FLORIANO MARTINS
Tributo
Manhã em Sidney. Fui visitar a livraria de um museu e ali me encontrou um livro com reproduções de máscaras tribais daquela região do planeta, em especial Austrália e Nova Zelândia. A ideia de que algo se modifique ao ponto de que o mistério de sua existência não se deixe deformar em essência me pareceu o começo de um bom diálogo com aquelas máscaras que eram a visível ocultação de uma vida, porém ao mesmo tempo me sugeriam a entrada em um bastidor que me mostraria de quem se tratava cada figura, desde que eu identificasse seu esconderijo. De volta à casa de minha filha, no extenso trajeto do ônibus eu refletia sobre o que seria um símbolo de derivação. Recordei então um livro precioso de minha adolescência, O ramo de ouro. As máscaras sugerem transformações, porém apontam na direção de uma ambiguidade. Não são o que são, mas antes o que esperamos delas. Não exprimem conversão, mas sim a identificação com outro modo de ser. As máscaras são uma pedra de libertação. Guardei comigo por décadas a ideia que James Frazer havia anotado acerca das máscaras na Oceania. Elas nos limpam a alma. No dia seguinte fiz fotos de rosto de minha mulher, minha filha e minha neta. Uma abundância de esgares que deveriam contrastar com a imobilidade de máscaras ritualísticas que a partir daquele momento comecei a fotografar em vários lugares. Um encontro entre dois tempos: o da concepção de uma máscara como a transfiguração de um rosto à qual ela se aplica e a teatralização de um significado que expressa a mística de sua recepção. Tinha comigo um primeiro estoque de máscaras e rostos e fui recordando leituras, viagens e outras formas de visitação. No voo de volta ao Brasil eu matutava acerca da mitologia e suas máscaras. Personagens como Circe e Medusa são o disparador de uma expansão insaciável de imagens. Uma tem por tática a transfiguração. A outra, a imobilidade. O mundo foi ficando seco em seus atributos mitológicos. Uma parte se identifica com eles como um código inquestionável que necessita uma guarda permanente. A outra parte não é menos vítima, recolhe as sobras, intui o desgaste, vai vivendo. Haverá então uma máscara por detrás da máscara? Uma essência dentro de outra? Isto resulta indagar acerca da morada do homem. Quando regressei ao Brasil eu fui buscar outros rostos que falassem comigo. E os diversos olhares sobre uma máscara que até então eu vinha anotando em meu espírito me levaram a buscar mais fontes mitológicas.
Foram quase duas mil máscaras fotografadas. Museus, aldeias, coleções particulares. Viagens por uns 20 países. O exagero na formação de um acervo delas contrapunha-se à economia (ou precisão) na escolha do rosto certo das sete modelos encontradas. A essas mulheres eu dedicaria a mágica de sondar outros perfis do mistério. E foram elas que definiram o tempo de trabalho, desde o primeiro olhar, fotografado em Sidney, até o encontro final com um rosto na Lagoa do Bonfim, nordeste brasileiro. Em todos eles eu busquei um metal e fui surpreendido com outra joia. O metal definia-se por uma mescla de coloração e formato do rosto. A joia se apresentou na forma de um teatro, a variação estonteante de feições que a câmara capturou. O risco convertido em dádiva. A vida é de uma imperfeição feliz.
Ao aventurar-me por diversos lugares eu tinha em mente que o regresso à mesa de edição exigia que todas as pistas fossem apagadas: máscaras mortuárias, máscaras emblemáticas ligadas às religiões e à cultura de massas, eu deveria inseri-las em meus rostos de modo a sugerir uma distinta forma de impacto. O símbolo não é mais uma sinalização do mistério ou de identificação ritualística. Ele se projeta por imposição de meios. Não é mais associado ao acaso ou à corrente afetiva entre os seres. Seu grau de influência – melhor diria interferência – é definido pelo mercado. A minha ideia então se ocupava de uma restauração do mito em seu estado natural. Ao mudar uma pedra de lugar descobrimos que as formas não existem em estado puro. Uma mudança de ângulo será suficiente para deslocar a compreensão do mundo. As repetições de estratégias que garantem manutenção de poder são orientadas por essa mesma perspectiva. Temos uma compreensão elíptica da história. Máscaras formam ou deformam o mito?
O homem não é consciente da extensão de sua queda pela simples razão de que não se distancia de seu pendão cotidiano, jamais compreende a si mesmo como parte de algo. Diante do espelho fantasia uma existência devotada a driblar analogias. Uma operação secreta de deslocamento de conjugações verbais. O que foi, o que é, o que será. A configuração de um mundo pronominalmente desacreditado. Eu nunca nada. Tu nem pensar. Nós jamais existimos. Eles constituem o martelo da paranoia. Até mesmo os diabos menores se divertem com as imagens arrematadas em leilão. O verbo se cansa. Até mesmo as sombras se desgastam. O mito não depende de si.
Os sete rostos que fotografei me ensinaram a descascar o visível até que outro mundo deixasse entrever seus anagramas. Não importa o que sentimos em relação ao outro. Trazemos dentro de nós veneno e antídoto. Sete mulheres me olharam diante de uma Canon e me surpreenderam pelo desprendimento de seu espírito. Quando fotografei as máscaras elas mesmas me diziam com quais rostos queriam dialogar. Eu me entreguei a um mundo de cada vez, buscando uma configuração distinta para cada mito, uma atualização de cenário e bastidor, a recuperação de uma sinceridade cênica. Um dia precisaremos saber até onde estamos dispostos a ir.
O olhar define a arte de um modo enganoso. Quando passamos de uma escala do mistério para outra, da pintura para a música, compreendemos algo distinto. O mundo deixa de ser o que vemos e passa a ser o que ouvimos. O sentido não define a arte. Tampouco é definido por ela. O caráter inquieto e criativo de cada um de nós é o que ordena a rota alusiva de nossa existência. Um estado permanente de correspondência entre o que imagino ser e o que me falta. A forma não existe senão como uma impureza do ser. É o que expurgo de mim, o gráfico de uma libertação. O cenário cósmico dos símbolos integra ansiedades, afinidades, com uma força anímica que muitos não dão por sua atuação. A máscara é um gráfico. Não convidamos o mito a fazer parte de nossa vida. Não expressa uma realidade em si, mas antes uma rede de conexões que nos permite definir ou corrigir o modelo apresentado. A máscara é um desafio para que o símbolo configure nova essência. Uma manifestação da inquietude do ser.
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Colaborador das revistas Altazor (Chile), Matérika (Costa Rica), La Otra (México), Blanco Móvil (México), Triplov (Portugal) e Acrobata (Brasil). Estudioso da tradição lírica na América Hispânica e do Surrealismo.
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