ARSÉNIO MOTA
Manuel Ferreira: com “Morabeza” entre “Hora di Bai” e “Aventura Crioula”
Saúdo calorosamente a realização deste encontro evocativo do escritor Manuel Ferreira que assinala o centenário do seu nascimento aqui perto, em Gândara dos Olivais. Foi um querido e admirável amigo, inesquecível. Afastado para longe pelas voltas no baile da vida, sempre teve presente os vínculos da amizade. Todavia, quero pedir desculpas, pois, nas minhas circunstâncias, não venho destacar o que na sua vida e obra abunda merecendo estudo e divulgação. Venho trazer menos, muito menos. Posso explicar? Enquanto o Professor José Luís Pires Laranjeira, competentemente, categoriza Manuel Ferreira como “referência pioneira, fundadora e internacional, senão mesmo global”[i] na área dos estudos literários africanos, ou seja, referência fundadora da matriz que frutificou corporizada na comunidade lusófona, colocando-o portanto no justo lugar que é dele, eu vou limitar-me aqui a evocar os anos em que o autor de Morabeza (1958) e Hora di Bai (1962) se dedicava ainda, apaixonadamente, ao estudo da literatura cabo-verdiana e do crioulo. Por outras palavras: antes de Manuel Ferreira erguer o seu esplendoroso voo para nos descobrir a forma e o tamanho da comunidade lusófona.
Começarei por me situar no início dos anos ’60.
É frequente, diria quase de regra, ver a vida e obra de um grande autor a desmesurar-se tanto que apenas esta avulta apesar de bem sabermos que é no autor que temos de procurar sempre as chaves daquela vida encerradas na obra. Todavia, no caso especial do Autor que celebramos, acontece a maravilha: a sua trajectória existencial é tão impressionante que se funde e confunde com a sua obra. Não é fácil, nem será possível, dissociar uma da outra sem perda de ambas. Nesta ideia, limito-me fundamentalmente a evocar a figura humana tal como em nós deixou rasto.
Manuel Ferreira encontrava-se então em serviço em Águeda (perto de Bustos, Oliveira do Bairro, minha terra natal) e suponho que nos encontrámos na tertúlia de Mário Sacramento, em Aveiro, que também eu frequentava. Ficámos desde logo amigos, pois, com a sua personalidade irradiante, tão aberta e fraterna, aceitou prontamente o convite que lhe fiz e partilhou comigo a direcção do suplemento “Independência Literária”, mensal, que o semanário republicano “Independência d’Águeda” publicava desde 14-10-1961. As quatro páginas dos primeiros três números editados (uma folha destacável do jornal, dobrada ao meio), cresceram para o dobro na edição seguinte – nº 4, de 13-01-1962 – graças à receita de apoio publicitário que consegui para o jornal e se manteve até 13-06-1964, data do nº 30 do suplemento.[ii]
Imediatamente a generosidade e a imensa capacidade de trabalho de Manuel Ferreira se reflectiram naquelas páginas. Morando já em Linda-a-Velha, era escritor bem conhecido (publicara em 1949 o terceiro livro, Morna, que virou a sua bibliografia para a temática cabo-verdiana) e relacionado no ambiente literário lisboeta, então animado pela edição regular de suplementos literários em quase todos os jornais diários, incluídos os vespertinos. Compareceram Alexandre Cabral, Teixeira de Sousa, Augusto Abelaira, José Gomes Ferreira, Garibaldino de Andrade e outros autores de relevo nacional, a ombrear com “novos” como Vasco Graça Moura[iii], Alfredo Margarido, Orlando Neves ou Serafim Ferreira. Manuel Ferreira colaborou com entrevistas e com artigos (“A propósito de modernos poetas cabo-verdianos” e “Vento ruim nas culturas regionais”, aquele no citado nº 4 e este no nº 13, de 13-10-1962, assinando com o seu nome ou somente com iniciais).[iv]
Tão vetustas memórias não me agitaram apenas o íntimo com lembranças e emoções. Puseram-me o corpo em movimento: escabichei em montes de velhas papeladas, trouxe-os para a luz e as recordações saltaram, renovadas e felizes! Vieram-me às mãos os originais manuscritos dos artigos, ensaios ou poemas, de Ferreira, Margarido, Graça Moura, César, Garibaldino, Cosme, Teófilo e outros textos saídos na “Independência Literária”. Sim, existiam ainda!
Mas eram poucos, somente os que se salvaram das negligências dos tipógrafos, dos tropeços da sorte e da censura prévia. Podem não ter altos valores como documentos imprescindíveis mas, obviamente, são deveras estimáveis e estão agora a pedir arquivo noutras (boas) mãos – penso eu, observando as caligrafias de cada autor e reconhecendo-as, desde logo a de Manuel Ferreira, expansiva, nervosa e rápida, e lembrando quanto rareavam as máquinas de escrever, fotocópias e esferográficas nos anos ’60.
Convém advertir, neste ponto, o eventual leitor destes originais. De facto, Ferreira escrevia fluentemente e, pelo menos neste período, andava em corridas sôfregas constantes. A confiança que havia entre nós permitia-lhe enviar-me texto composto de jacto, sem revisão, e em carta anexa a solicitação de emendar o que carecesse de emenda. Algum rasto disto aparece em algum destes papéis-relíquias (a minha caligrafia a alterar a dele) e isso pedia esclarecimento.
Na relação tão franca que me prodigalizou e enriqueceu avultou a dimensão humana, o fraterno companheirismo, a simpatia e a voluntariosa largueza do coração que lhe batia na fortaleza do peito. Em Manuel Ferreira, a simplicidade de maneiras, a naturalidade das atitudes e a galhardia da sua presença cativavam facilmente quem o rodeava. É esta memória e este testemunho pessoal que trago para a nossa evocação, sentindo, linha a linha, quanto a intenção se diluirá na palidez da elocução. Aliás, foi realmente muito breve, mas intenso e marcante, o período que passou connosco em Águeda, Aveiro e, enfim, a Bairrada, de modo que hoje o recordamos com emoção e palavras gastas pelas erosões do tempo.
O calor humano que Manuel Ferreira transmitia nos contactos pessoais era um dos traços mais vincados do seu carácter. Reflecte-se especialmente num conjunto de obras de sua autoria, por sinal bastante secundarizadas ou negligenciadas decerto porque pertencem â designada literatura infanto-juvenil. Mas serão as histórias para crianças “subliteratura” qualquer que seja o seu mérito literário? Creio que, para o nosso Autor, a questão é despicienda: publicou pelo menos seis livrinhos ao longo de vinte anos, entre 1964 e 1983; e note-se, são histórias (exemplares) inspiradas em tradição oral africana, com figuras e ambiências africanas. Merecem atenta consideração mesmo de leitores adultos capazes de abrir a porta (isto é, o livro) e escapar a uma ideia feita.
Pessoa extremamente afável, cordial e convivente, o escritor estabeleceu em Aveiro relações de amizade com Mário Sacramento, Vasco Branco, Joaquim Correia, Zé Penicheiro (que lhe fez um retrato com o cachimbo ao canto da boca), e outros. Em Águeda, Manuel Ferreira aparecia no café da praça depois do almoço. Reunia com os amigos a uma mesa, apinhando em torno as cadeiras. Após dois dedos de conversa, pedia licença e mudava de poiso. Restavam-lhe uns escassos trinta minutos para, em mesa isolada, rabiscar uns papéis. Sabia-se: andava a escrever um romance (ou já a rever provas tipográficas?), ia ser Hora di Bai. Publicado em 1962 pela revista “Vértice”, em Coimbra, focalizava também Cabo Verde e foi escrito, em grande parte, nos curtos minutos “roubados” às conversas do grupo. Galardoado com o prémio Ricardo Malheiros, o romance projectou definitivamente o nome do Autor não apenas no panorama literário português, também no estrangeiro, mediante traduções. E não mais o escritor se desvinculou dos temas que o desvelavam.
Manuel Ferreira fez amigos sinceros na região e com eles a percorreu em passeios e viagens. Amigos que ainda o recordam de algibeiras atafulhadas de papéis rabiscados à pressa e que guardam a recordação da sua figura sólida que uma natural elegância emoldurava, o seu sorriso franco, o seu rir prazenteiro, os abraços tão fraternos que dele receberam e com ele trocaram.
No período em foco, a “Independência Literária” ligou-o aos Encontros da Imprensa Cultural, movimento que eu e outros companheiros andávamos a promover. Participou no primeiro e no segundo encontros, na Figueira da Foz e em Cascais (27/28-09-1963 e 13/14-06-1964), representando a Sociedade Portuguesa de Escritores – a SPE, encerrada e extinta pelo regime da ditadura – e o nosso suplemento, apresentando comunicação ou intervindo. Quando realizámos o 4º Encontro, em Julho de 1967, Manuel Ferreira já estava ausente em África (Angola), a seguir iria para Goa… Pudemos então atribuir-lhe o prémio da Imprensa Cultural pela sua Aventura Crioula [v].
O impressionante rasgo do intrépido Manuel Ferreira, ao provocar a eclosão da lusofonia graças ao espaço linguístico que cartografou, não abrange os poucos anos, migalha de tempo, que esta memória contempla. Permitam-me recordar, a concluir, o seu falecimento em 17-03-1992, há uns 25 anos e, em sua homenagem, tomar como metáfora os títulos dos seus três livros daquela época para a legendar. Ficámos desde então com “Morabeza”, saudade, entre “Hora di Bai”, a partida, e a “Aventura Crioula” por ele vivida até o fim.
[i] Pires Laranjeira, rev. “Estudos Literários” da UC, nº 5, 2015, coord. Pires Laranjeira, tema “Literaturas africanas de língua portuguesa”, p. 578.
[ii] Então eu já residia no Porto e Manuel Ferreira aprofundava mais e mais o projecto que o apaixonava. O suplemento teve que entrar em nova fase pela minha mão apenas; saiu da “Independência d’Águeda” – onde sofria com os seus velhos tipos móveis e composição manual, pobreza de recursos tipográficos próprios, falhas de revisão do jornal – e entrou no semanário “Litoral”, de Aveiro, com as oito pp habituais; ali saiu em 12-02-1965 o nº 1 (segunda série) e a Censura o proibiu quando o nº 2 já estava a receber cor na impressão.
[iii] Vasco Graça Moura estreou-se publicando na imprensa o seu primeiro texto na “Independência Literária” (artigo “Notas sobre ‘Poesia III’ de José Gomes Ferreira”, supl. nº 6, 17-03-1962). Os seus primeiros livros de poemas são posteriores. Encontrava-o então no Porto, sabia-o residente em Matosinhos e trabalhador-estudante, mas foi em Lisboa, uma carrada de anos depois, quando já encerrava o seu longo e fecundo percurso literário, que, à saída de uma reunião na SPA, me recordou a sua juvenil estreia e surpreendeu com a notícia. Comentou igualmente Hora di Bai, de Manuel Ferreira, “um novo romance neo-realista” (texto extenso, supl. nº 15, 08-12-1962). Note-se a revelação, em “Independência Literária”, de outros novos autores, p. ex., César de Oliveira, então estudante-trabalhador e poeta, depois ensaísta e sociólogo.
[iv] Note-se o comentário que M. F. também assina, em data posterior, sobre livro de Herberto Hélder. (Sem indexação feita, a colecção da “Independência Literária” requer atento manuseio do leitor interessado. Tenho a minha colecção digitalizada.)
[v] Art. de Arsénio Mota, rev. “Nova Síntese”, nº 9 (2014), Edições Colibri, Lisboa; tema “Imprensa regional e neo-realismo”, p. 247.
Arsénio Mota (Portugal). Jornalista, escritor
© Revista Triplov . Série Gótica . Inverno 2017