Literatura, cultura: futuro, na verdade

 

TRIBUTO A ANNABELA RITA


LITERATURA, CULTURA: FUTURO, NA VERDADE
Por Daniela Marcheschi
Directora Científica da Fondazione Dino Terra . Universidade de Pisa


Este ensaio de Annabela Rita é um percurso original de reflexão sobre o Cânone ou sobre os cânones literários no âmbito lusófono e não apenas, através da ‘luz’ e da ‘sombra’ de um problema complexo que a cultura, ou melhor, a civilização europeia se coloca desde há muitos séculos, como o ensinaram magistralmente os estudos de Ernst R. Curtius.

Assim como a luz e a sombra mantêm uma relação inseparável e em movimento pendular, que é o da própria respiração do dia, de cada vez o mesmo e diferente, o itinerário de leitura e interpretação proposto por Annabela Rita traduz-se num confronto prismático com os textos e várias experiências literárias nacionais e internacionais, que ela pondera. Um confronto capaz de atravessar o Cânone “ocidental”, na acepção cara a Harold Bloom, é o do/s “nacional/ais” e o/s “lusófono/s”, mas para se voltar na direcção contrária: para esclarecer com uma consciência renovada o próprio percurso histórico-crítico e revelar ao leitor a possibilidade de outros e mais transversais paradigmas. Neste sentido, é particularmente feliz a convocação da “arte da fuga” por Annabela Rita: no seu livro, de facto, cartografias, mapas – ou seja, geografia e história das literaturas lusófonas e não apenas destas -, vozes, cânones, tradições, textos, temas, mitologias, géneros ou registos estilísticos, articulam-se numa espécie de contraponto das leituras por variações, desenvolvimentos e procedimentos inversos, que restituem a face poliédrica, e mais rica de possibilidades, da literatura europeia de língua portuguesa. Sem negligenciar outros zoom ou ampliações disciplinares e de relevo crítico sobre a arte figurativa (Botticelli, Velásquez ou Picasso; e a iconografia dos arcos do triunfo ou mesmo da Capela Sistina) e sobre outras literaturas: a francesa, a alemã e a inglesa ou em inglês (Milton ou Walcott), ou, ainda, a italiana. Digno de especial menção, neste caso, é o fino excursus interpretativo sobre o romance Il Gattopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, publicado postumamente em 1959 e ainda muito debatido no contexto italiano.

Por todas estas razões, o volume de Annabela Rita despertará não pouca atenção entre os leitores. Trata-se, de facto, de um contraditório empenhado e motivado pelo trabalho bloomiano The Western Canon. The Books and School of the Ages, publicado por Riverhead Books, em 1995, e às vezes acolhido com ainda demasiada euforia (acrítica, infelizmente), apesar da evidente falta de teorização que marca a argumentação do estudioso norte-americano. Repensando as inclusões e exclusões de autores lusófonos por Bloom, a Autora evita a tentação fácil de reivindicar argumentos de nomes e presenças, para contrapor ao “cânone ocidental” de Bloom, que se configura, na realidade, como um cânone realmente muito “anglocêntrico” e motivado pela urgência de conter a proliferação “publicitária” do ensino nas universidades dos Estados Unidos, onde a iniciativa privada tem um papel económico – e economicista – predominante. Pelo contrário, Annabela Rita inspira-se em Bloom para um reconhecimento dessa mesma literatura europeia capaz de abrir perspectivas compósitas de comparação e de conduzir a um quadro vital e particularmente corroborante até para aqueles que estão menos familiarizados com a literatura de língua portuguesa.

A comparação e a visão mais adequada do Cânone/dos Cânones não é a de uma esfera concluída, imóvel, monolítica, rigidamente contraposta a outras esferas igualmente monádicas, mas a de um conjunto sistemático de múltiplas relações variáveis, como ensinam as ciências. Só pensando-o/s segundo uma mesma complexidade e plurivalência de sistemas e subsistemas em relacionamento dinâmico entre si, é, de facto, possível compreender plenamente a realidade literária (“multicêntrica”, como observa oportunamente Annabela Rita) do Cânone ou dos Cânones: construção, substituição, eventual reintegração de valores, que o nosso olhar vai captando ininterruptamente do presente para o passado e para o futuro, do passado para o presente e de novo para o futuro, porque é assim que, no plano antropológico, se constitui toda a cultura humana. A literatura não pode ser uma excepção, e suas tradições são o que, no passado, temos real intenção de transmitir ao futuro, não o embalsamamento de um passado num “porão” empoeirado e esquecido.

E, se a literatura é linguagem, comunicação, mas também expressão, porque, nessa língua, os seus significados e as suas entonações sintáticas se tornam nas mãos do grande escritor – schillerianamente e de vez em quando – matéria formada, ou seja, beleza, os clássicos são os “contemporâneos do futuro”, em relação aos quais nós corremos hoje o risco de sermos desactualizados, como foi observado pelo escritor italiano Giuseppe Pontiggia, no seu livro I Contemporanei del futuro. Viaggio nei classici, publicado pela Mondadori em 1998. Um Cânone compreende, então, uma série de textos que, na contínua negociação dos valores literários típica de cada cultura, é de tempos a tempos escolhida como forma de elevada reflexão identitária de uma comunidade, à luz do seu passado, tanto como instrumento didáctico, no presente, de formação de jovens e de bagagem de significados e valores, de facto, para transmitir ao futuro.

Assim, num Cânone – o português – pode coexistir tanto Vaz de Camões com o poema Os Lusíadas como Gil Vicente com as suas obras multilingues, ou António Ferreira com A Castro; Almeida Garrett com o seu teatro inovador ou Eça de Queirós com o seu amplo registo de escrita; Cesário Verde com seu realismo ou Pessoa com sua vasta produção heterónima e ortónima ou Florbela Espanca com seus versos cheios de sensualidade; ou, finalmente, José Saramago ou António Lobo Antunes com as suas peculiares texturas romanescas. Num outro, o italiano, por exemplo, podemos encontrar tanto Dante com a Commedia como Petrarca com as rimas de Rerum Vulgarium Fragmenta; ou Luigi Pulci com o Morgante, assim como Tasso com a Gerusalemme liberata; Leopardi com o seu pessimismo filosófico e agónico ou Pirandello com as “máscaras nuas” de uma humanidade que tem muitas faces quantos os olhos que a observam, e Fo com o seu tenso teatro satírico a recuperar formas jogralescas jocosas de ascendência medieval. Tudo isto para dar apenas alguns nomes, cada um deles representando tradições diversas no seio de uma mesma literatura, de que se deseja preservar a memória e dar testemunho, mas também uma das muitas tradições presentes na literatura europeia. Essas tradições que Bloom, em nome de uma simplificação tecnicista e mimética, ainda devedora do Renascimento – mais precisamente da época maneirista –, muitas vezes confunde, em nossa opinião, com os modelos” formais, em nome de um princípio de influência redutor comparado com o discurso de Curtius, cujo movimento continua. De resto, uma grande obra pode ter exercido pouca influência, no sentido de ter tido um impacto apenas num número restrito de autores, mas nem por isso deverá ser considerada menos “canônica” ou importante:  pensemos, por exemplo, nos versos e na experiência literária de Guido Cavalcanti (o primeiro dos amigos de Dante), muito lido e recuperado por Ezra Pound, no século XX; ou mesmo, ainda, em Pulci e no seu Morgante, que terá um significado capital para Rabelais, enquanto na Itália só mais tarde – no século XIX – será recuperado na cultura humorística, familiar a Ippolito Nievo e a Carlo Collodi.

Por outro lado, ninguém pode excluir por experiência que o que no passado foi menos considerado durante séculos possa ser reavaliado e muito mais revisitado no futuro.

Bloom identifica erroneamente o Cânone com a Tradição em absoluto, e a Tradição com a História no absoluto da literatura e da cultura: em suma, reduz ad unum uma complexidade de fenómenos distintos. Pelo contrário, a tradição, as tradições formam – no percurso acidentado da história com os seus eventos e da cultura que, através de debates, os assume e os interpreta – um sistema de interacção dialógica entre o passado e o presente, em troca mútua e determinação e em perene adaptação. Modelos formais e géneros diferentes podem confluir numa mesma tradição. Veja-se o exemplo da tradição cómico-humorística, na qual podemos encontrar diversamente, e, caracteristicamente, numa troca de passagens, prosa e poesia, música e letras de ópera, teatro e caricatura artística, formas cultas e formas populares, oralidade e escrita e escrita jornalística e escrita romanesca: em nome das sinestesias capazes de envolver as estruturas profundas de artes e géneros diferentes e, portanto, longe da sinestesia que é cara à literatura decadente.

Por peculiaridades semelhantes, o Cânone é tudo quanto há de mais polifónico e metamórfico, móvel, e “líquido”, não só porque na crítica e na história da literatura o debate sobre os valores estéticos positivos e negativos é incessante, mas também porque a própria noção de Cânone investe a visão e a interpretação – as “imagens” estimulantes (diria Annabela Rita) da memória histórica e das tradições, que estão actuantes em todas as culturas e que são consideradas dignas de serem “ futuradas”. Tradições que também respeitam as outras artes e ciências, além da literatura, e que podem ser colocadas em inter-relação entre si de modo polimórfico, como sugere, ainda, e com fundamento, Annabela Rita, sensível às numerosas e flutuantes possibilidades esquemáticas de codificação no desenvolvimento da história cultural do homem ocidental.

A Autora, assumindo um ponto de vista não dogmático, sublinha, quer a aparência de casualidade detectável na selecção de autores portugueses, feita por Bloom, quer a enorme multidão dos “lugares” europeus e internacionais em geral, da cultura, que produzem incessantemente cânones, e nem sempre com os mesmos critérios: desde as dispersas comunidades da crítica ou do público até aos prémios literários de prestígio, como, por exemplo, o Nobel. Trata-se de cânones que poderão, talvez, ser aceites, no todo ou em parte, pelos leitores de épocas posteriores à nossa e pelas instituições de ensino nacionais, mas também rejeitados da mesma maneira. Isso não importa; o que importa é que a literatura e os valores ou desvalores indicados por ele – por razões culturais díspares, como assinala Annabela Rita – são acto contínuo postos em discussão, caso contrário, a própria literatura acabaria por se tornar um objecto arqueológico, para admirar num museu. Annabela Rita sublinha um dinamismo semelhante e a “complexidade arquitectónica” do Cânone, cuja negociação dos elementos está sujeita, porém, às concretas mediações geracionais, sócio-económicas e institucionais (opções das políticas ministeriais, por exemplo), ou a uma (in/)adequada difusão de traduções. Além disso, a Autora observa como o termo “ocidental”, portanto, o Cânone assim definido, não pode ser confundido com o “mundial” e semelhantes. Poder-se-ia reduzir o campo a cada uma das literaturas nacionais, mas também esta noção não é nada pacífica: pense-se na riqueza secular de literaturas nacionais europeias em latim, ou, como é o caso de Portugal, também em castelhano (o famoso caso de Gil Vicente); ou, ainda, no que respeita à Itália, nas várias línguas da península, definidas por conveniência, mas de forma inadequada, “dialetos”. No entanto, é um facto que, dos cânones literários (apenas hodiernos?) – de simples leitores mas também dos comparatistas – em uso na Europa contemporânea, em si mesma continuamente prontos a abrirem-se e a voltarem a fechar-se, não são normalmente excluídos autores que não são europeus. Só para dar duas referências, basta mencionar aqui o brasileiro João Guimarães Rosa, com a obra-prima extraordinária de Grande Sertão: Veredas, ou o japonês Kenzaburo Oe, autor do memorável romance O grito silencioso, em que tece um diálogo estreito entre Dante da Vita Nuova e as tradições rurais de seu país. Sem mencionar clássicos gregos e latinos que, ao longo dos séculos, têm composto os cânones, e ainda os compõem com graus desiguais de intensidade.

Impressiona a insistência sobre as temáticas convergentes e divergentes nas obras, e a multiplicidade dos exemplos e das múltiplas perspectivas culturais através das quais Annabela Rita se interroga sobre o Cânone, a pluralidade da literatura, as tradições dos géneros, e das suas implicações e aberturas simbólicas, até à interacção entre as artes. Este volume – com seus horizontes interdisciplinares e interculturais – é, portanto, uma das mais confiáveis réplicas europeias a uma obra como a de Bloom, em que prevalece uma ideia mais fechada e estática que aberta e culturalmente articulada de Tradição; mais o julgamento do gosto individual que o subjetivo e necessário, ou mais próprio do olhar do crítico e historiador da literatura.

Literatura, cultura: futuro, na verdade.


Revista Triplov . Série Viridae
Julho de 2022
Tributo a Annabela Rita