Manuel A. Sousa e a dança Dadá

MANUEL A. SOUSA
Tributo


Editorial

Dança Dadá, MAS

Manuel A. Sousa (MAS em assinatura de artista) está ligado às vanguardas, a começar pelo movimento Dadá, diversas vezes referido na sua obra. A hipótese de explicação que os meus livros de estudante davam para o nome «Dadá», um dos quatro arcanos da modernidade, como diria Fernando Arrabal – os outros seriam o Surrealismo, o Movimento Pânico e a Patafísica – a explicação era a de ser “dadá”, como “daddy” , “papá” e “mamã”, um balbucio, uma das primeiras palavras do glossário do bebé. Aludindo então o movimento criado por Tristan Tzara à necessidade de a Arte assumir  um Começar (Almada Negreiros) , um Re-Começar (Ernesto de Sousa), ou o ovo primordial, genesíaco, patente no surrealismo em geral e também em Manuel A. Sousa.

Um de uma série de quadros com título geral “Santo ovo”.

Toda a arte é um eterno retorno a uma plenitude comprovada, seja a Idade Média dos românticos, seja o zero/big bang da Alternativa Zero, seja o ab initio de cada um, seja, mais holisticamente, o Génesis do pensamento religioso. Sendo Manuel A. Sousa um homem do sagrado, que não desdenha reproduzir o Tarot de Marselha nem a simbologia maçónica, não espanta assim que na sua obra encontremos todas as referências enunciadas, com uma seguinte particularização que me interessa enormemente: o papel das letras, dos sinais escritos, na sua matriz consciente ou não.

Não nos percamos no labirinto da modernidade, nem nos impeça este retorno a um tema obsessivo meu, o da escrita, em especial manuscrito, grafito, agora só nos interessa o dadá, por ser uma algaravia, uma proto-palavra, um sinal do domínio da História, e cujo aparecimento, de resto, marca, certa ou erradamente, a passagem da Pré-História à História, em data ainda incertamente remetida para algo como trinta mil anos, na sua fase de proto-escrita. Em vez de “aparecimento” digamos “aparição”, para o pensamento definir os seus contornos mágicos. Basta, aliás, a sua idade, para a escrita se velar com o délfico manto de todos os mistérios.

Manuel A. Sousa é um artista multifacetado, que vemos em cena como ator, encenador, performer, artista plástico em sentido amplo, com todas as suas vertentes, e poeta, entre outras modalidades que agora falhem. Ao lado de práticas sobejamente conhecidas, como a colagem, de extração surrealista, mas colagem digital nele, também vemos algo que no Manuel A. Sousa parece compulsivo, sem excluir a comunidade que o mesmo pratica, sobretudo na poesia visual, que é fundir poesia e artes plásticas.

A modernidade apropriou-se da escrita, das palavras, e até dos tipos (carateres  tipográficos) – “Manucure”, de Mário de Sá-Carneiro, é um bom exemplo -, sobretudo através da tecnologia, dos sinais externos da sociedade industrial, aquilo a que o mesmo Mário de Sá-Carneiro ainda chamava a réclame, os anúncios, os cartazes publicitários, essa arte de massa que invadiu as nossas ruas. Na pintura, os sinais gráficos participam da arte de Amadeo de Souza-Cardoso, eis outro exemplo. O caso de Manuel A. Sousa, a meu ver, diverge um pouco deles: não se trata  tanto de integrar sinais gráficos na obra, sim de os usar como materiais de construção, independentemente da sua semântica. Assim o pedreiro usa o granito, independentemente da beleza que mais tarde, depois de construído, venha a ter o templo. Letras, palavras, são materiais como as tintas ou a tela. Também podem ser entendidas como construção de um caminho para o lugar onde repousa a palavra perdida, essa que outros dizem já ter sido encontrada, e ser a palavra Deus – e com isto estamos de novo no mundo intimista dos templos e  dos oráculos.

No quadro “Um metro de poesia” notam-se os estratos, a dimensão de profundiadade criada pelo uso de transparências.

A Palavra, essa matéria de que se faz a obra é tão matricial, diríamos tão dadá, que muitas vezes surge em camadas, como se a imagem fosse tridimensional e deixasse ver os sinais à transparência.  Ou falemos então de estratos geológicos, uns mais profundos, outros ainda em formação, sobrenadando os grafismos a um mar que parece resultar de papel rasgado. Podendo embora o quadro trazer no título a palavra “poema”, a verdade é que não existe nele nenhuma deliberação de comunicar através de palavras, não resulta dele a identificação com um livro. Decerto na obra de Manuel A. Sousa existem exemplos de “livro de artista”, tal como existem de “mail art” e outros, para não dizer que a poesia visual é prática dominante nele, como de resto seria de esperar de um poeta. Tratando-se de livro, em sentido corrente, temos tudo quanto o artista escreveu e publicou nas suas Edições Bicicleta e noutras editoras. A arte que usa como materiais os carateres tipográficos ou caligramas, e os Calligrammes recordam Apollinaire, que desenhou com palavras, não sonha ser poema nem livro, antes sonha com a descoberta do mistério da escrita – hipótese minha, de novo surge a palavra perdida– e aí ganha uma quarta dimensão, a temporal, a obra feita com letras sobre transparências em vários estratos, com elas ganhando dimensão de profundidade.

Para mim, a aparição da escrita é um mistério e releva do sagrado. Faltam elementos que permitam resolver o enigma da Esfinge, das pirâmides todas. Porque, tal como no caso destas, que existem na América do Sul e não só no Egipto, é difícil conceber a ideia de vários arquitetos para um projeto tão similar. Com as línguas, a diversidade de formas e matérias é estrondosa, a diversidade de lugares onde ocorrem é distintíssima, porém algo cerca todas num nó apenas, que pode ter sido a necessidade de comunicar. Se olharmos para os principais livros religiosos, em todos aparece a escrita como algo de mágico, algo ensinado à força de milagre e aprendido num relâmpago .

Pormenor de um quadro intitulado “Poema”, em que a caligrafia é uma sugestão, algo delido, antigo, sobrenadando um mar em estrato inferior.

O Alcorão foi dado ao Profeta pelo Anjo Gabriel sob a forma de panos com inscrições, sendo ele analfabeto. No cristianismo, Jesus é “o Verbo encarnado”, as Leis foram entregues a Moisés grafadas numa tábua, e por aí adiante. Retenhamos como síntese que o Islão declara que muçulmanos, judeus e cristãos constituem “o Povo do Livro”. Finalmente, agora já não, mas até há bem pouco, os artistas muçulmanos, em obediência às suas leis religiosas, iconoclastas, só usavam figuras geométricas e versículos do Alcorão como arte, em especial associada à mesquita. Essa era beleza bastante, e note-se que um dos mistérios da escrita é a beleza dela e dos seus carateres. Calligrammes, escreveu Appolinaire: caligramas quer dizer sinais belos, bela escrita. A escrita, com palavras inteiras ou só resíduos  e sugestões delas aparecem com frequência na obra de Manuel A. Sousa, às vezes  delineando as formas do corpo humano ou de objetos religiosos, caso dos vários tarots e de outros objetos da esfera da alquimia e pensamento mágico.

A Manuel A. Sousa devemos, Triplov e seus autores, e eu em especial, o reconhecimento pela sua abundante e prolongada contribuição. Desde há muitos anos que ele nos faz companhia, quer no Triplov velho, quer no atual, quer sobretudo nas páginas da Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, em que  tentei realçar o seu brilho próprio.

Obrigada, Manuel.

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Revista Triplov . Série Gótica . Outono 2020