Floriano Martins e as manifestações surrealistas

FLORIANO MARTINS
Tributo


Floriano Martins e as manifestações surrealistas na América Latina[1]
Por JOSÉ CASTELLO


O escritor cearense Floriano Martins tem-se destacado por um trabalho inquieto como poeta, ensaísta, biógrafo, tradutor e editor. Em suas mãos, os gêneros costumam se mesclar e coexistir, e é isso o que ocorre mais uma vez neste O Começo da Busca, antologia crítica de poetas latino-americanos marcados pela estética surrealista, como Aldo Pellegrini, Enrique Molina, Octavio Paz e os brasileiros Roberto Piva e Sérgio Lima, na qual se misturam ensaios, poemas e entrevistas.

O nascimento do Surrealismo pode ser datado em 1919, quando André Breton e Philippe Soupault publicaram Os Campos Magnéticos, considerada a primeira coletânea de textos automáticos. A escrita automática, inspirada no Eu é um outro de Rimbaud e ditada pelo inconsciente, foi seu método principal. André Breton, o grande mentor, falava sempre em nós e, muito poucas vezes, no eu. Ele encarava a poesia não como uma atividade intelectual, submetida a regras e preceitos, mas como uma aventura; apesar disso, foi, muitas vezes, duramente criticado por sua postura rígida e seu gosto pelos sistemas. O Manifesto Surrealista, primeira sistematização de ideias até então dispersas, é de 1924. Teve adeptos entusiasmados e inimigos impetuosos. O escritor romeno Tristan Tzara chegou a dizer: Nós sim éramos contra todos os sistemas e a favor do indivíduo. Éramos contra até a ausência de sistema, desde que ela se transformasse num princípio. A polêmica nunca se esgotou.

Ainda que discrepantes, as vozes de Breton e de Tzara ainda se confundem. Num texto dos anos 90, o surrealista argentino Enrique Molina diz que o surrealismo não é um movimento estético, como outras escolas de vanguarda, mas uma concepção total do homem e de suas relações com o universo. Um reino sem fronteiras, cujos domínios ultrapassariam os da poesia. Quando desembarcou no México, Breton declarou que chegava ao país surrealista por excelência, frase que marca a introdução das ideias surrealistas na América Hispânica. Desde então, como diz Floriano Martins em seu ensaio introdutório, o surrealismo foi vítima de inúmeras confusões e atentados. Até hoje, em particular no Brasil, não recebe a consideração merecida.

O título da antologia de Floriano Martins, O Começo da Busca, é um empréstimo, invertido, do título de uma coletânea de ensaios sobre o surrealismo, A Busca do Começo, publicada pelo poeta mexicano Octávio Paz em 1974. Martins organizou este livro, entre outras motivações, com o objetivo de desmentir a ideia, bastante corrente, de que não houve surrealismo no Brasil. A primeira manifestação surrealista na América do Sul se deu em torno da revista Qué, publicada por Aldo Pellegrini no ano de 1928. O movimento perdurou ao longo do século, não se deixando vencer pelo tempo. Vinte anos depois, surgiria, também em Buenos Aires, uma segunda revista, Ciclo. A existência desse grupo, segundo Floriano Martins, desmente uma afirmação leviana de Octavio Paz, quando afirma que a relação da poesia hispano-americana com as vanguardas europeias restringia-se à imitação. Com Enrique Molina, a partir de 1952, Pellegrini dirigiu uma terceira revista, A Partir de Cero.

A concepção poética dos surrealistas, de fato, ultrapassa a noção de movimento datado. O argentino Aldo Pellegrini a definiu assim: A poesia nada mais é do que a violenta necessidade de afirmar seu ser que impulsiona o homem. É, ainda segundo ele, tudo aquilo que fecha a porta aos imbecis. Alargando ainda mais essa noção, Enrique Molina viu o surrealismo não como uma escola literária, mas como uma concepção total do homem e do universo. O movimento se espalhou pelo Chile, com o grupo Mandrágora, de Bráulio Arenas; pelo Peru, em torno das figuras de César Moro e Emilio Adolfo Westphalen; e finalmente pelo Brasil. Há um hábito da crítica esclarecida em situar Murilo Mendes como exemplo isolado do surrealismo no Brasil, Martins recorda. Não se pode, contudo, esquecer de nomes como Mário Pedrosa, Osório César e Flávio de Carvalho. Em sua antologia, o surrealismo brasileiro está representado por dois poetas contemporâneos, Roberto Piva e Sérgio Lima.

Na parte final do livro, há uma entrevista de Piva em que ele, lembrando Lautréamont, recorda que, desde o surrealismo, a poesia passa a ser feita por todos. Não para todos, mas por todos, cada um à sua maneira. Esta ênfase na liberdade – que o dogmatismo de Breton, em parte, destruiu – foi um dos motivos da lenta, mas persistente disseminação do surrealismo na paisagem mais dispersa da América Latina. O poeta Ángel Pariente chega a dizer que talvez os poetas americanos tenham sido mais audaciosos na busca de uma linguagem poética. Em sintonia com essa avaliação, o brasileiro Sérgio Lima afirma, por sua vez, que a grande novidade do surrealismo foi difundir a crença de que a arte não tem uma função em si, que ela é apenas um modo de expressão do vital no homem.

Apesar dessa perspectiva universal, o surrealismo brasileiro, até hoje, continua a ser desprezado. Um dos motivos, Martins cogita, seria a crítica que os surrealistas sempre fizeram ao modernismo e ao nacionalismo – que, a partir de 22, passam a dar as cartas no cenário cultural brasileiro. Virada a página do século modernista, talvez agora, enfim, se abra um espaço para uma retomada menos preconceituosa das ideias disseminadas pelos seguidores de André Breton. Nela, a antologia de Martins se torna, desde já, uma peça-chave.

 

[1] Originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 04/08/2002.


Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Colaborador das revistas Altazor (Chile), Matérika (Costa Rica), La Otra (México), Blanco Móvil (México), Triplov (Portugal) e Acrobata (Brasil). Estudioso da tradição lírica na América Hispânica e do Surrealismo.
Contato: floriano.agulha@gmail.com.
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