Saudade de futuro
MODERNISMO PORTUGUÊS
Organização de Antoneli M. B. Sinder e Daniel M. Laks
JUDITH TEIXEIRA, UM CLÁSSICO DO MODERNISMO PORTUGUÊS [1]
Por Jorge Vicente Valentim[2]
Este texto é para Maria Lúcia Dal Farra,
mestra de roxo e de todas as cores.
É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina
a atualidade mais incompatível.
[Ítalo Calvino. Porque ler os clássicos, p. 11.]
As minhas emoções não podem, portanto, obedecer a pautas
nem a conceitos tradicionais. Nascem duma vibração misteriosa,
e eu vivo-as e sinto-as e traduzo-as na maior porção de
elegância que a minha arte lhes pode dar.
[Judith Teixeira. De mim, p. 286.]
No conhecido ensaio Por que ler os clássicos, Ítalo Calvino propõe, em 14 tópicos, algumas tentativas de definições do termo conceituador de obras e nomes da literatura universal. Em cada uma destas etapas, o eminente professor italiano procura sublinhar os aspectos ímpares que destacam títulos e autores dentro do repertório poético e ficcional, partindo de alguns exemplos dos sistemas literários grego, latino, francês e italiano. A sua ideia gira sempre em torno da singularidade capaz de tornar uma obra inesquecível para o seu leitor, a ponto deste não mais conseguir diferenciar as ordens de contatos e encontros com aquela, pouco importando, portanto, se estes se dão numa leitura ou numa releitura.
Fato é que para Ítalo Calvino, um clássico define-se pela sua riqueza de mensagens e pela forma sempre atual de transmitir um determinado conteúdo em tempos e espaços mais diversos. Daí a sua afirmação aforística de que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (CALVINO, 2004, p. 11). Longe, portanto, de entender o termo dentro de uma concepção meramente historicista ou canonizante, o autor de Seis propostas para o próximo milénio abre uma possibilidade de entendermos, dentro desta categoria, tanto os textos produzidos num passado mais remoto quanto aqueles nascidos a partir do cenário da modernidade. Talvez, por isso, a sua postura cuidadosa em chamar a atenção para as maneiras como um clássico não se esgota em si mesmo, daí as suas leituras sempre se constituírem também um fluxo contínuo de temáticas e abordagens. Na sua certeira concepção, portanto, “os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (CALVINO, 2004, p. 11). Em outras palavras, aplicando as propostas de Ítalo Calvino à abordagem aqui pretendida, se por um lado, a minha leitura deste clássico muito deve aos que, antes de mim, se debruçaram sobre a obra da autora, por outro, há-de se pensar na bagagem artístico-cultural deixada por Judith Teixeira como uma verdadeira herança em favor daquele “sagrado direito à diferença” (MELO, 1982, p. 58).
Gosto de pensar, neste sentido, que esta seja uma apropriada maneira de iniciar minhas breves reflexões em torno da escritora portuguesa Judith Teixeira (1888-1959), que não pode ser esquecida no contexto do modernismo português. Nascida em 1888[3], em Viseu, ou seja, dois anos apenas antes do ultimatum inglês, momento de impacto sócio-político no contexto finissecular português, a autora pertenceu a um tempo de mudanças drásticas e complexas, muitas vezes, pressentidas de forma violenta e arrebatadora.
Num mundo essencialmente masculino, conservador e de ordem patriarcal, há-de se entender o porquê do incômodo de sua voz a pregar em alto e bom som uma disposição feminina liberta de quaisquer vínculos com este estatuto regulador dos comportamentos sociais e afetivos, Judith Teixeira compõe uma obra que podemos considerar avant la lettre para o seu tempo. Lida por este viés, a sua obra não deixa de estabelecer pontos significativos de contato com aquela “primeira onda feminista” (BONNICI, 2007, p. 89), desencadeada no final do século XIX e ao longo das primeiras décadas do século XX, na Inglaterra e nos Estados Unidos. A preocupação maior deste movimento, como bem esclarece Thomas Bonnici (2007), é a de estabelecer um vínculo de igualdade entre os direitos de homens e mulheres, além de analisar e combater “o dano psicológico e econômico feito às mulheres quando são forçosamente dependentes do sexo masculino e excluídas das responsabilidades públicas” (BONNICI, 2007, p. 89).
Ainda que seja temerário incorporar o gesto de Judith Teixeira a esta linhagem, onde se vislumbram nomes como os de Josephine Butler (1828-1906), Barbara Leigh-Smith Bodichon (1827-1891) e Emmeline Pankurst (1858-1928), não me parece gratuito o fato de a escritora portuguesa ter sido diretora de um reconhecido periódico mensal da época (Europa, de 1925), com “secções diversas de cinema, desporto, teatro, moda, ficção científica e alguma colaboração literária (Américo Durão, Aquilino, etc.)” (ROCHA, 1985, p. 647), cujos temas, para além de superarem uma aparente veleidade de comportamentos femininos, não deixava de sugerir muito mais uma participação ativa da mulher em assuntos que, até então, na sociedade portuguesa, eram de responsabilidade e exclusividade dos homens.
Neste sentido, o olhar poético e ficcional judithiano também não deixa de reivindicar o espaço feminino nas relações amorosas e nos estabelecimentos de laços afetivos, sem discriminar o objeto desejado e para onde se direcionam as atenções eróticas. Vale lembrar que não só ela, mas outra escritora do seu tempo também não deixou de passar por uma espécie de descrédito público, pelo simples fato de articular um discurso desejante marcado pela liberdade. Florbela Espanca, escritora deste cenário do entre séculos XIX-XX, com o seu “donjuanismo feminino” (RÉGIO, 1980, p. 179), como bem sublinhara José Régio, fincou definitivamente uma estaca no coração do estatuto regulador masculino ao declarar o livre trânsito da mulher nas sendas amorosas: “Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: Aqui… além… / Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente… / Amar! Amar! E não amar ninguém!” (ESPANCA, 1999, p. 232).
Ora, se esta dinâmica florbeliana afetou sobremaneira o status quo social e moralizante da época, como bem atesta Maria Lúcia Dal Farra (1999), não se pode esquecer que Judith Teixeira se inseriu de maneira sintomática neste cenário, ao delinear um outro caminho possível, fora dos parâmetros controladores e patriarcais, porque, para além de reivindicar o seu grito de liberdade, consolidou também a possibilidade de dizer e efabular as múltiplas orientações do seu desejo. Talvez, por causa disto, René Garay a tenha associado a uma expressão sáfica, típica de um comportamento de rasura a certos modelos pré-concebidos por um conservadorismo ortodoxo, ainda presente nas primeiras décadas novecentistas em Portugal. Para o ensaísta, o uso da expressão “modernismo sáfico” (GARAY, 2002, p. 37) em relação ao processo criador de Judith Teixeira, cuja base encontra-se na produção da poetisa da ilha de Lesbos (Safo), abrange uma conotação ampla que, em sintonia com o modernismo de Orpheu, vem instaurar uma “técnica iconoclasta do discurso do género na modernidade” (GARAY, 2002, p. 69) portuguesa, afora a sua nítida conotação decadentista, outra evidência estética que a coloca em sintonia com as práticas artísticas de vanguarda:
Este processo estilístico do sáfico englobará, portanto, significados múltiplos que refletem uma nova estética do moderno. Para além de conotar a inversão sexual do sujeito ou de uma intertextualidade específica de motivos e estilos eólicos, o modernismo sáfico será um instrumento subversivo que privilegiará a sexualidade feminina. O sáfico torna-se, assim, um eros irreprimível, gerador também da criação poética (GARAY, 2002, p. 69-70).
Interessante observar a arguta leitura que faz René Garay, ao postular a singularidade da autora de Decadência, a partir de sua originalidade em “captar a realidade em novos modos de expressão” (GARAY, 2002, p. 70). Um deles incide sobre o seu modus vivendi sob o signo da arte decadentista, em virtude de sua capacidade de captar o apelo e o poder de determinados sentimentos, tais como a sedução, a dor, a alegria, o sonho, a utopia, o misticismo, a morte e a vida, sempre com a perspectiva da ambiguidade. Concordamos, portanto, com o ensaísta, quando sublinha a peculiar visão de Judith Teixeira, que “gerava, por vezes, a indefinição semântica ou modal. No entanto a sua apreensão aguda das coisas e a confissão do prazer dos sentidos, potenciava momentos únicos de afirmação e de projecção de uma realidade sem preconceitos e de uma consciência ímpar” (GARAY, 2002, p. 22-23).
Apesar do viés de leitura aqui proposto não incidir sobre a questão do lastro decadentista na poesia de Judith Teixeira – confira-se, neste caso, o minucioso ensaio já aqui citado de René Garay (2002) –, não se pode negar que este traço reivindica uma consolidação da modernidade poética em muitos outros escritores do início do século XX em Portugal, como Luís de Montalvor, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, por exemplo[4].
Na verdade, na esteira das propostas de Douwe W. Fokkema, pensar o “modernismo sáfico” (GARAY, 2002, p. 37) efabulado nas obras de Judith Teixeira, dentro do quadro epocal do modernismo portuguesa, no meu entender, significa reconhecer que “o campo semântico da sexualidade (incluindo a homossexualidade) é uma aquisição modernista” (FOKKEMA, 1998, p. 56). Logo, tal expressão liberta do desejo feminino não seria uma confirmação do envolvimento da escritora com o movimento literário desencadeado em 1915?
Logo, no tocante à escritora aqui estudada, o dizer desejante de “corpos subtilizados, / femininos” (TEIXEIRA, 2015, p. 60) que se atraem num erotismo sáfico declarado não pode ser compreendido simplesmente como um desvio psicologizante de uma mente “desavergonhada” (CAETANO in GONÇALVES, 2014, p. 159), como queria uma certa crítica de sua época. Trata-se, na verdade, da expressão de uma subjetividade sensual/sexual que não perde jamais a consciência e o lastro de sua feminilidade, como bem se pode perceber nos versos de “Perfis decadentes”:
Fitaram-se as bocas sensuais!
Os corpos subtilizados,
femininos,
entre mil cintilações
irreais
enlaçaram-se
nos braços longos e finos!
…………………………………………………………..
E morderam-se as bocas abrasadas,
em contorções de fúria, ensanguentadas!
…………………………………………………………..
Foi um beijo doloroso,
a estrebuchar agonias,
nevrótico, ansioso,
em estranhas epilepsias!
(TEIXEIRA, 2015, p. 60)
É esta expressão de um desejo incontido, de bocas sensuais e sensualizadas pela pena poética, de beijos marcados por uma ansiedade nevrótica e por reações agônicas, como as “estranhas epilepsias”, verbalizada em Decadência (1923) que faz a poesia de Judith Teixeira um autêntico clássico da e na literatura portuguesa do início do século XX, dentro daquela concepção deixada por Ítalo Calvino. Interessante observar que, neste poema, especificamente, é o sujeito lírico que, mesmo sem deixar marcas visíveis de seu gênero feminino, observa de maneira minuciosa “dois corpos esculpidos em marfim” com seus “perfis esfíngicos, / e cálidos” (TEIXEIRA, 2015, p. 57). Mesmo, portanto, não estando diretamente envolvida com a ação descrita, a voz poética não deixa de perceber e efabular a cena do encontro entre estes dois entes consumidos pela paixão.
Ora, não seria, assim, uma maneira outra de participar do ménage, valendo-se de uma postura de voyeur, de alguém que se compraz na observação atenta do prazer divido entre as partes agentes do enlace físico? Não seria este voyeurismo poético uma forma de também ser parte integrante de um jogo erótico sáfico, até porque o observar e o descrever não seriam mecanismos outros de demarcar a sua participação? Gosto de pensar, neste sentido, que esta postura supostamente passiva, de quem não estaria inserida na própria cena criada, constitui uma máscara possível por onde o safismo judithiano se espraia. E este, por sua vez, seria a fonte desencadeadora de todo um discurso crítico conservador e ortodoxo, que, na esteira da polêmica da “Literatura de Sodoma”, julgou-a e condenou-a às fogueiras de um castigo com ares medievais.
Mas, se estas atitudes deflagram a incompreensão diante daqueles atos de viver, sentir e traduzir, experienciados por Judith Teixeira na sua criação estética, como bem esclarecera na sua conferência De mim (1926), são exatamente eles que, mutatis mutandis, permitem a leitura da autora e de sua obra como autênticos clássicos da literatura portuguesa modernista, naquele sentido defendido por Ítalo Calvino. Afinal, “um clássico não é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe” (CALVINO, 2004, p. 12)? Ainda, portanto, que muitos apontamentos analíticos tão distintos se reúnam em torno de Judith Teixeira, são “os reduzidos, os pequenos, os limitados” (TEIXEIRA, 2015, p. 285), na feliz caracterização que faz a autora de Decadência, aqueles a quem a sua obra salutarmente repele para longe.
Cláudia Pazos Alonzo e Fábio Mário da Silva (2015), nos estudos introdutórios à publicação da obra da escritora portuguesa, por mais de uma vez, acentuam e sublinham rigorosamente o seu pensamento feminista avant la lettre, quer na construção de um sujeito lírico com um comportamento rasurante e consonante com o “descaso de Teixeira para com as convenções sociais”, e com atitudes denotativas de uma “mulher emancipada e por isso frequentemente mal vista” (ALONSO, 2015, p. 32), quer na criação de protagonistas ficcionais tipificadoras de uma insubmissão “aos ditames sociais (dos homens), gerando uma série de conflitos que fazem o leitor repensar o papel da mulher na sociedade do começo do século XX” (SILVA, 2015, p. 268).
Por este viés analítico, compreende-se a necessidade e a urgência atual de reler (ou ler pela primeira vez) Judith Teixeira como um clássico, naquela acepção de Ítalo Calvino (1993), posto que ela resguarda a sua condição visionária de antecipação e modernidade, sempre com um grau inequívoco de surpresa. No entanto, se é possível olhar a produção poética e em prosa desta escritora como uma obra avant garde, não será também plausível entende-la como precursora de uma família estética, cujas fontes genéticas poderiam ser encontradas em autoras e títulos a ela anteriores? A exemplo de Jorge Luis Borges (2007), em “Kafka e seus precursores”, ouso aqui propor também uma maneira muito particular de reler Judith Teixeira, reconhecendo “sua voz, ou seus hábitos, em textos de diversas literaturas e de diversas épocas” (BORGES, 2007, p. 127).
Observando os poemas já aqui citados e o olhar feminino desmesurado de um sujeito diante de objetos sensuais do mesmo sexo, fica difícil não compreender a forte presença do gesto homo(lesbo)erótico de Judith Teixeira em consonância com os versos da poeta grega Safo:
Igual aos deuses me parece
o homem que, sentado à minha frente e próximo,
a tua doce voz escuta e o teu
riso amorável. Isso me faz
tumultuar o coração no peito. Ver-te
me basta, na verdade, para que
a voz me falte, a língua
se me fenda e um repentino
fogo subtil alastre
sob a minha pele, os olhos
se me escureçam, os ouvidos
me zumbam, o suor
me inunde, um arrepio
me percorra toda. Fico
mais verde do que a erva, sinto
que vou morrer…
(SAFO apud MARTINS, 2009, p. 117-118).
Os conhecidos versos de “A uma amada” revelam o descontentamento de um sujeito feminino diante das investidas de um concorrente masculino sobre a mulher amada e desejada, daí os efeitos colaterais físicos atingirem em cheio o corpo do sujeito enciumado. Ou seja, o eu-lírico feminino sente na matéria física corporal a gravidade do ciúme em relação ao seu objeto amado e desejado. Daí as imagens gradativas que perpassam desde o coração tumultuado, até a língua fendida, a pele em chamas, os olhos escurecidos, os ouvidos embotados, o suor latente, o arrepio percorrido e, por fim, o esverdeamento e a morte pressentida. Toda esta sequencia não deixa de exacerbar as ânsias desejantes do sujeito e, ao mesmo tempo, a sua insatisfação diante da possibilidade de partilhar, dividir e, até mesmo, perder o seu objeto desejado por causa da ação aproximativa de outro.
Ora, levando em consideração os mesmo critérios utilizados por Borges para ler O castelo, de Kafka, por exemplo, poder-se-ia conjecturar que esta, talvez, seria uma das mais primitivas cenas judithianas da história ocidental. E, ainda que as cenas de uma dor delirante sejam muito mais recorrentes na poética judithiana do que propriamente os arroubos de ciúmes, não se pode negar que o olhar desejante, desmesurado e sáfico se faz presente como uma das marcas singulares de seu projeto de escrita, tal como revela alguns versos finais de “A minha amante”:
E ninguém sabe que é de ti que eu vivo…
Que és tu que doiras ainda
O meu castelo em ruína…
Que faze da hora má, a hora linda
Dos meus sonhos voluptuosos –
Não faltes aos meus apelos dolorosos…
– Adormenta esta dor que me domina!
(TEIXEIRA, 2015, p. 83)
Em outro texto de minha lavra (VALENTIM, 2013), já tive a oportunidade de sublinhar as ligações entre as duas escritoras, e, agora, aqui, retomo o fio daquelas anteriores ligações intertextuais, para pontuar o gesto deste eu lírico judithiano como um sujeito que se cola à própria pele do objeto amado para com ele compor uma simbiose erótica: “[…] tu estás / na minha fisionomia / e no meu gesto!” (TEIXEIRA, 2015, p. 82).
É o corpo, portanto, deste sujeito que responde positivamente aos apelos desejantes do seu objeto amado e, ao mesmo tempo, negativamente, numa atitude de confronto, desconfiança e desrespeito blasé a códigos sociais moralizantes, incapazes de entender a natureza e a essência deste discurso amoroso: “Dizem que eu tenho amores contigo! / Deixa-os dizer!… / Eles sabem lá o que há de sublime, / nos meus sonhos de prazer…” (TEIXEIRA, 2015, p. 82).
Olhadas estas duas falas femininas (a da escritora grega e a da portuguesa), portanto, lado a lado, gosto de pensar Judith Teixeira como uma autêntica escritora “que cria seus precursores” (BORGES, 2007, p. 130), bem ao gosto de Borges, constituindo-se, portanto, um caso singular de um clássico da literatura portuguesa, conforme sugerido no pensamento de Ítalo Calvino, posto que, seus livros também exercem aquela força particular porque se “impõem como inesquecíveis” e, mesmo “ocultos nas dobras da memória”, são capazes de mimetizar-se como “inconsciente coletivo ou individual” (CALVINO, 2004, p. 10-11).
Outro caso onde se pressente a voz e os hábitos judithianos encontra-se em Louise Labé (1522-1566), a Belle Cordière ou a plebeia meretrix, como a chamava Calvino, por exemplo, a escritora do renascimento francês, destacada por um estilo pujante de reação a uma ordem ortodoxamente masculinista. De acordo com Felipe Fortuna, seu tradutor, “valendo-se de sua privilegiada posição social, Louise Labé defendeu as idéias feministas de seu tempo. Sobretudo porque possuía todas as qualidades básicas de um humanista” (FORTUNA, 1995, p. 13), além de manejar com desenvoltura instrumentos musicais, como o alaúde, e armas de guerra, como o arco e a flecha. Ou seja, ela era, na verdade, uma donzela com circulação íntima pelos domínios essencialmente masculinos, como bem se poderá perceber em alguns dos versos de sua “Elegia III”:
Quando vós lerdes, Damas Lionesas,
Os meus escritos de amor e tristezas,
Quando os meus choros, tédios e rancores
Forem ouvidos em carnes e dores,
Não condeneis de maneira tão rude
Um jovem erro em minha juventude,
Se um erro foi: porém, quem sob o Céu
Se vangloria de jamais ser réu?
[…]
Mas se existir em mim algo imperfeito,
O Amor tem culpa: ele assim tem-me feito.
Ainda eu bem moça, ele me enlaçava
Enquanto o corpo e a mente eu praticava
Em mil e um trabalhos engenhosos,
Que se tornavam logo tediosos.
Com minha agulha posta a tricotar,
Eu quis um dia a fama boicotar
Daquela que, bem mais douta que astuta,
Quis igualar-se a Palas em disputa.
E assim me vendo as armas empunhar,
Portar a lança e a hasta arremessar,
E combater um combate furioso,
E enraivecer o cavalo glorioso,
A Bradamante, ou Marfisa afamada,
Irmã de Roger, eu fui comparada.
Mas como? Amor não poderia ver
Um coração que ama Marte e o saber.
(LABÉ, 1995, p. 161-163).
Ainda que o sujeito poético labéliano referencie as relações amorosas fadadas a encontros trágicos entre casais heterossexuais (“Páris amou Enona ardentemente, / Mas seu amor não durou longamente. / Medéia foi amada por Jasão, / Que logo a pôs em grande perdição”; LABÉ, 1995, p. 165), são as marcas do inconformismo com um status quo preestabelecido, ou, ainda, da insatisfação e da insuficiência com lugares-comuns do modus vivendi feminino, que a voz desta elegia parece assumir-se como uma autêntica insurreição de resistência. Nada desconhecido, por sinal, da personagem ficcional judithiana, Maria Margarida, de “Satânia”.
Nesta novela, é a personagem feminina que literalmente entra na batalha corporal com Manuel, o filho do caseiro, rapaz de físico marcante (“a cabeça alta e erguida, de olhos negros, encarvoados, a boca forte num recorte escultural, e o corpo flexível e musculoso marcando uma força e uma virilidade”; TEIXEIRA, 2015, p. 302), cuja ênfase descritiva esteticista corrobora o apelo erótico que a faz, por sua vez, se debater com a submissão a uma relação já acordada com António, preferido do pai para a união. Como bem sublinhou Fábio Mário da Silva (2015), o confronto não é apenas físico, ou em termos de construção da personagem, de visibilidade de atributos, mas também de subserviência (ou não) a um fortíssimo código social, posto que o jovem desejado não possui a formação profissional e nem pertence ao círculo social das classes envolvidas. Por outro lado, o pretendido pela família não desperta qualquer desejo ou lampejo erotizante na personagem, ao contrário, a ânsia sensual desta tende a extravasar um magnetismo corporal que não encontra em António o ponto de concentração necessário para sua realização plena. Tal será, portanto, o lamento revelado na segunda carta dirigida à amiga Cristina:
Tive toda a noite uma atitude mentirosa que eu não sei se terei coragem para repetir…
Oh! O segredo da carne!… A minha grita indominável nuns braços que me não subjugam, numa ânsia que não se acalma… E tudo morre num tédio que o António não merece…
Tenho a cabeça esvaída, nem posso continuar esta carta
(TEIXEIRA, 2015, p. 321).
Interessante observar que este duro confronto, vivido por Maria Margarida, no desejo pelo corpo físico sedutor em contraposição ao corpo social desnivelado, do jovem Manuel, só poderia se revelar na dimensão confessional, daí a astuta utilização de um discurso epistolográfico monovocal, já que o leitor só se depara com as cartas enviadas por Maria, e não as recebidas por ela da amiga. Se por um lado, esta centralização na protagonista obnubila a tentativa do estabelecimento de um diálogo, por outro, não deixa de enfatizar os sentimentos nevróticos e narcísicos, tão caros a um certo pendor decadentista, que exalam pelas páginas das cartas. A meu ver, o que interessa, portanto, é corroborar a presença de uma voz inconformada, insatisfeita, desassossegada e intensamente resistente, que, diante do impasse e da impossibilidade, só vislumbra na morte a única saída possível.
Toda ele carregado de laivos de penumbra e tons sombrios, o vulto da protagonista tem sua última aparição no mar, restando apenas a “sua capa verde” que se confunde como “uma grande alga marinha trazida pela ressaca nessa noite de tempestade misteriosa e negra” (TEIXEIRA, 2015, p. 245).
Neste sentido, gosto de pensar que Judith Teixeira, apesar de repetir o desfecho trágico, típico de certas narrativas finisseculares sobre amores homoeróticos, como bem esclarece Peter Gay (2000), não deixa de manifestar o seu conhecimento dos modelos mais recorrentes na sua época. No entanto, nas novelas de Satânia (1927), procura articular uma dimensão não obrigatoriamente homossexual, posto que a prática de um final marcado pela dor, pela separação e pela tragédia não se constituiria um roteiro com esta orientação. Ao contrário, a questão parece residir na ênfase sobre o desassossego do sujeito diante de normas impositivas e os meios encontrados para destas se desviar.
Muitos poderão conjecturar que somente a morte poderia acalmar as ânsias da protagonista, no entanto, não deixa de ser instigante o seu final: afinal, sem a constatação tácita de um corpo moribundo, será possível confirmar o seu óbito? Interessante observar que este, mesmo acontecendo, não se rende à arbitrariedade do modus vivendi instituído, antes se liquefaz, se desintegra, ou melhor, se dilui e se reintegra num universo cósmico místico, longe do toque petrificador dos sepulcros que impõem sobre os corpos uma lápide cerceadora.
É, pois, na contra-corrente de prisões irremediáveis, que a postura de Maria Margarida insurge-se, optando deliberadamente por uma liberdade plena que só a mobilidade das águas poderiam oferecer. Neste sentido, não consigo deixar de pensar nesta composição textual de Judith Teixeira como uma obra de pendor feminista avant la lettre. A par da distância que separa a sua obra das questões levantadas pela “segunda onda feminista” (BONNICI, 2007, p. 101) – de onde sairia, aliás, a insatisfação dos rumos tomados pelo movimento reivindicador dos direitos da mulher e, por conseguinte, o “feminismo lésbico” (BONNICI, 2007, p. 101) nas décadas de 1960 e 1970 –, já não estariam as imagens e os eixos temáticos da produção de Judith Teixeira apontando para um caminho irreversível de anti-normativização dos comportamentos femininos, oferecendo uma possibilidade outra de manifestação da subjetividade erótico-sensual dos seus agentes?
Afinal, não será ela a, por mais de uma vez, proclamar a sua atitude avant garde: “Noutros cenários a minha alma vive! / Outros caminhos… / Por outras luzes iluminada! / – Eu vim daquele mundo onde estive, / tanto tempo emparedada…” (TEIXEIRA, 2015, p. 167)? É claro que afirmar categoricamente a ligação entre a escritora portuguesa e as agitações políticas das ondas feministas, decorrentes ao longo do século XX, seria por demais temerário, no entanto, não se pode negar que Judith Teixeira explicita todo um inconformismo, típico dos artistas daquele modernismo das primeiras décadas do século XX, em “querer investir contra o conservadorismo” e “escandalizar o burguês pacato” (BERARDINELLI, 1985, p. 167), não apenas a colocando, assim, em consonância com os homens da geração órfica, mas também conferindo à sua voz uma reivindicação adiantadíssima do papel delegado ao sujeito feminino.
Assim sendo, nesta leitura, gosto de pensar o lugar de Judith Teixeira como um clássico deste contexto epocal e das gerações sucedâneas, posto que, ao gosto de um Italo Calvino, também sua obra “vem antes de outros clássicos”, e fácil se reconhece “o seu lugar na genealogia” (CALVINO, 2004, p. 14) tanto dos seus contemporâneos, quanto no dos seus precursores e sucedâneos.
Parafraseando o ensaísta italiano, para quem, estes “os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos” (CALVINO, 2004, p. 16), ouso mesmo afirmar que Judith Teixeira é um clássico do modernismo português porque suas obras quando lidas de fato, mais se revelam novas, inesperadas, inéditas e precursoras. E assim são, porque não poderiam se submeter ao jugo conservador de sua época e nem poderia de outro modo se manifestar a não ser pela vivência, pelo sentimento e pela tradução, marcados sob o signo de uma arte elegante, como ela própria iria justificar em De mim (1926).
Por isso, em forma de reconhecimento, encerro minhas reflexões, emitindo agora o que antes deveria ter registrado: o meu agradecimento sincero a Claudia Pazos Alonso e Fábio Mário da Silva por trazerem de novo à cena este clássico da literatura portuguesa do século XX que é Judith Teixeira.
Referências bibliográficas
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TEIXEIRA, Judith. Poesia e prosa. Organização e estudos introdutórios de Cláudia Pazos Alonso e Fábio Mário da Silva. Lisboa: Dom Quixote, 2015.
VALENTIM, Jorge Vicente. Safo em Sodoma: a escrita feminina de Judith Teixeira em tempos de Orpheu. Abril, Niterói, n. 5, v. 10, p. 147-164, 2013. Disponível em http://www.revistaabril.uff.br/index.php/revistaabril/article/view/110/69 Acesso em 10 de maio de 2023.
Notas
[1] Texto originalmente apresentado como comunicação no Colóquio em Homenagem a Judith Teixeira, realizado nos dias 28 e 29 de outubro de 2015, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Palácio da Independência. Como se encontra publicado nos anais, com difícil acesso, o autor achou por bem divulga-lo com algumas modificações para a presente coletânea.
[2] Doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Titular de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista Produtividade do CNPq. Presidente da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (ABRAPLIP), na gestão 2022-2023.
[3] Durante algum tempo, a data de nascimento da escritora ficou sob o signo da dúvida. No Dicionário cronológico de autores portugueses, sob a coordenação de Eugénio Lisboa (1994), aparece o ano de 1873. No entanto, em 1996, na edição dos Poemas da autora, realizada por Maria Jorge e Luis Manuel Gaspar, a suspeita é aparentemente desfeita, com a utilização de documentos comprobatórios do ano exato do nascimento de Judith Teixeira: 1880. Posteriormente, outros estudiosos de sua obra (Garay, 2002; Dal Farra, 2010) seguirão esta linha biográfica. No entanto, em 2015, no mais recente resgate da obra da autora, Claudia Pazos Alonso e Fabio Mario da Silva apontam o ano de 1888 como a data mais confiável do seu nascimento. Em virtude da utilização desta edição e da seriedade com que os dois investigadores recuperam a trajetória judithiana, adotaremos também esta referência temporal. Centrada toda ela na década de 1920, a sua obra publicada compreende livros de poemas: Decadência (1923), Castelo de sombras (1923), Nua. Poemas de Bizâncio (1926); uma conferência: De mim (1926); e de ficção: Satânia. Novelas (1927).
[4] Idéia profusamente difundida e defendida por diversos críticos, recomenda-se, neste caso específico, a leitura dos ensaios de José Carlos Seabra Pereira (1995).
Revista Triplov . Tomo Saudade de Futuro . Setembro de 2023