Modernidade em Almada Negreiros

 

Saudade de futuro
MODERNISMO PORTUGUÊS
Organização de Antoneli M. B. Sinder e Daniel M. Laks

 

EXPRESSÃO INTERSEMIÓTICA COMO SIGNO DA AUTOCONSCIÊNCIA HISTÓRICA DA MODERNIDADE EM ALMADA NEGREIROS

Por Daniel M. Laks [1]


Resumo: O objetivo deste artigo é relacionar o trabalho de investigação das interseções de diferentes linguagens artísticas no projeto estético de Almada Negreiros com a ideia de autoconsciência de pertencimento a um período de viragem histórica, onde as antigas categorias de representação não se mostravam suficientes para a expressão de um presente entendido como o alvorecer de uma nova era. Nesse sentido, a criação de obras formadas a partir da interação de metabólitos de linguagens artísticas diversas para formar um corpo novo parece, mais do que revelar apenas uma vontade de renovação dos gostos, apontar para uma investigação dos limites das categorias de representação. O aspecto de experimentação constante na obra de Almada Negreiros e o seu amplo envolvimento na cena cultural parecem corroborar essa ideia de vontade de participação no regime de criação das formas de representação durante sua contemporaneidade. Almada Negreiros dialogou com diferentes vanguardas históricas que se constituíram como arcabouço cultural comum entre o autor e outras produções modernistas durante o século XX. Entretanto, a totalidade da obra de um autor tão múltiplo e que sempre buscou uma expressão original a partir do nacional jamais poderia ser focalizada por uma relação de influência direta e unívoca de um sistema estético prévio.

Palavras-chave: Almada Negreiros, Expressão intersemiótica, Modernismo, Autoconsciência histórica da modernidade.

 

Abstract: The aim of this article is to relate the investigation work of the intersections of different artistic languages in Almada Negreiros’ aesthetic project to the idea of self-awareness of belonging to a period of historical turning point, where the old categories of representation do not seem sufficient for the expression of a present understood as the dawn of a new era. In this sense, the creation of works formed from the interaction of metabolites of diverse artistic languages to form a new body seems, more than revealing just a desire for renewal of tastes, to point to an investigation of the limits of categories of representation. The aspect of constant experimentation in Almada Negreiros’ work and his broad involvement in the cultural scene seem to corroborate this idea of a desire for participation in the regime of creation of forms of representation during his contemporaneity. Almada Negreiros dialogued with different historical avant-gardes that constituted a common cultural framework between the author and other modernist productions during the 20th century. However, the totality of the work of such a multiple author who always sought an original expression from the national could never be focused on a relation of direct and univocal influence of a previous aesthetic system.

Keywords: Almada Negreiros, Intersemiotic expression, Modernism, Historical self-awareness of modernity.


“O passado é uma terra estrangeira” L.P. Hartley.

A epígrafe acima, retirada do romance O Mensageiro (1953), de L. P. Hartley, foi escolhida como ponto de partida para o presente ensaio por sintetizar diversos aspectos que se conjugam para compor o argumento a ser desenvolvido. Em primeiro lugar, o postulado de que o passado é uma terra recupera a ideia de experiência de tempo e de experiência de espaço. Esta relação entre arte e uma experiência específica do tempo e do espaço remete também à clássica aporia ut pictura poesis, que, por sua vez, se conjuga com a ideia de tradução ou expressão intersemiótica. Em segundo lugar, o passado ser uma terra estrangeira, remete à ideia de um passado que não pertence àqueles do presente, que não é capaz de dar sentido ao seu entendimento de mundo. Esse passado recente que não é mais capaz de dar sentido a um presente que caminha em direção a um futuro imaginado remete ao conceito de autoconsciência histórica de pertencimento a um período de viragem de época. Além disso, o adjetivo estrangeira aponta para uma ideia de tensão entre o nacional e o internacional, entre o local e o cosmopolita, tensão essa que sempre figurou entre as preocupações das vanguardas modernistas e compôs uma parte importante das propostas estéticas do modernismo português.

Tradicionalmente, na crítica literária, o modernismo tem sido discutido como uma resposta cultural à experiência da modernidade. Essa relação dialética entre uma era (a modernidade) e um movimento artístico (o modernismo) aponta para uma relação entre formas de representação e experiências específicas de tempo e de espaço. Erwin Panofsky (1991), em seu livro, Perspective as Symbolic Form,  discute a relação entre diferentes concepções de mundo e representações esculturais e pictóricas. Esta relação se estrutura na medida em que a representação artística está intimamente relacionada à maneira de se perceber o espaço e a sua relação com os corpos. Desta forma, a percepção espacial se processa analogamente tanto no “espaço estético” quanto no “espaço teórico”: “em um caso a sensação é visualmente simbolizada e no outro ela aparece como forma lógica” (PANOFSKY, 1991: 45) . Ao analisar a historicidade do conceito de perspectiva, Panofsky chama atenção para a falta de linearidade dos problemas artísticos no eixo do tempo, relacionando as rupturas com mudanças de protagonismo de um determinado país ou um determinado gênero no cenário artístico. Quando investigações que se dedicavam à questões artísticas específicas “avançaram tanto que trabalhos na mesma direção, baseados nas mesmas premissas, parecem improváveis de gerar frutos, o resultado é geralmente um grande recuo, ou talvez melhor, uma reversão na direção”. (PANOFSKY, 1991: 47). Essa mudança de protagonismo faz com que haja um abandono de muito do que já foi realizado e se recupere modos aparentemente mais “primitivos” de representação. “Assim, vemos Donatello surgir não do classicismo pálido dos epígonos de Arnolfo, mas da tendência decididamente Gótica” (PANOFSKY, 1991: 47).

No livro O discurso filosófico da modernidade, Jurgen Habermas (1985) explica que a ideia da modernidade como um processo unívoco e contínuo a relaciona intimamente com o conceito de racionalismo ocidental desenvolvido por Max Weber: “não foi apenas a profanização da cultura ocidental que Max Weber descreveu do ponto de vista da racionalização, foi sobretudo o desenvolvimento das sociedades modernas” (HABERMAS, 1985: 15). Assim, o cotidiano passa a ser transformado pelo desenvolvimento de um processo de racionalização social e cultural responsável por dissolver as formas tradicionais de organizações humanas. Agora, no lugar destas identidades que se baseavam nas funções laborais exercidas nas sociedades tradicionais, surgem novos modelos de socialização formadores de subjetividades e identidades abstratas do eu, proporcionando assim uma ideia de individualização do corpo social.

Esta relação entre modernidade e racionalismo ocidental estabelece o conceito de modernidade como um conceito de época: os novos tempos são os tempos modernos. Dessa forma, a separação entre a idade média e a idade moderna se faz de acordo com eventos marcantes na história europeia, como a Reforma Protestante, a descoberta do Novo Mundo e o Iluminismo. Esta cisão temporal que coloca a idade moderna como novos tempos cria a representação da história como um processo homogêneo: “A Idade Moderna confere a todo o passado uma qualidade de história universal (…) O diagnóstico dos novos tempos e a análise das eras passadas estão em mútua relação” (KOSELLECK, 1979: 327). Assim, separação epocal localizada a partir Iluminismo não opera apenas o movimento de criar um novo paradigma de organização sócio-político, mas está ligada à ideia de que a modernidade é um prosseguimento natural de uma evolução histórica linear. A partir desta ideia de que a modernidade é a expressão do racionalismo ocidental criou-se a contingência da universalização da cultura eurocêntrica como um evento natural do desencadeamento histórico. Este sistema de pensamento cria uma lógica de superioridade cultural que mascara a possibilidade de se pensar a modernidade enquanto uma complexa dinâmica heterogênea geopolítica à qual o modernismo respondia.

Perry Anderson (1984) publica o artigo Modernity and Revolution na New Left Review que problematiza a abordagem de que a modernidade é uma linha contínua, em constante expansão. Anderson propõe que, contrariamente à crença de que o modernismo é a resposta cultural à experiência da modernidade, entendida enquanto modernização capitalista (social, tecnológica, econômica, etc), um estado irregular de modernidade é um dos pré-requisitos fundamentais para o desenvolvimento do modernismo. Ou seja, o modernismo requer uma modernidade que pode ser caracterizada como ainda não realizada totalmente, mas que ainda assim é prometida e promissora. Anderson inicia a sua análise criticando o enquadramento histórico do conceito de modernismo proposto por Marshall Berman em seu ensaio tudo que é sólido desmancha no ar para compor seu argumento: “É muito significativo que Berman tenha que reivindicar que a arte do modernismo tenha florescido, esteja florescendo como nunca antes durante o século XX”(ANDERSON, 1984: 102).

Para Anderson, existem três problemas fundamentais com esta leitura de modernismo. Primeiro, o modernismo enquanto um conjunto específico de proposições estéticas é datado precisamente do século XX. Esta localização histórica do modernismo no século XX segue uma lógica de contraste com formas realistas e clássicas dos séculos XIX, XIIX e anteriores. Assim, praticamente todos os textos literários analisados por Berman para compor o seu argumento precederiam o modernismo propriamente dito. O segundo ponto, que se processa enquanto continuação lógica do primeiro, é que, uma vez que se pensa o modernismo como um conjunto específico de proposições estéticas, historicamente datado do século XX, pode-se perceber como a sua distribuição geográfica se processou de forma desigual, mesmo pensando-se especificamente no mundo ocidental. Ele cita o caso da Inglaterra como o principal exemplo deste desbalanço modernista. Mesmo sendo o país pioneiro da industrialização capitalista e líder do mercado mundial por um século, não produziu nenhum movimento nativo de caráter modernista nas primeiras décadas do século XX. O caso inglês torna-se ainda mais emblemático quando pensamos, durante a mesma época, a dinâmica entre Inglaterra e outros países anglófonos que produziram explosões modernistas, como a Irlanda de James Joyce ou os Estados Unidos de Ezra Pound e T. S. Elliot. Assim, não é acidental que o caso inglês seja a grande ausência na análise desenvolvida por Marshall Berman em Tudo que é sólido desmancha no ar.

A terceira objeção é que o conceito de modernismo proposto não estabelece nenhuma distinção nem entre as diferentes tendências estéticas que contrastam entre si e nem dentro da gama de práticas estéticas que compõem as diferentes formas artísticas. No final, para Anderson, Berman não foi capaz de fornecer, dentro de seus próprios termos de referência, qualquer explicação da divergência que ele lamenta entre arte e pensamento ou teoria e prática da modernidade no século XX. A hipótese proposta por Anderson para contrapor as ideias de Berman é, portanto, de que devemos procurar uma explicação conjectural para o conjunto de práticas estéticas e doutrinas agrupadas sob o conceito de modernismo. Esta explicação conjectural baseia-se na ideia da modernidade enquanto interseção de diferentes temporalidades históricas. O modernismo, dessa forma, seria melhor entendido como um campo cultural de forças triangulado por três coordenadas decisivas.

A primeira coordenada histórica seria a codificação de um academicismo altamente formalizado nas artes visuais e outras artes, institucionalizado nos regimes políticos e impregnado na malha social. Este academicismo era frequentemente dominado por aristocratas e grandes donos de terras. Essas classes sociais, apesar de não serem mais as classes dominantes economicamente, ainda ditavam os rumos da política e da cultura em diversos países na Europa antes da primeira guerra mundial. A segunda coordenada proposta por Anderson é um complemento à primeira. Ou seja, a ainda incipiente e, portanto, essencialmente nova emergência dentro dessas sociedades de tecnologias chave ou invenções da segunda revolução industrial (rádio, automóvel, telefone, avião, etc). Indústrias de produtos para consumo em massa baseadas nessas novas tecnologias ainda não haviam sido implantadas em nenhum lugar da Europa. Até 1914, a produção de roupas, móveis e comida permaneciam como os maiores setores empregatícios e de bens finais de consumo. A terceira coordenada da conjuntura modernista seria a proximidade imaginada de uma possibilidade de revolução social. Formas dinásticas reconhecidas como antigos regimes ainda persistiam por diversos locais da Europa durante os primeiros anos do século XX. A Rússia, Alemanha e Áustria ainda viviam sob a ordem da monarquia imperial. A Itália era governada por uma precária ordem real. O Reino Unido estava ameaçado com uma possibilidade de desintegração regional e guerra civil nos anos precedentes à primeira guerra mundial: “Em nenhum Estado da Europa a democracia burguesa estava completa enquanto forma, ou o movimento operário integrado ou cooptado como uma força. O possível desfecho revolucionário ou queda da velha ordem era ainda profundamente ambíguo” (ANDERSON, 1984: 104).

A partir destas três coordenadas, Anderson propõe que a persistência desses antigos regimes monárquicos e o concomitante academicismo forneceu um espectro de valores culturais contra os quais formas insurgentes de arte puderam se definir. Mais ainda, o academicismo conservador serviu como o adversário oficial contra o qual um grande espectro de novas práticas estéticas pode se determinar enquanto sentido de unidade. Ou seja, a tensão entre o modernismo e as formas consagradas e canônicas estabelecidas funcionou como ponto constitutivo da definição do modernismo enquanto tal. Ao mesmo tempo, a ideia da imagem da nova idade da máquina proporcionava um poderoso estímulo imaginativo para o surgimento de um determinado tipo de sensibilidade modernista.

Essa nova sensibilidade modernista demonstrava-se patente no cubismo parisiense, no futurismo italiano ou no construtivismo russo. Ainda assim, em nenhum dos casos houve qualquer tipo de exaltação do capitalismo ou de ideias afinadas com a democracia burguesa herdeira dos ideais iluministas. A própria imagem promissora de um mundo novo, representado por uma nova idade da máquina moderna, só se tornava possível por um conjunto ainda incipiente e ainda imprevisível de padrões socioeconômicos que viriam inexoravelmente a se consolidar por toda volta. Em outras palavras, ainda não era possível prever para onde essas novas invenções e dispositivos iriam conduzir as sociedades e seus indivíduos enquanto novas possibilidades de formas de vida. Essa amplitude de possibilidades explica a celebração da vida moderna enquanto instauração do novo tanto pela esquerda quanto pela direita das diferentes vanguardas modernistas, variando ideologicamente na amplitude de Mayakovski a Marinetti.

Os primeiros textos de intervenção de Almada Negreiros revelam esta vontade de romper com um passado recente e principalmente com um academicismo formalizado nas artes, revelam uma vontade de romper com o gosto romântico que dominava a produção artística portuguesa. Assim, Almada se lançava na escrita, distribuição e apresentação de manifestos que propunham uma ruptura com um ideal de passado para construir uma narrativa nacionalista em direção a um futuro. Essa vontade de uma narrativa que desse conta do nacional revela um discurso modernista específico para o local de enunciação português, reforçando a perspectiva de que o modernismo tem que ser lido como um complexo mapa geopolítico de coordenadas que se comunicavam com necessidades específicas nacionais e com um projeto cosmopolita internacional. Entretanto, esse futuro para o qual o presente, que rompia com o passado imediato, caminhava ainda era incerto, exatamente porque a ideia de modernidade que seria experimentada no século XX, o ideal de idade da máquina ou de cidade proletária, ainda se fazia apenas num plano ideológico em Portugal, na medida em que o país era majoritariamente rural e, mesmo em seus centros urbanos, era ínfima a existência de produtos relativos à segunda revolução industrial.

Homi Bhabha (1998), no livro O Local da Cultura, relaciona a nação enquanto estratégia narrativa com a liminaridade da modernidade cultural. Para Bhabha, existe uma força psicológica e narrativa que a nacionalidade incute, não apenas na produção cultural, mas também na representação política. Dessa forma, essa localização da estratégia narrativa da nação como problemática pertencente à modernidade combina representações estética e políticas com um entendimento particular de tempo e espaço. Mais ainda, esta força narrativa e psicológica é resultado da ambiguidade ideológica suscitada pelo conceito de nação enquanto estratégia narrativa: “como aparato de poder simbólico, isto produz um deslizamento contínuo de categorias, como sexualidade, afiliação de classe, paranoia territorial ou “diferença cultural” no ato de escrever a nação” (BHABHA, 1998: 200).

Essa ambiguidade narrativa do conceito de nação compõe um sistema significante do espaço que passa a ser visto como espaço-nação. Essa visão espacial dentro dos limites da nacionalidade participa de uma gênese mais geral da ideologia em sociedades modernas. Segundo Bhabha, a mesma tensão entre pedagógico e performativo que existe na narrativa nacional, converte a referência a um povo “em um problema de conhecimento que assombra a formação simbólica da autoridade nacional” (BHABHA, 1998: 207). O povo, nesse sentido, não seria nem o ponto de partida e nem o devir da narrativa nacional, mas representaria a tênue fronteira entre as forças totalizadoras do campo social (entendido como comunidade homogênea) e os poderes que significam uma busca por interesses mais específicos e identidades mais heterogêneas, desiguais, dentro de uma população.

Esta tensão entre o pedagógico e o performático pode ser percebida já nos textos iniciais de Almada Negreiros, como no Manifesto Anti-Dantas, por exemplo. O ataque que o manifesto dava corpo, além de expressar essa oposição entre o modernismo enquanto estética nova e o academicismo formalizado nas artes contra o qual essa nova estética se eregia, também estava intimamente relacionado à utilização do escândalo enquanto ferramenta política. Este escândalo não estava referido apenas nos xingamentos nomeadamente dirigidos, mas na própria maneira como o manifesto foi apresentado ao público e distribuído. José Augusto França (1997), explica que Almada escreveu o Manifesto Anti-Dantas após assistir e aplaudir de pé, sarcasticamente, a apresentação da peça de Júlio Dantas no teatro. O texto foi ainda impresso e entregue por Almada a uma livraria do Chiado para ser posto em circulação. A utilização do escândalo não apenas através de ataques pessoais, mas também por meio de grande performance, acabava por gerar um acontecimento artístico que apontava para um novo modo de produção cultural. Este modo de produção, que interrogava os limites de diferentes formas de mediação estética, experimentava formas híbridas de representação em oposição aos limites previamente estabelecidos e cristalizados dos modos de intervenção tradicionais. A própria escrita do manifesto, com o uso constante de onomatopeias como Pim, Pam, Pum e de sinais gráficos como parece, além de desafiar as estruturas tradicionais da linguagem escrita, revelar uma estrutura de partitura, um texto elaborado para ser executado em público em detrimento de apenas lido individualmente.

No ensaio intitulado Literatura e pintura: um velho equívoco?, Mário Dionísio (1983), explica que desde Mallarmé, a formulação poética passou também a apresentar, aparentemente, uma organização espacial própria da expressão plástica: “os brancos, os versos interrompidos ou continuados na(s) linha(s) seguinte(s) ou na página do lado, a par, os vários tipos e corpos tipográficos. E a obrigação do leitor de movimentar os olhos (…) como quem vê (se quiserem “lê) um quadro” (DIONÍSIO, 1983: 8) . Entretanto, se o desenho dos poemas poderia sugerir ligações com a expressão pictórica, em diversos casos, como em Un coup de dés de Mallarmé, as marcas gráficas visavam muito mais uma leitura em voz alta do que qualquer intuito plástico, sugerindo a imagem de uma partitura, que indicava “pausas mais ou menos demoradas, acelerações, abrandamentos, subidas ou descidas de entonação, como o próprio Mallarmé explicou no seu prefácio” (DIONÍSIO, 1983: 8). Dionísio também destaca a presença deste sentido de partitura, para ser lida em voz alta, na Ode Marítima e na Ode Triunfal, de Álvaro de Campos, em oposição às intenções plásticas da Manucure de Sá-Carneiro:

As variações de tipos, redondos ou itálicos, mais o uso da caixa alta em corpos diferentes assinalando crescendos ou as séries de vogais ou consoantes ligadas por um hífen (os sete r e os doze z da “Ode Marítima”), são também encaminhamentos de leitura: intenção fônica. Bem ao contrário do que poderá dizer-se das inovações (gráficas) da “Manucure” de Sá-Carneiro, essas, sim, de manifesta índole visual, não só no procedimento: a composição ondulada, do verso “É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!”, a transcrição dos dísticos de embalagens “em trânsito cosmopolita” (sugestão óptica de viagem) – FRAGIL!/FRAGIL!/843-AG LISBON / 492 – WR MADRID” – A composição da “Assunção da Beleza Numérica!” ou a dos “abecedários antigos e modernos”, dos catálogos tipográficos. (DIONÍSIO, 1983: 8-9).

Essa interseção de diferentes linguagens artísticas – na intenção performática do manifesto partitura de Almada e das odes de Álvaro de Campos, na intenção plástica do poema pintura de Sá-Carneiro e do autorretrato de Almada Negreiros de 1943, repleto de palavras e citações integradas em uma linguagem que não era originalmente sua –  revelava, além da vontade de renovação dos gostos nas mais diferentes linguagens artísticas, uma vontade de explorar os limites de cada linguagem, de subverter as fronteiras de cada categoria artística. Essa necessidade de novas repactualizações aponta para a ideia de autoconsciência de pertencimento a um período de viragem histórica, onde as antigas categorias de representação não se mostravam suficientes para a expressão de um presente entendido como o alvorecer de uma nova era. Esta vontade de dar conta de tudo ao mesmo tempo já se revelava no ideal sensacionista do “sentir tudo de todas as formas” e na filiação concomitante de Almada Negreiros a diversas escolas estéticas, se definindo ao mesmo tempo como, entre outras coisas, desenhador, Narciso do Egito e “poeta de orpheu, futurista e TUDO” (ALMADA NEGREIROS, 1997: 641), compondo uma verdadeira polifonia artística.

A ampla obra de Almada Negreiros e o envolvimento na cena artística e social nos mais diversos aspectos aponta para uma vontade de participação no regime de criação das formas de representação da sua contemporaneidade. Essa autoconsciência de pertencimento a um momento histórico de necessidade de novas formas de representação, por sua vez, liga-se intimamente à dialética do modernismo e da promessa de modernidade, encarada a partir de seus diferentes focos de eclosão. Neste sentido, o futurismo italiano e outras vanguardas históricas participaram do regime de referências de Almada Negreiros, constituindo-se, inclusive, enquanto arcabouço cultural comum entre o autor e outras formas modernistas que dialogavam com sua produção. Entretanto, a totalidade da obra de um autor tão múltiplo e que sempre buscou uma expressão original a partir do nacional jamais poderia ser focalizada por uma relação de influência direta e unívoca de um sistema estético prévio. Almada Negreiros foi um criador de suas próprias mitologias individuais, de seus próprios signos e significados concebidos para dar conta das questões que dialogavam com as tensões de sua contemporaneidade.

Em conclusão, o modernismo foi um momento de florescimento cultural, onde as categorias de representação existentes não respondiam mais às necessidades contemporâneas. Essa vontade de ruptura com o passado recente aponta para a ideia do modernismo como um período onde havia, por parte dos artistas, um ideal de pertencimento a um momento de viragem de época. Essa necessidade do novo expresso nas diferentes linguagens artísticas e em formas artísticas hibridas, criadas a partir de misturas de formas de expressão, foi aqui pensada como um dos signos que expressam essa vontade de atualizar os gostos e os intelectos à uma nova experiência de tempo e espaço. Entretanto, essa alteração na experiência de tempo e espaço se fazia muito mais no nível do espaço psicológico e teórico, apresentando-se assim, em concordância com a modelo de Anderson de que o modernismo é uma resposta cultural à uma promessa de modernidade.


Referências bibliográficas

ALMADA NEGREIROS, José de. Manifesto anti-Dantas. 1997. In: BUENO, Alexei (Org). Almada Negreiros: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997.

ANDERSON, Perry. Modernity and Revolution. New Left Review 144 (1), 1984. pp. 96 – 113.

BHABHA, Homi. DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna. In: BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 1998.

DIONÍSIO, Mário. Literatura e pintura: um velho equívoco?. Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 71, 1983.

HABERMAS, Jurgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Frankfurt: Ed. Suhrkamp, 1985.

KOSELLECK, Reinhart. Espaço de Experiência e Horizonte de Expectativa. Frankfurt: Main, 1979.

PANOFSKY, Erwin. Perspective as Symbolic Form. New York: Zone Books. 1991.

 

Nota

[1] É professor adjunto e professor do quadro efetivo do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura (PPGLit) da Universidade Federal de São Carlos. Realizou pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense com financiamento FAPERJ (Bolsa FAPERJ Nota 10). Possui doutorado pelo programa de pós-graduação Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro com período sanduíche de doze meses na Universidade de Coimbra (2016). Possui mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2011). E-mail: daniellaks@ufscar.br


Revista Triplov . Tomo Saudade de Futuro . Setembro de 2023

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