Luís Serguilha: Falar é morder uma epidemia

 

TRIBUTO A ANA HADDAD


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência  (Instituição-sede da última proposta de pesquisa) . Brasil


O ato de ler, sabe-se amplamente, possui diversos níveis. Podemos ler um texto por puro prazer. Como entretenimento. Sem grandes reflexões. Podemos ler um texto à espreita (furtiva?) de conceitos. Podemos ler um texto por desespero (para atenuar a solidão ou para nos sentirmos menos miseráveis). Enfim, há várias formas de leitura. Nada mais hipócrita do que as famosas pesquisas sobre leitura/leitor. Como quantificar uma leitura? Como acompanhar as diversas formas de relação entre um livro e um leitor? Como comparar um livro de 500 páginas com outro de 70? Enfim, qualquer tentativa na busca de quantificação, por si mesma, está fadada ao fracasso. Um dos fatores que deveria, realmente, ser levado em consideração em se tratando da relação texto/leitor, deveria ser o impacto em sua multiplicidade de aspectos que geram um qualitativo aproximativo. Porque, entre tantos outros fatores, o qualitativo é incomensurável ( por lembrar de nosso grande mestre Bachelard). Leitura, em todos os aspectos, é qualidade.

Falar é morder uma epidemia de Luís Serguilha, lançado recentemente pela Editora Reformatório, uma  obra que  mergulha  o leitor a diferentes ritmos de velocidade. Pode-se movimentar por ele  a 10 quilômetros por hora. Ou a 100. Ou a 1001. Muitas vezes, na leitura deste livro, o leitor pode ficar suspenso no tempo. Imobilizado. “Sem interrupção, sem vagar, as fendas psicodélicas intensificam o desagrilhoamento dos instantes, as fendas estendidíssimas dos animais ritmáveis que reflexionam o seu próprio pensamento-ruminante-tatuado entre as des-codificações abstractas, os sensóriuns inesperados (…). Forças inabaláveis atravessam os eixos do corpo, multiplicando os sentidos do pensamento, os sentidos dos signos na glossalalia onde bosquejos indefinidos conectam-se aos roubos instáveis da diferença por meio dos diagramas do poema-táctil carregado de visões devastadoras que provocam as aparições dos desaparecimentos (…)”.

O texto  nos obriga  a movimentos inconstantes. Como se estivéssemos flutuando no interior de um cilindro em movimento. O livro é regido conceitualmente por movimentos espiralados. Vertiginosos. Por atmosferas libertadoras. Não há dúvidas, ao longo da leitura, os belos ressoares de Deleuze, Blanchot, Bataille, Sartre e tantos outros que tiveram sonhos (quase irrealizáveis) rumo à construção da liberdade. Portanto, um dos inúmeros pontos fortes deste livro é, realmente, não se encaixar em nenhuma tipologia textual estabelecida pelos “amarelados” manuais didáticos que se prestam somente a grandes empecilhos, (pedras quase irremovíveis), à humanidade. Em outras palavras: adoram igualar. Comparar. Classificar. Tabelar. E com isso os tais “manuais de bom comportamento textual” fossilizam a liberdade em todos os graus e sentidos. Esquecem (intencionalmente?) que as artes (incluindo a literatura) são anteriores a teorias e fórmulas pretensamente universais. Nas palavras de Serguilha: “os ritmos intersensórios-atritados pela miscigenação das rasuras cinestésicas fogem ao controle- humano e fazem experimentar o escoamento da des-parição dos limites do mundo: os extravios dos intercessores, os avanços da transdução usurpam as veemências cosmogónicas  dos cadávares-das-palavras com as velocidades-em-retardamento das corruções do grito polissémico, secadas entre os escaladores de visualidades do vivido e os transfúgios gestuais porvir, proporcionando excriptas-subatómicas em devaneio-cristal-vitral-artesania-oracular:  (rediz o tuaregue nos interstícios mudusantes): acontecer nas interfaces das ferramentas das iluminações das cavernas-das-superfícies-esquivas-não-mensuráveis,  acontecer nas presenças espeleológicas com reassunções levitantes dos desertos irisados-gris do mundo, destruindo a cronografia determinista, os assujeitamentos perseverantes das micro-violências dualísticas.”

Ler Falar é morder uma epidemia é um convite para quem está em busca de um tempo não perdido, por nos lembrarmos de Proust, em busca de propostas, em todos os graus, de desatolar velhos preceitos e fórmulas desgastadas. O livro em questão nos mergulha em diferentes estratos de nossa interioridade para repensarmos a eterna construção de nossa liberdade. De uma nova forma de existir e, de fato, colocar isso na prática. Lembremos, de uma vez por todas, em que medida enxergamos a profundidade do obscuro que tanto nos rodeia?  Até quando vamos aceitar as imposições, veladas ou não, das atmosferas que impedem a concretude de nossa liberdade? Novamente nas palavras de Serguilha: “a percepção expansiva é-já violência inexprimível que se desloca no inverso da palavra para incoporar a amamentação dos últimos deuses nas sequelas das contracturas caleidoscópicas, da vastidão das vizinhanças sinestésicas: permanecer, fugindo e descampando com as tensões alógicas dos corpos-acontecimentos, dobrar delírios impensáveis, dobrar intensões e mover a palavra entre-tempos com as vozes carregadas de voltas ensimesmadas, sim, incorporar e desincorporar os olhados e pressagiar a paradoxabilidade ameaçadora de cosmogonias que tentam recuperar vazios das gigânticas cobaias inacessíveis:”. Este fragmento, mais do que nunca, leva a um importante conceito, (sempre considerado em sua multiplicidade), do que realmente seja uma leitura. Leitura é processo que, de saída, descarta a famosa inverdade de que seja  hábito (mentira mais deslavada e ingênua). Leitura é se permitir a uma travessia, sem retorno, para abismos vertiginosos. Aqueles que nunca indicam elementos  objetivos, tais como: altura, profundidade, largura.  Leitura é encarar de frente e sem brumas as vozes que nos suscitam o pensamento. E, sobretudo, leitura é necessidade. A legitimação de uma busca, sem precedentes, de algo que satisfaça, minimamente, nossas insuficiências. Aquelas incompletudes jamais preenchidas. Aquelas que nunca são satisfeitas porque leitura é paixão e como tal jamais se completa em suas necessidades. Ou…mal se completa já desperta outras insatisfações num círculo, quase vicioso, de ciclos aberrantes e assustadores.

Um último ponto a ser colocado sobre o livro em referência e, talvez, o mais importante: a linguagem. Sempre, para nossa própria sobrevivência neste universo sufocante que pretende nos engolir, convém não esquecer da força da linguagem. Soberana, em qualquer de suas modalidades, é a única maneira de pensarmos. Sem linguagem não há pensamento. Todavia, a linguagem, sabe-se, não vem do nada. Não nascemos falando. A linguagem tem que ser buscada. Capturada. E neste sentido o livro de Serguilha tem de sobra! Oferece-nos verdadeiros ensaios sobre a linguagem. Conceitos ora mais implícitos, ora mais explícitos, como no trecho a seguir: “fluxos cortantes, tatuagens escarificadas e inesperadamente indesvendáveis se infinitizam dentro dos ecos das metamorfoses desviantes das infrasivisualidades: é com os silêncios intangíveis nas palavras vertiginosas, nas zimbraduras dos sopros  e nas contracturas sinestésicas que auscultamos as onomatopeias dos recomeços caleidoscópicos, sim, os acasos gésticos transfiguram os lances da loucura que trespassam os choques do pensamento.”  A busca de uma linguagem que nos particularize é um dos ressoares da escrita do autor. Para quê? Para que todos nós sejamos capazes de alcançar aquilo que pretendemos dizer (e jamais alcançamos na íntegra) da forma mais aproximada possível. Lembremos de que os signos, queiramos ou não, apenas representam o objeto. Não são o objeto. Isso cria um verdadeiro hiato entre o objeto e sua representação. A busca de atenuar o hiato é o trabalho da boa literatura. O escritural de Serguilha  exige, para ele mesmo, atenuar hiatos. Mas para isso é preciso a coragem do desafio. Ou desafiar o próprio pensamento, assim como o de seus leitores. Eis a grande questão: como afetar  a si mesmo e aos leitores sem seguir o estabelecido e os significados ordinários que extravasam de fora para dentro? Como?

A leitura de um texto com o peso escritural de Serguilha é o medicamento quase perfeito que possibilita suavizar dores de incertezas e inseguranças diante de nossos sinais interiores. Aqueles  que vacilam diante da angústia do existir e  oscilam diante da irremediável condição humana de se saber só. Não somente no nascimento. Mas também diante da morte. Pelos ressoares de Kant, muito presentes na obra, Serguilha lembra que estamos infinitamente separados de nós mesmos. Condição humana. Inescapável.


Série Viridae . Ana Maria Haddad Baptista.

Maio 2022 . 

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