NICOLAU SAIÃO
Em 1999, mais exactamente na tarde do dia 13 de Maio desse ano, efectuei uma palestra na sala de exposições da Associação “Abril em Maio”, cujas instalações na Rua da Verónica já tinham recebido e iriam receber ainda outros operadores de diversos cometimentos, pois o evento geral constava de uma acção cultural alargada e constituida por uma série de colóquios, mostras de arte, debates e o lançamento de uma revista, que também transportou um poema de minha autoria.(*)
O convite, intermediado pelo meu confrade Luís Vintém na sua condição de membro da Associação, fora-me dirigido por Eduarda Dionísio, directora da “Abril em Maio”.
No final da sessão – (formada pelo texto que também li em Junho na “Livraria Lusófona” aquando do lançamento em Paris do meu livro “Flauta de Pan”) – seguida por uma assistência razoavelmente bem composta e participativa, um dos presentes dirigiu-se-me e felicitou-me com urbanidade e apreço.
Os cabelos brancos e uma barba talhada à lavallière enquadravam um rosto expressivo e uns olhos agudos. Afirmando-me melhor, reconheci-o então e um abraço cordial veio coroar o (re)encontro. Era o Vítor Silva Tavares, quase trinta anos mais velho desde os nossos tempos da tertúlia no Café Monte Carlo, mas sempre firme nas actividades culturais e interventivas.
Fôra ele, conforme me disse, que pedira ao Luís Vintém poesia de minha lavra, pois era ele quem orientava a revista da Associação.
Recordámos, naturalmente em estilo a vol d’oiseau – como é habitual em final de sessões daquele tipo – momentos passados no conhecido entreposto onde nos reuníamos com os demais confrades (Ernesto Sampaio, Pedro Oom, Ricarte-Dácio, Virgílio Martinho, Miguel Erlich, Herberto Helder, António José Forte…) e se traçavam projectos de diversa ordem em amenas cavaqueiras.
Vítor Silva Tavares era a meu ver um homem bem informado, dono de um inquestionável conhecimento da literatura moderna e contemporânea de maior qualidade, o que lhe permitia traçar os seus planos de editor duma forma simultaneamente avançada e sensata.
Sendo cordial no trato quotidiano, era também prestável. Recordo-me que, quando me desloquei a Lisboa em companhia de outros membros da Direcção do Clube de Futebol do Alentejo para convidarmos para uma sessão no velho CFA o cantautor José Afonso, foi ele quem prestimosamente nos facilitou a forma de chegarmos da melhor maneira à residência deste artista.
Ele orientava, naquela época, o suplemento cultural do “Jornal do Fundão”, o conhecido “& Etc”, que mais tarde se transformaria numa revista dada a lume na capital. Devido a isso, publicara-me naquele espaço dois poemas – dos quatro que lhe entregara e que ele planeara dar a lume em duas saídas.
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Contudo, só a primeira viria à estampa pois, conforme depois me revelou, a Censura – sempre velhacamente atenta – liminarmente impedira a segunda “dose” de ir conturbar a paz dos potenciais leitores…
E são esses poemas – os dois últimos não publicados – que, com alguma compreensível nostalgia, aqui vos dou a ler. |
ANÁLISE ESPECTRAL
Embora seja dia
a vida densamente esvoaçante
por uma profunda afinidade com a virgem negra
do hemisfério tranquilo
inclina-se cada vez mais.
Os veados na pesada clareira da floresta
colocam travesseiros em frente dum ventilador.
Sob os lenços durante uma fracção de segundo
as luas desabam estendendo a mão.
Os homens libertam-se galho por galho.
O sangue passa pelas agulhas
em velocidade moderada.
Tudo é um clima e não um tempo.
“El Norte!” murmurou o anjo
aconchegando-se nos seus trapos
enquanto deus encolhia os ombros
resignado
ameaçado de atraso na sua enorme torre branca.
Ora mais ligeira, ora mais vagarosa
a dama suspensa reflecte a luz contra o rosto
da memória não-habitada.
A extravagância avança entre chamas.
– O que é o Homem? pergunta o pássaro a vapor
no desfiladeiro das cavilhas.
– Um produto que não pode ser guardado
transportado e consumido
tudo no mesmo instante. – responde a pomba de Verão
mergulhada em agonia
meio centímetro a leste do céu.
É tão vão esperar que a alma se suspenda
numa peneira
como esperar que a virtude
no longo declive das lendas
projecte sobre o Universo a secura hibernal
das grandes feridas.
Finalmente, o Homem, a truta, o escafandrista e o ouro
incendiado
levam-nos a crer na existência de diversos estados
oscilatórios
com períodos duplos ou quádruplos:
o amor, o crime, a solidão
etc, etc.
ELES VÊEM
Desde os seus inícios a inocência pretendeu
ser a obra eterna a uma dimensão nova no sinistro universo
das qualidades. Mas na ilha onde germina o zimbro
das gargalhadas, os altos fornos vencidos esquecem os grãos
da idade e os anõezinhos persistentes.
A ciência é a imagem do Verão em conflito
com a serenidade talvez assassina.
Posso estar em desacordo com o meu próximo. Nunca, porém
com a consciência do trovão numa sala às escuras.
Submetendo os deuses a excitações que exijam
respostas contraditórias
verificar-se-á que a madrugada é uma máquina
misteriosa, muito diferente do aspecto dado por duas
ou três gotas de saliva segregada pela carapaça
ardente da humanidade.
Sabe-se que a eloquência das paixões é semelhante a uma
aurora olhando o Inverno penosamente.
Mas, cuidado: o Homem esquece; o escaravelho agoniza.
E os licores preciosos nem sempre deixam as mãos contemplar
com ternura o coração gelado da amante morta.
Assim o milho provoca a melancolia. Assim os pêndulos
choram, ao longo dos continentes, a firmeza
magnífica dos loucos, esses que entraram já
na máscara da Terra, e vivem
paredes-meias com os mortos
e com os ratos negros de perturbantes
cabeleiras.
Assim na colina cercada de sonhos
por todos os lados
nesse leito de prata onde se morre
sem chaminés nem horizontes
ante o brilho devastado das janelas
o manequim venenoso solta o seu pio
o seu gemido iluminado.
A morte é uma chave; ávidos, entre as colinas dardejantes
eles espiam a orgulhosa concha
da ostra solar. Povoadas
de ossos musicais, as cidades entregam-se
à ferocidade e ao crime duma perpétua
abstinência.
POEMA
É possível que a sobreposição da vida e das manchas sonoras
nas paredes dos corredores
constituam a primeira evocação dos mágicos que nunca
falaram nem podem emanar deles mesmos.
Muito frequentemente
os desenhos que a criança executava navegavam sobre a obra
das gerações. As transformações progressivas
reflectem um mundo onde o isolamento se baba com autoridade.
As aves que serenamente voam nos domingos
conhecem agora a catástrofe.
Não é de estranhar que as ondas e os lírios
da fascinação chorem no jogo do amor: nunca ninguém dissera
arquejando que os ouriços cujas campainhas se agitam
apodreciam junto ao sorriso da Virgem.
O rigor – essa formação paralela – caminha na eternidade
como um rosto.
Pela noite
enquanto milhões de almas amavam a bela mulher de cera
os invisíveis partilhavam o sofrimento.
Todas as dificuldades apareciam e desapareciam.
Os três objectos que seguiam o pó das datas convenciam-se
de que o mas de cada poeta não era mais do que uma flor
sem braços.
Milhares de silêncios negavam o não.
Os outros
que sobre os sinais característicos do Mal
ocultavam os restos da agonia
renasciam de tarde soluçando
erguendo o seu castigo com bravura.
Este candeeiro seria até capaz dum assassínio.
– E os esqueletos? Onde se encontravam essas formas geométricas
concentradas num gesto molecular
depois iluminado com a sua própria história?
A tonalidade musical não respondia.
Em torno do Futuro as abóboras fluíam
contrastando entre si.
Muitos anos mais tarde
nos dedos insubmissos do sentimento
necessariamente feito para tranquilizar
o exotismo depunha gravemente
micróbios e ausências.
POEMA
O fatalismo primaveril é uma oferta
liberta, mole, autografada
em pé
na cidadela da dúvida.
Inquieto e isolado
o moscardo fiel espera a escama dos olhos
e dos amores
antes de largar a sua pele
de rato sob as intrigantes lunárias.
Depois
dos amados anos
fica no lazareto
chorando a partida
dos búzios
o ranço
dos astros
medrosos
a agonia dos
renascidos fetos
Noite, noite
homem, mulher
agasalho esfumado da Terra ardendo
ergue sem piedade a nossa
violação
o nosso
jogo inútil.
A voz apodrecida
sentada
de enormes vultos negros descendo
os rios
lança no infinito a lâmina do Levante.
Macio, macilento
eterno
caminhar da ternura
quem marcha em ti antes do meridional assassinato?
A modéstia protege-nos
putrescente
e reconciliada
e o sangue não é sangue
é um salvo-conduto
assenhoreando-se do inferno e do céu.
Novamente
a luz.
O luto
a manhã que mastiga
os ossos
construídos no corpo.
O perigo em nós remove o sentimento
ilusório e fugaz
de não morrermos nunca.
in “Fábrica Nocturna”
* Anexo: poema a que se alude no texto introdutório, publicado na revista “Abril em Maio” orientada por VST .
ENVIO
Se nos pedem um poema, num qualquer dia de Abril
a nós que moramos entre o exílio e o reino
que é como quem diz entre a hora do lobo e a hora
do cigarro, devemos responder: “Sim senhor. Vá com deus.
Lá o terá, em tempo”. Ou, entrando na verdade – entrando
na grande manhã – dizer logo que não
que ultimamente os meses nos aborrecem
que há um som inquietante à hora de deitar
em suma, estamos a Sul
da tal alegria, do tal raminho de hortelã
como quando em crianças isso bastava ao velho olhar
de um dia a outro dia: segunda, sexta-feira…
Mas descrevamos os meses, descrevamo-los
como mapa deslindado ou então como simples hipótese
(ou seja, maravilha abandonada, imagem temerosa
que o acaso nos ofertou, coisa feita de somenos
ou de somais realidade legítima ou sinistra): descrevamos
Janeiro, lugar onde há um rasto de sangue numa pedra
ou Fevereiro, o tempo em que a voz disse coisas inúteis
e Março, paraíso dos calendários e dos planetas que rodam
no céu de Abril quando a cinza cobre os campos e as fontes.
Olhemos Maio, páteo lajeado onde a chuva já não tamborila
a não ser que uma certa mão faça deter as horas
e olhemos ainda Junho e façamos uma pausa
para pensar, por fora do poema, em coisas como uma sala vazia
um rumor de passos atravessando o antigo corredor
e a lembrança dos outros países de mistério
para sempre desaparecidos. E Julho, com os seus vultos imprecisos
com nuvens e ventos e outra quinquilharia poética, que
no entanto prende as horas de realidade ou de abandono
dos minutos de Agosto, lugar verdadeiramente ausente
– que nisto não há simulações apesar do que se possa conceber
e a cada ondear do poema corresponde uma recordação
ou uma tristeza ou uma
perca de coisa ou pessoa, de imagem ou reflexo
(esse Agosto das flores mortas sobre rostos de pedra).
E então chega Setembro, a antecâmara dos finos silêncios
quando uma linha traçada num papel pode representar o adeus
e já se anuncia Outubro, guindaste sobre uma ponte derrocada
para que o Natal se apresente com as amplas figuras do mundo
e os ventos tornados brisas de angústia e de lembrança desaparecida.
E antes ficou Novembro, com plantas que se estendem sobre os corpos
com dias de aniversário que os anos foram devorando, com
algumas velas no mar, alguns animais passeando entre as árvores.
O Novembro dos seres e dos não seres imateriais e algo solenes
por vezes com vinho novo dentro e fora do que se escreveu
e os olhos em amêndoa e plantas exóticas pelos cantos.
Os meses têm o seu minuto e o seu perfil
chegam sem que a gente se dê conta e então é tarde demais
eles oscilam por vezes como se o cansaço os apertasse
entre designações ora vagas ora luminosas (como a chama duma vela)
e mal nos distraimos é de novo madrugada
E eis que já partiram, com seu logro e sua bondade
como vagabundos ao luar, olhando os horizontes exactos
naturalmente reconhecidos, amados com sua eternidade
ou ironia.
(Depois incluído no livro “Os olhares perdidos”, publicado na Universitária Editora).
© Revista Triplov . Série Gótica . Inverno 2017