responsável pelo serviço escravo no regime nazista).