LEILA FERRAZ (1944- BRASIL)
Meu amor, eu te falo de um amor
que toma a forma de todos os poderes do tempo
que tenha os compassos na duração da vida
e um sem o outro sintam-se como que decantados.
Eu te falo de um amor de reconhecimentos antigos
e de encontros perpétuos
de um feixe de luz pousado sobre tua fronte
em direção aos pontos cardeais do seu corpo.
Eu te falo do fundo dos desesperos
e das horas de lentidão extrema.
Meu amor
dos olhos secos
da alma negra
dos cabelos ruivos.
Teus filetes alongados escoam-se pelas minhas pernas de Cigana Vesperal!
Nossos suspiros marcam no Espaço uma confusão de estrelas entrelaçadas de Mercúrio
e o nosso signo fala da mesma fórmula que estende os limites do Sobrenatural ao Humano.
Nossos poderes vinculam-se aos mistérios no Universo das coisas
e transformam a vida em um bater eterno,
como o da asa das borboletas.
O movimento volitivo que alimenta o homem encontrou em nós
sua bola de cristal de propriedades encantatórias
os pecados incestuosos de nossas noites
marcam,
mais uma vez,
a despedida dos olhares mascarados em retornos e monumentos de prazeres imensos.
Meu amor
eu te falo pela língua da víbora
pelos dons dos castelos em ruínas
e pelas fogueiras armadas em meu coração.
Eu te falo pelo delicado prisma que escolheste para amar.
Meu amor
a vida faz parte do mistério do encontro das pessoas
que habitam as terras estranhas.
Meu amor
as circunstâncias do desespero são sempre apaixonadas.
POR TRÁS DA PELÍCULA DE UM DOCUMENTÁRIO
Os movimentos de mulheres dançando entrelaçadas por véus
são em si alguns bons poemas. Homens viris demonstrando força
não chegam a me emudecer. Há idosos em seus andares hesitantes
e crianças em passos que não são. As danças voadoras das imagens
além de poéticas evidenciam a beleza feminina
como em tudo nesta cosmologia planetária do corpo humano.
Às vezes me ponho a pensar na beleza de Cesariny
nos falando de sua infância, das brincadeiras na praia.
De sua juventude e amigos, e da alegria libertária
de que foi acometido quando finalmente, desempregado,
se viu poeta de corpo inteiro. Que belo homem!
Tão sensual e sedutor em seus 90 anos! Que belo!
Brincando meio sem jeito, com um sorriso ainda de menino,
ao mexer em seus parcos cabelos e boca ansiosa por tabaco.
Como ele me é conhecido, embora talvez jamais nos tenhamos visto.
ESCADARIAS ENTREABERTAS
Meu querido Floriano, meu entranhável verbo ser.
Pequena mecha de cabelo solto sobre a testa.
Como um cordão de prata, a linha da cabeça atravessa minha palma
numa existência sequencial de instantes.
Eternas estrelas girando seus olhos em cólera sobre um tapete negro e sonoro como um tambor de cetim lançam seus fogos incandescentes entre as sombras de minhas pernas,
estas raízes soltas em noites de desespero entreabertas através das eras,
estas elipses de desgelo glacial e enlouquecidas varando mais uma vez a curva da floresta e a noite sem teto de desobrigados limites,
de conhecer o esconderijo das chaves nas fechaduras dos mistérios desta mulher.
Jamais fomos tão vívidos como neste natimorto instante de pérolas ao soltarem-se de seu colar.
O robe entreaberto revela todos os nossos esconderijos,
devastando as bocas de vulcões por um instante doido.
Rompo o traçado da linha da vida e me enrolo em serpente ao redor do teu corpo,
o corpo manto e luvas de amor desmaiadas em ar e água pelas solas dos teus pés
e na lentidão inofensiva eu arrasto o tempo dos tempos,
como se a realidade já não fosse o que suspeitava ser.
Amor de um abissal desmaio, de um mergulho nas sombras do interior de uma caverna, das profundezas do ser em ti apenas uma presa imemorial neste cair de tarde.
Mais uma vez e mais inexorável e eterno sem olhos para o passado.
revista triplov . série gótica . outono 2019
parceria tripLOVAGUlha
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
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