RICARDO DAUNT
Tributo
Organização: DERIVALDO DOS SANTOS
Manuário de Vida, o romance sem limites
Por ÁLVARO CARDOSO GOMES
Folha de São Paulo. 19 de abril de 1981
Traduzinho a complexidade do mundo moderno, a ficção atual caracteriza-se pelo seu aspecto essencialmente fragmentário. Abolindo o enredo e a notação psicológica das personagens, os ficcionistas do século XX fizeram do romance uma “forma” sem forma, cuja marca registrada é o fluxo de consciência e ambivalência poética.
É dentro desta perspectiva que Manuário de vida deve ser lido. O leitor que nele procurar a sequência de uma história e a consequente anedota sairá frustrado. O pequeno romance (85 páginas) de Ricardo Daunt Neto sustenta-se por um tênue fio, a voz da personagem Antônio, acrescida de outras vozes, que se intercalam em cartas e em reflexões de variada ordem. Ao cabo, temos um texto que não pode e não deve se esgotar no instante da leitura. O fragmentário é sua margem registrada, a tal ponto que a frase, às vezes, evolui para um beco sem saída, estrangulada no labirinto da memória, ecoando às soltas pelos parágrafos, que, graficamente, parecem, às vezes, dispor-se ao sabor da consciência in natura. Em suma, a função referencial do texto quase se anula, como se o real só tivesse existência no seio das palavras. O ato de falar, portanto, é o sopro mágico que instaura vida, a tal ponto que os que não falam estão obviamente mortos, como os cadáveres que juncam as escadas da casa.
O termo “manuário” refere-se a uma espécie de desenho livre, sem liames, de feição gótica. Esta é a primeira imagem que nos vem à mente para retratar Manuário de Vida: a de um vitral estilhaçado que, por isso mesmo, se assemelha a um pesadelo informe, circundando em torno de si. Eis o mundo que Ricardo esboça: uma casa sitiada , em cujas escadas se acumulam cadáveres, onde seres amorfos habitam – um cego, um autômato (o simulacro do homem feliz, porque sem consciência das coisas) e a gorda Isabel. As personagens aguardam o retorno de Vidal, uma ausência que preenche o livro e o vazio de suas existências inúteis.
Em realidade, a situação criada é sutil metáfora de um mundo caótico, que perdeu a unidade, onde o homem se viu submisso a um esquema automático de produção, alienação de si e do ato criativo. É bem sintomático a cegueira de Antônio, símbolo do seu distanciamento da realidade. Impotente, o cego mergulha num mundo onírico e recria o real à sua maneira (o livro todo não seria, afinal, um sonho? O ato de falar e de agir, através da onipresença das palavras, não seria, por sua vez, um símile do ato criativo?) Não é à toa que Antônio aguarda Vidal (vital?), “o instante supremo da memória”, alter-ego ou símbolo de sua unidade psíquica, cujo retorno daria sentido à existência dos seres desintegrados. Daí que, desejando corporificar a vida num instante, além da opressão e da morte, assassine Isabel, que, em toda sua gordura, representa inequivocamente a vida latente.
Áspera alegoria de um tempo de trevas, Manuário de Vidal, em sua complexa tessitura, é um texto que, em tudo, reflete um tempo de crise. E, como tal – duro e difícil – incomoda o leitor instigando-lhe a consciência e exigindo-lhe a comunhão na montagem do estranho caleidoscópio.
RICARDO DAUNT . TRIBUTO