Manuel de Castro

BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa


RICARDO VENTURA
Insurreição e fábula. A propósito de dois textos de Manuel de Castro

 

O primeiro texto de Manuel de Castro que aqui apresentamos, «Notas para poesia», publicado no número 3 da revista Pirâmide, em dezembro de 1960, constitui um bom ponto de partida para pensar não só as relações do autor com o surrealismo português, mas também o projeto com que Manuel de Castro se foi demarcando desse movimento ao longo da sua infelizmente breve vida literária.

À primeira vista, «Notas para poesia» pode ser visto como um texto de fronteira entre o surrealismo e o abjecionismo, estatuto que, aliás, com as devidas ressalvas, pode ser extensível ao segundo e ao terceiro números da revista Pirâmide, onde se demonstra, de forma suficientemente clara, um impulso de cisão relativamente a uma leitura «ortodoxa» do surrealismo, que seria protagonizada por Mário Cesariny. Mais concretamente, os termos desta demarcação ter-se-ão cingido de cambiantes infindáveis, que dirão respeito às relações pessoais entre escritores, aos seus diferentes posicionamentos estético-políticos, inclusive à própria ambiência ou dinâmica social do café Gelo naquele tempo preciso.

A história do café Gelo e as obras de alguns autores que o frequentavam tem suscitado mais recentemente algumas abordagens, com assinaláveis afloramentos. Todavia, muito resta ainda por fazer, não só no que respeita ao turbilhão do café Gelo, mas também a outros cafés e tertúlias do meio literário lisboeta dos começos da primeira metade do século XX.

Porque é de Manuel de Castro que escrevemos sobretudo, muito falta também fazer acerca de alguns escritores normalmente ensacados ora no surrealismo ora no abjecionismo, mas que parecem escapar diligentemente a qualquer hoste literária, como são os casos de Edmundo de Bettencourt, Ernesto Sampaio, Alfredo Margarido ou Herberto Helder, todos eles colaboradores dos números 2 ou 3 da revista Pirâmide.

«Notas para poesia» poderia ser lido como um texto surrealista tout court, atento aos manifestos de André Breton, se não conhecêssemos a posteridade de Manuel de Castro. Para tal, bastaria atendermos ao conceito de poesia nele expresso, que a adequa mais a um estado simultaneamente místico-existencial de atenção à realidade e de aquisição de uma eficácia mágica, ponto de partida para um trabalho de subversão dos princípios opressores que subjazem à «civilização». A atividade artística e literária era assim vista, nas palavras do autor, como «apenas uma das formas de ação para adquirir POESIA».

No entanto, cerziu Manuel de Castro a este seu manifesto sem bandeira uma permanente crítica ao meio social e literário português do seu tempo, a qual viria a desenvolver de forma particularmente acutilante nos artigos «À lupa», publicados no Diário de Lisboa, entre março de 1970 e setembro de 1971. À luz deste artigos mais recentes, compreende-se que algumas das proposições mais azedas de «Notas para poesia» – por exemplo, acerca da contribuição dos «poetas contemporâneos» para o «envilecimento dos valores do espírito», ou sobre o «modo de convivência» «literário», no pior sentido do termo – não seriam meras invectivas a personagens do meio literário português de então, ou singelos desabafos de um poeta rebelde, mas sim parte de um projeto e da postura político-literária assumidos pelo autor.

Noutro texto, tivemos oportunidade de dissertar mais demoradamente sobre o carácter da intervenção político-literária que Manuel de Castro desenvolveu na imprensa portuguesa, demonstrando a sua aversão ao establishment cultural português dos começos da segunda metade do século XX (VENTURA, «Manuel de Castro “À lupa”»). Porém, esta não se concretizaria apenas à superfície, na crítica literária, ou nas crónicas dos costumes literários portugueses: estendia-se também ao processo de transformação pessoal e colectiva de que a escrita fazia parte.

Alguns aspectos da vivência de autores muitas vezes identificados com o abjecionismo, como é o caso de Manuel de Castro e de Luiz Pacheco, poderão assim ser perspectivados não só enquanto uma leitura radical sobre as proposições de Breton, relativas à transformação do indivíduo em poeta/taumaturgo, como também uma recusa exacerbada dos princípios e modos de vida impostos pela «civilização», como se à luta simbólica pela afirmação do amor e pela recuperação dos impulsos primordiais humanos, da insurreição surrealista, se acrescentasse, no contexto português, uma espécie de guerrilha sem quartel que visava desconstruir, ou melhor, sabotar, os costumes que sustentavam a sociedade fascista.

O segundo texto que apresentamos, «La madre que te parió», inédito, muito gentilmente cedido a esta publicação por Maria Natália Cabrita, viúva do escritor, pode ser perspectivado enquanto testemunho deste projeto esboçado por Manuel de Castro. Este texto pertence a um conjunto intitulado Histórias para cavalinhos de circo, que o autor terá deixado incompleto, mas que integra outros três textos acabados: «Catarina ou os erros da juventude» (recentemente publicado em A Ideia, n.º 73-74, pp. 22-23); «Clélia Conti»; e «Hans ou a mão direita» (que, por sua vez, faria parte de um capítulo intitulado «O espadachim, o clown e o bastardo»).

O breve conto narra, na primeira pessoa, o processo de luto de um filho durante e após a morte da sua mãe. O leitor confirmará por si o tom simultaneamente picaresco e macabro da narração. O claro-escuro mordaz, a assumida simulação de insensibilidade, a crueza da linguagem lembra, obviamente, os textos de Luiz Pacheco.

Não perdendo de vista que «La madre que te parió» é um texto ficcional, parece-nos interessante, de acordo com o que acima foi dito, sugerir que nele Manuel de Castro ritualiza todos os seus enterros inevitáveis e dolorosos. A figura do herói abjecionista, tão insensível e desbocado como susceptível aos suores ardentes que revelam somaticamente os sentimentos que nutria pela sua mãe, pode ser lida como uma poderosa caricatura desse poeta/taumaturgo que referíamos. Em redutora síntese, perante uma situação «civilizacional» em que os afetos foram distorcidos, assumindo faces sobretudo formais e dolorosas, a insensibilidade simulada, o chasqueio, o epicurismo triste de umas «pazadas» de aguardente são a resposta que resta.

A relação entre a vida e a escrita tem sido um tema muito debatido pela crítica que se tem ocupado da obra de Luiz Pacheco, ora centrando-se numa abordagem biográfica (GEORGE, Puta que os pariu), ora procurando realçar uma distinção entre o projeto literário do autor e a vida do homem (SANTOS, «Luiz Pacheco: uma literatura descarnada»).

Também muito do que se vai escrevendo sobre Manuel de Castro tem realçado alguns aspectos da sua biografia. Por exemplo, raras são as resenhas que não refiram o seu alcoolismo ou o seu humor instável, características que, em conjunto com uma morte prematura, completam o retrato do poeta maldito. Este retrato não esteve até isento de efabulações. Num artigo publicado no Diário de Notícias de dia 8 de fevereiro de 2014, a respeito da publicação de Bonsoir, Madame, Joana Emídio Guerreiro somaria, às misérias do autor, as «circunstâncias trágicas» da morte da sua mãe: «pensa-se espancada até à morte pelo pai». Aproveitando a informação «chocante», mas também falsa, da jornalista, Maria Estela Guedes, ao dissertar sobre as relações entre a poesia de Manuel de Castro e a sua infância, acrescentaria que «o Manuel vira o pai espancar mortalmente a mãe» (GUEDES, «Sobre Manuel de Castro», p. 37).

Na verdade, segundo pudemos apurar junto de Maria Natália Cabrita, viúva de Manuel de Castro, a mãe do poeta terá cometido suicídio quando este tinha 6 anos. Junto da sua mãe, estaria o seu irmão, António Pedro, que teria então aproximadamente 8 anos. Encontrada ainda viva, a mãe de Manuel de Castro foi levada para o hospital, onde faleceu. O futuro poeta encontrava-se nesse momento na casa do seu avô paterno.

A biografia de Manuel de Castro permite, sem dúvida, clarificar diversos aspectos da sua obra, mas parece-nos completamente desnecessário cultivar e, sobretudo, extrapolar a fábula do escritor maldito. Sabe-se, por exemplo, que Manuel de Castro terá tido uma infância infeliz, que sentiria uma grande angústia pela morte da sua mãe e que teria uma relação deveras conflituosa com o seu pai, Henrique Mesquita de Castro Cabrita, homem violento, de humor instável, católico fervoroso após a morte da sua esposa, e que desempenhou altos cargos no regime salazarista.

Uma das consequências perniciosas da fábula do poeta maldito é atribuir-se as infelicidades e as contrariedades dos autores a uma espécie de determinismo, como se o poeta nascesse sagrado por um sinistro astro baço, usando as palavras de Fernando Pessoa sobre Gomes Leal. Numa biografia curta, difícil e tempestuosa, será tão fácil encontrar episódios que confirmem a má sina, como delicioso poderá ser amplificá-los romanescamente. Elidem-se, assim, não só as opções dos autores, como também diversas condicionantes extrabiográficas, de cariz conjuntural, económico e social, que impuseram limitações à «aquisição» poesia, entendida como «existência no plano do espírito, individual e universal».

Ao invés desta fábula, a figura do poeta maldito, que Manuel de Castro, na sua insurreição, construiu tão diligentemente quanto pôde, tem, precisamente, a virtude de denunciar a monstruosidade daquilo a que ele, eufemisticamente, chamava «civilização».

 

Ricardo Ventura


– GEORGE, João Pedro, Puta que os pariu. A biografia de Luiz Pacheco, Lisboa, Tinta da China, 2011.

– GUEDES, Maria Estela, «Sobre Manuel de Castro – um texto de Herberto Helder», in A Ideia, II série, vol. 17, n.º 73-74, outono de 2014, pp. 35-38.

– VENTURA, Ricardo, «Manuel de Castro “À lupa”», in A Ideia, II série, vol. 17, n.º 74-75, pp. 254-258.

– SANTOS, Sofia, «Luiz Pacheco: uma literatura descarnada», in A Ideia, II série, vol. 17, n.º 73-74, outono de 2014, pp. 63-64. 


 Notas para poesia

 

No período e no episódio medíocres decorrentes temos de rever o processo da nossa herança.

Esta língua necessita construtores. Depurar: afirmar em força a impureza (a dignidade média dos seres sociais ou anti-sociais).

No sentido deste esforço são inolvidáveis OS MORTOS.

A luta fantástica, porém, estabeleceu-se e continua. Consomem-se e extinguem-se alguns Homens. Estava no entanto previsto – não é impunemente que se escolhe a vida.

Esta é uma humanidade em trânsito inconsequente com o seu pecado original: a inversão dos membros.

Não existem valores para aquém do espírito; os que se apresentam na época como válidos são os subvertidos, degradados.

Particularmente no que se refere às realizações de carácter artístico, as de maior nível são literárias (no significado «típico» de literatura).

A reafirmação destes quase lugares comuns começa a tomar importância quando reconhecemos que grande contribuição para a dispersão e envilecimento dos valores do espírito tem sido a dos poetas contemporâneos; não apenas através das suas obras, cuja influência da flutuação desses valores é limitada, mas na imposição de um modo de convivência que, esse, é, no pior sentido, «literário».

Ora a literatura só começa a nomear-se assim quando as suas qualidades vitais da participação imediata na existência se encontram atenuadas ou completamente anuladas.

Aceite-se a amplificação da palavra poesia, à qual habitualmente se atribui o significado relativo a um tipo de produção escrita ou de actividades artísticas, e a restrição da importância dessa mesma produção dentro da POESIA, como sendo apenas uma das formas de acção para adquirir POESIA; não permitindo quaisquer outros modos similares da cultura como fazendo parte dos únicos meios para fixar o estado poético de atenção.

Chamar poesia à existência no plano do espírito, individual e universal.

Requere-se a revisão total da linguagem (expressão-convivência), dos mitos que a enformam, e o regresso purificado à TRADIÇÃO. Tradição em que a qualidade mítica nela residente não seja desvirtuada pelo conhecimento circunstancial ou lógico; mas tradição «pela verificação ritual no estilo de vida (poesia) dessa qualidade».

Introduzir no quotidiano a atenção do sagrado é o objectivo proposto; a contribuição da poesia-produção-artística será um dos módulos dessa actividade mágica, e não o fim dela.

É evidente que a vaidade pessoal ou grupal nada tem aqui a fazer – e é necessário desfazermo-nos dessa condição de mesquinhez; e proceder em relação ao ambiente circundante de literatos e eruditos de almanaque como se inexistente.

Ao tentar realizar uma nova classificação de valores corre-se o risco de incorrer nos métodos viciados da pseudo-lógica científica, criação ocidental de menor valia, cuja posse deve ser utilizada com extremo cuidado e apenas quando vai facilitar o conhecimento real.

Só podem negar-se as regras que se compreendem. Destruí-las, pois, é conhece-las primeiro.

Mas a atitude perante elas será antecipadamente de suspeita e também perante qualquer manifestação civilizacional – por causa da putrefacção evidente.

No meio não está virtude alguma.

E, onde tudo é permitido, só é permitido tudo àqueles que a tudo se podem permitir.


La madre que te parió

 

É uma estranha voz, esta que se ergue, como que vinda duma outra idade, de outro planeta, duma paisagem cujo contorno indeciso pertence a uma realidade que se altera, se desloca contínuamente, sem jamáis se fixar ou definir.

É uma estranha voz, este apelo impossível de situar; e todavia a sua presença atravessa os corredores da memória duma forma insistente, obsessiva, inolvidável.

Não, não permiti que te afastasses, nem na recordação nem no fugitivo amor, nem no encontro de que fomos vítimas.

É uma estranha voz, esta que pulsa infatigávelmente no movimento que se dirige, que inclina o meu pensamento numa direcção, que o subjuga e reduz o meu coração a simples cúmplice da aventura em que sou o escravo, o participante inferior.

O teu cabelo grisalho, o ventre disforme, o olhar afiado e malévolo – e como esquecer a crueldade latente da tua voz (não desta que agora me domina, mas da outra), e quanto era maligno o gesto da tua mão ao desenhar o que dizias?

Tu possuías a preversidade, o ódio forte e maravilhoso porque aplicado sobre um único objecto, uma única pessoa.

Terrível arma, sem dúvida.

Mas de nós ambos só eu conhecia o animal paciente que te destruía lentamente as entranhas, o agente secreto, combatente oculto no teu corpo, fiel companheiro de guerra; só eu sabia da doença que faria vacilar o teu espírito metálico.

Muito tempo a tua mão ossuda calcou a sua forma nos meus passos, muito tempo obedeci, sem humildade mas submisso.

Porque eu nada podia contra um animo linear e vencedor.

Estava na natureza das coisas, como diz o lugar comum, que comandasses e eu seguisse a ordem, animal cego e treinado sem oriente nem esperança.

Porém – Ouve! Escuta!: o que em mim se desenvolve e de mim se expulsa é uma nova harmonia, a resposta a esta estranha voz que me não abandona, a crónica duma vingança da qual saímos iguais na estatura e na violência.

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“Não posso respirar! Sufoco!” e eu trazia-te mais uma vez o médico, o qual, profissional e falsamente concentrado, te injectava ópios. Na cama onde permanecias como uma ilha de carne decadente rodeada de coloridas caixas de medicamentos, a tua cabeça oscilava, entontecida. Bebeda de cansaço e agonia, absorvias a dor, pitonisa ainda implacável, absorta no milagre da tua própria destruição. O olhar não era já tão firme, mas renascia por momentos com uma rápida, transitória vontade de domínio, quando me procurava através do sofrimento brumoso que te envolvia.

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“Sarcoma” dissera o doutor. Morreste uns dias depois, só, no hospital, sem espectáculo nem assistência.

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No reduzido pátio adjacente ao hospital, o carro funerário, a capela mortuária, dois tipos vestidos convencionalmente de preto.

“Mais ninguém?” perguntou o dono da miserável agencia funerária a quem entregara o teu caso, fazendo as coisas pelo mais barato. Vala comum, nada de padres, flores, discursos ou outros enfeites.

“Mais ninguém” – respondi.

“A senhora não tinha família?” – insistiu, perplexo, admirado do cortejo a uma pessoa.

“Não, a senhora não tinha família” – respondi.

O homem, perante o meu aspecto, o tom de quem trata de negócios, descontraíu-se e, sem se preocupar mais com a minha presença ou preconceitos de compunção, disse para o condutor:

“Vamos despachar isto”.

Aproximou-se-me e perguntou:

“Já viu o cadáver?”

“Ainda não. É absolutamente indispensável?”

“Tem de ser. Por causa da identificação. Suponha que enterrávamos um cadáver errado…”

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Na pequena capela, o teu corpo era silencio. Silencio pesado, inerte. Eis o retrato da minha liberdade, o documento inerme da minha raiva. Eis esta face cinzenta, cujos músculos já nada exprimem das nossas núpcias permanentes, da nossa monstruosa ligação. Que farei desta coisa gorda e solene, desta enorme aberração que aqui jaz entre absurdos símbolos, entre feitiços milenários?

Tão expressivamente morta, tão declaradamente impotente.

O rumo do meu destino renova-se e todavia perdi o senso de origem. Velha do diabo! Teria sido eu a incendiar-te as tripas, ao nascer?!!! Estás agora perdida na majestade do teu irreparável silencio, na grandeza duma paralisia total e sem retorno. Um continente de ódio e fogo se extingue assim, sem glória, ignoto e pobre.

Vamos proceder à arrumação como deve ser, atirar este resto às ortigas, sem contemplação. Toca a meter a velha no carro.

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Fóra, no pátio, o dono da agencia, decididamente à vontade, liberto de miúdas hipocrisias, julgando-se a sós com o condutor-factotum, fez ouvir:

“Isto não demora. Toca a meter a velha no carro.”

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Levámos ainda bastante tempo a atravessar a cidade. O condutor, o gato-pingado-mór e eu do outro lado, à janela, fumando o cigarro em ar de passeio. Lá atrás, o teu esqueleto, provisóriamente fornecido de carne rígida, devia chocalhar ligeiramente no caixote negro, em curtas sacudidelas, breves gargalhadas secas de madeira e osso.

À porta do cemitério, um festival de crianças maltrapilhas. A cachopada divertia-se, barulhenta. Alguns, já matulões, fauna vádia dos subúrbios, jogavam o belindre.

Um grupo de camarários transportou o caixão até à cova e atirou-o lá para dentro. Depois desataram às pázadas, a tapar o buraco inoportuno, ali aberto sem motivo razoável. A terra, ao bater na tampa do caixão, produzia um ruído desproporcionado, tonitruante, brutal. Despachavam-se, eles também.

No regresso sentia-se o carro mais leve, muito mais leve. Os mortos pesam, ao que parece. A meio caminho, súbitamente, eu disse:

“Páre. Desço aqui”.

Algo de estúpido acontecera. O negociante mirou-me, estupefacto.

Uma miscelanea líquida, incómoda, ardente, um esquisito suor me nascia do rosto.

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A névoa cobre duas imagens confusas que de mim próprio me ofereço. Aquela do sujeito cujas articulações se movem, que respira e vê. E a do outro que se assiste, incapaz de aderir ao exterior que o reveste.

Mas donde provém a fúria que exsuda lágrimas, este incompreensível vazio raivoso, horizonte sem limite nem eco, esta exaltação desmedida onde o sentido da minha vingança se dispersa e dilui?

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O carro funerário arrancou. Ouvi o “director”, distante, “Oh, oh, afinal o tipo gostava da velha”.

Na primeira taberna encharquei-me de aguardente. Copito atrás de copito. Tratamento de choque contra o clima pessoal, contra as inconvenienciasdelirantes, a ira dum combate frustrado. Velha do diabo! Enfim, ajustámos as contas. Copito atrás de copito. Como pázadas de terra. A tapar tudo.

 

 

Heidenheim    Set. 66


REVISTA TRIPLOV

série gótica

Verão de 2019