Galopim e Maria Isabel? tenho-os comigo desde puto

 

TRIBUTO AO PROF. GALOPIM DE CARVALHO


EDITORIAL
Por César Lino Lopes

No vasculho das vivências de família, do tempo em que fomos lisboetas de trabalho e habitação na envolvente da Faculdade de Ciências, ouvi sempre alusões a Galopim e Maria Isabel e a idas a nossa casa destes nossos vizinhos de bairro e de função na academia. Não sei se seriam visitas frequentes, não tenho essa memória muito nítida, mas não me custa a imaginá-los lá em casa, em bom convívio, pois houve sempre um clima de amizade e boas relações entre as nossas famílias que a proximidade ditada pelas origens populares, poderá ter ajudado a estabelecer.

Não estivemos muito tempo naquela casa, em Lisboa, e dali nos mudámos era eu ainda criança. Lembro-me sim, de ir a casa deles, já andava na escola, e guardo a memória do conforto e do ambiente calmo e tranquilo, do som em surdina da telefonia, do sorriso e da voz doce de Maria Isabel que numa dessas visitas deu-me um bem precioso que usei durante anos e anos. Em duas ou três folhas de papel escreveu frases simples com as palavras em cores diferentes para uma mais fácil identificação do verbo, do sujeito, do complemento directo… enfim, toda a engenharia gramatical que eu precisava saber para conseguir escrever o que quer que fosse e que, anos mais tarde, no liceu, ainda me serviu para dividir com alguma facilidade as “orações” nas estrofes dos “Lusíadas”. Terá sido a epopeia mais bem sucedida na minha história trágico-lectiva de passagem pela escola.

Ainda miúdo, acompanhei o meu pai (que sempre trabalhou em geologia) e o Prof. Galopim numa saída de campo, creio que para os lados de Palmela. Teremos mesmo andado ali à volta do castelo se a memória da paisagem não me engana. De geologia não posso dizer que tenha aprendido alguma coisa naquela ocasião, mas sobre caracóis foi uma verdadeira iniciação. Começa quando, entre duas marteladas num afloramento, ouço o Prof. Galopim dizer que lhe está a cheirar a caracóis (!). A caracóis? A caracóis, pois claro. Percebi depois que se referia aos aromas e condimentos de preparação do pitéu que ali ocorriam espontaneamente. Para a iniciação ser efectiva, à teoria gastronómica sucedeu, em tasca especializada, a caracolada que fechou o dia de trabalho com umas cervejas para os senhores e uma “gasosa” para o rapazeco. Gostavam muito de caracóis eles, mas para mim foi uma experiência nova e uma revelação. Aprendi que os caracóis se petiscam com prazer e que os orégãos são o seu tempero primeiro. No regresso à Faculdade de Ciências, tenho a imagem dos dois conversando animadamente, com o Prof. Galopim a guiar o seu próprio carro, um fantástico “Mini 850”, naquele momento posto ao serviço da geologia.

A distância foi adiando as oportunidades de convívio e só nos voltámos a cruzar muitos anos depois destes episódios, mas devo até dizer que de uma forma bem intensa. No rol de momentos fortes desta relação, há um que me responsabiliza politicamente. Estamos em 1974 e vai reunir-se o Conselho de Gestão do Grupo Geo da Faculdade de Ciências de Lisboa que integrava a Secção de Geologia da Faculdade e o Museu e Laboratório Mineralógico e Geológico, seu estabelecimento anexo. Nessa altura já eu era funcionário do Museu (MLMG/FCL) e o Prof. Galopim era, então, Professor de Geologia nessa Faculdade. Tínhamos sido ambos eleitos pelos respectivos corpos para aquele órgão de gestão e naturalmente que se esperaria que ali se debatessem divergências e confluências na gestão do organismo conforme os interesses e espectativas de cada um dos corpos que o compunham. Timidamente lá me fui acercando da mesa de reunião, fui cumprimentando as pessoas com algum nervosismo dada a solenidade do momento e quando me preparava para tomar um lugar, o Prof. Galopim, já sentado, diz-me perentoriamente que ali não! “O teu lugar não é aí, o teu lugar é aqui à minha esquerda! Sempre à minha esquerda. À minha direita são os meus colegas”. Rimo-nos todos, mas a conversa era mais séria do que o riso e a boa disposição sugeriam. Era o assumir da norma ditada pelos interesses dos grupos profissionais e pela luta de classes – o corpo de trabalhadores técnicos, administrativos e auxiliares politicamente e à mesa de trabalho, deveria ficar situado à esquerda do corpo docente, por tradição o poder dentro da instituição.

Mais tarde, já com os museus da Universidade autonomizados da Faculdade de Ciências, o Prof. Galopim vem a ser director do Museu (MLMG/MNHN) e meu dirigente directo. Aí, foi causa comum e empenho daquele colectivo, o exercício da missão do museu em dizer alto e a toda a gente “o que é e como funciona a Natureza”, de contribuir com o seu património mais valioso – a “história da Terra e da Vida” – para uma ideia de Desenvolvimento que urgia concretizar. Foi o tempo do estabelecimento de diversas parcerias nacionais e internacionais, da realização das grandes exposições que foram atraindo (seduzindo?) milhares de visitantes numa dinâmica de comunicação de ciência sustentada em processos de produção científica própria – a investigação científica era a tradição estruturante de toda a actividade do museu – e foi também o tempo de lançamento das “Feiras de Minerais”, da elaboração de uma proposta de “exomuseu” que privilegia a musealização in situ de elementos geológicos representativos da história da Terra e da Vida, assumidos como polos científicos e pedagógicos do museu e designados por “geomonumentos”, entre muitas outras iniciativas.

Esta dinâmica interna deu espaço a uma estrutura informal de direcção partilhada, que só uma figura como o Prof. Galopim poderia dar corpo. A legislação de então já não contemplava a figura de gestão democrática do organismo, mas, através desta fórmula, foi mantida a representação e assegurada a participação dos corpos de trabalhadores e investigadores do museu. As reuniões periódicas com os seus quadros começavam sempre da mesma maneira, “vamos ser pragmáticos”, dizia, e abria o caderno onde tinha apontado o rol de tarefas distribuídas para ir fazendo, naquele plenário, o ponto de situação sobre cada uma. Já o debate sobre as grandes ideias e as grandes iniciativas era feito de forma alargada e informal fora do contexto laboral e, muitas vezes, sublinhado por bom vinho tinto, queijo e pão alentejano. Mas era também nesse debate que mais se manifestava e estruturava a nossa militância para além das estritas obrigações de carácter profissional.

O museu era (ainda é) um organismo público, integrado na Universidade de Lisboa com quadro de pessoal, orçamento e direcção formal, mas onde o Prof. Galopim que era director ocupando o topo da hierarquia, considerava que, na realidade, o museu, para além da sua identidade institucional e da formalidade da sua prática, funcionava como se fosse uma associação constituída por devotados militantes. Foram muitos os episódios que aqui poderiam ser relatados, mas há um que para mim teve um significado particular. No exercício das minhas funções coube-me representar o museu no “Conselho da Politécnica” que reunia as direcções dos organismos ali sediados e era presidido pelo reitor da universidade. Numa dessas reuniões a harmonia não foi exemplar e a dada altura estou a trocar insultos e murros na mesa com um dos participantes, Doutor e Professor ilustre na Faculdade de Ciências, director de um dos organismos antes referidos, ali sem qualquer cerimónia, em frente ao próprio reitor que, incrédulo, assistia à cena apelando à calma sem grande convicção no sucesso da sua iniciativa. Passada a reunião e a tormenta, fui directamente ao gabinete do Prof. Galopim informando-o do que se tinha passado assumindo a minha falta de polidez (e violência verbal) com um superior hierárquico que na minha apreciação, só poderia resultar em processo disciplinar. A resposta do Prof. Galopim foi que estava naquela reunião a representar o museu e em representação dele próprio e que a mão que se levantasse contra mim era, na realidade, contra ele que estava a ser levantada, nada devendo eu temer pela convicção com que tinha defendido a nossa perspectiva. E, de facto, a única coisa que aconteceu em consequência daquele tropeção foi a reconciliação entre os intervenientes, tempos mais tarde.

Foi um tempo muito particular de afirmação de uma nova função social do museu em que nos revíamos fortemente e onde o Prof. Galopim foi o grande protagonista, mas onde foi também possível a cada um de nós, trabalhadores do museu, deixar um vinco na acção daquele colectivo. Quis tentar manter-me à sua esquerda, como me recomendou naquela reunião em 1974, mas creio que muitas vezes fui bem mais conservador e menos audaz do que ele.

Ultimamente temo-nos reunido preferencialmente à mesa. De quando em vez convocados para ajudar a tratar de uma dobrada com feijão branco.

 


Revista Triplov – Série Viridae

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Portugal . Outubro de 2022