GUSTAVO DOURADO
O meu verdadeiro reconhecimento do que é o cordel verificou-se há uns anos, no curso de um encontro de escritores, aliás uma feira do livro, em Recife e Olinda, Pernambuco, sob organização de Floriano Martins. Os cordelistas, eles sós, eram uma festa, salientavam-se na enormidade do salão com as suas roupas à maneira tradicional do nordeste, a lembrarem Lampião e Maria Bonita. Depois, as bancas transbordavam de folhetos coloridos, em papel de seda ou igualmente fino, ilustrado com xilogravuras e escrita ingénuos. Abrindo os folhetos, deparava-se com o poema narrativo, completamente rimado, em muitos casos história de personalidades locais ou heróis já construídos no tempo, como a de Lampião e Maria Bonita, precisamente alguns dos mais cantados. Os cordelistas declamavam os seus próprios poemas, aliás o cordel descende da literatura oral portuguesa medieval, outros tocavam instrumentos de corda ou feriam tambores com as mãos. Fiquei muito impressionada com a vitalidade daquele mundo de escrita, hoje reconhecido internacionalmente como património cultural, material e imaterial do Brasil.
Cultura popular é o que a literatura de cordel encena. E digo encena com alguma intenção teatral, pois a cultura popular brasileira ultrapassa o cordel, tende para a obra total, e outra arte inspira-se no cordel, a exemplo do teatro/cinema proporcionado por Ariano Suassuna, com o bem conhecido “Auto da Compadecida”, gerado a partir de três cordéis. O próprio José Saramago achou um ilustrador cordelista para a sua historinha «O Lagarto», J. Borges.
Gustavo Dourado pertence a outra geração cultural, o seu cordel afasta-se um tanto da forma mais popular em favor da liberdade proporcionada pela arte moderna, porém, no que diz respeito à essência do cordel, que é a de ser um poema narrativo, tal como no que diz respeito à temática, ele continua próximo dos cordelistas mais tradicionais, quanto a informar, a contar histórias e a História, a celebrar acontecimentos e pessoas. A sua atividade é notória, pelas notícias que vamos recebendo, de atribuição de prémios, convites para membro de academias, participação em eventos culturais, muitos deles concorridos por jovens e crianças. É constante a sua presença nos meios de comunicação, quer para ser entrevistado, quer para declamar os seus cordéis, quer para os publicar em jornais e revistas, impressos ou virtuais.
Em suma, Gustavo Dourado participa de uma cultura muito viva no Brasil, sobretudo cultura nordestina, aquela a que o cordel mais verdadeiramente pertence, e que eu caracterizaria por ser uma grande festa.
Não posso negar que me senti vaidosa por, há anos, ter merecido a honra de um cordel de Gustavo Dourado, esse mesmo que achei por bem reeditar agora. Neste aspeto se nota outro desvio de Gustavo Dourado da tradição mais popular do cordel, ligada ao cangaço e outros motivos do Nordeste. Notemos que Gustavo Dourado dedica cordéis a José Saramago, Fernando Pessoa, Federico García Lorca, e a dezenas de artistas de quadrantes variados, dentro e fora do Brasil, o que lhe confere uma dimensão muito mais ampla do que a apenas literária, popular e nordestina. De notar que os cordéis dedicados a personalidades são em geral biográficos, seguindo até uma linha cronológia desde o nascimento ao tempo presente ou à morte, segundo os casos. Digno de nota igualmente é o facto de Gustavo Dourado assumir uma posição pedagógica de constante mestrado, de resto ele é professor, e também pedagógica em termos diretamente políticos, como quando celebra efemérides ligadas à esquerda, haja em vista o Cordel para o 1º de Maio, que podemos ler na Memória fotográfica, ver índice deste tomo da Revista Triplov, no qual se declara a favor de uma “revolução permanente”.
Espero que com este tomo da Revista Triplov, dedicado a Gustavo Dourado, não apenas fiquemos a conhecer melhor a literatura de cordel, como o próprio cordelista, embora ele seja um velho conhecido e amigo nosso. Com efeito, Gustavo Dourado tem numerosos trabalhos publicados no Triplov, porque acompanha o portal, a bem dizer desde o seu início, em 2001. Aqui fica o nosso manifesto de gratidão por quanto tem ajudado o Triplov a impor-se como veículo de cultura.
Maria Estela Guedes
Dir. TriploV