Gosto de ver as minhas mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

ISABEL MEYRELLES
(1929- PORTUGAL)


Gosto de ver as minhas mãos

sonhar contigo,

sonhar os meandros

mais secretos

do teu corpo

floresta e armadilha,

fonte e bramido

 

Gosto de ver as minhas mãos

sonhar contigo,

entrelaçadas, adormecidas,

recriando o peito,

as espáduas, o ventre,

as coxas, o sexo,

amazônia interior

 

Gosto de ver as minhas mãos

sonhar contigo,

por vezes um único dedo

desenha no ar

os olhos, a boca, o cabelo,

estrela negra

que só eu conheço

Gosto de ver as minhas mãos

sonhar contigo,

sonhar esta travessia do espelho

de reflexos infindos

que é a minha recordação de ti.

Aliás, que outra coisa

podem elas fazer?

 

Isabel Meyrelles
Isabel Meyrelles

 

PARIS EM 1950

 

para Robert Desnos

 

Pequeno pequeno pequeno

ronronava a formiga de dezoito metros

aproximando-se dissimuladamente do Leão de Belfort

mas este fez orelhas moucas,

ele era não apenas de bronze

mas também cartesiano

e dizia para consigo que uma formiga de dezoito metros

não existe

não existe…

No que ele se enganava redondamente

o poeta a criou,

logo ela existe. Q.E.D.

Esteve ultimamente na Praça Denfer-Rochereau?

 

Isabel Meyrelles

 

O COMPLEXO DO ARMÁRIO

 

Se é infeliz,
insone, angustiado,
cardíaco, dipsomaníaco,
melancólico
ou hipocondríaco,
se anda deprimido
pelo tempo morto dos sonhos
e se acredita
que um na mão
vale mais
que dois a voar,
faça como eu:
arranje um armário.
O meu tem protecção
contra o nevoeiro, as traças,
a amnésia.
possui o tudo-é-d’esgo(s)to,
ar condicional
e muros acolchoados
para cabeças sensíveis.
Previ também
uns ganchos no tecto
para o excedente dos bolsos:
óculos, amores mortos,
sapatos velhos,
casa dos antepassados
e várias outras coisas
de que não direi o nome.
Para as horas de ócio,
escolhi um pedaço de mar,
a biblioteca de Babel,
a praça St. Germain des Prés
às 5 da manhã
e uma florestado Plistoceno
com inúmeros mamutes
e macairódus,
sem esquecer o fundo sonoro ad hoc,
rugidos, uivos
e barridos extremamente típicos.
Muito repousante.
Experimente
e depois diga se gostou.

 

Isabel Meyrelles

 

Isabel Meyrelles

 


revista triplov . série gótica . outono 2019

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21 MULHERES SURREALISTAS

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

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