BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa
Já não é a primeira vez que falo dos dois assuntos (1), e a questão parece ser mesmo a do confronto de dois assuntos diversos. Façamos no entanto justiça ao surrealismo: em certo período, anos cinquenta a setenta, Herberto Helder manteve relações com o movimento, ou, dizendo talvez melhor, com os seus amigos empenhados nas práticas e ideias surrealistas. É assim que o vemos colaborar com Natália Correia, nas coletâneas O Surrealismo na Poesia Portuguesa (2), e na Antologia da Poesia Erótica e Satírica Portuguesa – aliás, o caso de Natália Correia é idêntico ao de Herberto Helder: podemos considerá-la poeta surrealista? Com Mário Cesariny de Vasconcelos, Herberto publicou, na Guimarães Editores, um cadavre exquis, em co-autoria com João Rodrigues e José Sebag (3).
Não parece que o cadavre exquis tenha obtido grande atenção, em teses ou trabalhos exteriores à academia, e não direi que por defeito da recepção. Creio bem que uma obra literária escrita a três, de acordo com as regras do cadavre exquis, ou mesmo transgredindo-as bastante, como parece ser o caso, dificilmente ultrapassa o caráter de jogo. Esse devia ser um dos jogos surrealistas praticados no Café Gelo, por Herberto Helder, entre outros, se bem que um analista do surrealismo com a importância de Carlos Felipe Moisés , entrevistado neste tomo da Revista Triplov por Rui Sousa, pergunte o que é o Café Gelo (4).
Vamos em 100 anos de distância das primeiras manifestações de dadaístas, futuristas, surrealistas, interseccionistas, modernistas e outros focos de reação contra estéticas antigas, e anotemos que as estéticas nunca se desvinculam da vida e que estas estéticas abrigam vidas das mais difíceis e amargas. Porém, o simples facto de se pretender eternizar uma dessas estéticas, já a aniquila num passado tão histórico que causa incómodo aos presentes. Os surrealistas continuam a causar desconforto, se bem que por motivos menos estéticos do que pessoais e afetivos.
Herberto Helder cortou publicamente com o surrealismo, ou mais provavelmente com os surrealistas, no artigo do Jornal de Letras e Artes assinado com Máximo Lisboa. Não podem ser mais claros, no meio da obscuridade da furiosa saída, ao proclamarem a recusa, cito, da denominação de “surrealistas” que alguma crítica, por desatenção e desocupação, lhes atribuiu ou atribuirá (5). Por conseguinte, a rejeição projeta-se no futuro, e vamos anotando, em aparte, que Herberto Helder desde muito jovem soube que teria um futuro nas Letras. De seguida o par dissidente diz o que aceita do surrealismo, donde fica claro para todos que eles se divorciam dos surrealistas muito mais que do surrealismo.
Em todo o caso, ao trazerem â cena a crítica, fica explícita uma das razões da zanga: eles recusam influências, rejeitam em absoluto – Herberto Helder rejeita em absoluto, emendo, a acusação de ser discípulo.
Para não me alongar mais neste assunto razoavelmente estéril, avaliemos a sua participação na antologia O Surrealismo na Poesia Portuguesa, em que Natália reúne poetas desde a mais tenra idade da nossa Lírica. Entre outros poemas, Herberto Helder entregou para edição o que vários autores, eu incluída, consideram um dos mais belos poemas de amor da nossa língua, O amor em visita, publicado como opúsculo em 1958, na Contraponto, editora de Luiz Pacheco sobejamente conhecida por quem estuda o surrealismo em Portugal. Em que medida podemos considerá-lo uma obra surrealista? Se me perguntarem, longe do tópico surrealista, quais as suas influências mais importantes, as suas afinidades de eleição, em suma, que poemas ou textos ama O Amor em Visita, eu não me lembrarei do Amour Fou nem de Nadja. Por muito que ame estes dois livros, a minha resposta será muito mais direta e fundamentalista: a Bíblia. Uma das mais fortes presenças na obra herbertiana é a Bíblia, como de resto é presença, consciente ou inconsciente, na maior parte dos autores de cultura cristã ou judaica. Mais perto ainda, O amor em visita recorda um poema da Bíblia reinterpretado por Herberto Helder no livro O bebedor nocturno, já o leitor sabe o final da minha frase, sim, se há influências, se Herberto Helder era discípulo de alguém nos tempos surrealistas, era-o daquele Salomão a quem se atribui o Cântico dos Cânticos.
(1) “Herberto Helder: é e não é um poeta surrealista”. Edição original na revista A Ideia. Em linha n’A Viagem dos Argonautas: https://aviagemdosargonautas.net/2014/04/22/a-ideia-herberto-helder-e-e-nao-e-um-poeta-surrealista-por-maria-estela-guedes/
(2) Natália Correia, O Surrealismo na Poesia Portuguesa. Ediçoes Europa-América, 1973.
(3) Herberto Helder, João Rodrigues & José Sebag, O cadáver esquisito e os estudantes. In Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito, org. Mário Cesariny, Lisboa, Guimarães Editores, 1961.
(4) Rui Sousa, “Entrevista com Carlos Felipe Moisés”. Revista Triplov, Série Gótica, Verão de 2019.
(5) Herberto Helder & Máximo Lisboa, “Ou o Amor, ou a Vida, ou a Loucura, ou a Morte”. Jornal de Letras e Artes, Lisboa, 2 de Maio de 1962.
REVISTA TRIPLOV
série gótica