Literatura, história e cultura

 

TRIBUTO A ANNABELA RITA


LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA & UMA NOVA FORMA DE ANÁLISE LITERÁRIA
Por Miguel Real


Em Do que não Existe (2018), de Annabela Rita, tivemos oportunidade de registar que a autora pratica a análise de textos literários de um modo radicalmente diferente da seguida pela academia institucionalizada. Esta cerca o texto de uma cerrada floresta conotativa de conceitos, criando um labirinto nocional com a ponta voltada para si ou para dentro. Annabela Rita, diferentemente, eleva e fundamenta o texto em duas sólidas colunas exteriores, a História e a Cultura, entendendo-se este último termo no sentido de Fidelino de Figueiredo: “Cultura é o conjunto de ideais condutores, o sistema de juízos e valores, de opções e preferências que orientam uma época; é a imagem que cada homem civilizado se forma do mundo e do passado da sua espécie, e o plano de acção de actuação futura que se reserva…” (Menoridade da Inteligência, 1933, pp. 50-51), ou no de José Eduardo Franco: “Pela arte, pela literatura, pela música, pelo desporto, pela religião, por todas as formas de actividade e criação humana, que não visam apenas a sobrevivência animal, o Homem procura transcender-se e encontrar uma realização para matar a sua fome profunda de sentido” – a Cultura consiste justamente na criação deste Sentido (“A fome de cultura é a raiz de todas as fomes”, in Metamorfoses de Cultura, org. Urbano Sidoncha e Catarina Moura: UBI, 2017, p. 119).

Se em todos os livros de Annabela Rita se encontra esta necessidade de elevar e fundamentar a literatura por via do duplo cruzamento de dados históricos e de dados culturais, formando uma tripla ponte conceptual, neste ora publicado, essa necessidade é absolutamente dominante, aproximando “Perfis” de escritores a “Factos” (histórico-culturais) e a “figurações identitárias & espiritualidade”, nos quais se relacionam a identidade nacional, Fátima (inclusivamente uma “cronologia anotada dos três videntes de Fátima”) e a reflexão sobre o “protestantismo na literatura portuguesa”. No final, o desiderato de cruzar história e cultura por via da literatura é igualmente dominante: a “Portugal Católico: a Literatura Portuguesa nos séculos XIX-XXI” junta-se a “cronística queirosiana (entrevista)” (especialização doutoral da autora) e a análise em forma de verbete, de diversos autores, terminando com problemáticas especificamente literárias: “antiqueirosianismo”, “anti-realismo” e “anti-modernismo literário”.

Neste sentido, que singulariza a sua análise literária, Annabela Rita traz assim para a história da crítica literária portuguesa uma visão teórica em que a literatura, contra o nefelibatismo da análise literária, não só se estatui como indirecta mas sintética expressão da cultura social donde emerge, como igualmente expõe ou manifesta os veios nervosos históricos mais salientes da comunidade. Existiria, assim, não só uma continuidade entre os planos da literatura e da cultura, como o estudo daquela exigiria a investigação do seu húmus no plano da história.

De certo modo, Annabela Rita está bem acompanhada. No prefácio de 1933 à primeira edição das suas Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, Hernâni Cidade explicita a sua visão culturalista da literatura: “Nem o isolamento da literatura dos outros aspectos da vida e da cultura [a visão nefelibata da cultura e da literatura], nem a redução duma história das ideias e formas de beleza a uma série de biografias e a um catálogo de biblioteca [a visão meramente historicista]; antes, o surgimento e a evolução (…) das ideias, sentimentos e formas de cultura que melhor revelarem o homem, de maneira que possamos, pelo conhecimento do que foi, melhor compreender o que é. Creio ser este o alcance humano [visão humanista de Annabela Rita, que fundamenta a literatura na história e na cultura] dos estudos literários” (Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, 1933, p. VII). Se o enquadramento conceptual de Hernâni Cidade é diferente do de Annabela Rita (passaram-se 80 anos!), a intenção é a mesma – a Literatura, como actividade estética, não vive isolada das manifestações histórico-culturais da comunidade.

Nos dois primeiros textos de Perfis & Molduras, “Abertura” e “Literatura…sempre!”, Annabela Rita estabelece tanto a continuidade com a sua obra anterior como, de certo modo, teoriza a ligação umbilical entre os três domínios do saber referidos. Porventura o conceito mais importante aqui apontado será o de “cristalização cultural”, com desenvolvimento nas notas de roda pé números 3 a 8, merecedoras de atenta leitura.

Parabéns por este novo livro.

Miguel Real,

Colares, 17 de Junho de 2018


Revista Triplov . Série Viridae
Julho de 2022
Tributo a Annabela Rita