ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO
[Isabel Meyrelles – que se define como a única mulher portuguesa que, enquanto artista, se define puramente como surrealista – vive em Paris desde 1950, editou os três volumes da Poesia de Cruzeiro Seixas e preparou uma antologia em 4 volumes da poesia surrealista portuguesa, que começou a ser publicada em 2013. Acedeu em falar connosco, deixando um testemunho incontornável sobre o surrealismo em Portugal, que ela acompanhou desde 1949. Mário Cesariny no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo Português” (1973), define-a como velha companheira das primeiras acelerações do aparelho respiratório.]
ACF | Veio para Lisboa em 1947 ou 1948, entre o momento em que Mário Cesariny está decidido a criar um grupo surrealista em Lisboa e o momento do seu rompimento com António Pedro e José-Augusto França no Grupo Surrealista de Lisboa. Quando e como conheceu Mário Cesariny?
IM | Quando eu fui viver para Lisboa, expus na “4a Exposição de Artes Plásticas” uns estudos de movimentos da violonista Ginette Neveu. Dias depois recebo uma carta que dizia “Não gostamos” assinado “Os Surrealistas”. Telefonei ao Mário e marcámos encontro no SNI. Ele veio com o Cruzeiro Seixas e tivemos uma longa conversação seguida de muitas outras e acabámos amigos para toda a vida.
ACF | O momento em que conheceu Mário coincidiu com o momento em que conheceu António Maria Lisboa e Cruzeiro Seixas? Conheceu estes antes ou depois e em que circunstâncias?
IM | Os rapazes do grupo dissidente ou eram demasiado tímidos, ou “homophobes” ou então achavam que eu era um bicho estranho, o que de facto era. Nos anos setenta fui conhecendo melhor o Mário Henrique Leiria, o Carlos Eurico da Costa e o Calvet, que então já me consideravam como “gente”.
ACF | Teve alguma participação na formação em 1949 do grupo dissidente “Os Surrealistas”? Quais as suas relações com o grupo?
IM | Não tive a menor participação na formação do grupo. Aliás nem sequer os conhecia. Pouco frequentei o grupo, mas como andava sempre com o Mário e o Cruzeiro Seixas, forçosamente os encontrava quando havia manifestações surrealistas. Uma delas foi no meu atelier, eles subiram ao telhado, apesar dos meus protestos. Sempre eram oito andares!
ACF | Assistiu a muitas acções do anti-grupo de Mário Cesariny e António Maria Lisboa. Uma delas acontece mesmo, como acaba de referir, no telhado do seu atelier na Rua do Ferragial, perto do Chiado e da Escola de Belas Artes. Quer recordar alguns pormenores daquilo que vivenciou?
IM | As minhas relações com o Mário e o Artur fizeram-me viver dias inesquecíveis. Por outro lado eu andava a aprender escultura com o António Duarte, grande mestre e bom amigo. O surrealismo era para os outros, mas eu era curiosa de tudo e o surrealismo fascinou-me imediatamente. Essa mesma curiosidade fez-me conhecer gente de todos os quadrantes das artes e das letras. Durante o ano e meio que estive em Lisboa, vivi dez vidas!
ACF | A Isabel Meyrelles veio depois a ser considerada “a única mulher portuguesa que, enquanto artista, se define puramente como surrealista”. Já se definia como surrealista nessa época? Quando se aceitou a si mesma como surrealista e porquê?
IM | Em Paris conheci por acaso o Tristan Tzara e a minha costela anarquista ficou encantada em conhecê-lo. Toda a época Dada me foi contada e isso despertou o meu interesse pelo surrealismo que estava adormecido em mim. Suponho que estava à procura de uma fada que me despertasse e essa fada foi o Tristan Tzara.
ACF | Publicou o seu primeiro livro de poemas em 1951, Em voz baixa, com um desenho de Cruzeiro Seixas. Foi uma forma de ligar o livro às actividades do surrealismo em Portugal?
IM | Foi por pura amizade que pedi ao Artur para ilustrar o meu primeiro livro, como aliás todos os outros, excepto o último.
ACF | Dedicou esse seu primeiro livro a Natália (Correia). Como e quando conheceu Natália Correia?
IM | Conheci a Natália Correia numa festa em casa de amigos. Ela pediu-me que fizesse uma escultura dela nua, pois não o queria pedir a um escultor homem. Acedi ao seu desejo e fiz um nu que nunca mais foi visto, pois o futuro marido, Alfredo Machado, escondeu-o imediatamente. Ficámos amigas durante 30 anos ou mais.
ACF | Natália Correia tinha nessa época contactos com os surrealistas dissidentes do Grupo Surrealista de Lisboa? Havia afinidades fortes da Natália dessa época com o surrealismo?
IM | A Natália, quando eu a conheci, estava casada com o Bill, um americano, e ela atravessava uma época de snobismo, e frequentava condes e marqueses. Só mais tarde, com a morte da mãe, e já casada com o Alfredo Machado, se interessou de novo pela vida literária. Apresentei-lhe o Mário Cesariny e o Cruzeiro Seixas e foi desse encontro que nasceu a antologia O Surrealismo na poesia portuguesa.
ACF | Perfecto E. Cuadrado na introdução ao livro que reúne a sua obra poética, Poesia (2004), afirma o seguinte: Isabel Meyrelles – naquela altura para os amigos, Fritzi – a fumar cachimbo nos cafés, na companhia dos surrealistas dos dois grupos – António Pedro, O’Neill, Cesariny, Cruzeiro Seixas (…). Porquê Fritzi?
IM | Essa história era uma lenda que corria sobre mim, como tantas outras. Só fumei cachimbo em público no Café uma vez para escandalizar o Tenreiro, que trabalhava no SNI e que queria por força conhecer-me. Foi um reboliço no café, eu apaguei logo o cachimbo, o dono do café veio falar comigo e disse-me que era proibido as senhoras fumarem cachimbo nos cafés; nessa altura o meu Tenreiro levanta-se como um leão cavalheiresco e disse ao homem que era mentira tudo o que ele tinha dito, e se queria fazer queixa que o procurasse nestes sítios, e começou a tirar cartões de tudo o que era Governo e terminou a dizer que a avó dele fumava cachimbo. O patrão quase se ajoelhou para pedir perdão, com grande gáudio dos presentes e aqui acaba à minha história de fumar em público. Conheci todos os surrealistas de que fala, noutros lugares. O nome de Fritzi foi-me dado por uma amiga alemã e guardei esse nome enquanto estive em Lisboa. Era uma espécie de anonimato que me dispensava de muitas coisas.
ACF | Quais foram as suas relações com António Pedro e Alexandre O’Neill?
IM | Foi o Mário que me apresentou o O’Neill. Com o passar do tempo ficámos bons amigos. O António Pedro, conheci-o em casa de amigos e em certos jantares organizados nas tascas de Lisboa e de Belém; a ideia era que todos os artistas plásticos ou literários se encontrassem para conversar de tudo, excepto de política. O António Pedro era um homem encantador, um conversador brilhante e tínhamos muitos amigos comuns. Mas nunca fomos amigos íntimos, como com o Alexandre O’Neill. Também conheci o Lemos e os outros, mal, pois só por acaso nos encontrávamos. Não conheci nessa época o José Augusto França.
ACF | Uma das intervenientes do Grupo Surrealista de Paris nessa época, Nora Mitrani, companheira de Hans Bellmer e depois de Julien Gracq. Nora esteve em Lisboa em Janeiro de 1950, onde fez uma conferência sobre o surrealismo no Jardim Universitário de Belas Artes em 12 de Janeiro. Assistiu?
IM | Encontrei em Lisboa a Nora Mitrani muito de passagem. O Alexandre O’Neill escondeu-a a toda a gente (lembre-se um “Adeus Português”). Não fui à conferência porque eu não sabia.
ACF IM | | A Isabel Meyrelles foi para Paris em 1950. Continuou ali estudos na Sorbonne e na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts. No início de 1951, António Maria Lisboa voltou a Paris, onde estivera em 1949. Esteve com o autor de Erro Próprio em Paris?
IM | Vi o António Maria Lisboa várias vezes em Paris; ele aparecia no café onde eu ia quase todas as noites, para pedir dinheiro para comprar uma sandwich e também ao Costa Camelo e não sei se a outros portugueses noutro café. Como nós sempre embirrávamos muito um com o outro, nunca falávamos; ele só queria que lhe pagassem uma sandwich; fazia pena vê-lo.
ACF | Em 1963, Mário Cesariny obteve uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para ir para Paris estudar e recolher elementos sobre a obra de Maria Helena Vieira da Silva, com vista a escrever um livro sobre ela. No início do ano seguinte, em 1964, partiu para Paris, onde ficou até ao Verão. Como foram as suas relações com o Mário Cesariny nessa época?
IM | Ele estava a viver na minha casa, rua de Savoie (perto de St. Michel). As nossas relações eram boas, aliás víamo-nos muito pouco, eu trabalhava na minha livraria e ele andava à “caça” dia e noite, às vezes encontrávamo-nos em casa quando ele precisava dalguma coisa. Foi lá em casa que ele escreveu A Cidade Queimada.
ACF | André Breton regressou dos Estados Unidos em 1946. Reconstituiu então o grupo surrealista em Paris, essencialmente constituído por gente nova, nascida pela mesma época da Isabel, do Mário, do Artur ou do Lisboa. Estou a falar de pessoas como Jean-Louis Bédouin, Jean Schuster e Nora Mitrani por exemplo. Teve contactos em Paris com o Grupo Surrealista ou com personalidades ligadas ao surrealismo?
IM | Como já disse, o meu verdadeiro encontro com o surrealismo foi através do Tristan Tzara, do Philippe Soupault, do José Pierre e de outros amigos deles da ‘velha guarda’ do surrealismo. Como achava insuportável a fobia das mulheres e dos homossexuais do Breton, nunca tentei conhecê-lo e os outros, que você citou, vi-os por vezes, mas só quando havia exposições surrealistas, e trocávamos algumas palavras. Mais tarde vim a conhecer o Sarane Alexandrian e o grupo de surrealistas que frequentava. Era um grupo muito século XXI, cada um fazia o que lhe apetecia, como eu. Tive muita pena quando o Sarane morreu, era um bom amigo e a revista dele Superieur inconnu tinha, por vezes, muito interesse, mesmo se a tecla erotismo era tocada de mais.
ACF | Perfecto Cuadrado fala dos anos do seu regresso a Portugal entre 1971 e 1977, altura em que fez em Lisboa, no Largo da Graça, com Natália Correia, o restaurante “Botequim”. O que foi a experiência do “Botequim”?
IM | Com efeito, a Natália Correia e eu fundámos um restaurante, o Botequim. Eu era responsável pelo restaurante e ela ocupava-se dos clientes e amigos. Durante uns anos foi divertido, mas depois veio a fadiga, os horários longos e eu, verdade se diga, não me entendia por razões de funcionamento interno, com o gerente, o marido da Natália. E depois as minhas relações com a Natália estragaram-se, pois passei de amiga a cozinheira, o que me custou a suportar. Saí de lá a correr para Paris com uma depressão nervosa que custou a passar.
ACF | A Isabel voltou todavia para Paris, onde ainda hoje vive. Fale-me do convívio com Benjamim Marques, recentemente falecido, que frequentou o café Gelo no final da década de 50, na praça do Rossio, em Lisboa e foi outro português a ficar longamente por Paris.
IM | O Benjamin Marques foi um grande amigo, expusemos juntos várias vezes e as telas dele faziam uma bela companhia às minhas esculturas. Estávamos sempre de acordo sobre tudo, o que não me ocorria há muito tempo. Fiquei desgostosíssima quando ele morreu.
ACF | E Alfredo Margarido?
IM | Vimo-nos muito durante uns anos e discutimos muito sobre a minha antologia surrealista na qual ele meteu a sua colherada. Dava-me também muito com a mulher dele de então, a Manuela. Eles até ficaram em minha casa em Paris quando eu vim passar esses malfadados anos em Lisboa.
ACF | O que procurou com a sua poesia, espaçada mas surpreendente?
IM | A minha poesia é um mistério para mim. Acordava e já tinha o poema escrito na cabeça… E por isso que não me considero poeta, eu sei lá de onde eles vêm?!
ACF | O que foi editar a Poesia Completa de Cruzeiro Seixas?
IM | Foi um trabalho que levou um ano a fazer, ele entregou-me pilhas e pilhas de poemas na mais completa desordem. Para mim foi um trabalho imensamente cansativo e tenho a impressão que ele nem deu por isso. Aos surrealistas tudo é devido, não é? Um quarto livro devia ser publicado com as obras já publicadas, mas o editor faliu.
ACF | O que é hoje para si o surrealismo?
IM | Para mim o surrealismo é sobretudo a liberdade, foi sempre ao que aspirei desde muito nova, a liberdade da criação plástica que me vem quando menos o espero, isto graças às portas e janelas que o surrealismo abriu para mim.
[A IDEIA – 7 de Março de 2014]
revista triplov . série gótica . outono 2019
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
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