Maria Estela Guedes: Dracula draco

 

JÚLIO CONRADO


Comunicação destinada ao 4º Encontro TRIPLOV na Quinta do Frade (Lisboa, 5/11/17 ), parcialmente publicada como recensão no Artes entre as Letras, Porto, nº208, de 13 de3 Dezembro de 2017


Pelo menos o título Dracula Draco que Maria Estela Guedes escolheu para a colectânea de poemas editada pela Academiei Internationale Orient-Occident, de Bucareste, no seu  70º aniversário (21/5/1947), e no âmbito do “Festival Internacional de Poesia de Curtea de Arges”, remete para uma figura vampiresca mitificada por literatura, teatro e cinema. Não se pode dizer que seja um ícone intruso nas recordações de muitos de nós.

Esta publicação (bilingue: português/romeno) dá a Maria Estela Guedes a oportunidade de mostrar o essencial da sua poesia ao público romeno erudito através de um conjunto de obras datadas em que o tema da viagem é a invariável dominante. Por conseguinte, três pressupostos, digamos assim, satélites, convergem para um ponto de partida, o da abordagem da proposta nuclear: o espírito do Lugar, o mito da Viagem e os Vultos convidados a humanizarem os respectivos conteúdos, em digressão intemporal e imaterial pelos textos.

Desde logo MEG requisita um fantasma ilustrado para companheiro de visita: nem mais nem menos do que Federico Garcia Lorca. E numa cidade bem distante da sua Granada natal: Nova Iorque. Intitulando-se o poema Conversas com Federico Garcia Lorca, é fácil perceber que MEG não se queira a deambular sozinha pelas geométricas avenidas da Grande Maçã e submeta de imediato o monólogo dialogado com o bardo espanhol a uma espécie de escala mediante a qual energicamente contesta as opiniões de FGL acerca do país e da cidade cujo chão “pisam”. Vêm à tona crispação política, dúvidas ontológicas q.b., novas convenções sexuais reguladas por legislação própria, contenção da criminalidade, e outros avanços, o que leva Maria Estela a contestar a visão pessimista de Lorca.

É defendendo os enormes progressos na evolução das mentalidades que a modernidade tecnológica trouxe à melhoria da qualidade de vida dos habitantes de New York, New York / Cidade tão pulsante como a tua poesia. que a portuguesa de dirige a um Lorca desencantado com o american way of life da sua época.

Se Maria Estela Guedes consegue, a partir da convivência subliminar com o poeta andaluz, estabelecer as dialécticas indispensáveis à captura e fixação de um “espírito novaiorquino”, não se pense que ela o faz somente à custa dos segmentos luminosos que àquele levam. Ela não foge ao escrutínio das mazelas, dos podres, dos desperdícios, dos maus comportamentos, mas vai preenchendo a carta a Garcia com o repúdio do racismo e de demais entorses sociais ao referir: Apesar disto, Federico, nada hoje verias / do Torpe racismo / nem do estúpido horror a gays / que sofreste no teu tempo! / E repara, Poeta: não foi a América, mas sim a tua / Europeia Espanha quem te assassinou a tiro.

  1. Sebastião e São Sebastião: encontro na Praia do Tamariz

Maria Estela Guedes não se preocupa com a introdução na sua poesia de adornos rítmicos susceptíveis de suavizarem os efeitos de lógica pura e dura que a coloca mais perto das conquistas das minorias marginalizadas, dos mitos pesos pesados passeando-se in absentia na praia do Tamariz (no Estoril, para quem desconheça) ou das “conversas” com Garcia Lorca sobre Nova Iorque que exploram à uma versão da América afastada daquela que espoletou a incontida agrestia do espanhol.

Mas não se fica por aqui o prazer da autora da peça de teatro Tango Sebastião pela Viagem uma vez que cada poema “esconde” uma ousadia itinerante. É assim que a evocação do mártir e santo Sebastião e el-rei D. Sebastião convivendo de viva voz nas brumas da memória transformadas em ondas atlânticas, neste poema estorilista de Maria Estela Guedes, se cumprimentam com a mediação desta, corajosa e destemida, naturalmente vergada ao peso de ter de vigiar dois mitos tão obstinadamente cristalizados no imaginário colectivo.

Em viagem, por conseguinte, anda constantemente a poesia de Maria Estela Guedes e ela própria. Do Estoril para o Norte de Portugal, dista um mero separador: é chegado o momento da autora mostrar aos “irmãos” da Maçonaria Florestal vindos do Brasil o exuberante património vegetal de Douro e Minho, com deslocação agora em comboio. Nos versos de MEG juntam-se mosaicos sociais de diverso perfil, qual deles o mais controverso e de mais delicadas nuances na sua especificação: da vida nocturna do Porto observada através da janela da Pensão Cristal e mais as visitas a Penafiel, Marco de Canaveses, Pinhão, (oh, o comboio da Linha do Douro, esse brinquedo para gente grande!), enfim uma senhora passeata pelas exuberantes terras nortenhas, mas também um jogo de sensibilidades, memórias, História, subjectividades, tocado pela varinha mágica da maturidade criadora da autora para descobrir, mostrar e remexer as suas mais caras mitologias, ao evocar os seus mais persistentes fantasmas e os seus mais entusiasmantes locais de culto, com lugar cativo para o mordaz vampiro da capa, um tal Drácula, reincidente, ao que dizem, no consumo de sangue fresco.

Vantagem e Boa Vida

Mas deixe-se o sequioso Drácula a congeminar o modo de se saciar, posto não existir no livro passagem que justifique, para ele, a aura superlativa a outros devida. Instalemo-nos, a convite de MEG, a seu lado, no TGV que atravessará a Flandres, ainda que seja preciso contar com a omnipresença de mais um fantasma, esse sim, interlocutor verdadeiro da “carvoeira” – nossa anfitriã no compartimento da carruagem. O fantasma chama-se Herberto e a sua afinidade com o carvão fez dele, muito naturalmente, o “obscuro”. É o fantasma de um poeta. Limitar-me-ei, como me compete, a ser o ouvinte imperturbável de uma MEG a falar sozinha com o obscuro e a captar o que puder de um manancial de informações pelo qual passam, vertiginosamente, evocações de vários enredos, muito firmes na memória e ainda capazes de propiciarem, aos mais intuitivos, entusiasmos e calafrios extemporâneos mas humanamente aceitáveis.

“Gostas que te mexa no Pote dos Versos / com a gadanha da alma /Longe da Academia / Longe do perípatos /pertinho das sensações / Em carne viva.”

Não vai para Antuérpia este comboio

Mas imagina tu, Herberto, para onde vai a carvoeira!

Para um templo aberto na floresta dos símbolos

Verdes, na Flandres algures / Nordeste de França

Por onde tu de comboio também viajaste, na

 fronteira com a Bélgica das vacas

No limite da fome em Antuérpia

Cantando flamenco / Dançando fandango

Aliás era o tango

Nos bares de putas e marinheiros.

Está-se em território sob influência do Temple dos  Charbonniers, na Flandres, “entre Lille e Valenciennes” onde “reunem os bons primos belgas e franceses / e praticam o Rito Florestal ao Ar Livre / só com o avental de borrego / como paramentos.”

As evocações denunciam cumplicidades antigas, dão o poeta como tendo frequentado aqueles lugares e ritos, ou pelo menos tirado partido da generosidade de Mère Cateau / essa que lhes abria (aos Bons Cousins) em toda a sua doçura feminina / O coração e as pernas / dando-lhes a passarinha / e le potage aux choux / Bela perspectiva que te havia de inspirar.”

Talvez não exagere ao admitir que Le temple… é das peças mais bem humoradas deste livro. A autora diverte-se, o fantasma diverte-se, o leitor diverte-se. Mas é um sentido de humor são, contrapartida de páginas em que a dramatização impera. O discurso coloquial bem urdido ajuda a que assim seja. E todavia o fantasma está estruturalmente organizado segundo o modelo de Federico, com a função de pivot (bem) entregue a Maria Estela Guedes.

 

 Caesalpina echinata em migração clandestina

Não sei se deva considerar este “roubo” de um tesouro pátrio alheio como ilícito criminal ou muito simplesmente como uma tentativa extremada (leia-se igualmente, bem intencionada) de contribuir para a preservação da vida vegetal, quando já estão ao que parece quase goradas as tentativas de salvação de espécimes raros do tipo desta Caesalpina echinata, ou seja, o pau-brasil “em estado selvagem, consumido até às últimas exsudações do ar que se respira.”

Ao dar-se conta da raridade da espécie, sobrevivendo apenas “um colar de vermelhas sementes a darem três voltas ao pescoço com blusas de veraneio”, a poeta portuguesa, no Brasil e de abalada para Portugal, experimenta a irresistível tentação de esconder uma dessas sementes num seu cesto de viagem, ignorante de que infrigia as leis dos dois países. Seria o Jardim Botânico da Escola Politécnica de Lisboa o destino do precioso detalhe vegetal, que só sobreviveria “sob o cuidado humano na área da domesticidade”. Enfim: “Nem no Brasil impediram mais um gesto de extinção / nem na alfândega portuguesa, nem a polícia reparou, nem o comandante do avião / nem o comissário de bordo / ainda menos hospedeira à saída do Brasil / o mesmo desdém em Lisboa”.

Depois de imponente festa que meteu discurso do director da EP, o famoso botânico Fernando Catarino, “plantou-se então com ritual aquele pezito distinto no arboreto do Jardim Botânico… E ninguém avisou que isso era proibido. A plantinha começou a entristecer sem chegar a pegar e a crescer – e assim morreu a ilusão.”

Não, parece que ninguém respondeu por este transporte de lugar para lugar sem observância da lei. A transgressão valeu pela  intenção. 

 

O rapazinho que foi ao quartel de Penafiel visitar um soldado

De entre os pontos fortes da poesia de Maria Estela Guedes apresentada aos romenos destaque-se neste livro o aumento de intensidade dos poemas à medida que o livro se aproxima do fim. Um dos momentos mais fortes, O Mito da Matéria, parte integrante do vasto Linha do Douro, espelha seguramente o maior empenhamento da autora em fazer alarde da sua vocação humanista, desde um intransigente libelo contra a pobreza escondida na paisagem esplendorosa, encadeando vibrações e sensações dolorosas transmitidas pela Matéria, responsabilizada pela desproporção dos desejos incumpridos no apuramento do saldo da vida vivida “o pote ao lume/a quentura do forno/o poupar até às fezes” e pelo desespero de quem existe “entre o terço e as pernas e entre as pernas e as portas como uma grande onda maternal” desenhando MEG no poema um arco alegórico que culmina na história do rapaz que abandona a rapariga no café por ter de fazer uma visita, no quartel de Penafiel, a um soldado que o esperava. E depois o poema esclarece tratar-se de “coisas escandalosas de que em tempos remotos nem se falava nelas, nem se sabia de nada” sendo pouco crível que hoje em dia, nos cafés locais, “estejam meninas sentadas, à espera de meninos que foram visitar soldadinhos ao quartel de Penafiel.” Trágico e comovente na enunciação das ausências e demissões da Matéria, desgarrada das aspirações vitais mais nobres, como desligar o rapazinho que foi ao quartel de Penafiel visitar um soldado, da fatalidade geral que entrevemos sob a paisagem rutilante da primeira parte deste segmento do poema-mãe?

Tambores de guerra    

Maria Estela Guedes assistiu, de muito perto, aos primeiros lances da guerra colonial, decerto sem suspeitar de que o local onde se encontrava viria a ser o cenário mais sangrento e sofredor de um conflito com a duração treze anos, de tal modo que a colónia onde habitava, pese embora a sua escassa dimensão territorial, a Guiné, acabaria, no futuro, por estar na primeira linha das causas das mudanças de perspectiva operadas nas forças armadas portuguesas até à viragem concretizada com o libertador 25 de Abril. Muito antes, digamos assim, em tempo de paz, MEG conheceu uma experiência de vida que a levou a fixar em poemas muito sentidos esses privilegiados momentos, longínquos, ainda, do que por muitos viria a ser considerado o nosso Vietname. Em todo o caso, os tambores de guerra soariam quando a poeta lá estava. Do que então experienciou dá conta no poema que a propósito do assassinato do antigo presidente Nino Vieira, em 2009, em si transbordou de recordações, inclusive a dessa data nefasta de 13 de Agosto de 1959, tinha então 12 anos. O dia do massacre do Cais de Pidjiguiti. “Com esse dia começou a guerra / e nunca mais seríeis felizes como antes”.

Não quero partir sem voltar ao Ku Pelon

                            A ouvir as serenatas do meu amigo.

                            Em noites de lua enorme

                            A viola silenciava as bombas

E as manchas de sangue no cais do Pidjiguiti 

                                               Júlio Conrado 

MARIA ESTELA GUEDES
Dracula draco
Editura Academiei Internationale Orient-Occident
Trad. para romeno de Maria Manuela Chicán
Curtea de Arges, 2017


© Revista Triplov  .  Série Gótica .  Inverno 2017